Tramas e dramas sobre a tela de Constantino da Motta
Edison Farias (*)
FARIAS, Edison. Tramas e dramas sobre a tela de Constantino da Motta. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/cm_tramas_imagens.htm>.
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A partir de um survey sobre o relatório de pesquisa de Paolo Ricci o leitor conclui que no cenário cultural belenense, na passagem do século XIX para o século XX, conviveram duas realidades, grosso modo, antagônicas: o desejo de se constituir a Academia de Belas Artes e aquela do desinteresse do poder público - que somente comparecia aos vernissagens e, muito raramente, comprava obras de arte de artistas locais, uma vez que raros foram os governantes que encomendaram telas e, quando o fizeram, a função cosmética e a auto-projeção falaram mais alto - e das elites paraenses sobre a pintura produzida pelos artistas locais, cenário que é confirmado pelos registros que tematizam em pequenas colunas as artes plásticas, em especial a pintura, nos jornais de grande circulação no período em Belém.
Em “As Artes Plásticas no Pará”, o advogado e pintor paraense, apresenta a trajetória dos agentes culturais locais e estrangeiros - pintores, gravadores, escultores e professores de arte - que reunidos formal ou informalmente, foram incansáveis na indução e na produção de cultura plástica considerável, porém, debalde para a constituição, quer seja no âmbito estatal ou particular, da Academia de Belas Artes do Pará, mesmo se considerando todo um contexto econômico ideal para tamanho empreendimento.
O circuito cultural artístico fin-de-siécle XIX em Belém demonstrou-se mais producente e efervescente, nos campos da música e do drama que, ao contrário das artes plásticas, conseguiram se consolidar com a criação do Conservatório de Música, no Governo de José da Cunha Junior, sustentado que fora pela Sociedade Propagadora das Belas Artes e, mais tarde, pelos recursos provenientes de parte das bilheterias das apresentações das companhias internacionais que recheavam a pauta do Teatro da Paz, principalmente no período da economia gomífera na Amazônia.
Note-se que a arquitetura se desenvolvia, por força da vontade política dos poderes então constituídos (religioso e/ou leigo), em ideológicos sub-textos que, claro, privilegiaram edificações de interesse mais pragmático e, quando a praticaram com objetivos “ornamentais-culturais”, acentuaram a tendência - na colônia, que se europeizava regida pelas ações políticas administrativas e sob a batuta e a dança do homem urbano, pequeno burguês - à fruição do drama, da música e das letras.
Porém dois fatos são dignos de destaque pró-ativo para o cenário da arte pictórica em Belém: a Criação do Liceu Paraense, em 1841, e a regulamentação proveniente da Lei n° 61 de 1892, este último assegurando a alguns artistas (pensionistas) seus estudos fora do Brasil e, consequentemente, a oportunidade de entrarem em contato com mestres da Academia Imperial de Belas Artes do Brasil e, em Paris, desfrutarem da cultura de outros centros europeus. A bolsa de estudos instituída pela Coroa permitiu a Constantino Pedro Chaves da Motta, por exemplo, o estudo de pintura na Academia Real de São Lucas, em Roma.
O cenário cultural belenense se “re-configurou” depois desses dois eventos. Por outro lado, a sombra da Academia Imperial de Belas Artes em funcionamento na capital do Império, a criação do Conservatório Dramático no Governo de José da Cunha Junior e, de certa forma, o início da massificação da imagem fixa a partir das atividades da Fidanza & Cia e das Exposições Artístico-Industriais, a partir de 1876, reforçaram o desejo e a necessidade de ser criada a tão sonhada academia.
Várias são as respostas que podem ser apresentadas à fórmula: - Por que então não se criou a Escola de Belas Artes do Pará, ou por que as inúmeras tentativas nesse sentido não frutificaram?
As respostas podem partir de textos explicativos que considerem as políticas públicas, levantem as razões sociais ou o cenário étnico cultural de então. Também se podem encontrar respostas justificadas pelos aspectos geopolíticos da cidade de Belém e até mesmo pela psicologia junguiana, por exemplo.
Porém, um fragmento histórico, a tela “Cólera Morbus” [Figura 1], de Constantino Pedro Chaves da Motta e seu contexto, apresentam-se aos nossos olhos a desafiar, a convidar, a apreciar a hipótese - forma de resposta, portanto -, próprio do campo da forma e da técnica, essências indissociáveis da imagem e da imagética, sobre as quais iremos nos deter.
Augusto Meira Filho, em 1975, numa separata da “Revista da Cultura do Pará”, publica “Contribuição à História da Pintura na Província do Gram-Pará no Segundo Reinado (Esboço biográfico de um artista esquecido)”, comunicação que fora apresentada no “Congresso de História do Segundo Reinado”, realizado no Rio de Janeiro. Meira Filho, no referido texto, traça um discurso laudatório sobre a obra de Constantino da Motta, seguindo pela esteira da denúncia sobre o estado dos bens culturais pictóricos (principalmente) em Belém, após traçar uma genealogia das artes no Pará.
O primeiro tom do texto pode ser ilustrado pela seguinte afirmativa de Meira Filho, quando o mesmo se refere ao pintor, considerando o óleo sobre tela “encomendado para compor os Salões da Assembléia Provincial” - “O Retrato de D. Pedro II”:
... deparamo-nos diante de uma admirável figura que enriqueceu seus dotes nas escolas de Roma, deixou telas de profundo valor artístico, compondo quadros painéis documentários que venceram seu primeiro século, ensinou preparou gerações de jovens na sua arte fecunda e vigorosa, difundindo seu talento e suas obras, sem contudo, granjear a fama e o renome a que fizera jus em seu tempo.
O segundo tom se dilui ao longo do discurso, seja lastimando o abandono e o esquecimento em que padece a obra do artista pintor, seja se referindo ao estado da cultura no Pará como um todo.
A nossa maior preocupação na pesquisa desses artistas pioneiros, quando destacamos Constantino Motta, é a de testemunhar publicamente a necessidade inadiável da formação de uma nova mentalidade social e artística no Pará e no restante do País, que tome a responsabilidade de fixar em lei prescrições definitivas e destinadas a fortalecer uma instituição controladora e fiscalizadora de tudo que possa representar cultura brasileira, tristemente esquecida e que, aos poucos se esvazia, enriquecendo terras estranhas com a nossa já pobre e falida região.
A preocupação de Meira Filho descrita em seu texto de 1975, ainda se apresenta, bastante atualizada - resguardando-se, evidentemente, as raras e louváveis iniciativas realizadas, mais recentemente, para se superar o quadro de penúria das artes plásticas, no âmbito do acervo do patrimônio pictórico local.
Meira Filho afirma que o Pará teve “legítimos precursores da arte pictórica no século passado [XIX] e que deseja “retirar” [destacar] dentre aqueles, Constantino Pedro Chaves da Motta, “um dos maiores de nossa terra”, escreve; questiona: “que mistério guardou sua vida para o esquecimento total de sua obra?” e, ainda, se propõe tentar esclarecer o que para ele parece “irremediavelmente perdida” – a obra de um pintor paraense do século XIX.
De fato, Motta e sua obra caíram no esquecimento e sua experiência de pintor pensionista se juntou ao grupo dos “já teve” de Belém. Mas vejamos o que a obra do pintor nos permite perscrutar a respeito da problematização aqui apresentada.
Paolo Ricci, no referido relatório, coloca em dúvida a capacidade dos artistas paraenses de sustentarem ou comporem o corpo docente de uma escola de formação de pintores, baseando-se sobretudo nas falas e atitudes dos sujeitos pesquisados em seu trabalho, alguns destes, seus coetâneos. Destaca que o Pará estava há pelo menos trinta e um anos atrasado em relação ao Rio de Janeiro no aspecto relacionado ao ensino oficial de belas artes e que, talvez, a “cariocofobia” parauara pudesse explicar a razão de os artistas preterirem a Academia Imperial às academias européias para o desenvolvimento de seus estudos e, que o motivo de a elite paraense não prestigiar a produção e os eventos artísticos, no âmbito das artes plásticas, talvez estivesse ligado à francofilia, ao que corroborava o gosto das famílias enriquecidas pela economia da hévea-brasiliensis em constituir suas coleções de arte “au bon marché, en France”.
Um fato curioso a ser considerado dentro dessa problemática do campo cultural em Belém, no período em destaque, é que Ricci também se refere ao fenômeno de os grandes valores locais não terem permanecido na capital paraense e, sim, migrado para outros centros. Os bordões emitidos pelos sujeitos, muitos destes agentes culturais: “se é bom não é daqui” ou “se é bom não fica aqui”, parecem se confirmar pelo movimento migratório (inscreva-se nesse grupo de notáveis que foram fixar residência em outras cidades, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, os nomes de Theodoro Braga, Pedro Campofiorito, Flexa Ribeiro, posteriormente, Antonieta Santos Feio, Pastana e, seguindo o mesmo rumo, no último quartel do século XX, Waldir Saruby) de nossos artistas e pelo final de pobreza, penúria e abandono em que ficou a maioria dos pintores nos albores da falida consolidação da cultura pictórica paraense. Some-se a esse cenário o fato de ter Augusto Montenegro, em 1901, suspendido os proventos que mantinham estudantes no exterior.
Ricci sugere nas entrelinhas de seu relatório que o decorador do Palácio do Governo, Augusto Casse, a partir de uma observação (se não intriga), junto ao Governador (diante das obras - resultado do exercício de academia - enviadas para comprovar o aproveitamento dos paraenses na Europa), em que afirmou serem as telas dos pensionistas meras cópias, uma vez que conhecia a todas e os seus verdadeiros autores, foi o responsável pela resolução de Montenegro, uma vez que suscitou a desconfiança do mesmo sobre a honestidade e o comportamento de nossos artistas estudantes em terras estrangeiras.
Por outro lado, há de se considerar que o estigma histórico das artes manuais muito contribuiu para o desinteresse pequeno burguês em relação às artes plásticas no final do século XIX. As famílias locais endinheiradas não diferiam muito daquelas outras famílias brasileiras “de bem” que investiam na formação de seus filhos, em Direito, Medicina ou Engenharia mas, nunca na arte da Pintura. O fato de as atividades manuais, historicamente, terem sido praticadas por negros escravos e consideradas mais apropriadas àqueles “de pouca capacidade intelectual”, permite-nos entender o estado da prática e do ensino das artes plásticas no Brasil e em especial no Pará.
Mas consideremos, a partir das observações de Ricci, que a incapacidade técnica de alguns artistas paraenses era notada por muitos de seus coevos. Os críticos formadores de opinião expunham suas idéias por meio de crônicas nas quais se mostravam céticos à constituição de escolas de arte a partir da contratação de professores locais, preferindo a importação de artistas estrangeiros.
Portanto, Constantino Pedro da Motta parece se configurar num caso emblemático para avaliarmos à luz dessas questões.
Meira Filho, na sua “contribuição”, relata que a Constantino da Motta foi dada a oportunidade para apresentar um trabalho por meio do qual se “pudesse reconhecer o seu aproveitamento” nos estudos de pintura histórica em Roma. De fato, Motta executou, às expensas da Assembléia Provincial - que tinha na presidência do Sr. Henrique de Beaurepaire (15 de agosto de 1858)-, “um painel tomando por assunto a heróica dedicação do falecido Vice-Presidente Ângelo Custódio Corrêa”.
Para a realização de tão grande tarefa, Motta obedeceu a todos os preceitos que uma pintura histórica e alegórica exige. O pintor sabia que tais temáticas estavam na mais alta hierarquia da pintura acadêmica e que executar tal tarefa significava passar por uma prova de fogo, prova pela qual passavam todos os profissionais que desejavam a fama em pintura. Para tanto, foi até à cidade de Cametá estudar a luz e a paisagem locais para obter detalhes sobre o encontro do Vice-Presidente da Assembléia Provincial com a população da cidade, tornando-se o político cametaense, ele próprio, vítima da epidemia que assolava a Colônia. A viagem do pintor à terra natal do político era fundamental para que o mesmo pudesse atender à encomenda - uma homenagem honrosa “à memória de tão prestante cidadão”.
Não medindo elogios, Meira Filho destaca que a “tela preciosa foi magistralmente executada pelo pincel do exímio artista” e que após a sua conclusão ficou guardada no Liceu Paraense (hoje Colégio Estadual Paes de Carvalho), sendo posteriormente “oferecida à cidade de Cametá”.
Há, no entanto, no libreto do historiador paraense, uma informação que suscitou a curiosidade deste autor que foi somada à vontade de estar vis-a-vis com a tela “Cólera Morbus” de Constantino Pedro Chaves da Motta: a nota de que a obra teve um pedaço “destruído pelo descaso” e “retirado, na lateral esquerda da tela, reduzindo-a em cerca de sessenta centímetros”.
Meira Filho, em complemento, esclarece que não tem “provas positivas” sobre o episódio ocorrido com a “histórica tela documentária”, limitando-se apenas a ilustrar o texto, através de uma fotografia, em branco e preto, tirada no Museu de Cametá.
Em recente viagem à capital tocantina pudemos perceber o impressionante estado em que se encontra a referida obra. Deplorável, quase ilegível, em perfeita harmonia com o estado geral do Museu que a abriga – quase total abandono não fosse o trabalho heróico da funcionária dedicada que toma conta daquela instituição municipal.
Coberta por um teto crivado de goteiras, instalada sobre frágeis cavaletes nas proximidades de um banheiro (com torneiras em constante vazamento), a histórica tela, pintada em honra ao ilustre cametaense, jaz mórbida, feito uma narrativa fantástica de Lygia Fagundes Telles, totalmente afogada pelos objetos restantes do acervo do pretenso museu.
Este cenário parece, à primeira vista, nesta discussão, uma “metaimagem” sobre o assunto aqui tratado. Um espelhamento de tudo o que concorreu para a falência das tentativas de se estabelecer o ensino oficial de pintura no Pará.
Mas, voltemos à tela...
Olhando mais detidamente na superfície pictórica, percebem-se “janelas” de sondagem para procedimentos de restauro, trechos corroídos, rompidos, camadas pictóricas descoladas. A veladura, completamente comprometida pelo mofo e talvez por procedimentos de conservação aleatórios.
Quanto à moldura, não se consegue perceber a beleza da fatura, pois são inúmeros os pontos prejudicados por vetores e as zonas recobertas de poeira. O que se revela à primeira vista é um velho documento em decomposição, um texto perfeitamente desenvolvido aos moldes acadêmicos, mas que não esconde o desenho duro, principalmente aqueles que representam figuras humanas. Aliás, esta última característica se faz presente também na tela “D. Pedro II” [Figura 2].
Após a captura da imagem através de fotografia digital, procedemos a uma filtragem eletrônica, acentuando os cromas das tintas utilizadas por Constantino Motta. Tratava-se de se eliminar a nuvem bistre e marrom da superfície e revelar um pouco mais o desenho para que não só pudéssemos comprovar a competência técnica ou não do pintor, com o objetivo de chegar a alguma conclusão sobre a problemática e o estado do circuito de arte paraense no último quartel do século XIX e primeiro do século XX, mas, também, comprovar o tamanho do estrago na superfície do óleo sobre tela “Cólera Morbus”.
A linha do horizonte mais próxima da moldura superior acentua a temática - o drama vivido pelas figuras sobre a terra. Com efeito, escreve Meira Filho: “efetivamente, a tela em questão, representa Ângelo Custódio e sua comitiva chegando aos barrancos do porto de Cametá, sendo recebido pelo povo e autoridades”.
O estado atual da obra quase não nos permite distinguir a figura do homenageado, porém, os elementos visuais e a composição remanescentes, acentuados após a saturação eletrônica procedida sobre a imagem digital, nos permitiram perceber melhor os elementos que indicam qual o personagem principal bem como o tamanho da dilaceração procedida sobre a mesma [Figura 3].
Ora, os cânones acadêmicos de composição de obras históricas e alegóricas privilegiam, com freqüência, o “poder do centro” por razões que podem ser explicadas pela psicologia da gestalt, por exemplo. Basta cruzarmos as diagonais do retângulo do quadro para verificarmos que a intersecção cai sobre o peito da figura que tem o braço esquerdo (em paralelo com a outra figura de fraque preto, porém voltado para a base do quadro) a apontar o estado de sofrimento daquele povo. Mas, tal figura, não é Ângelo Custódio e sim algum componente de sua comitiva de viagem ou recepção. Nesse caso o “poder do centro” não alcançaria sua função, uma vez que o cruzamento não indica o personagem principal.
Mas, se traçarmos uma horizontal, paralela às linhas de contorno superior e inferior do quadro, passando sobre o ponto de cruzamento das diagonais anteriormente traçadas e, retraçarmos outras diagonais - agora deslocando o ponto de cruzamento sobre essa nova linha no sentido da direita para a esquerda, seguindo os dados do paper do historiador - verificaremos que ao alongarmos a linha horizontal inferior do quadro até cruzarmos com uma das novas diagonais e nesse ponto traçarmos uma perpendicular à linha da base até a linha superior do quadro chegaremos ao retângulo correspondente ao “pedaço” que foi subtraído da obra [Figura 4].
É patente que a cena à esquerda do quadro tem suas figuras cortadas com se a cena fosse capturada por uma fotografia - um índice, portanto, que atesta a falta de uma considerável parte do texto pictórico.
Constantino da Motta seguiu à risca as exigências da composição acadêmica. Utilizou-se de elementos visuais que se dirigem para a figura que no original era central - Ângelo Custódio. Tais recursos funcionam como parênteses invertidos, setas que conduzem o olhar do observador ao centro. O efeito centralizador é acentuado pela entrada do olhar no quadro a partir do lado esquerdo, definido pela massa de figuras humanas à beira do trapiche. A distribuição de outros centros de interesses, de outra feita, está em forma de contra-curva a linha e direção da “massa humana” e organizada ao redor do personagem central.
São os seguintes os centros destacáveis na composição: O foco, sob os pés de Ângelo Custódio, que se estende desde a criança morta próxima da figura feminina desesperada (mãe?) a dirigir-se ao político cametaense, até a criança a se esgueirar por detrás da saia de uma outra figura feminina (parente, mucama?). O segundo, da esquerda para a direita, compreendido pelo grupo que assiste aos últimos momentos de um homem que agoniza. O terceiro e o quarto na seqüência da contra curva, da direita para esquerda, pontos que apresentam corpos caídos e, finalmente, o último, bem ao longe, representado por uma embarcação que parece ser uma espécie de início da narrativa em seqüência para a cena que se congelou. Não fosse esse recurso de composição para estabelecer o tempo narrativo, diríamos que ao invés de estar chegando aos barrancos da cidade de Cametá, Ângelo Custódio estaria saindo dos mesmos, o que seria, do ponto de vista semiótico, negativo para a honraria dedicada ao político.
Apesar da obra não permitir mais análises sobre os seus detalhes, ressalta-se, na tela, o peso visual da edificação, grosseiramente geométrica e desproporcional, representada na parte superior direita do quadro. Erro de perspectiva (?) – perguntaríamos. O fato é que se prolongarmos as linhas horizontais imaginárias da lumeeira da porta e do beiral da edícula, as mesmas não se encontrarão sobre a linha do horizonte!
Teria sido, mais tarde, tal elemento pintado por algum afoito restaurador (?), ou esse é mais um item a sinalizar a falta de destreza técnica do pintor?
As respostas às questões anteriormente formuladas deverão, a propósito, “ficar em aberto”, para que outros pesquisadores interessados na temática, exercitem o debate, afinal, “falhas” pictóricas e de narrativa encontramos, também, em obras de Theodoro Braga e Parreiras.
Todavia, o cenário com o qual nos deparamos em Cametá, o estado em que encontramos a obra de Constantino da Motta, parece atestar, com clareza, que as causas da não consolidação de uma escola oficial de Pintura em Belém nas últimas décadas do século XIX, certamente não podem ser somente entendidas a partir da destreza dos homens que faziam a cultura local, mas sim e principalmente, devem ser debitadas à incapacidade do poder público e de muitos de seus políticos que estão longe de merecer uma homenagem como a mereceu o cidadão cametaense que morreu no exercício da Vice-Presidente da Província em 1855.
O Museu Municipal de Cametá está entregue às traças!
Nenhum projeto de restauro teve consecução para salvar a tela “Cólera Morbus”!
O próprio cametaense desconhece o que possui o seu triste depósito de objetos antigos, quanto mais nós outros belenenses que estamos cegos e inertes ao descarado vilipêndio que fada ao desaparecimento paulatino os nossos bens culturais, sejam aqueles das artes plásticas, sejam aqueles da arquitetura.
Quem salvará o campo cultural nortista dessa epidemia, que apaga de nossos museus e cidades partes da cultura e história?
Eis os nossos eternos dramas – imagens e discursos parecem, em nossa terra, fadados ao esquecimento e ao desconhecimento. Os legítimos desejos e anseios culturais de Augustos, Paolos e Pennaforts morreram e ainda morrem na beira da praia feito as alegóricas vítimas do cólera - sem ter, nem poder mudar, o poder.
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(*) EDISON FARIAS é Doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Arquiteto, Artista plástico e Professor Adjunto do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará. Atualmente exerce o cargo de Vice-Diretor da Faculdade de Artes Visuais da mesma universidade.