O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX
Stephanie Dahn Batista [1]
BATISTA, Stephanie Dahn. O corpo falante: Narrativas e inscrições num corpo imaginário na pintura acadêmica do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/corpo_academia.htm>.
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“Quando nossos artistas nos dão uma Vênus... eles mentem. Édouard Manet perguntou a si mesmo por que mentir, por que não contar a verdade? Ele introduz a Olímpia [Figura 1], uma fille do nosso tempo” (ZOLA apud Brooks, 1989, p. 11). Essa preocupação de Emile Zola marca bem a crise da representação do nu na segunda metade do século XIX, em Paris, como um problema no momento de negociação entre um corpo particular/sexuado e um geral/idealizado que até então funcionam como um pretexto da narrativa com referências clássicas, por exemplo, as deusas, ou referências exóticas, por exemplo, as odaliscas, ambos constituídos num deslocamento temporal-espacial. Agora, como reconciliar a representação do nu numa pintura da vida moderna? Essa preocupação antecede outra questão que é a relação do corpo com uma narrativa que, por sua vez, se inscreve no corpo, e este inscrito na narrativa. Quais são as diferentes narrativas de um nu, quer dizer, um corpo vestido em arte?
Durante todo século XIX a representação do corpo ocupou um “lugar obsessivo” (ZERNER, 2008, p. 104) entre os artistas que começavam a questionar as concepções do corpo tradicional, isso tanto na literatura como nas artes plásticas. Uma vez que a pintura histórica - gênero nobre - se funda no primado da figura humana, a representação do corpo ganhou um lugar privilegiado da imaginação. Uma pintura histórica, apesar de pretender relatar acontecimentos, sempre apresenta uma dimensão fictícia que significa que qualquer tentativa de descrever ou visualizar um acontecimento deve levar em conta diferentes formas de imaginação (KRAMER, 2001, p. 136-137). Nestas, narram-se os eventos e as personagens da história figurados por corpos carregados de gestos, posturas e relações simbólicas.
Então, pensando os elementos constitutivos de uma narrativa na busca de um texto fundador com seus mitos e heróis sobre o Brasil, que, segundo Naxara (2006, p. 40), significam o espaço e o tempo, pergunta-se como, ao lado da literatura e da história, a produção das artes visuais, especificamente o gênero do nu, ora deslocado no espaço e tempo, ora aproximado a uma situação do cotidiano, cria sua narrativa em prol de uma construção de nação - um retrato do Brasil inscrito nos corpos de suas personagens ficcionais? Tendo presente essa pergunta, este artigo procura refletir, em três notas, os discursos inscritos no gênero do nu em obras da pintura acadêmica brasileira da segunda metade do século XIX, período no qual se percebe uma transição nas produções do Rio de Janeiro: de um corpo a princípio idealizado e enredado em narrativas mitológicas ou literárias para um corpo real. Mas seja este um nu idealizado ou real, este corpo jamais é um corpo neutro, visto que sempre incorpora discursos normativos ou teóricos.
1. O lugar do corpo imaginário
O corpo na arte, seja na literatura, seja nas artes visuais, é sempre um corpo-representação, um corpo imaginário que revela narrativas dando sentido aos corpos. Essas narrativas são muitas e geram singularidades propiciadoras de significados: vida, morte, civilização, o corpo de uma nação, as marginalidades, a mulher, o homem, a cura religiosa, a saída alternativa, entre outros. Porém, sempre se trata de corpos construídos coletivamente, ou seja, corporeidades.
As várias representações do corpo imaginário indicam negociações que dizem respeito ao discurso do corpo, às relações sociais, às normas e aos valores de uma sociedade. Sendo assim, entendemos o “corpo como materialidade polissêmica” (SOARES, 2001, p. 1), como união de elementos materiais e espirituais e também como síntese de sonhos, desejo e frustrações de sociedades inteiras, pois o múltiplo sentido do corpo pede múltiplos olhares. Este objeto ganha durante o século XIX novas atenções de disciplinas como a medicina, as ciências biológicas, o discurso higiênico, o eugênico e a educação física. Tais conhecimentos visualizam-se de forma cada vez mais nítida em desenhos, caricaturas, fotografias, no cotidiano e nas artes maiores, como se a arte na sua textura pictórica, no traço do desenho, fornecesse a matéria para imaginar a realidade do corpo.
E registrar o corpo humano, quer de forma artística, quer em imagem industrial, envolve o elemento erótico, na sua complexidade física, psicológica, visualizando e projetando prazeres, dores ou desejos. O erotismo é considerado como um dos mais importantes protagonistas da História da Arte ocidental e fio condutor da narração sobre a figura humana (MAHON, 2005, p. 15). Desde o século XIX, a arte erótica desafia e, principalmente, questiona os limites morais aceitáveis da representação do corpo sexuado, que sofreu, nesse momento, novas complicações entre a sexualidade e o individualismo, de modo que o corpo tornou-se cada vez mais regulado e oprimido por costumes sociais e legislações proclamadas pelos discursos médicos e higiênicos[2]. É justamente na segunda metade do século XIX que, segundo Sarasin (2001), se constrói nos debates entrelaçados das ciências a fala moderna sobre o próprio corpo, “Eu tenho um corpo”, e com isso corrobora-se significativamente para a sua construção.
Paralelamente nas artes, o corpo imaginário, por ocupar um “lugar obsessivo”, confronta, nas representações, a teoria clássica, que insiste numa distância entre a representação e o referente; em outros termos, um nu moderno precisava encontrar um ambiente contemporâneo. Ao longo do século acontece a aproximação de imagem e realidade como reflexo dos ideais românticos que pretendiam eliminar os limites entre a arte e a vida, unindo a arte e a natureza em torno do corpo. Então, o corpo imaginário retorna ao real, só que a experiência do real informa, em si, a impossibilidade de a imagem real fixar-se senão pela intermediação da imaginação (ZERNER, 2008, p. 118). O corpo representado nunca é um corpo real, ao mesmo tempo, a representação se refere à nossa experiência vivida; ademais, essa experiência não é apenas visual, já que pode ocupar todos os sentidos. Ora abolir a distância, ora comunicar a plenitude da experiência da coisa, é preocupação que se encontra no Realismo, termo ambíguo e problemático. O pintor realista Gustave Courbet (1819-1877), por exemplo, representante desse período da História da Arte do Ocidente, valoriza a pintura como o ato próprio de pintar, de depositar matéria pictórica sobre um suporte de modo que o corpo da pintura fosse representativo da materialidade do corpo figurado [Figura 2]. Courbet contrapõe essa materialidade áspera do corpo “real” aos corpos lisos, selados de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1876), que criou, nos nus femininos, um emblema de beleza e inscrição do desejo para o século XIX [Figura 3]. Lugares diversos e posições contraditórias, mas ambos projetam um corpo imaginado.
Esta presente tentativa de pensar sobre o lugar do corpo imaginário se inspira na contribuição do conceito “insights originários” (Kramer, 2001, p. 136), considerando as representações sobre o corpo nas artes visuais para entender o leque de possibilidades narrativas e inscrições sutis, mas poderosas, das imagens projetadas nas pinturas dos e para os corpos humanos, que formulam discursos que abrangem desde normas sociais até teorias de arte.
2. Era uma vez um nu....
Era uma vez um nu, que conta a história de um corpo vestido em arte, the nude. O gênero do nu é considerado como forma ideal de arte (CLARK, 1971), buscando sempre a mimesis do belo, com isso ele é um indicador da ideia dominante da arte e seu papel na sociedade (MAHON, 2005, p. 29), ou até os boundaries dela (NEAD, 2003, p. 7), porque é a representação do corpo possível de ser mostrada dentro da moral regente e de cada sociedade. Diante desse lugar central do nu, que revela uma narrativa específica e inscrita no corpo humano, entendemos as imagens da masculinidade e da feminilidade como lugares de negociação. Nelas o artista assume o papel de mediador entre o ideal, o real e o natural, em um sistema de polaridade no qual o nu feminino está vinculado a ideias da sensualidade, do selvagem, da fluidez, da passividade, entre outras, e o nu masculino, às da lógica, da linearidade, da racionalidade e do equilíbrio.
Os nus acadêmicos do século XIX, contudo, procuraram abolir o erotismo, substituindo-o pelo cientificismo no desenho, e, na pintura, pelo artificialismo ou pela distância espacial-temporal do tema escolhido. Entretanto, a imagem do nu transgrediu facilmente os campos da sensualidade, do erótico e do desejo e, cada vez mais, com menos pretextos a despeito das intenções dos acadêmicos. Diminuindo o deslocamento espaço-temporal e aproximando-se de representações contemporâneas, neste caso the naked, a narrativa do erótico permanece. A narrativa do nu apropria-se de uma iconografia erótica, que é uma narrativa mitológica, religiosa ou ainda histórica ou da vida moderna. A nudez age em nome de uma história específica e uma verdade maior, até que a representação se alie com o cotidiano. Não é apenas a questão de olhar para a exposição da carne perfeita, mas esta é enredada numa retórica artística dos tipos do corpo ideal. E antes de refletir sobre as tensões que a modernidade provoca, é necessário analisar rapidamente as possíveis narrativas do nu na História da Arte Ocidental.
A partir do Iluminismo o nu clássico, nude, encaminha-se para o modernismo como sinal da vida urbana no contexto das transformações do século XIX, visualizando as ansiedades sociais e ambições políticas, de forma cifrada e codificada (MAHON, 2005, p. 42). Nesse tempo e lugar, cada vez mais o nu se coloca em cima do muro do conflito entre o clássico e o contemporâneo. A não representatividade do sexo gera toda a dinâmica da narrativa desse novo período, e é o poder oculto, o prazer do proibido, que escondia a fonte de energia, que só é compreensível por seus efeitos e não, pelo princípio gerador ou a sua história escondida. (BROOKS, 1989, p. 29). O leitmotiv de cada representação do nu consiste na expressão erótica velada por meio da justificativa de temas mitológicos, religiosos ou literários realizados no estandarte acadêmico, por exemplo: a imagem da Vênus de Ingres, Bouguereau e Cabanel [Figura 4, Figura 5 e Figura 6]. Todas estas três figuras femininas correspondem à narrativa clássica da pintura fazendo alusão ao véu delicadamente levantado pelo cabelo, elemento iconográfico tradicional que pertence ao nascimento da Vênus, e sempre deslocado no tempo dentro do mito clássico. Outra possível retórica, bastante praticada por Ingres, é o viés do orientalismo que se baseia na alteridade exótica. A Odalisca e escrava (1842) [Figura 7] ou o Banho turco (1862) [Figura 3], mostram o deslocamento para um local exótico na imaginação do artista e fora do real: as concubinas num harém divertem-se longe da moralidade ocidental. Aqui, inerente à representação do Oriente, e a personalização desta numa figura feminina, gera-se inclusive uma discussão sobre a relação Ocidente-Oriente, e, consequentemente, das dicotomias: familiar e não familiar, identidade e diferença, self e o outro.
Portanto, quando o deslocamento imaginário vai para espaços e personagens que fazem parte de um repertoire simbólico de uma identidade nacional ou uma cultura específica, neste nu inscreve-se o discurso nacional, como será examinado em seguida.
Diversamente, os poucos conhecidos nus masculinos, presos ao conceito da masculinidade socialmente construído, ganham nos tempos da expansão imperial, no século XIX, fortes tons morais, patrióticos, de exposição de virtudes e de fatos heroicos cuja narrativa é a do cavalheiro e o desejo decorrente da virtude de uma verdade moral. O nu masculino não tinha muito espaço no imaginário social e galgava com dificuldade essa conquista. Lucie-Smith percebe “um rito de transição” (1999, p. 141) quando o artista-aluno saía formado da Academia onde era obrigado a desenhar o nu com modelos masculinos expressivos e escolhidos por ele mesmo na rua, e, mais tarde, dedicar-se exclusivamente aos nus femininos sensuais que atendiam ao gosto burguês da pintura do salão na metade do século XIX em Paris.
De modo geral, o nu nunca foi tão cultivado como no século XIX. E, na vida cotidiana, o corpo nunca foi tão zelosamente ocultado, sobretudo o corpo da mulher.
Entre idealismo e realismo, a arte moderna imputa severas tensões à representação do nu uma vez que um artista moderno tem que tratar de temas modernos dentro da cotidiana realidade. Charles Baudelaire celebra nas suas escritas, especificamente no Pintor da vida moderna (1859-60, publicado em 1863), duas figuras da modernidade, uma o artista como dandy e outra, seu objeto de observação, a prostituta, cujo corpo se torna o código da modernidade. Reconciliar a diferença entre o nu acadêmico e o nu moderno significa desvelar a nudez e responder à pergunta crucial: qual seria o processo argumentativo na narração ao colocar um nu numa pintura realística? (BROOKS, 1989, p. 27). Esta transição do nude para o naked gerou uma crise de representação. Èdouard Manet (1832-1883) afirma que, “o nu, ao que parece, é a primeira e a última palavra da arte” (MANET apud ZERNER, 2008, p. 104). Daí ele ter desafiado com a inserção de um nu moderno, apresentando um corpo branco, urbano, provido ainda de um verdadeiro rosto, Olímpia (1863) [Figura 1]; ousou levantar o véu do sexo feminino (apesar de a mão da Courtisane Victorine Meurent esconder a visão do órgão feminino ocultado no detalhe). Mas o gesto evidencia a situação de oferta da nudez, e emana desse segredo indicado o fato de que o sexo não pode ser diretamente revelado, haja vista toda a dinâmica e a tensão narrativa que causou tal ato, um escândalo no público parisiense, que considerou a Olímpia de Manet falsa e a Vênus de Cabanel, verdadeira (ZERNER, 2008, p. 130). Tal vocabulário totalizante como “falso” e “verdadeiro” era comum na avaliação moralizante dos nus daquele período.
A mesma crise de representação, causando uma vez quebra-cabeças para os artistas modernos e tendo como motivo plausível o desvelar da nudez e outra vez os escândalos no público, acontece igualmente na literatura. Na novelle Nana (1880), Emil Zola (1840-1902) constrói a tensão narrativa a partir da não representatividade do sexo da courtisane.
Peter Brooks chega à conclusão de que a concepção de um nude moderno consiste em um oxymoron (1989, p. 16), ou melhor ainda, contradictio in adiecto, quer dizer, uma figura retórica de uma formulação contraditória. Aqui há a contradição do adjetivo “moderno” que vincula as associações real, contemporâneo, ordinário, individual, breve, a uma forma particular contra o significado do substantivo nude, uma representação de forma ideal, bela e clássica. É esta tensão na transição que o nude transgride em áreas de tabu e deixa de ser uma representação ideal na qual é exigida pela definição do conceito. O conceito do naked, ou seja, o nu despido de arte, quer dizer ausente de formas idealizadas, é prova da transgressão para uma nova narrativa formal e conceitual dentro do projeto da modernidade do século XIX, e consolida um deslocamento - evidentemente não do nu que retornou ao real, mas sim, das boundaries da arte.
Isso significa que o leitmotiv da narração, o erotismo, permanece e se apresenta na virada do século, com o advento das vanguardas, cada vez mais desvelado; os elementos constituintes de um texto fundador são o espaço contemporâneo e o tempo simultâneo dentro do cotidiano da vida moderna com todas suas inquietações, assimetrias[3] e contradições. Eis uma narrativa inscrita num corpo moderno que tem como elo uma controvérsia ideológica sobre o tradicional e o novo que move todo campo de arte, e além deste, outros bens simbólicos da sociedade.
Eis agora um nu que conta uma estória moderna...
3. Corpos ficcionais no imaginário durante o Segundo Império brasileiro
Os nus da pintura acadêmica brasileira estão plenos de uma atmosfera imaginária, visualizando um ideal, pensando em Lessing, para quem o ideal da arte é a representação de um corpo como modelo de um quadro inacessível e até hipotético. É possível observar, segundo Zerner (2008, p.105), na enorme popularidade do nu feminino do século XIX, em geral, um ressurgimento do ideal de Lessing. O corpo ideal hipotético na pintura brasileira propõe uma narrativa muito específica, não de uma narração mitológica deslocada no tempo e no espaço indefinidos, mas sim numa localização e numa terra tropical e num tempo específico da colonização ou remetendo a certas origens com suas personagens e protagonistas. Os nus brasileiros contam os mitos de seus heróis ou anti-heróis da literatura romântica indianista ou, posteriormente, nos anos 80 do século XIX, trazem figuras “típicas” do cotidiano do interior do país. A esse respeito, os quatro nus escolhidos - Moema (1866) [Figura 8], de Victor Meirelles de Lima (1832-1903); Marabá (1883) [Figura 9], de Rodolfo Amoêdo (1857-1941); o Estudo de mulher (Mulher com Ventarola) (1884) [Figura 10], de Rodolfo Amoêdo, e Derrubador brasileiro (1879) [Figura 11], de Almeida Júnior (1850-1899) - visualizam os discursos sobre o corpo imaginário nesse momento histórico, o do Segundo Império e assumem um lugar central incorporando utopias, atritos e conflitos de uma jovem nação.
Nesse período, o destaque à construção de um corpo idealizado, sexuado e erotizado ou realístico dos anos 60 aos 80 do século XIX configura as narrações inscritas no corpo na qual o corpo imaginário se inscreve com diferentes objetivos na sociedade brasileira, inclusive, aliado ao desejo de construção de uma cultura nacional genuína. O conjunto das imagens selecionadas, por sua vez, indica uma mudança da representação do corpo neste recorte temporal (1866-1889) para a qual chamo a atenção: no início do período destacado, eram corpos idealizados, sobretudo o que já expusemos sobre o corpo nu feminino e o nu masculino na nota anterior, até aparecer o primeiro nu “moderno” de Amoêdo, em 1884, levado a público. Entretanto, o surgimento da obra A Carioca (1864) [Figura 12] de Pedro Américo causou furor e a rejeição do Imperador D. Pedro II por “ser demais licenciosa” (SCHWARCZ, 2004, 2. vol., caderno cor) para aqueles anos de 1864 no Rio de Janeiro. Contudo, 20 anos após o ocorrido, um nu de Rodolfo Amoêdo, que era “carne pura carne” (Gonzaga-Duque, 1988, p.162-163), pôde ser exposto no Rio de Janeiro, mesmo causando certas inquietações. Pode-se dizer que o foco da narrativa na pintura do nu brasileiro nesse determinado período abriu-se para outras retóricas na qual o desejo erótico velado continua presente, como foi demonstrado na nota anterior, configurando aí uma possibilidade de resposta. Perceberemos que os nus brasileiros operam com mecanismos similares na retórica sobre a nudez do corpo humano, demonstram, porém, especificidades da cultura brasileira a serem analisados.
Adaptando o sistema francês com suas normas e hierarquias, os professores na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro cultivaram os ideais de beleza da Antiguidade greco-romana e os preceitos clássicos da figura humana na formação de seus artistas-alunos. A disciplina do desenho da figura humana foi criada a partir do estatuto da Academia em 1820 (cf. link) e recebeu a mesma importância dada à disciplina da pintura histórica. Os alunos deveriam conciliar o conhecimento científico da anatomia com a idealização do modelo. A idealização das formas clássicas gerou uma tensão diante da concorrência crescente do conhecimento científico e da fotografia que se revelava no Brasil na segunda metade do século XIX. Iniciava-se, então, a questão da transparência na fotografia, que tem ainda outros impactos para a relação fotógrafo e modelo. O estudo do modelo vivo, via idealismo e cientificismo, era confrontado com a falta de modelos (masculinos)[4] na Academia Imperial de Belas Artes, apesar de ser uma disciplina-chave no currículo. Essa carência colocou em perigo sua manutenção, o que, por sua vez, foi tratada como problema de Estado pela direção da Academia e até mesmo pelo Imperador. Desde a Reforma Pedreira (1855) a disciplina esteve sob responsabilidade dos professores das disciplinas de pintura histórica e escultura e não mais da congregação. O novo estatuto orienta que os professores responsáveis escolham os modelos de acordo com os critérios da “variedade da espécie humana” (Estatuto da Academia, 14.5.1855, Art. 15, Titulo V, cf. link). Os modelos disponíveis vinham das camadas populacionais mais baixas, marinheiros e mesmo escravos, oferecendo corpos traçados pelo trabalho duro[5]. Não só para os alunos, mas também para os artistas-professores essa carência de modelos dificultou o trabalho; por exemplo, no contexto da exposição da Batalha de Guararapes de Vitor Meirelles, em 1879, o Jornal de Comércio critica a falta de profissionalismo dos modelos e os chama de “Bichos Carpinteiros”. Sendo assim, pode-se imaginar o esforço tanto do aluno como o do artista formado em adquirir uma adaptação idealizada no culto da virilidade clássica, como foi mencionado acima, diante de um modelo real muitas vezes idoso, magro, negro, fora dos padrões idealizados e desejados. Pode-se dizer, ainda, que o corpo não foi apenas idealizado, mas sim abstraído! O modelo era apenas uma referência estrutural na qual se sobrepõem a imaginação e as proporções idealizadas estudadas por meio da cópia de desenhos dos grandes mestres e de figuras de gesso. Sob a reforma republicana de 1890 mudou-se, na Escola Nacional de Belas Artes, o conceito do estudo da figura, passando de uma forma mais clássica-idealista para uma abordagem científica de cunho naturalista-realista.
Já os nus femininos da pintura brasileira acadêmica da segunda metade do século XIX foram feitos nos ateliês particulares em Paris.[6] Este aspecto é relevante nesta discussão porque obrigava o artista a imaginar um corpo brasileiro com um modelo francês, italiano ou de outro país; impondo-se ao artista a necessidade de lembrar e construir uma “ficção real do corpo nacional” a partir da memória. A representação do feminino tem uma função importante nas representações visuais da Nação; pois, para a “imagined community” (CARVALHO, 1990), a representação visual do feminino serve como uma segurança de identidade, pertença e elos comuns, formando uma comunidade imaginária e prometendo superar interesses divergentes.
Nesse contexto, funciona a pintura histórica do nu em Moema (1866) [Figura 8] de Victor Meirelles de Lima, que une o indianismo tanto ao romantismo sentimental quanto ao erotismo dentro de uma paisagem tropical. O cadáver monumental num idílio trágico concentra no próprio corpo feminino a busca de uma construção identitária (MIGLIACCIO, 2000, p. 42). História e mito caminham lado a lado, nomeiam a indígena mitificada como “bom selvagem”, com qual a jovem Nação quer fazer as pazes do seu passado (SCHWARCZ, 1998, p. 148), uma maquiagem da era colonial e novo símbolo do império brasileiro.
A índia embranquecida, deitada na beira do mar com seus cabelos cuidadosamente ajeitados e espalhados pelas ondas neste pôr-do-sol escurecendo e avermelhado, faz referência direta à atmosfera do poema La Chevelure de Charles Baudelaire na sua coletânea Fleur du mal (1857).
XXIII - La Chevelure
Ô
toison, moutonnant jusque sur l'encolure!
Ô boucles!
Ô parfum chargé de nonchaloir!
Extase! Pour peupler
ce soir l'alcôve obscure
Des souvenirs dormant dans cette
chevelure,
Je la veux agiter dans l'air comme un mouchoir!
La langoureuse
Asie et la brûlante Afrique,
Tout un monde lointain, absent,
presque défunt,
Vit dans tes profondeurs, forêt
aromatique!
Comme d'autres esprits voguent sur
la musique,
Le mien, ô mon amour! nage sur ton parfum.
[...]
Cheveux bleus,
pavillon de ténèbres tendues
Vous me rendez l'azur
du ciel immense et rond;
Sur les bords duvetés de vos
mèches tordues
Je m'enivre ardemment des senteurs
confondues
De l'huile de coco, du musc et du goudron.
Longtemps!
toujours! ma main dans ta crinière lourde
Sèmera le
rubis, la perle et le saphir,
Afin qu'à mon désir tu
ne sois jamais sourde!
N'es-tu pas l'oasis où je rêve,
et la gourde
Où je hume à longs traits le vin du
souvenir?
O clima sombrio, o silêncio da natureza, os sabores de outras florestas em outros continentes, as cores das pérolas e pedras preciosas (saphir e rubin), Meirelles traduz o poema para uma linguagem visual com matéria pictórica que consegue passar, além da carne dramaticamente iluminada, também a experiência dos outros sentidos (odor, peso) explorados nos versos de Baudelaire. A obra Moema ainda permite outra comparação com a pintura La femme au perroquet (1866) [Figura 13] do mesmo ano de Gustave Courbet. A posição do corpo, braço e, sobretudo, o cabelo criam uma forte relação de composição. Assim, temos dois vínculos interessantes que localizam a obra de Meirelles: de um lado, em contato com a reflexão da crítica da arte moderna, na figura de Baudelaire, do poeta que sonha com aquilo que ele vê, assim se diferenciando dos românticos e dos seus sucessores, os simbolistas; e, de outro lado, com o protagonista do realismo, Courbet, cuja pintura visava representar a materialidade do corpo figurado e que cria topos das fantasias masculinas nas artes eróticas em torno de corpos femininos (ZERNER, 2008, p. 120).
Moema é uma personagem do poema indianista brasileiro O Caramuru, escrito no século XVIII pelo frei Santa Rita Durão (publicação na Europa em 1781). Esta índia malsucedida, como a Iracema de José de Alencar, sofre um naufrágio por não ser aceita pelo português Diogo Álvares e joga-se ao mar. Meirelles faz uma leitura da poesia nativista e interpreta o nu feminino dentro dessa paisagem tropical, caro à tradição pastoral de Ticiano (1490-1576) e Giorgione (1477-1510), vinculado tematicamente à literatura romântica do indianismo na metade do século XIX. A cena de um idílio trágico busca uma conciliação harmoniosa entre a forma humana e a paisagem, entre o erotismo e a contemplação da natureza, que de fato transformou-se silenciosamente em destruição, um contraste dramático entre sentimento e história. Migliaccio interpreta a índia que se afogou por amor a um europeu como versão moderna e americana da Vênus que só pode ser fruto de uma história trágica (2000, p. 44), uma heroína que encarna o encontro de civilizações incompatíveis. Assim, segundo o autor, Meirelles consegue concentrar no corpo feminino a reflexão histórica acerca do destino de um povo e de uma cultura (ibidem). Como elementos constituintes da narração para um texto fundador, Meirelles retoma “uma heroína ancestral” que gerou um “mito fundador” (Naxara, 2006, p. 44). Como apontado nas notas anteriores sobre a retórica do deslocamento espaço-temporal por meio da mitologia, encontram-se nos nus brasileiros famosos não as figuras mitológicas da antiguidade mas sim, personagens de mitos nacionais recém-instituídos. O mito definido pelo épico inscreve no corpo de Moema todo um discurso de culturas e raças, aliás é o próprio corpo dela, como corpo falante, que ressuscita este mito.[7]
Em semelhança ao nu de Vitor Meirelles, a obra Marabá (1883) [Figura 9], de Rodolfo Amoêdo, referencia igualmente na pintura a fonte literária do indianismo. Apesar de encontrarmos o mesmo mecanismo de narração, a partir de uma personagem literária uma figura dos mitos fundadores, aqui a presença da mestiça faz pouca alusão aos trópicos e à questão identitária. Ousa-se pensar que apenas o título gera uma ligação nesta retórica de uma identidade nacional brasileira. Percebe-se que a solenidade idealizada e os heróis clássicos desaparecem em prol da representação de uma realidade da classe média. Nus mais íntimos, dandies, ou tipos populares, como os caipiras de Almeida Júnior, se colocam como a antítese contra os ideais clássicos. O nu de Marabá parece muito mais realístico, o recorte mais focado no corpo, com poucos elementos narrativos do ambiente em torno da índia, ao contrário da pintura Moema. Apenas o título garante o deslocamento para uma narrativa indígena baseada no poema Marabá de Gonçalves Dias, que se situa no indianismo romântico na forma de uma epopeia nacional. Marabá, descontente por não ser mais índia, nem europeia, personifica a síntese da perda de identidade, motivo para ser rejeitada pelos povos.
Os nus femininos aqui postos em tela - Moema e Marabá -, independente da beleza e harmonia física, representam personagens dos mitos fundadores em conflito ou em tragédia, e mostram uma escolha temática pelos artistas de preferência dramática. Porém, a representação do nu de Amoêdo não remete a uma crise conflituosa de identidade. Marabá foi exposta no Salão 1882 em Paris e recebeu louvações de Alexandre Cabanel (1823-1889), seu professor. Nas atas da conferência da Academia Imperial encontram-se as avaliações dos Professores Zeferino da Costa e José Maria de Medeiros: “Quanto à Marabá, ser uma figura bem composta, largamente feita e de colorido agradável, mas quanto ao desenho, deixa ainda alguma coisa a desejar, pois sendo esta qualidade estudada com cuidado desde a cabeça até a região peitoral, não acontece o mesmo dessa região até as pernas, que é um tanto descurada.” (Arquivos Museu Dom João VI/ EBA/UFRJ, Ata da Congregação 15.2.1883) O crítico de arte Gonzaga-Duque louvou, num primeiro momento, a interpretação do pintor no Jornal do Globo (1882), porém, passados alguns anos, em 1887, alegou que a fonte literária não era muito clara e que não correspondia à lírica do poema Marabá, parecia mais uma cena em representação.
A observação do Gonzaga-Duque mostra claramente que mesmo um contemporâneo já percebia a discrepância entre fonte e realização pictórica. Enquanto Vitor Meirelles inscreve no corpo da Moema o discurso dos mitos fundadores da nação brasileira, Rodolfo Amoêdo serviu-se do mito indígena para garantir sua representação erótica e sensual do corpo feminino com a indicação literária. De perfil, Marabá olha de maneira contemplativa, os lábios meio abertos e o quadril estendido sedutores são alguns dos aspectos que marcam antes a clara intenção de uma narrativa erótica do que a realização fiel da fonte literária. O esforço de seriedade e justificativa moral pelo deslocamento literário do nu erótico pode ser comparado com o estudo em óleo da Marabá (1882) [Figura 14]. No estudo que não seria exposto, a indígena ousa jogar um olhar sensual diretamente ao observador. Ação que estabelece de forma provocativa uma relação com o observador, lembrando aqui a ousada Olímpia de Eduard Manet, e que era considerada como imoral, uma vez que a mulher sai da postura passiva de um objeto de observação e entra em contato ativo fora da imagem. Para a obra final, Amoêdo não podia manter a composição provocadora do estudo, que revela suas íntimas intenções.
Sendo assim, Rodolfo Amoêdo nos apresenta um nu feminino que se baseia no discurso estabelecido da literatura romântica como produção simbólica e identitária para assegurar moralmente seu próprio interesse sobre um nu erótico realístico. Este desvelamento da nudez representa o grande desafio dos pintores modernos, como anteriormente analisado, mas o artista brasileiro o enfrenta diplomaticamente. Igualmente ele continua fiel na tradição da pastoral, mas essa contemplação do corpo feminino em torno da natureza passa para o segundo plano tendo um recorte extremamente focado no corpo. Com isso, Amoêdo ainda se vincula tenuemente à tradição iconográfica e literária para não ser chamado de falso, avaliação moralista que Olímpia recebeu dos seus críticos. Retomando a questão inicial de Emil eZola, por que os artistas mentem quando nos apresentam uma Vênus e não contam a verdade, podemos dizer no caso de Rodolfo Amoêdo que ele nos conta uma meia-verdade.
O franco interesse pelo nu moderno sem pretexto de título literário destaca-se na obra do mesmo artista Rodolfo Amoêdo em Estudo de mulher (Mulher com Ventarola, 1884) [Figura 10] que é, de fato, considerado “o primeiro nu moderno da arte brasileira”[8] e que foi - provavelmente - acusado de imoralidade (GONZAGA-DUQUE, 1888, p. 162-163). Segundo o crítico de arte Gonzaga-Duque, esta obra descreve em minúcias a beleza dourada, parecida com a Vênus, “Sente-se através desta carne, carne que é carne, carne que tem sangue, disposição dos músculos” (GONZAGA-DUQUE, Ibid). Gonzaga-Duque aponta claramente para a presença material do corpo: “o exubero contorno dessas formas, o lácteo macio de epiderme, que sangue faz tremer e lhe dar o calor de um desejo em repouso” (GONZAGA-DUQUE, 1929, p. 13). A pele é tão branca e transparente, lembrando as peles lisas sensuais dos nus de Ingres [Figura 3 e Figura 4] - emblema de beleza e inscrição do desejo - que parece estar flutuando em volta dos tecidos de cetim arranjados na cama. Igualmente a cena lembra a volúpia dos nus nos tecidos decorativos de François Boucher [Figura 15], só que Amoêdo certamente não introduz o caráter frívolo do Rococó, mas sim a atmosfera sensual de uma pintura de salão da segunda metade do século XIX. A sensualidade aqui apresentada vem por meio da cor e de seu tratamento, demonstrando toda a competência da pintura nesta área. Gonzaga-Duque descreve a nudez proibida e expressa o desejo. Não só Emile Zola fala de verdade ou mentira, o próprio crítico de arte brasileiro comenta sobre o nu como “extraordinária palpitação da verdade” (GONZAGA-DUQUE, 1929, p. 14).
Tudo indica para um nu moderno: o feminino sensual, deitada de costas para o observador sem fonte literária, num interieur à moda oriental. Um leque, o papel de parede e a ornamentação do travesseiro remetem a uma decoração oriental que provoca levemente um gosto exótico, mas aqui compreensível como atributo proclamando o moderno.[9]
Ainda em O Estudo de Mulher, encontramos uma primeira tentativa, que precisa ser levada a sério, de um contradictio in adiecto na crise da representação do nu, um momento conflituoso de discursos teóricos apontando, como anteriormente explicado, as tensões entre artistas acadêmicos e modernos. Mesmo que o corpo imaginário neste ambiente contemporâneo de Amoêdo ainda seja bastante idealizado, já tende a ocupar o novo lugar nesta crise de representação do nu de fins da década de 80 do século XIX. Provavelmente o artista acompanhou em Paris os debates ideológicos sobre um nude moderno que ousava desrespeitar os limites da arte clássica e unia a representação artística à vida cotidiana. Tendo produzido a pintura na capital francesa, ao apresentá-la na Exposição da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro em 1884, o artista traz essa tensão entre a arte clássica e a realista, antiga ou moderna, para o ambiente cultural da capital brasileira e provoca, além do debate sobre uma cultura genuinamente brasileira, uma controvérsia sobre a arte moderna no país.[10]
O último exemplo narrativo do corpo imaginário a ser aqui comentado é o de um nu masculino. A obra Derrubador brasileiro (1879) [Figura 11], de Almeida Junior (1850-1899), foi realizada em Paris com um modelo italiano e mostra um corpo masculino, sentado em repouso, diante de uma pedra com vista para a mata. O modelo italiano, com busto despido, segura em sua mão uma enxada. Como já foi comentado anteriormente, a masculinidade no gênero do nu no século XIX apresenta-se em narrativas heroicas, morais e patrióticas, e aqui não fugiu muito à regra: um nu masculino demonstrando sua perfeição clássica, um heroísmo em sua modéstia sexual e controle da vontade. Contudo, o caipira demonstra um latente erotismo e uma sutil agressividade.
Segundo Coli, esta obra de Almeida Junior revela a descoberta de um exotismo social próximo do fim do século XIX, em que se dramatizava a brutalidade popular brasileira (2005, p. 110). Percebe-se que toda produção artística, seja ela de natureza plástica ou literária, que faz parte da discussão sobre a arte brasileira e moderna, buscou seus protagonistas no interior do país (como, por exemplo, Euclides da Cunha, entre outros literatos). De um lado, um gesto na busca do autêntico, do nacional, uma vez que o movimento europeu apresentava-se invertido, lá tudo o que era moderno aliava-se ao modo de ser urbano. De outro lado, encontramos mais uma vez a narrativa do exótico, não no viés étnico, como percebemos nas representações dos indígenas, por exemplo Moema, mas sim um exotismo no viés geográfico. A representação do exótico, desconhecido no interior, e o povo da roça trazem uma interpretação da realidade pelos artistas e outros agentes do campo da cultura que se baseia no princípio dualístico do eu e do outro, por exemplo, o mecanismo conhecido através dos olhares do Ocidente sobre o Oriente, como já foi analisado em relação à Odalisca de Ingres [Figura 7].
Contudo, a aparência pacífica da obra Derrubador brasileiro está acompanhada de uma violência contida nos atributos do trabalho e da atividade caipira (COLI, 2002, p.30). A tensão inerente não se manifesta na execução ativa de uma ação destrutiva (desmatamento), uma vez que Almeida Junior não representa o ápice nem o resultado do ato violento. Coli chama esse estado de “comedimento neutro” (COLI, 2002, p.29), embora não se trate de uma neutralidade no sentido literal, mas sim de uma invisibilidade da violência, ou melhor, situação carregada de tensões invisíveis mas perceptíveis: A situação representada está em aberto e cria um espaço hipotético da possibilidade, da provável escalação da violência ou não. É exatamente esta não representação de um ato violento que gera a força tensa na pintura Derrubador brasileiro.
Além disso, podemos analisar o Derrubador brasileiro dentro de uma vertente das novas representações da masculinidade desde o século XVII, como ela foi inaugurada com o Hércules do escultor francês Pierre Puget (1620-1694) [Figura 16], segundo Herding (2004). Cansado e exausto do trabalho árduo, Hércules repousa, postura que é interpretada como afastamento do ideal heroico. Uma transposição da virtude de uma ação heroica-trágica em um carregamento sensual do corpo masculino pelo não fazer. A pose passiva de repouso do derrubador encarna um erotismo lascivo que é reforçado pela vestimenta. O corpo do homem meio vestido realça, através da calça, novos contornos que lançam atenção a seu sexo ocultado. É por causa do vestuário que o nu masculino ganha em experiência da carne e aparece mais vivo, longe de uma idealização clássica. Portanto, o Derrubador brasileiro ocupa o lugar de um corpo moderno e regional trazendo consigo narrativas do interior como exótico e carregadas sensualmente, em contraposição à virtude tradicional heroica.
As reflexões em torno do corpo imaginário nas artes, e especificamente na pintura brasileira, mostram as várias inscrições discursivas no corpo e apresentam valores, normas e utopias costurados na carne humana. Os nus brasileiros são corpos idealizados, mas trágicos, de mitos recém-instituídos, como o da Moema e Marabá. Assim, esses corpos trazem à tona áreas de conflito, atrito e ambiguidades, nas quais o corpo complexo é capaz de representar a si próprio e, ao mesmo tempo, aproveitar o lugar privilegiado que ocupa no imaginário social. Esses discursos, por sua vez, são imbricados com posições teóricas de arte, o clássico versus o moderno no sentido tanto formal como temático. O moderno significa para os nus brasileiros aqui analisados o desvelamento erótico como desafio da pintura moderna ou uma abordagem popular exótica, mas assimilado como tema genuinamente brasileiro.
O espectro de corpos idealizados, modernos, regionais ou realísticos podem se sobrepor, se referir um ao outro ou até excluir-se. Dessa maneira, os múltiplos discursos inscritos no corpo formam um campo de tensões tanto de afirmações como de ambiguidades da jovem nação brasileira que deseja formular sua história e identidade, para a qual o corpo imaginário oferece um espaço hipotético sobre a cultura brasileira moderna com suas várias faces.
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[1] Mestre em História de Arte da Westfälische Wilhelm-Universität Münster, Alemanha, Professora do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná, Doutoranda no Programa da Pós-Graduação de História da Universidade Federal do Paraná. Os interesses de pesquisa focam a representação do corpo e suas transformações na História da Arte.
[2] Segundo os estudos de Sarasin (2001), a compreensão moderna sobre o próprio corpo - o corpo do sujeito - começou com o discurso higiênico do século XIX. Um discurso que, principalmente, visou implementar a conexão do sujeito com seu corpo, a relação entre saúde e doença na qual indicava também a percepção e o controle do sexo. O historiador demonstra, ao longo da sua pesquisa, que o discurso higiênico fundamentou sua genealogia e sua base teórica desde o fim do século XVIII, dentro do projeto iluminista que se referia à medicina da Antiguidade Clássica, carregada com objetivos políticos e morais voltados ao belo, à estética, ao padrão de perfeição. Esse discurso encontra suas estruturas, contextos e materialidades durante o século XIX, amparando um amplo aparelho de tecnologias e ferramentas para alcançar o público-alvo, fazendo parte do aumento da cultura de saber no século XIX e constituindo a individualização, bem como a semiótica do corpo burguês. Esta reflexão encontra-se concretizada em análises profundas sobre a pele, os músculos e os nervos, assim como do “sexo perigoso” (o feminino) das máquinas sensíveis.
[3] Sobre a assimetria da estrutura social e de gênero dentro da cultura visual, cf. POLLOCK, 1988, p. 296.
[4] A supervalorização da figura humana dentro dos métodos clássicos carraccianos contrastava com a carência de modelos que atingiu efetivamente o funcionamento da disciplina. A falta de modelos era quase um assunto de Estado (COELHO, 2004, p. 455).
[5] Problema sério foi a falta de modelos por causa da má reputação dessa atividade. Primeiro e único modelo feminino é de 1858, depois os modelos só reaparecem na ENBA na primeira década do séc. XX (COELHO, 2004, p. 461).
[6] Por exemplo, Victor Meirelles: Bacante (1857-58); Rodolfo Amoêdo: Marabá (1882); Almeida Junior: Descanso do modelo (1884).
[7] Moema é apenas uma personagem secundária no poema Caramuru que sofreu o naufrágio, mas é a figura dela que se tornou protagonista deste mito. É de se pensar por que ela e não os bem-sucedidos como Diogo Álvares ou a sua esposa indígena escolhida, mas isso foge do tema aqui proposto.
[8] MIGLIACCIO, 2000, p. 34.
[9] O cenário na pintura lembra a uma aquarela de seu atelier demonstrando o leque, um carpete oriental etc. (Cf. Amoêdo, Rodolfo, Ateliê do Artista em Paris, 1883, aquarela sobre cartão, c.i.d., 56,8 x 77 cm, Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ).
[10] Lembrando que Rodolfo Amoêdo mandou Mulher com ventarola junto com outras pinturas, O Último Tamoio (1883) e A partida de Jacob, bem como um desenho de composição de Jesus Cristo em Cafarnaum (1884) [cf. Imagem], num envio para a prorrogação da bolsa pela Congregação na AIBA.