Historicizando os pontos riscados *
Arthur
Valle
VALLE, Arthur. Historicizando os pontos
riscados. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021.
https://www.doi.org/10.52913/19e20.XVI1.07
*
* *
1. Nas
chamadas religiões afro-brasileiras, pontos riscados são diagramas
rituais que possuem diversas funções. Já há algumas décadas, os pontos são
muito associados com, embora não sejam exclusivos da, Umbanda. Trata-se de uma
religião fortemente baseada em cultos centro-africanos aos ancestrais, mas que,
dependo do terreiro, incorpora também e em variadas medidas elementos da
religião iorubá dos orixás, oriunda da África Ocidental; de religiões e
práticas mágicas europeias; de religiões ameríndias etc. Como postula o
historiador da arte estadunidense Robert Farris Thompson (2011, p. 119), assim
como faz a Umbanda, os pontos riscados contam “uma história complexa de
contato e de experiência cultural, em forma de pensamento geométrico.”
2.
Neste artigo, apresento aspectos gerais da iconografia, funções e materialidade
dos pontos riscados, mas, sobretudo, procuro historicizar seu emprego e
recepção no Estado do Rio de Janeiro. Busco complementar tal abordagem
considerando os pontos no contexto geográfico ampliado do mundo
Atlântico, adotando uma perspectiva transcultural e fazendo referências, ainda
que rápidas, a outros sistemas de diagramas rituais oriundos de lugares
marcados pela diáspora africana, como as firmas do Palo Monte cubano e
os vévés do Vodu haitiano.
Iconografia,
funções, materialidade
3. A
designação pontos riscados é usada em contextos religiosos
afro-brasileiros ao menos desde as primeiras décadas do séc. XX. Os pontos
constituem um sistema parcialmente codificado de diagramas rituais que se
referem a um enorme panteão de divindades e entidades espirituais. Usualmente,
um determinado ponto se vincula a uma específica entidade através da
incorporação de elementos iconográficos que estão associados a esta última.
Algumas dessas associações iconográficas são muito comuns e difundidas. O antropólogo
Raul Lody (2003, p. 202) se refere, nesse sentido, aos “pontos de conhecimento
geral, chamaria de clássicos,” exemplificando com o emprego de “arcos e flechas
para os caboclos, ou para Oxóssi; tridentes para os Exus; espadas para Ogum;
estrelas de cinco pontas para divindades aquáticas e a de Salomão para Xangô,
entre outros motivos.” Mas tais associações não dão conta da imensa
variedade dos pontos. O próprio Lody (2003, p. 202) acrescenta que eles
também podem ser “eminentemente criativos e até pessoais. [...] inventados a
partir da necessidade comunicadora inerente da própria produção visual do ponto
riscado.” Além disso, não podemos esquecer que há grande heterogeneidade dentro
do campo religioso afro-brasileiro. Por isso, é comum que, entre diferentes
momentos históricos ou entre diferentes terreiros, o ponto para
uma mesma entidade espiritual varie. Em geral, apenas o conhecimento preciso do
contexto de produção de um ponto pode assegurar a sua adequada
interpretação. É por essa razão que aqui pouco vou me deter na exegese dos pontos
que apresento.
4. Com
frequência, pontos riscados são sinais transitórios. Na sua modalidade
mais conhecida, eles são desenhados no chão dos terreiros usando uma
espécie de giz grosso chamado pemba. O escritor angolano António de
Assis Júnior (s. d., p. 333) observa que, em quimbundo, esse termo designa uma
"substância arenosa branca, usada nos exorcismos [...]. | Caolino; espécie
de gesso." No final dos anos 1940, o sociólogo francês Roger Bastide
chamou atenção para o emprego da pemba no desenho dos pontos no
Brasil, qualificando isso como uma "diferença essencial" com relação
a sistemas de diagramas usados em África ou em outras partes da diáspora, como
os vévé no Haiti (RIGAUD, 1974; THOMPSON, 1997). Para Bastide (1948, p.
6), "o aparecimento do giz de várias cores, substituindo a farinha, a
cinza e outros materiais vegetais ou minerais [...] constitui a influência da
civilização ocidental."
5. Em
uma fotografia não datada [Figura 1],
vemos a religiosa Zélia de Moraes, uma médium na Tenda Espírita N. Sra. da
Piedade - fundada no início do século XX e considerada por muitos como o
primeiro centro umbandista oficial (OLIVEIRA, 2008, p. 90-102) - ajoelhada
diante de vários pontos desenhados com pemba branca. Digno de
destaque nesta foto é o desenho de um coração atravessado por uma flecha, o ponto
riscado do principal guia espiritual da Tenda, o Caboclo das Sete
Encruzilhadas. A foto ilustra, assim, aquela que é provavelmente a mais importante
função dos pontos - i.e., a de invocar, de fazer “baixar” nos terreiros,
entidades espirituais das mais diversas, contribuindo para “firmá-las” nos
corpos dos médiuns que as incorporam.
6.
Todavia, alguns pontos nessa mesma foto, na forma de estrelas de cinco
pontas, não estão sendo usados propriamente para invocar entidades, mas, antes,
“à maneira Kongo [centro-africana] para ‘centralizar’ a água consagrada [...]
em recipientes para os espíritos” (THOMPSON, 2011, p. 117). Essa função de
consagração ritual é até hoje comum em práticas litúrgicas afro-brasileiras. Pontos
podem ser usados para consagrar, por exemplo, uma estátua a determinada
entidade espiritual (MOURÂO, 2012, p. 159-160) ou guias (colares de
contas usados pelos religiosos), como ilustra uma foto do centro umbandista
Casa Vovó Maria do Rosário, localizado em Santa Cruz, Rio de Janeiro [Figura 2].
7. Pontos
riscados também podem ser desenhados com carvão ou com pólvora. Fotos do
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro - possivelmente do início dos anos 1950[1]
- mostram religiosos traçando no chão, com carvão, um ponto [Figura 3a]:
este é composto por um círculo no meio do qual vemos uma cruz cujos braços
terminam em forma de tridentes. Em outra foto da série, vemos o desenho inicial
sendo coberto com pólvora [Figura 3b].
Sobre essa prática, Bastide (1948, p. 6) precisou que, no Brasil, o "ponto
riscado torna-se o local [...] de exposição ritual da pólvora, que se expande
com forte fumaça e permite a quebra dos limites que separam o humano do
divino.” Para Bastide, isso seria resultado da “influência europeia das cargas
de fuzil feitas nas festas católicas ou folclóricas,” embora outras fontes
também devam ser consideradas.
8.
Finalmente, deve-se notar que alguns pontos riscados são permanentemente
configurados em objetos espirituais relevantes, como cálices, roupas,
instrumentos musicais etc. Um exemplo contemporâneo é um ponto riscado
de Exu Tranca Rua das Almas, composto por três tridentes cruzados, que vemos na
longa capa preta que um médium usa, em estado de transe, no Templo Espírita
Ogum Megê, localizado em Cabuçu, Rio de Janeiro [Figura 4].
Nesse caso, o ponto em grande medida identifica a entidade para os
fiéis, ao mesmo tempo em que parece ajudar a “firmá-la” no corpo do médium. De
resto, pontos podem também figurar em objetos pessoais, como pingentes
ou anéis. Nesses casos, eles usualmente têm funções apotropaicas. Mais abaixo,
apresento exemplos de pontos sendo usados nesse último sentido.
Controvérsias
sobre as “origens”
9.
Existe uma relativa polêmica a respeito das supostas “origens” dos pontos
riscados. A tese mais difundida afirma uma derivação essencialmente
centro-africana. Seu mais conhecido proponente é provavelmente o referido
Robert Farris Tompson. Outros investigadores, notadamente o historiador da arte
cubano Barbaro Martinez-Ruiz, ex-orientando de Thompson em Yale, desenvolveram
tal tese em alguns de seus trabalhos (MARTINEZ-RUIZ, 2007; MARTINEZ-RUIZ,
2013).
10.
Thompson e Martinez-Ruiz entendem os pontos riscados como fazendo parte
de um corpus bem maior de sistemas de diagramas rituais afro-atlânticos.
Tomando de empréstimo uma expressão cunhada pelo entomusicólogo alemão Gerhard
Kubik (1986), Martinez-Ruiz denominou esse corpus de “sistemas de escrita
gráfica Kongo.” Ele assim os define:
11. Sistemas de escrita
gráfica Kongo são códigos complexos de conhecimento compartilhado que
desenvolvem e comunicam cosmologia, mitologia e filosofia, bem como definem
realidades estéticas. Eles perpetuam e validam memórias coletivas, épicos,
lendas, mitos e conhecimentos antigos, desempenhando um papel integral na
definição e desenvolvimento de culturas africanas e afro-caribenhas, e na
prática de religiões de matriz africana tradicionais e contemporâneas.
(MARTINEZ-RUIZ, 2013, p. 48, tradução livre)
12.
Nessa definição, o termo “Kongo” é central. Como explica Thompson (2011, p.
108), "ao escrever Kongo com K, em vez de C, os africanistas distinguem a
civilização do Kongo e o povo Bakongo da entidade colonial chamada de Congo
Belga [...] e da atual República Popular do Congo-Brazzaville." Um
subconjunto da chamada cultura Bantu, os Bakongo teriam se estabelecido na
África Central como resultado de grandes e complexas migrações por boa parte do
continente (MARTINEZ-RUIZ, 2013, p. 15-16; LOPES, 2011, p. 107-108). Conceitos
culturais e religiosos dos Bakongo são compartilhados com outros povos, como os
Punu do atual Gabão; os Teke do atual Congo-Brazzaville; os Suku e os Yaka da
região do Rio Kwango, na República Democrática do Congo; bem como com grupos étnicos
do norte de Angola (THOMPSON, 2011, p. 108). Todos esses povos sofreram as
provações do comércio transatlântico de escravizados e o trabalho forçado nas plantations
e cidades do continente americano. Portanto, séculos de escravidão trouxeram
lembranças e crenças Kongo às Américas. Testemunhos desse traumático processo
seriam as variadas tradições gráficas encontradas não só no Brasil, mas também
em Belize, Cuba, Haiti, Jamaica, Suriname ou Trinidad.
13. De
acordo com Martinez-Ruiz, as primeiras evidências de “escrita gráfica Kongo”
são encontradas em sítios arqueológicos ao redor da fronteira entre Angola e a
República Democrática do Congo. Além disso, ele demonstra convincentemente a
semelhança entre os antigos signos rupestres e grafias rituais contemporâneas,
como as firmas dos sacerdotes do Palo Monte (MARTINEZ-RUIZ, 2013, p.
82-85) [Figura 5].
14. Na
contramão da tese que postula origens centro-africanas para os pontos,
há aqueles que defendem, antes, uma origem fundamentalmente europeia. É o caso
dos antropólogos Julien Bonhomme e Katerina Kerestetzi, que, em artigo
relativamente recente, criticam o que interpretam como “busca da África”
(CAPONE, 2012) nas pesquisas de historiadores como Thompson ou Martinez-Ruiz.
Em contrapartida, Bonhomme e Kerestetzi frisam a importância fundamental da
magia europeia para os sistemas gráficos das religiões afro-americanas. Segundo
eles,
15. Se, em sua forma e
uso, os grafismos da Abakuá e Palo Monte [em Cuba], mas também os do Vodu
haitiano, da Umbanda e das igrejas espirituais batistas compartilham um ar de
família, isso sem dúvida se deve menos às suas raízes africanas do que à
influência onipresente da magia europeia. Isso pode ser comprovado no
vocabulário e nas concepções de magia que fundamentam o uso de todos esses
grafismos rituais. Geralmente, eles são designados pelo termo
"assinatura" ou "selo" (por exemplo, firma ou sello
nas religiões afrocubanas, seal nas igrejas espirituais batistas):
trata-se provavelmente de um legado da magia talismânica europeia e da teoria
das assinaturas, na qual a primeira se baseou desde o Renascimento. (BONHOMME
& KERESTETZI, 2015, p. 83, tradução livre, grifos meus)
16. Me
parece pouco produtivo desenvolver aqui a polêmica a respeito das “origens” dos
pontos riscados, i.e., se estas seriam predominantemente africanas ou
europeias. No meu entender, as duas fontes não se excluem; antes, se
complementam. O que me parece certo e mais importante é justamente entender os pontos
como uma expressão artística essencialmente híbrida (BURKE, 2009). Nesse
sentido, vale lembrar que, ao menos desde os anos 1980, Thompson reconhecia -
embora em grau bem menor- a relevância da literatura esotérica europeia para as
“escritas gráficas” afro-atlânticas, lembrando também de outras fontes, como o
Catolicismo Romano; as religiões Iorubá, Fon e Ewe; e até mesmo a Maçonaria
(THOMPSON, 1981, p. 152). Dito isso, me parece que a questão das fontes
europeias dos pontos brasileiros é instigante e que ela ainda não
recebeu a consideração devida. Mesmo que brevemente, eu gostaria de tratar
disso aqui.
17.
Bonhomme e Kerestetzi (2015, p. 84, tradução livre) afirmam que “o aporte da
magia talismânica nos grafismos rituais afro-americanos se baseia em um fluxo
contínuo de livros da Europa para as Américas desde o séc. XVI.” Fontes
brasileiras do começo do séc. XX parecem confirmar esta afirmação. Em uma
passagem de seu seminal As Religiões no Rio, publicado originalmente em
1904, João do Rio dizia:
18. Mas o que não sabem
os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é
o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais de santo,
têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S.
Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas
fatais, os negros soletram o S. Cipriano, à luz dos candeeiros... (RIO, [1906],
p. 32, grafia atualizada)
19.
Escrita no usual tom racista e derrogatório de João do Rio, tal passagem é
simultaneamente exagerada e simplista, mas me parece conter elementos que
merecem reflexão. No atual estado da investigação, não sei a que edição do
famoso grimório atribuído a São Cipriano de Antioquia (DAVIES, 2009, p.
114-117) os pais de santo cariocas dos anos 1900 poderiam ter acesso. Mas se
consultarmos, por exemplo, edições em língua espanhola aproximadamente coevas,
podemos facilmente encontrar diagramas que, em suas formas e funções, recordam
os pontos riscados. É particularmente o caso de certos talismanes,
que são descritos como “objetos mágicos, de diversas espécies, que possuem
virtudes maravilhosas. São feitos imprimindo, gravando ou cinzelando sobre uma
pedra, metal ou outro material, e levam o selo de um signo celeste” (LIBRO,
s.d., p. 43, tradução livre)
20.
Tomemos, e.g., o talisman de Marte [Figura 6], ao
qual são atribuídas virtudes apotropaicas, bem como o poder de dominar
multidões e de atrair espíritos ligados ao planeta vermelho (LIBRO, s.d., p.
57). Esse talisman é formado por dois círculos concêntricos, dentro dos
quais estão dispostos simetricamente vários signos, como palavras em latim, um
pequeno dragão, setas, um tridente etc. Em termos gerais, a composição visual
do talisman é semelhante à do ponto da Figura 3a. Como
veremos, tal tipo de composição era empregada no Rio ao menos desde os anos
1920.
21.
Outro importante livro esotérico europeu que pode ter contribuído para a
configuração dos pontos riscados é a chamada Clavícula de Salomão
(Clavicula Salomonis), um pseudoepígrafo atribuído ao Rei Salomão, que
data provavelmente do séc. XIV ou XV (DAVIES, 2009). Anúncios publicados na
imprensa carioca em 1908 apresentavam uma edição desse grimório como um livro
que ensinava a “fabricar e adaptar [talismãs mágicos] com virtudes
maravilhosas” (LIVROS, 1908, p. 10), acrescentando que ele podia ser adquirido
na Livraria Bittencourt, Avenida Passos n. 11.
22.
Não sei ainda se essa edição da Clavicula Salomonis era ilustrada, mas
várias outras continham diagramas mágicos usados para invocar espíritos. Na
influente edição organizada por Samuel Lidell Mathers em 1889, vemos exemplos
do que esse famoso ocultista - o fundador da ordem hermética da Golden Dawn
- chamava de medals (medalhas) ou pentacles (pentáculos).[2]
A composição destes - como, e.g., o Segundo Pentáculo do Sol [Figura 7] - é
semelhante à do talisman de Marte da referida edição espanhola do Livro
de São Cipriano. O pentáculo apresenta vários signos (do sol, da lua, um
tridente etc.) e os nome de quatro “anjos” em hebraico. Ele serviria para
“reprimir o orgulho e arrogância dos espíritos solares, que, por natureza, são
completamente orgulhosos e arrogantes” (MATHERS, 1889, p. 65, tradução livre).
23. Se
as formas de diagramas como esses lembram a de certos pontos riscados, a
maneira como eles eram utilizados revela, porém, divergências entre as práticas
mágicas europeias e as religiosidades afro-brasileiras. Em sua edição da Clavicula
Salomonis, Mathers assim se refere às medalhas ou pentáculos:
24. As Medalhas ou
Pentáculos, que fazemos com o propósito de infundir terror nos Espíritos e
submetê-los à obediência, têm além disso excelente e maravilhosa virtude. Se tu
invocares os Espíritos com estes Pentáculos, eles te obedecerão sem
repugnância; tendo examinado os Pentáculos, os Espíritos ficarão surpresos e
temerosos, e tu os verás tão surpresos, com medo e terror, que nenhum deles
será suficientemente ousado para desejar opor-se à tua vontade. (MATHERS, 1889,
p. 56, tradução livre)
25. O
desejo do mago europeu em dominar totalmente os “espíritos” diverge da atitude
usualmente reverencial que os religiosos afro-brasileiros nutrem com relação às
entidades que são invocadas pelos pontos riscados. O clima de potencial
conflito com forças sobrenaturais arrogantes e mesmo perigosas, que parece
pairar sobre rituais como os descritos por Mathers, também é muito diverso dos
respeitosos modos de sociabilidade entre humanos e não-humanos que são a norma
nos terreiros. Isso nos alerta para uma precaução metodológica
fundamental: é improdutivo pensar os fluxos artísticos entre Brasil e Europa
como uma via de mão única, como poder-se-ia deduzir da abordagem de Bonhomme e
Kerestetzi. Se os pontos realmente se apropriaram, como parecem ter
feito, de elementos do esoterismo europeu, estes últimos foram substancialmente
ressignificados no processo por modos de pensar, viver e cultuar que eram já
afro-brasileiros. Com efeito, tal precaução vale para toda a arte produzida no
Brasil, mas mantê-la em mente é essencial quando esta comporta elementos
oriundos de matrizes africanas.
Subsídios
para uma historicização
26.
Relativa escassez e grande dispersão caracterizam as fontes sobre os pontos
riscados. Isso em grande medida se deve ao estatuto marginal das religiões
afro-brasileiras durante a maior parte de sua história. A natureza secreta de
muitos de seus ritos e sobretudo a repressão que elas sofreram desde tempos
coloniais contribuíram para sua invisibilidade histórica. Punições e/ou
restrições de culto eram explicitamente formuladas, por exemplo, nas chamadas Ordenações
Filipinas ou na Constituição Política do Império do Brasil, de 1824.
Com a República, apesar da teórica liberdade de culto proposta na Constituição
de 1891, a repressão continuou e só veio a progressivamente arrefecer a partir
dos anos 1930. Até o começo dos anos 1940, a repressão foi legalmente embasada
em artigos do Código Penal de 1890 que puniam os chamados “crimes contra a
saúde pública” (BRASIL, 1890, Capítulo III), como o espiritismo, a magia e o
curandeirismo.
27.
Logo, o caráter muito fragmentário das fontes sobre as religiões
afro-brasileiras, bem como o fato das mais antigas terem sido mormente
produzidas por agentes da repressão, dificulta que historicizemos de forma
precisa os pontos. Nesta parte, eu gostaria de expandir o esforço que
apresentei em outro trabalho (VALLE, 2020b), apresentando sobretudo evidências
que ainda não havia discutido.[3] O esboço de historicização que apresento
aqui não pretende ser exaustivo ou sistemático, e termina em meados do séc. XX.
Todavia, creio que ele pode ser útil para ulteriores investigações.
28.
Até o momento, as fontes mais antigas que encontrei sobre os pontos são
já do séc. XX. Esse fato não deve nos levar a crer que formas semelhantes de
arte sacra afro-brasileira não existissem antes. Com efeito, algumas expressões
estéticas coloniais e imperiais podem ser aproximadas dos pontos. É o
caso, por exemplo, de certos diagramas encontrados nas chamadas bolsas de
mandinga [Figura 8a
e
Figura 8b]
(RAREY, 2018), que usualmente possuíam função apotropaica e cujas formas já
foram cotejadas às dos pontos por outros investigadores (CALAINHO,
2008). No exemplo da Figura 8a,
vemos, no topo, um coração atravessado por flechas que faz pensar no ponto
do Caboclo das Sete Encruzilhadas, e, ao centro, um diagrama circular contendo
inscrições e uma cruz latina, que recorda os diagramas mágicos europeus
referidos na parte anterior.[4]
29.
Uma imagem de tempos imperiais que vale ser citada é o selo de Cândido da
Fonseca Galvão, um alferes que adotou a alcunha de Dom Obá II, e se dizia neto
de Abiodun, o Alaafin de Oyó [Figura 9].
Este selo, “uma espécie de brasão de família ou timbre de autoridade” (SILVA,
1997, p. 171), circulava em impressos cariocas ao menos desde os anos 1880.
Nele vemos, em torno do retrato de Obá - além de uma pomba, associada à Oxum (e
talvez ao Espírito Santo) e uma coroa - representações esquemáticas de
“ferramentas” dos orixás iorubanos Ogum e Oxóssi. Especialmente o damatá
ou ofá (arco e flecha) desse último orixá aparece frequentemente em pontos
riscados mais recentes.
30.
Também parece remontar a tempos pré-republicanos a prática, muito associada aos
pontos, de desenhar no chão diagramas mágicos. Normalmente interpretado
nesse sentido é um pequeno desenho aquarelado feito por Jean-Baptiste
Debret, datado de 1828, que há algumas décadas é
intitulado “Negro feiticeiro” [Figura 10]. No
desenho vemos um homem negro, de compleição esbelta, trajando refinadas roupas
(sapatos, calça, casaca, chapéu com peruca); com o auxílio de um longo
instrumento, ele traça um círculo no chão, em torno de si. A hipótese de que o
homem seja um “feiticeiro” parece se basear nesse seu gesto, uma vez que, em
muitos ramos da magia ritual, praticantes desenham círculos mágicos que
supostamente contêm energia, formam um espaço sagrado e/ou fornecem uma forma
de proteção mágica (THACKER, 2011, p. 61 sg.). Porém, na ausência de outras
evidências, julgo difícil ter certeza se o personagem de Debret era de fato um
“feiticeiro” e, caso fosse, em que medida seu gesto dialogava com heranças
africanas.
31. O
certo é que, em hipótese, tal diálogo é plausível. Ainda que cerca de um século
depois, o emprego de um círculo mágico em um contexto religioso
indubitavelmente afro-brasileiro é descrito em detalhes pelo jornalista
Francisco Guimarães, o popular Vagalume, em sua série de reportagens intitulada
Mysterios da Mandinga, publicado em 1929 (FARIAS, 2011). Vagalume ali
relata como um feiticeiro chamado Tio Pedro, "um velho africano,"
executou um feitiço para um consulente que desejava se vingar de um desafeto.
Ao iniciar seu feitiço - cujo efeito, vale notar, teria sido poderoso e
imediato -, Tio Pedro desenhou no chão alguns signos, fazendo-o como se traça
os pontos até hoje:
32. No meio do
"terreiro", [Tio Pedro] pegou da "pemba" (giz) e fez um
círculo no chão. Primeiramente andou em torno dele [...] Entoava um cântico em
africano [sic], dava uns passos à frente e outros à retaguarda e de vez em
quando curvava o corpo e estendia os braços para a frente exclamando: | -
Exú!... Exú!... Exú!... [...] Um signo Salomão [sic][5]
foi desenhado ao centro e depois de um certo cerimonial, foi sobre aquele
desenho, colocado um monte de pólvora. (GUIMARÃES, 1929, p. VI, grafia
atualizada)
33. A
reportagem de Vagalume não era ilustrada. Alguns anos antes dela, porém, já
começam a aparecer imagens de pontos riscados na imprensa do Rio. O
(presumível) exemplo mais antigo que encontrei ilustra uma longa reportagem de
Carlos Alberto Nóbrega da Cunha intitulada O Mysterio da "Macumba,"
publicada no Correio da Manhã em setembro de 1923 [Figura 11].
Trata-se de uma interessante representação do “’canzel’ de ‘um pai de santo’ da
'linha' de 'Umbanda',” como precisa a sua legenda. Chama a atenção nessa imagem
as diversas cruzes que a pontuam, especialmente as que estão à frente dos copos
e da vela, no chão aos pés do altar. As cruzes ocupam o aposento simulado na
ilustração assim como aquelas que povoam o espaço do papel encontrado em
uma bolsa de mandinga, reproduzido na Figura 8b.
Thompson (1981, p. 153, tradução livre) pontua que, “no Rio, diz-se que os
primeiros desenhos feitos sobre a terra eram cruzes simples ou uma cruz em um
círculo, como no Kongo.” É, porém, improvável que as cruzes no “canzel” de 1923
sejam os primeiros pontos cariocas. Como Bastide afirmava no começo dos
anos 1980, não havia (e ainda não há) evidências irrefutáveis sobre o momento
preciso em que os pontos surgiram nas religiões afro-brasileiras
(BASTIDE apud THOMPSON, 1981, p. 153). Creio que o mais provável é que as
cruzes da Figura 11
-
se efetivamente forem pontos - sejam exemplos mais ou menos tardios de
uma tipologia elementar então já estabelecida, e que permanece em uso no Rio.
34.
Ilustrações de outras reportagens que visavam a apresentar para os leitores os
“mistérios da Macumba,” também assinadas por Nóbrega da Cunha, mostram pontos
mais complexos. Como comentei em outro texto (VALLE, 2018, § 27-40), essas
ilustrações foram publicadas no periódico Vanguarda em 1927 e são de
autoria do artista de origem portuguesa Fernando
Correia Dias. O próprio cabeçalho das reportagens é
cuidadosamente composto tendo em seu centro um ponto riscado circular,
contendo uma estrela de cinco pontas e as letras maiúsculas J, A, C, O, e B [Figura 12].
Outros pontos representados por Correia Dias são mostrados no canto
inferior esquerdo da Figura 13, ou parcialmente
escondidos (talvez deliberadamente) pela figura do pai de santo ao centro da Figura 14.[6]
As ilustrações sugerem que estes pontos eram desenhados sobre tabuletas,
uma prática que é de fato confirmada por textos e fotos da época.
35. Em
edição do Diário de Notícias de 8 de novembro de 1932, encontramos outro
notável registro de um ponto riscado [Figura 15].
Trata-se de uma ilustração para artigo que anuncia a publicação de uma série de
textos intitulada Espiritismo, Magia e as Sete Linhas de Umbanda, de
autoria do escritor Antonio Elieser Leal de Souza. A série foi publicada em 56
pequenas partes entre novembro de 1932 e janeiro de 1933, e parcialmente
reunida nesse último ano na forma de livro (SOUZA, 2020). Na ilustração que
aqui me interessa, vemos um despacho (uma oferenda ritual), composto por
uma galinha preta, uma garrafa (provavelmente de cachaça), charutos e moedas.
Esses elementos se encontram assentados sobre, e parcialmente ocultam, um ponto
riscado cuja composição nos é já familiar. Dentro de um círculo, podemos
ver dispostos simetricamente um par de flechas que se cruzam e uma estrela de
cinco pontas, cada uma das quais enfatizada por uma vela acesa. Vale frisar a
importância dada ao ponto nessa ilustração que “abre a gira” para um dos
textos fundacionais da doutrina umbandista. Nele, Leal de Souza se refere aos pontos
diversas outras vezes. Ao elencar “os atributos e peculiares da Linha Branca”
de Umbanda e Demanda, por exemplo, ele os define de modo a enfatizar sua função
invocatória e sua potencial polissemia: “PONTO RISCADO: É um desenho
emblemático e cabalístico.[7] Atrai com a concentração que determina
para ser traçado, as entidades ou falanges a que se refere. Tem sempre uma
significação e exprime, às vezes, muitas coisas, em poucos traços” (SOUZA,
1932, p. 1, grafia atualizada).
36.
Diversas matérias de jornal publicadas ao menos a partir de 1927 e ligadas a
repressão policial contra a religiões afro-brasileiras também mostram pontos
riscados. Já tratei de algumas delas em outros trabalhos (VALLE, 2017;
VALLE, 2020a), por isso gostaria de me voltar aqui para um aspecto mais
tangível, por assim dizer, da repressão. Trata-se de um conjunto de objetos
sacros apreendidos pela polícia e que faziam parte do acervo do Museu da
Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Recentemente, esse acervo foi
transferido para o Museu da República do Rio (GOVERNO, 2020, p. 22), onde se
espera que ele seja tratado com a dignidade e respeito que lhe é devido desde
antes de seu tombamento pelo antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1938 (MINISTÉRIO, 1938).
37.
Além de uma coleção de pembas de diversas cores [Figura 16], o Museu da Polícia guardava algumas peças que
ostentavam pontos riscados. É o caso, e.g., de um tambor pintado nas cores
verde e branco, que exibe flechas cruzadas, provavelmente vinculadas a Oxóssi
ou a algum caboclo [Figura 17]. Junto com vários outros objetos sacros, esse
tambor foi apreendido pela polícia em abril de 1935 e pertenceria a uma
religiosa chamada Judith Candida de Oliveira, que então residia na Rua
Mambucaba n. 26, no subúrbio do Rio (JUPYRA, 1935, p. 1). Outro exemplo é um ponto
desenhado sobre papel emoldurado [Figura 18], que provavelmente foi apreendido pela polícia
no começo de 1941 por ocasião de uma grande investida contra os terreiros
cariocas organizada pelo Major Filinto Müller, então Chefe de Polícia do
Distrito Federal (FONSECA, 1941, p. 44).
38. Em
texto publicado originalmente nos anos 1980, Thompson se referia, ainda, a duas
peças excepcionais, provavelmente das primeiras décadas do séc. XX, mas que não
constam nos levantamentos do acervo do Museu da Polícia que consultei. Vale,
portanto, lembrá-las aqui. A primeira é uma cabaça de beber laqueada de preto e decorada com uma cruz latina
dentro de uma Estrela de Davi, ambas inseridas em um círculo ornado com seis
pequenos pentagramas [Figura 19]. Esse ponto, que se aproxima do feito
no chão pelo referido Tio Pedro, seria o ponto riscado de Pai Velho, “um
ancestral Kongo de poder e percepção especiais. Seu ponto adverte o
mundo de que ninguém, exceto uma pessoa em seu espírito ou um oficiante
apropriado, pode usar sua cabaça de beber” (THOMPSON, 2011, p. 118-119). A
segunda peça é um bordado com fios vermelhos em uma faixa de seda verde, que
ostenta no alto a identificação “S. Jorge” [Figura 20] - santo que, em contextos religiosos
afro-brasileiros cariocas, é usualmente sincretizado com Ogum. De acordo com
isso, Thompson propõe que esse ponto representaria as “estradas de
Ogum.” Mas ele acrescenta que as linhas desse ponto “são também
encruzilhadas, o elemento de Exu - daí, talvez, os forcados crípticos na
extremidade dos três eixos indicados” (THOMPSON, 2011, p. 119).
39. A
partir sobretudo dos anos 1930, com a realização dos Congressos
Afro-Brasileiros em Recife (1934) e Salvador (1937), aspectos das culturas
afro-brasileiras, incluindo as religiões, conheceram uma progressiva
valorização. Destacam-se, nesse último sentido, a valorização do Candomblé, na
Bahia, e de certas linhas da Umbanda, entre os setores médios da sociedade em
cidades então em vias de desenvolvimento, como Rio de Janeiro e São Paulo. A
partir de meados do séc. XX, passou a ser comum que artistas ligados ao campo
institucionalizado da arte se apropriassem de elementos das culturas visuais
religiosas afro-brasileiras. Renomados artistas negros como Abdias do
Nascimento, Rubem Valentim
ou
Emanoel Araújo se valeram
das formas e da iconografia das chamadas “ferramentas” ou “ferros” de orixás do
Candomblé, mas pontos riscados parecem também ter constituído um
repertório privilegiado. Fotos recentes de Jorge dos
Anjos trabalhando servem para ilustrar tais
apropriações. Nelas, vemos o artista desenhando com pólvora sobre uma grande
tela branca - podemos, inclusive, reconhecer ali a forma de um tridente [Figura 21]. Tal performance se relaciona com a poética do
artista mineiro, que costuma produzir formas queimando a superfície de telas de
feltro com ferro em brasa, ou superfícies de plástico com fogo (RIBEIRO, 2015).
Mas ela também traz à mente a performance ritual do religioso desenhando um ponto
com pólvora na Figura 3b.
40.
Após a realização, em 1941, do I Congresso Brasileiro de Espiritismo de
Umbanda no Rio de Janeiro, tornaram-se frequentes as publicações visando a
sistematizar a doutrina da religião (CUMINO, 2006, p. 8). Para os pontos
riscados, esse parece ter sido um marco importante, pois, a partir de
então, surgiu uma tipologia de catálogos de pontos que viria a se tornar
muito popular. Nesse sentido, o sacerdote e pesquisador da Umbanda Alexandre
Cumino destaca como pioneiro o livro Umbanda (Magia Branca) e Quimbanda
(Magia Negra) de Lourenço Braga, com primeira edição datada de 1942, e que
contém muitas páginas dedicadas aos pontos [Figura 22]. Fazendo eco ao congresso de 1941 e à ideia de
“branqueamento” da Umbanda que parece ter sido sua tônica (SANTOS, 2016), Braga
esboça em seu livro não somente uma sistematização dos pontos, mas os
apresenta com uma composição visual uniformizada e muito próxima da dos
diagramas mágicos europeus supracitados. Nas décadas seguintes, esses catálogos
de pontos se ampliariam muitíssimo em dimensões. Thompson (1981, p. 153,
tradução livre) chamou a atenção para o fenômeno: “em 1951, 132 pontos foram
recolhidos, classificados e publicados. Em 1975, esse número havia se
multiplicado para 1500.” Catálogos mais recentes (e.g., 3333 PONTOS, 2011)
prometem aos fiéis quantidades ainda maiores de pontos, deixando
entrever, simultaneamente, a desconcertante diversidade de entidades
espirituais que “baixam” nos terreiros. Todavia, o estudo sistemático
dessa importante série de catálogos ainda aguarda por ser feito.
41. Um
último aspecto que gostaria de considerar, ainda relacionado ao prestígio
crescente de denominações como a Umbanda em meados do séc. XX, tem a ver com
uma vasta cultura visual a elas relacionada, que circulou em diversas media e
que, presumivelmente, conheceu grande difusão. Também nesse campo, os pontos
se afirmaram como elementos visuais emblemáticos. À guisa de exemplo, vou me
deter aqui em duas imagens.
42. A
primeira é a capa do LP intitulado Macumba, que registra gravações do
músico e pintor Heitor dos
Prazeres em 1955 [Figura 23] - umas das músicas se intitula, inclusive, “Segura a Pemba.”[8] Na
imagem, executada pelo próprio Prazeres, vemos um grupo de três religiosos
negros dançando e cantando em torno de um atabaque. No canto inferior esquerdo,
pode-se ver a representação de um ponto riscado. Sua forma é a de um
pentagrama, traçado a branco sobre fundo escuro, com velas acesas em cada uma
de suas pontas - semelhante, portanto, ao ponto na imagem que anunciava
os textos de Leal de Souza em 1932. Dentro do pentagrama, destacam-se, ainda,
um triângulo e uma flecha apontando para a direita, bem como seis pequenos
círculos.
43. A
segunda imagem é um anúncio de venda de “anéis de Umbanda,” publicado no
periódico carioca A Noite Ilustrada em janeiro de 1952 [Figura 24]. A
empresa que comercializava os anéis chamava-se Distribuidora de Joias LTDA e
localizava-se na Rua do Ouvidor, no centro do Rio. O anúncio foi publicado
justamente no momento em que “a Umbanda ating[ia] seu ponto máximo de
crescimento no Estado da Guanabara [sic]”[9]
(ORTIZ, 1999, p. 203). Considerada uma religião legítima e até “genuinamente”
brasileira, a Umbanda era então capaz de catalisar um sentimento de pertença
religiosa definidor da própria identidade de seus fiéis e passível de ser
explorado comercialmente.
44.
Além de frisar a função apotropaica dos pontos, o anúncio explicitamente
apelava para o “orgulho” dos umbandistas. Vale aqui reproduzir suas palavras:
45. Orgulhe-se de ser
um UMBANDISTA e procure se identificar sob a proteção de seu "Guia
Espititual". Anéis artisticamente trabalhados em ouro e prata, com pedra
de cor correspondente, contendo a "linha" e o "ponto
riscado" que lhe correspondem. Procure já o seu anel e mantenha seu
espírito tranquilo na certeza da proteção permanente que essa joia lhe inspira.
| (Os pontos foram autorizados pelo Guia). (ANÉIS, 1952)
46. O
anúncio em A Noite Ilustrada propunha uma sistematização da iconografia
dos pontos referentes a várias entidades. Nele vemos, por exemplo: um
ponto de “Exu Tranca Rua,” com seu tridente característico; um ponto de “São
Jorge da Ronda,” que ostenta as típicas espadas de Ogum, o equivalente
sincrético de São Jorge no panteão da Umbanda carioca; ou um ponto de
"Xangó das Matas," no qual o machado do orixá do trovão é cruzado por
quatro flechas que se referem aos caboclos, os habitantes ancestrais das florestas
brasileiras [Figura 24,
detalhes].
47. A
sistematização apresentada no anúncio é, certamente, particular e contingente,
divergindo em certa medida dos catálogos de pontos coevos. Logo, não devemos
supor que, em meados do século XX, as entidades mencionadas no anúncio fossem
invocadas pelos mesmos pontos em todos os terreiros do Rio. Mas tal
sistematização é um bom exemplo da singular constância de certos elementos
iconográficos e da lógica sintática dos pontos riscados, em que, de
acordo com necessidades específicas, diversos elementos podem ser combinados
criativamente para se referir a uma determinada entidade espiritual.
*
48.
Finalizando, gostaria de frisar que, neste artigo, busquei principalmente
historicizar os pontos riscados. Trata-se de uma introdução a um tema
vasto, na qual me vali de um olhar “de fora” das religiões afro-brasileiras,
diverso do dos iniciados. Minha preocupação principal foi também específica:
como historiador da arte, procurei contribuir para o entendimento dos pontos
como uma expressão estética original e potente. Nesse sentido, eles exigem a
mesma atenção que os estudiosos da arte brasileiros reservam para seus objetos
canônicos, geralmente de marcada origem europeia ou estadunidense. Estou
convicto de que uma apreciação longamente necessária - mais justa e plural - da
arte produzida no solo do que hoje chamamos Brasil depende de esforços desse gênero.
Tal apreciação é urgente nos dias atuais, nos quais recrudesce a vetusta
perseguição contra as religiões afro-brasileiras. Por si só, o reposicionamento
das artes ligadas a esta últimas no cânone da atual historiografia certamente
não resolverá esse problema. Mas o reconhecimento de expressões
afro-brasileiras como os pontos riscados enquanto exemplos autênticos de
arte sacra e patrimônio cultural nacional pode nos ajudar a enfrentá-lo.
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Acesso
em: 01 jun. 2021.
GOVERNO do Estado do Rio de
Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, ano XLVI, n. 147,
parte I, 12 ago. 2020.
MINISTÉRIO da Educação e
Cultura. Secretaria da Cultura. Subsecretaria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Processo No 35_T_SPHAN/38. Coleção: Museu de Magia
Negra. Rio de Janeiro, 1938.
____________________
* Esse artigo é uma
versão bastante modificada e ampliada de comunicações apresentadas, em 2019, no
35th CIHA World Congress of Art History, Firenze/Italia, e no XXXIX
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, Pelotas/Brasil. Agradeço
ao Comite International d'Histoire de I'Art e ao Comitê Brasileiro de História
da Arte, que ofereceram apoio financeiro para que eu realizasse essas
comunicações. Agradeço também aos membros da audiência destes eventos, por suas
perguntas e comentários. Agradeço, por fim, ao prof. Roberto Conduru, que leu e
comentou versões desse artigo.
[1] Proponho essa datação
porque a mulher nessas fotos aparentemente é a mesma mostrada em uma matéria
publicada em O Cruzeiro, em 1952 (cfr. LEMOS, 1952).
[2] Em inglês, apesar do
som da palavra, pentacle muitas vezes não tem a conotação de
"cinco" em textos sobre magia. Designa, antes, talismãs mágicos que
podem conter qualquer símbolo ou caractere. “O mais provável é que [a palavra pentacle]
venha, por via do italiano e do francês, da raiz pend- ‘para pendurar,’
e é, portanto, equivalente a um pingente ou amuleto pendurado no pescoço” (DE
PURUCKER, 1999, tradução livre).
[3] Nesse sentido,
gostaria de registrar meu débito ao pesquisador e umbandista Guilherme Watanabe
que, em sua conta no Instagram (@teu.urubatao), apresentou algumas das
imagens que vou discutir.
[4] Outras possíveis
fontes necessitam, porém, ser lembradas. Por exemplo, o historiador da arte
estadunidense Matthew Francis Rarey (2018, p. 28, tradução livre) postula que
tal “símbolo circular [...] derivava da vasta gama de medalhas devocionais e
moedas transformadas em amuletos que circulavam nos corpos das pessoas em todo
o mundo afro-português.”
[5] O dito signo de
Salomão, propagado desde eras longínquas por boa parte do mundo, tem forma de
pentágono ou hexágono regular estrelado (nessa última forma, ele é conhecido
também como “Estrela de Davi”). Na passagem para o século XX, o arqueólogo
português José Leite de Vasconcellos escreveu extensamente sobre o emprego
desse signo nas crenças e costumes populares lusitanos, em obras ricamente
ilustradas [ex. imagem]
(VASCONCELLOS, 1899-1900; VASCONCELLOS, 2020). É possível, portanto, que o
signo de Salomão tenha sido incorporado em práticas rituais afro-brasileiras
por via de fontes ibéricas.
[6] Para uma discussão
mais detida dessa ilustração, ver VALLE, 2018, § 31-40.
[7] Na edição em livro de
1933, a expressão usada é “desenho emblemático e simbólico” (SOUZA, 2020, nota
11).
[8] Essa música pode ser
ouvida em: https://youtu.be/m02jbPVeB6o
[9] A Guanabara foi um
Estado do Brasil que existiu entre 1960 e 1975, no território correspondente à
atual localização do município do Rio de Janeiro.