Arte sacra afro-brasileira na imprensa: Alguns registros
pioneiros, 1904-1932 [1]
VALLE, Arthur. Arte
sacra afro-brasileira na imprensa: Alguns registros pioneiros, 1904-1932. 19&20,
Rio de Janeiro, v. XIII, n. 1, jan.-jun. 2018. https://doi.org/10.52913/19e20.xiii1.04
* *
1. Especialmente a partir dos anos 1910,
imagens de objetos sacros das chamadas religiões afro-brasileiras foram com
frequência reproduzidas em jornais e revistas do Rio de Janeiro. O tratamento
dado a essas imagens era, todavia, eivado pelo racismo que estrutura a
sociedade brasileira desde tempos coloniais até hoje: elas ilustravam notícias
relatando batidas policiais em terreiros e os objetos que retratavam
eram tratados como evidências materiais de crime. Vigorava então o Código Penal
de 1890, que fornecia a base legal para a repressão às religiões
afro-brasileiras perpetrada pela polícia. Tratava-se dos artigos relativos aos
chamados “crimes contra a saúde pública” (DECRETO N. 847, Capítulo III), em
especial o Art. 157, que punia a prática do espiritismo, da magia e dos
sortilégios com fins escusos (como subjugar a credulidade pública), e o Art.
158, que punia a prática do curandeirismo.
2. Em um momento como o atual, em que a
intolerância religiosa volta a ganhar contornos assustadores em boa parte do
Brasil - como demonstram os recentes ataques iconoclastas a terreiros -,
penso que é muito importante evidenciar a sombria história da repressão
policial às religiões afro-brasileiras que caracterizou as primeiras décadas da
República. Foi por isso que iniciei em 2016 um projeto de investigação cujo
objetivo é entender por que e como as religiões afro-brasileiras foram
perseguidas no Brasil republicano, bem como essa perseguição contribuiu -
usualmente de maneira inadvertida - para a conservação de expressões artísticas
afro-brasileiras.[2] Isso se deu sobretudo através da criação
de documentos, como processos criminais e matérias de imprensa, e da formação
de acervos museológicos derivados diretamente da repressão (LODY, 2005).
3. O presente artigo se centra, todavia, em um
aspecto um tanto diverso da recepção da arte sacra afro-brasileira no começo do
séc. XX. Trata-se de matérias escritas por intelectuais e/ou jornalistas cujo
objetivo principal era apresentar para o público leitor um panorama das
religiões afro-brasileiras. Me deterei aqui em matérias que foram publicadas na
imprensa do Rio de Janeiro e/ou que tratam de religiosidades praticadas nesse
Estado. Até onde pude apurar, as primeiras dessas matérias, publicadas em 1904,
foram os suportes pioneiros por meio dos quais circularam na imprensa imagens
da arte sacra afro-brasileira.
4. De certo, essas primeiras matérias também
são, em maior ou menor medida, racistas e preconceituosas: de modo geral, as
religiões e artes nelas apresentadas são tidas como produtos de uma parcela da
população entendida como inculta, primitiva ou bárbara. Mas essas matérias
divergem do vasto corpus de notícias sobre batidas policiais, sobretudo
porque nelas não se advoga explicitamente a repressão ou o expurgo das
religiões afro-brasileiras e de sua arte. Por isso, me parece que elas demandam
um tratamento em separado, que procurarei desenvolver nesse artigo.
Instrumentos de Feiticeiros, 1904
5. A primeira publicação apresentando imagens
de objetos sacros afro-brasileiros por mim encontrada é a reportagem intitulada
Instrumentos de Feiticeiros, publicada no suplemento ilustrado da Gazeta
de Noticias em 24 de julho de 1904 [Figura 1]. Trata-se de uma das matérias que vieram a
lume na Gazeta no rescaldo da publicação, em março de 1904, de cinco
reportagens do escritor João do Rio sobre as práticas religiosas
afro-brasileiras.[3] Agrupadas sobre a rubrica No mundo dos
feitiços, essas reportagens faziam parte do célebre inquérito As
religiões no Rio, publicado em forma de livro ainda em dezembro de 1904
(RIO, [1906]). Em outro texto (VALLE, 2017), analisei mais detidamente a
maneira como aquilo que então chamei de “cultura material religiosa
afro-brasileira” foi tratado no corpus de matérias da Gazeta.
Aqui, vou retomar apenas as imagens da reportagem de julho de 1904.
6. Instrumentos de Feiticeiros reproduz
ao todo oito objetos sacros, na forma de desenhos lineares. Embora o
articulista anônimo afirme que “fomos a algumas casas de feitiçaria [e]
trouxemos as fotografias dos instrumentos de santo que damos hoje a público”
(INSTRUMENTOS, 1904),[4] todos esses desenhos são bastante
simplificados, podendo alguns deles perfeitamente terem sido feitos a partir de
simples descrições verbais.
7. É o caso dos cinco instrumentos musicais
mostrados [Figura 2].
O primeiro é um agogô com uma única campânula, recoberto com motivos ornamentais.
Seguem-se três tambores, designados nas legendas pelos nomes “Tambor Rum,”
“Vampry” e “Ibata Cetu.” Rum até hoje o nome de um dos três atabaques
essenciais em orquestras litúrgicas como a do Candomblé - os outros dois são
chamados Rumpi e Lê (LODY, 2003, p.66-69). O desenho do Rum
na Gazeta parece ter sido impresso de cabeça para baixo, e é acompanhado
por uma baqueta. O desenho do “Vampry” (grafado como “vampri” no texto,
podendo, portanto, ser uma varia o de Rumpi) tem ao seu lado duas baquetas.
Já o desenho do “Ibata Cetu” lembra em boa medida os atuais tambores Batá,
“formado[s] por caixa de ressonância em madeira, encouramento duplo retesado
por cordas” (LODY, 1995, p.92). O último instrumento musical reproduzido em Instrumentos
de Feiticeiros é um xequerê, uma espécie de chocalho composto por
uma cabaça coberta por uma rede frouxa de algodão com contas (LOPES, 2011,
pos.27210).
8. Três outros objetos sacros são mostrados na
Gazeta. O primeiro que é um opelê, instrumento típico de consulta ao
sistema oracular iorubano do Ifá [Figura 3]. O desenho remete estrutura de opelês
contemporâneos, compostos por uma corrente dividida em duas partes, cada uma
das quais contendo quatro metades de caro os de dendê: “atirada a corrente
aleatoriamente sobre a esteira, a configuração surgida [...] determina o odu pelo
qual Orumilá [o orixá iorubano da adivinhação e da sabedoria] está se
manifestando” (LOPES, 2011, pos.19506). O segundo objeto é um abebé [Figura 4], uma espécie
de leque/espelho metálico que é “um distintivo das iás orixás e das mães
ancestrais” (LODY, 2003, p.145), como Iemanjá (no Brasil, a orixá dos oceanos)
ou Oxum (a orixá das águas doces, da beleza e do amor). O abebé mostrado
na Gazeta pertencia a Oxum, e tem seu corpo circular e cabo recobertos
por delicados motivos ornamentais; a representação de um pavão de perfil se
destaca no centro da peça, que é rodeado por treze argolas. Por fim, é
reproduzido o desenho de um xaxará [Figura 5], tradicional ferramenta de Obaluaiê, o orixá
da varíola e de outras doenças contagiosas (LODY, 2003, p.210-212). Diferente
dos xaxarás mais comuns desde ao menos os anos 1930, o xaxará
mostrado na Gazeta tem uma forma relativamente compacta e parece ser
composto por um feixe de fibras de piaçava que se projeta de uma base
retangular, ornada por frisos com conchas.
As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a
esculptura, 1904
9. Em agosto de 1904 - i. e., menos de um mês
depois da publicação de Instrumentos de Feiticeiros - foi estampado na
revista Kósmos um artigo intitulado As bellas-artes nos colonos
pretos no Brazil: a esculptura, de autoria do polímata maranhense Raymundo
Nina Rodrigues, então professor da Escola de Medicina da Bahia. Este é
provavelmente o mais conhecido artigo sobre arte afro-brasileira publicado no
início do séc. XX, o que levou alguns autores (CUNHA, NUNES, SANDES, 2006;
SALUM, 2017) a atribuir a Rodrigues o título de iniciador de estudos sobre o
tema.
10. A produção textual de Nina Rodrigues é
lembrada sobretudo por suas teses a respeito da inferioridade racial de
ameríndios, negros e mestiços, baseadas em um racialismo pseudocientífico que
grassava no Ocidente desde meados do séc. XIX (BETHENCOURT, 2017, p.369 sg.).
Mas Rodrigues é igualmente reconhecido, entre outros aspectos, pelo pioneirismo
na pesquisa das religiosidades afro-brasileiras e de sua arte. No meu entender,
o próprio título de seu artigo de 1904 é representativo dos aspectos menos preconceituosos
de seu pensamento. Rodrigues designa os “pretos” não como escravos, mas sim
como “colonos” - ou seja, como partícipes ativos no processo de colonização.
Além disso, desloca a sua produção escultórica do campo estritamente
etnográfico para aquele - então bem mais privilegiado - das “belas artes.” É
certo que Rodrigues considera a escultura dos negros inferior à dos “povos
civilizados” brancos. Não obstante, ele pondera que ela já representa
11.
[...] a escultura em toda a sua evolução, mesmo na sua feição decorativa, do
baixo-relevo à estatuária. As vestes são ainda grosseiras porque, as ideias não
têm a precisa nitidez, os sentimentos e a concepção estão ainda pouco
definidos; mas no fundo já se encontra a gema que reclama polimento e
lapidação. (RODRIGUES, 1904, n. p.).
12. A fotografia que abre as bellas-artes
nos colonos pretos mostra oito esculturas relacionadas a orixás do “culto
gêge-nagô” [sic] [Figura 6].
Rodrigues pondera que elas “não são uma representação direta dos orixás, mas
sim dos sacerdotes deles possuídos e revelando na atitude e nos gestos as
qualidades privativas das divindades que os possuem” (RODRIGUES, 1904, n. p.).
Na parte inferior dessa primeira fotografia, são ainda mostrados cinco objetos
sacros: dois iruquerês, espécie de espanador ritual que constitui uma
insígnia de poder usada comumente por reis e sacerdotes, bem como por alguns
orixás; um abebé de Oxum; e duas “armas” que Rodrigues diz ser de Xangô,
o orixá iorubano da justiça, dos raios e dos trovões.
13. O paradeiro atual de todas essas peças é
desconhecido (CUNHA, NUNES, SANDES, 2006, p.28; SALUM, 2017, p.165). Sete das
oito esculturas eram de madeira, e Rodrigues não sabia afirmar se vinham da
África ou se foram fabricadas no Brasil. Apenas com relação a uma “peça do
culto de Oxum” [Figura 7],
reproduzida com destaque em outra fotografia do artigo, o autor sugeria uma
fatura brasileira. Rodrigues atribuía ao contato com a cultura dos brancos o
aspecto mais “realístico” dessa estatueta e o próprio tipo étnico nela evocado:
“este é sem dúvida um produto artístico mestiço. As tatuagens ou gilvazes
étnicos do rosto, como a cor preta, não conseguem mascarar os atributos da Raça
Branca, no nariz afilado ou leptorrino, na boca pequena, lábios de grossura não
exagerada, nas proporções do talhe” (RODRIGUES, 1904, n. p. Grifo meu). Quase
oitenta anos depois, Marianno Carneiro da Cunha (1984, p.1000) retomaria a
interpretação dessa “peça do culto de Oxum” como um produto artístico mestiço,
postulando que ela já “apresenta[va] todas as características das futuras
Pombas-Giras das umbandas atuais.”.
14. Outra obra mostrada na fotografia inicial
que mereceu tratamento em separado foi um banco antropomórfico ligado ao culto
de Iemanjá [Figura 8],
cuja base é uma figura com os “volumosos e túrgidos seios da orixá que, para
oferecê-los, está de joelhos” (RODRIGUES, 1904, n. p.). Dois oxês - os
machados duplos, símbolos de Xangô - também figuram em uma foto em separado [Figura 9]. É digna de
nota a seguinte comparação que Rodrigues faz entre esses oxês e uma
imagem cristã:
15. Aqui
a concepção artística do escultor negro pode com vantagem suportar confronto com
a concepção similar de uma pintura branca do século V da era cristã, também de
motivo religioso, que figura nos trabalhos iconográficos de Paul Richer e
Charcot sobre o Demoníaco na Arte [...]. A gravura cristã mostra o demônio
saindo da cabeça de um energúmeno sob a injunção de Jesus Cristo. O oxê também
reproduz uma cena de possessão; um sacerdote ou feiticeiro africano em cuja
cabeça penetrou Xangô. Apenas Xangô reveste, não a forma humana que tem o
demônio da pintura cristã, mas a sua forma fetichista de meteorito ou de pedra
do raio. (RODRIGUES, 1904, n. p.)
16. A “pintura branca” referida por Rodrigues é
provavelmente um marfim do séc. V [Figura 10b], reproduzido, em forma de desenho linear,
em Les Démoniaques dans l'art, livro publicado em 1887 pelo médico
Jean-Martin Charcot e pelo anatomista Paul Richer. Esses autores descrevem esse
marfim como um “fragment de la couverture d'un évangéliaire de la bibliothèque
de Ravenne, [qui] retrace une scène d'exorcisme: on y voit le Christ délivrant
un possédé. […] Une petite forme humaine, qui étend les bras, est à demi sortie
du crâne du possédé” (CHARCOT, RICHER, 1887, p.5-6).
17. Tal comparação não deve ser compreendida
como uma simples “demonização” das religiosidades de matriz africana - de
resto, comum desde o séc. XIX e que no Brasil, infelizmente, é ainda hoje muito
difundida. Afinado com as teorias de Charcot, Rodrigues entendia a possessão
espiritual como um caso típico de histeria, ou seja, como uma aflição da mente.
Ele descartava que o fenômeno tivesse qualquer coisa a ver com o sobrenatural,
buscando defini-lo (e tratá-lo) pela via da medicina.[5]
Tendo isso em mente, creio que a comparação entre os oxês e a imagem de
exorcismo europeia pode ser, ao menos em parte, vinculada à referida estratégia
de Rodrigues de tratar a estatuária afro-brasileira como um produto das “belas
artes.” Para o maranhense, diante de temas supostamente análogos, o “escultor
negro” era capaz, inclusive, de produzir uma obra melhor do que a do seu êmulo
europeu do séc. V.
18. Rodrigues analisa ainda um “cofre de
Iemanjá,” que não aparece na foto que abre As bellas-artes nos colonos
pretos [Figura 11].
Achado em uma praia do Bonfim, em Salvador, e, segundo Rodrigues, então
pertencente ao Instituto Histórico da Bahia, “a peça representa[va] um cofre
cilíndrico de 28 centímetros de altura sobre 21 de diâmetro, composto de duas
partes distintas, o cofre propriamente dito e o seu suporte, grupo de escultura
representando uma cena de pesca” (RODRIGUES, 1904, n. p.).
19. Não caberia aqui retomar a complexa
iconografia desse cofre, que é reproduzido em duas fotos, sob vistas
diferentes, e analisado em detalhes por Rodrigues. Vale lembrar, porém, que, de
modo análogo ao que fez com os oxês de Xangô, Rodrigues compara o cofre
a uma peça internacionalmente conhecida. Trata-se, nesse caso, do “trono de
Behanzin” [Figura 12a],
rei do Daomé deposto em 1894 pelas forças coloniais francesas (GUEYE, BOAHEN,
2010, p.143-145). Junto com outras importantes obras de arte daomeanas, o trono
“[was] brought to France in the 1890s, following the French conquest of this
West African kingdom in 1894” (KELLY, 2005, p.1), passando a fazer parte do
acervo do então denominado Musée d'ethnographie du Trocadéro (a peça hoje se
encontra no Musée du Quai Branly [Figura 12b]). Rodrigues discute o trono daomeano a
partir de um artigo que o administrador colonial francês e africanista Maurice
Delafosse publicou na revista La Nature em 1894.[6]
Para Rodrigues, a reprodução escultural da cena de pesca no cofre era
comparável de cenas da corte daomeana no trono de Behanzin. Do seu ponto de
vista, “o cofre sagrado vale o trono de Behanzin [...] E com razão Delafosse
considerou a peça do Museu parisiense de valor para a história etnográfica da
Arte” (RODRIGUES, 1904, n. p.).
20. Vale notar, por fim, o ato de autocensura
que Rodrigues pratica em As bellas-artes nos colonos pretos. Ele
deliberadamente deixa de mostrar duas esculturas relacionadas a Exu - o orixá
mensageiro do povo iorubá - por causa de seus atributos fálicos [Figura 13]. Fotografias
dessas esculturas só seriam reproduzidas em Os africanos no Brasil,
talvez o mais importante livro de Rodrigues, cuja publicação foi interrompida
com a morte do autor em 1906 e concluída apenas nos anos 1930, com organização
de Homero Pires. Na parte IV. Pintura e esculptura, do capítulo V de Os
africanos no Brasil, Rodrigues (1932, p.241-245) retoma, quase ipsis
litteris, o conteúdo de As bellas-artes nos colonos pretos, diferindo
na inclusão das fotos das esculturas relacionadas a Exu. Estas eram fundidas em
bronze e, em 1904, estavam na posse do próprio Rodrigues, que acrescenta que
elas “pertenceram ao bastão ou cetro de um régulo ou potentado africano”
(RODRIGUES, 1904, n. p.).
O fetichismo dos negros do Brazil, 1911
21. Somente em 1911, alguns anos após as
publicações pioneiras de 1904, encontramos um novo artigo trazendo registros
visuais das artes sacras afro-brasileiras. Trata-se de O fetichismo dos
negros do Brazil, do padre Etienne Ignace Brazil, publicado na Revista
do Instituto Historico e Geographico Brazileiro. Dos artigos localizados
até agora, esse é sem dúvida o mais rico em termos iconográficos, trazendo nada
menos do que vinte e três fotografias de objetos litúrgicos - estátuas;
indumentária sacra; ferramentas de orixás; instrumentos musicais; etc. -, além
da planta baixa de um terreiro e quatro imagens de práticas comerciais,
recreativas e funerárias de afro-brasileiros no séc. XIX, em sua maioria
gravuras de Jean-Baptiste Debret. Vale notar, porém, que, apesar do
artigo ser “copiosamente ilustrado de fotogravuras, recolhidas na Bahia e Rio
de Janeiro” (BRAZIL, 1911, p.196), o autor pouco se detém na análise formal e
iconográfica dos objetos mostrados, diferente do que fizeram os autores dos
textos de 1904.
22. O artigo de Brazil é composto por um
prefácio (“Limiar”), seguido por bibliografia; introdução; dois capítulos - “I.
Teologia Fetichista” e “II. Liturgia Fetichista” -; e conclusão. Segundo o
autor, o texto reúne informações coletadas na bibliografia sobre o tema (“dados
transcritos dos historiadores”), mas também suas próprias observações
etnográficas: “outros [dados] há que representam o fruto do próprio esforçado
labor e respiram a mais próxima atualidade” (BRAZIL, 1911, p.195). Vale
ressaltar que o texto de Brazil exibe o caráter etnocêntrico e racista usual na
época, mas este parece ter sido exacerbado ainda mais pelo fato de seu autor
ser um sacerdote católico. O preconceito se manifesta inclusive na apresentação
das imagens, em suas legendas: por exemplo, uma escultura do Museu Nacional do
Rio de Janeiro, que Brazil identifica com Exu, é qualificada de “hedionda” e
como tendo um “corpo informe” [Figura 14].
23. Embora aparentemente não partilhe a visão
positiva de Nina Rodrigues a respeito do valor estético da arte dos negros, a
dívida de Brazil para com Rodrigues é grande. O título do texto do padre retoma
o do seminal ensaio O Animismo Fetichista dos negros Bahianos, que
Rodrigues publicou originalmente na Revista Brazileira entre 1896 e 1897
- e que o padre parece ter lido na versão em francês, lançada somente em 1900.
Além disso, Brazil reimprime nada menos do que cinco das fotografias de As
bellas-artes nos colonos pretos: a foto inicial do grupo de objetos de
culto; a dos oxês de Xangô; as das vistas posteriores do “banco de
Iemanjá” e do “cofre de Iemanjá;” e a da “peça do culto de Oxum”. Mas todas as
outras fotos parecem ser inéditas e mostram peças então pertencentes ao Museu
Nacional. Várias delas ainda se encontram no “acervo de objetos africanos
[sic]” (SOARES, AGOSTINHO, LIMA, 2016, p.12) dessa instituição e podem ser
apreciadas atualmente em uma exposição de longa duração denominada Kumbukumbu:
África, memória e patrimônio [Figura 15].
24. O conjunto de objetos do Museu Nacional
reproduzido por Brazil é muito heteróclito. Como no caso dos objetos analisados
por Nina Rodrigues, é difícil precisar a procedência de vários deles, se eram
oriundos da África ou produzidos já no Brasil. Mas as peças que mais me
interessam aqui tem ao menos parte de sua biografia documentada. Elas pertencem
a “uma coleção de objetos apreendidos pela Polícia da Corte e doados ao Museu
Nacional no período de 1880-1887” (ALMEIDA, 2016, p.71; cfr. igualmente CABRAL,
2017). Durante o séc. XIX, foram frequentes as batidas policiais visando a
controlar e cercear a atividade das chamadas “casas de dar fortuna,” onde
africanos e seus descendentes realizavam seus rituais religiosos. Segundo
Carolina Almeida (2016, p.71-72), “sabendo das apreensões de objetos pela
polícia, Ladislau de Souza Mello e Netto, então diretor do Museu Nacional, a
partir de 1880 passou a enviar ofícios à Secretaria da Polícia solicitando que
tais objetos fossem encaminhados ao Museu,” alegando que eles “seriam de grande
importância e interesse para o conhecimento dos costumes africanos e para o
desenvolvimento e avanços da ciência etnológica.”
25. Aparentemente, portanto, algumas das obras
reproduzidas por Brazil eram usadas em contextos religiosos afro-brasileiros e
foram produzidas antes da Proclamação da República. São estas: o quarto (a
partir da esquerda) dos oxês de Xangô mostrado na Fig. IV [Figura 16]; o oxê de Xangô da Fig. XI [Figura 17] (CABRAL, 2017, p.174-179); e a escultura
reproduzida na Fig. XIII [Figura
18]. Brazil acreditava que esta obra estava relacionada a
“sacrifício[s] em honra de Ogun” (BRAZIL, 1911, p.228), mas, na atual
expografia do Museu Nacional, ela é identificada como uma “representação de
Xangô” (SOARES, AGOSTINHO, LIMA, 2016, p.43) [Figura 19]. Além disso,
os oxês não-antropomórficos que estão hoje encaixados na base circular
dessa obra parecem ser duas das peças reproduzidas na parte superior da Fig.
XXVII de O fetichismo dos negros do Brazil [Figura 20a]. É plausível
que também tenham sido apreendidos pela Polícia da Corte os outros oxês
reproduzidos nessa última imagem, bem como os diversos paramentos litúrgicos
(colares de conta, pulseiras, carapuças etc.) mostrados em outras fotos do
artigo.
26. Todavia, outras peças reproduzidas por
Brazil são hoje identificadas como oriundas diretamente de regiões da África.
Vale a pena esclarecer aqui, ainda que rapidamente, alguns exemplos. Dois dos iruquerês
mostrados na referida Figura
20a seriam, nada mais, nada menos, do que presentes que Adandozan, rei
do Daomé, ofereceu ao príncipe regente D. João VI em 1810 (SOARES, AGOSTINHO,
LIMA, 2016, p.135). A escultura mostrada no centro da Fig. X [Figura 21] - que Brazil
designava simplesmente como um “manipanço” - seria, na verdade, uma
representação do herói-caçador Chibinda Ilunga (BASTIN, 1999, p.19-20), um
ancestral mítico dos Chokwe, etnia atualmente concentrada sobretudo em Angola.
Essa peça teria sido doada ao Museu Histórico em 1896, por um certo João
Bezerra de Menezes (SOARES, AGOSTINHO, LIMA, 2016, p.130). A comparação de uma
foto mais recente dessa escultura [Figura 22a] com a de um magnífico Chibinda Ilunga
pertencente ao Kimbell Art Museum, no Texas [Figura 22b], sugere que
as duas obras pertencem, de fato, a uma mesma tipologia.
Os Mysterios da Macumba, c.
1927
27. O material que apresentarei a partir daqui
tem uma natureza diversa das fotografias publicadas nos artigos de Nina
Rodrigues ou Etienne Brazil. Em sua maior parte, como veremos, são desenhos
produzidos por artistas brancos - alguns estrangeiros - nos quais a
interpretação subjetiva do autor assume grande importância. As condições de
produção desses desenhos foram também diversas, oscilando entre a (suposta)
pesquisa etnográfica e o contato indireto com as peças representadas, mediado
por outras imagens - algumas das quais, inclusive, foram acima discutidas..
28. Comecemos pela série de reportagens
intitulada Os Mysterios da Macumba, do jornalista Carlos Alberto Nóbrega
da Cunha, publicada no periódico carioca Vanguarda por volta de 1927. Ao
que parece, tal série foi pouco discutida na bibliografia especializada: até o
momento, encontrei apenas uma referência a ela, em artigo do antropólogo
Emerson Giumbelli (2015, p.107, nota 17). Não obstante, os textos assinados por
Nóbrega da Cunha merecem ser aqui lembrados, não só por sua riqueza e
particularidades intrínsecas, como sobretudo pelo fato de conterem ilustrações
produzidas pelo artista de origem portuguesa Fernando
Correia Dias, que havia se estabelecido no Rio em meados dos anos 1910.
29. Nóbrega da Cunha faz parte de um grupo de
intelectuais e repórteres que, a partir de meados dos anos 1920, expressaram um
interesse renovado pelas práticas religiosas de matriz africana no Rio de
Janeiro (GIUMBELLI, 2015, p.98). Além dele, pode-se lembrar de Leal de Souza,
que foi um dos pioneiros na exposição da doutrina da Umbanda; pode-se lembrar,
igualmente, de Francisco Guimaraes, o popular Vagalume, que no jornal
carioca Critica publicou, em 1929, outro “inquérito” sobre as
religiosidades afro-brasileiras (FARIAS, 2016). Um traço comum entre os
escritos de Nóbrega da Cunha, Leal de Souza e Vagalume é o tratamento
relativamente menos preconceituoso das religiões de matriz africana, derivado
de um conhecimento mais profundo de suas dinâmicas e, ao menos em parte, da
efetiva aceitação de seus preceitos.
30. É difícil precisar a total extensão da
série Os Mysterios da Macumba. Tive acesso a apenas parte das
reportagens, hoje preservada, na forma de recortes, no Arquivo Mário de Andrade
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). É
possível afirmar apenas que a série era composta por dezenas de reportagens,
divididas em mais de 17 “capítulos.” Quase todas as reportagens trazem
ilustrações de Correia Dias, mostrando, orixás, seus correspondentes
sincréticos no panteão católico, objetos sacros [Figura 23 e Figura 24] e aspectos
dos ritos [Figura 25].
Longe de um registro objetivo, porém, as ilustrações apresentam interpretações
visuais das cosmogonias e liturgias afro-brasileiras no traço muito peculiar de
um estrangeiro. Nesse seu interesse pelas culturas afro-brasileiras, Correia
Dias teria sido um dos pioneiros entre os artistas “eruditos” estabelecidos no
Rio de Janeiro da Primeira República, sendo suas ilustrações aparentemente
anteriores àquelas bem mais conhecidas produzidas por sua esposa, a poetisa Cecilia Meirelles (2003).
31. Não sendo o caso de tratar
de Os Mysterios da Macumba em sua totalidade, vou me deter na ilustração de uma
das reportagens. Trata-se daquela cuja legenda reza “O ‘pae de santo’ e seus
‘cambondos’ [sic] preparados para a abertura da ‘gyra’” [Figura 26], que evoca o momento
inicial de uma cerimônia. Para contextualizar essa imagem, é necessário dizer
que Nóbrega da Cunha passa os primeiros quinze “capítulos” de Os Mysterios
da Macumba apresentando a “exposição e interpretação dogmática dos ritos
africanos e indígenas” (CUNHA, s. d.), para, só a partir de então, tratar das
“cerimônias da ‘macumba’” propriamente ditas. A exata passagem a qual a
ilustração de Correia Dias se refere é a seguinte:
32.
Reunidos os “cafiotos” [i. e., os adeptos da religião], o “pae de santo”,
ladeado pelos seus “cambondos” [sic], que desempenham as funções de sacristães,
coloca-se diante do “estado”, com um gorro na cabeça e uma faixa atravessada ao
peito e invoca o “dono do Reino” [i. e., o orixá que rege o terreiro].
(CUNHA, s. d.)
33. Correspondentemente, no centro da Figura 26, vemos um
pai-de-santo negro trajando roupas brancas e um barrete ornado com cruzes; uma
faixa listrada atravessa seu peito e ele empunha, com a mão direita, um longo
sabre. O sacerdote é ladeado por dois cambonos, como são chamados os
auxiliares em algumas liturgias afro-brasileiras (LOPES, 2011, pos.5861). O
cambono da esquerda segura um copo d’água, enquanto o da direita sustenta, pela
ponta, um punhal. Ao fundo, pode-se entrever o “estado” ao qual se refere Nóbrega
da Cunha: trata-se de um conjunto de imagens de santos católicos (Santo
Antônio, São Sebastião, São Jorge, Nossa Senhora com o Menino Jesus). Pode-se
também entrever um altar coberto por um pano com bordados, que sustenta algumas
vasilhas e outros objetos. Mais abaixo, vemos outro sabre e outro punhal, bem
como um quadro com sinais que recordam pontos riscados, os diagramas
usados para invocar ou identificar entidades espirituais em contextos
religiosos afro-brasileiros (LOPES, 2011, pos.21066), aos quais mais abaixo
voltarei a me referir.
34. Com interpretar tal ilustração de Correia
Dias? Em nenhum momento das reportagens, Nóbrega da Cunha informa que o
português assistiu às cerimônias junto com ele. É plausível, portanto, que essa
ilustração - bem como as outras da série - tenha sido produzida a partir de
descrições verbais e/ou de outras imagens.
35. Nesse sentido, merece ser referida a
semelhança entre a ilustração de Correia Dias e uma foto publicada em janeiro
de 1924 no jornal A Noite [Figura 27]. Tal foto ilustra uma reportagem de outro
longo “inquérito” versando sobre religiões no Rio de Janeiro - No Mundo dos
Espíritos, escrito pelo já referido Leal de Souza, e que foi reunido em
livro homônimo publicado em 1925. O texto de Souza que traz a foto aqui em
questão tem o subtítulo “O Espiritismo na Macumba” e descreve detalhadamente
uma cerimônia assistida em uma casa no Engenho Novo. A cerimônia era conduzida
por um sacerdote chamado Pai Quintino, “um negro de estatura vultosa, quase
velho” (SOUZA, 1924, p.1), que aparece à direita da Figura 27, trajando uma
indumentária muito semelhante à do pai-de-santo do desenho de Correia Dias.
36. A qualidade da reprodução da foto de 1924
só permite intuir vagamente a grande variedade de elementos visuais envolvidos
nas práticas litúrgicas de Pai Quintino. Vale, portanto, citar aqui o trecho em
que Leal de Souza se refere ao ambiente e à audiência da cerimônia que teve
oportunidade de vivenciar:
37.
[Havia] Ao fundo, numa espécie de altar, forrado de pano branco, com ornatos
vermelhos, imagens diversas, e numerosas, em quadros, e, sobretudo, em
estatuetas, representando santos da igreja e talvez ídolos barbarescos; tigelas
cheias de água, contendo pedras e cruzes de pão; latas, copos, vidros, um
cachimbo, velas acesas em candelabros, um polvorinho, garrafas, pacotes de
velas, caixas de fósforos…
38.
Diante do altar, enterrados no chão, encruzando as lâminas, uma espada e dois
sabres de Comblain, com as folhas cheias de cruzes de giz; uma estrela de
metal; punhais de várias dimensões; velas ardendo; uma pedra preta, um bloco de
vidro branco… Pelas paredes brancas, imagens sagradas e velas bruxuleando em
suportes especiais de madeira. Três bancos encostados ao muro, estavam cheios
de gente, ficando, porém, as mulheres de um lado, e os homens do outro. (SOUZA,
1924, p.1)
39. Tal descrição permite que nos aproximemos
um pouco mais da ilustração de Correia Dias em Os Mysterios da Macumba,
que parece dialogar com ou mesmo derivar da fotografia publicada n’A Noite
anos antes. Outro ponto de conexão entre as duas imagens é o fato de que, em
sua visita ao terreiro de Pai Quintino, Leal de Souza estava acompanhado
pelo próprio Nóbrega da Cunha, já então tido como “homem de prestígio na
Macumba” (SOUZA, 1924, p.1).
40. Como deve ter ficado ao menos sugerido, a
riqueza de Os Mysterios da Macumba não se esgota nas poucas ilustrações
aqui reproduzidas. A série demanda, antes, uma investigação exclusiva e
detalhada; mas, para isso, ela ainda necessita ser reconstituída em sua
integralidade, o que depende de ulteriores pesquisas.
Candomblé e Makumba, 1930
41. As próximas matérias foram escritas pelo
poeta e ativista político francês Benjamin Péret. Trata-se de uma série de treze artigos
intitulada Candomblê e Makumba, publicada entre novembro de 1930 e
janeiro de 1931 no jornal paulistano Diário da Noite. [7]
A série dialoga com obras de autores aqui já citados, como Nina Rodrigues,
Etienne Brazil ou Nóbrega da Cunha; mas se baseia sobretudo nas vivências que o
próprio Péret teve em alguns terreiros no Rio de Janeiro. Por exemplo,
seguindo uma indicação de Nóbrega da Cunha, Péret peregrinou até o terreiro
do citado Pai Quintino, embora não tenha podido conhecer esse sacerdote, que
havia falecido alguns meses antes de sua visita (PÉRET, 28 nov. 1930, página
desconhecida).
42. A vida e a trajetória artística de Benjamin
Péret são relativamente bem conhecidas no Brasil (PONGE, 2009; PUYADE, 2005).
Ele foi uma das principais figuras do movimento surrealista na França e, desde
os anos 1920 até o fim de sua vida, esteve vinculado ao grupo liderado por
André Breton, atuando como editor de periódicos como a revista La Révolution
Surréaliste. Em 1928, Péret casou-se com a cantora brasileira Elsie Houston, o que lhe possibilitou estabelecer relações
com alguns dos mais importantes intelectuais e artistas brasileiros da época. A
correspondência que se refere a Péret e/ou Houston conservada no IEB-USP, por
exemplo, mostra os contatos do casal com figuras como Mario
de Andrade, Manuel Bandeira, Mario Pedrosa, Antonio Bento, Anita
Malfatti, entre outros. Além disso, Elsie Houston nutria enorme interesse
pelas culturas afro-brasileiras (VILLANOVA, 2003, n. p), o que provavelmente
incentivou o interesse análogo de Péret pelas práticas religiosas de matriz
africana
43. Péret esteve no Brasil por duas vezes: a
primeira entre 1929 e 1931, a segunda entre 1955 e 1956. A primeira estadia no
Brasil, em especial, foi conturbada. Péret se envolveu em polêmicas na imprensa
paulista (PUYADE, 2005, p.7) e, “em novembro [de 1931], acusado de ser um
agitador comunista, [foi] preso pela polícia política” (PONGE, 2009, n. p.).
Logo depois, ele foi expulso do país. Apesar de todos os contratempos, Péret
teve tempo de investigar, com originalidade, diversos aspectos da história e
cultura brasileiras, como bem demonstram os artigos de Candomblê e Makumba.
44. Essa série recebeu atenção por parte de
outros investigadores. Ainda nos anos 1990, ela foi integralmente traduzida
para o francês (PÉRET, 1992, p.73-107) e, mais recentemente, mereceu a análise
cuidadosa de Emerson Giumbelli (2015). Aqui, vou me deter apenas em duas das
imagens da série. A primeira mostra um altar dedicado a Iemanjá [Figura 28]. O altar
estava instalado em uma casa de “candomblê” localizada “a pouca distância do
palácio Guanabara” (PÉRET, 28 nov. 1930, página desconhecida), que era dirigida
por um sacerdote que Péret designou simplesmente como “Tio F...” Na foto em
questão, vemos ao centro uma escultura representando Iemanjá, da qual só se
pode distinguir com clareza a cabeça, que lembra a de esculturas de santas
católicas comuns no Rio desde tempos coloniais. Iemanjá se encontra rodeada por
uma multitude de folhas e flores; nas paredes que a ladeiam, podemos ver
quadros pendurados, mas o que neles está representado é irreconhecível. Em
primeiro plano, ao pé do altar, há duas grandes velas acesas. Os textos de
Péret dão a entender que era em frente a esse altar que “Tio F...” conduzia
parte importante de suas práticas litúrgicas.
45. A segunda imagem de Candomblê e Makumba
reúne nove pontos riscados, aparentemente desenhados pelo próprio Péret
[Figura 29]. Ela
foi publicada no sétimo artigo da série e reproduzida em livros posteriores
(PÉRET, 1985, n. p.; PÉRET, 1992, p.88). No artigo original, Péret descreve
“uma sessão espírita meio macumbeira” - ou seja, um ritual fortemente
sincrético, que amalgamava referências ao espiritismo de Alan Kardec, ao
panteão iorubá e a entidades espirituais como caboclos e preto-velhos. A sessão
ocorreu em uma região suburbana do Rio de Janeiro, perto da Penha, na casa de
um músico mulato, amigo e guia de Péret, que é designado apenas pela inicial
“P.” O objetivo da sessão era livrar uma moça do feitiço preparado por um
“apaixonado desprezado” e envolveu transes mediúnicos, invocações de espíritos,
o sacrifício de um galo etc. Péret assim descreveu a produção e a recolha dos
“signos” da Figura 29:
46.
Depois de vários aché [sic]satisfeito o P... começou a desenhar no chão, no
mesmo lugar em que fora sacrificado o galo, os 9 signos que aqui vão
reproduzidos com a maior fidelidade. Corresponde cada um deles a um protetor de
P... que, como "aparelho", os desenhara cantando um "ponto” com
exceção de um só, que sua mulher, recebendo Tapuia do Mar, desenhou. (PÉRET, 24
dez. 1930, página desconhecida)
47. Os “protetores” de que Péret fala eram as
entidades espirituais que “P.” e sua esposa, como “aparelhos” - i. e., como
médiuns -, progressivamente incorporaram durante a sessão. A origem étnica
desses “protetores” era muito variada: “negros, brancos, mulatos, índios e
caboclos” (PÉRET, 24 dez. 1930, página desconhecida). Um deles, Mané Kurú, por
exemplo, se manifestou falando “em africano” - o que me leva a crer que fosse o
espírito de um escravo negro trazido para o Brasil. Já as flechas presentes nos
pontos riscados de “Cabôco Veio,” “Cabôca Tapemirim” e “Cabôco d’Angola”
sugerem que estes eram espíritos de indígenas, que, justamente com a designação
de “caboclos,” são ainda hoje fundamentais em diversas denominações religiosas
afro-brasileiras (PRANDI, VALLADO, SOUZA, 2011). Uma evidência de continuidade
nesse sentido é o ponto riscado do famoso Caboclo das Sete
Encruzilhadas, guia espiritual da seminal Tenda N. Sra. da Piedade fundada pelo
médium Zélio de Moraes no começo do séc. XX [Figura 30]. Este ponto
é formado por um coração cruzado por uma flecha, em tudo análoga àquela dos pontos
de “cabôco” registrados por Péret.
48. Supondo que a variedade de pontos
riscados mostrada por Péret seja acurada, o seu desenho é um registro
importante para a historicização dessa forma de expressão sacra. Embora não
seja o primeiro documento sobre os pontos - que anteriormente foram
referidos em processos criminais e mesmo reproduzidos em fotos de jornais -,
esse desenho indica que, na passagem para os anos 1930, a linguagem gráfica dos
pontos riscados no Rio de Janeiro era já muito complexa. Os pontos,
todavia, ainda aguardam estudos sistematizados que possam indicar suas
continuidades e transformações nas últimas décadas.
O Sertão Carioca, 1932
49. As últimas imagens que gostaria de
apresentar são desenhos a bico de pena publicados no Correio da Manhã,
em 1932, de autoria do artista, professor e ambientalista Armando
Magalhães Corrêa [Figura
31]. Eles ilustram um dos artigos da série O Sertão Carioca, que
Corrêa publicou no Correio da Manhã entre 1931 e 1933 e que foi reunida
em forma de livro em 1936 (CORRÊA, 1936). Os desenhos reapresentam peças
pertencentes ao Museu Nacional do Rio de Janeiro - as mesmas que, mais de 20
anos antes, tinham ilustrado o texto do padre Etienne Brazil.
50. Magalhães Corrêa é um dos muitos artistas
formados pela Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) no começo do séc. XX que,
apesar da qualidade de sua produção, receberam atenção insuficiente até hoje.
Ele foi aluno regular da Escola, onde cursou escultura como discípulo de Rodolpho
Bernardelli. Em 1912, ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro concedido
aos alunos da ENBA, o que permitiu que ele passasse a maior parte dos anos 1910
em Paris, aperfeiçoando sua formação. A partir de 1918, depois de seu retorno
ao Brasil, Corrêa participou com destaque das Exposições Gerais de Belas Artes
(LEVY, 2003), obtendo, inclusive, a Grande Medalha de Ouro do certame em 1929.
51. Em seus artigos no Correio da Manhã,
Corrêa designava por “sertão carioca” a área da Zona Oeste da cidade do Rio de
Janeiro que hoje compreende as regiões administrativas de Jacarepaguá, Cidade
de Deus e Barra da Tijuca. Com a sua série de textos, Corrêa objetivava, como
resume Marcus Venicio Ribeiro (2016, p.22), “identificar e avaliar o estado do
valioso patrimônio natural e cultural local - solos, rios, lagoas, restingas,
dunas, flora e fauna; igrejas, fazendas, represas, pontes e estradas; instrumentos
de trabalho, técnicas de produção etc. - remanescente da Mata Atlântica e de
uma vida sertaneja, à época ainda pulsante, a apenas uma hora do centro urbano
do Rio de Janeiro.”
52. O interesse pelas religiosidades
afro-brasileiras estava incluído nesse ambicioso mapeamento natural e cultural.
São dois os textos de O Sertão Carioca que tratam diretamente dessas
religiosidades (CORRÊA, 20 nov. 1932; CORRÊA, 4 dez. 1932) e ambos trazem o
mesmo subtítulo, “Assistência?”, que seria alterado na edição em livro para
“XVIII - Assistência? - Religião” e “XIX - A macumba.” Apenas o primeiro desses
artigos traz ilustrações relativas a obras de arte afro-brasileira que aqui me
interessam.
53. Embora supostamente Magalhães Corrêa tenha
falado com informantes e assistido in loco cerimônias litúrgicas, o
resultado “deixa muito a desejar,” como pondera José Augusto Drummond (2017,
p.41-42):
54. A
sua sensibilidade quase antropológica e a sua empatia pelos sertanejos não
foram suficientes para que ele apresentasse um retrato adequado das crenças
religiosas deles, entre os quais havia muitos descendentes de africanos.
Magalhães Corrêa não consegue fugir de preconceitos e da rigidez comuns até
hoje entre os cristãos. Ainda assim, as informações e observações de primeira
mão têm algum valor para o estudo dessas expressões religiosas
sertanejas.
55. Resta verificar em que medida os relatos de
Magalhães Corrêa eram mesmo de “primeira mão.” Com relação à maioria das
imagens que ilustram a reportagem de 1932, pode-se de imediato afirmar que não
era bem esse o caso. Elas não derivavam da observação direta das peças do Museu
Histórico, mas sim das já referidas fotografias publicadas por Etienne Brazil.
Inclusive, Corrêa se baseia nas identificações iconográficas (em boa medida
errôneas) das peças propostas por Brazil nas legendas das fotos do artigo de 1911.
Esse é o caso, por exemplo, de escultura supostamente de Exu [Figura 32], bem como da
peça que Brazil relacionava a Ogum [Figura 33].
56. Apesar de suas fontes de “segunda mão,” as
imagens que ilustram o artigo de Magalhães Corrêa são dignas do maior
interesse. Os desenhos não são meras cópias das fotografias que lhes serviram
de referência. São, antes, verdadeiras traduções intermidiáticas das fotos na
técnica completamente diversa do bico de pena. Isso fica claro, por exemplo,
quando comparamos as duas imagens do “Exu,” a foto no texto de Brazil [Figura 34b] e o desenho
dela derivada [Figura 34a]:
grosso modo, Corrêa respeita a pose da escultura, mas reinterpreta suas propor
es, suas formas (acrescentando ou enfatizando detalhes) e o claro-escuro que
lhe confere volume.
57. Esse trabalho de tradução me parece indício
do interesse genuíno que Corrêa nutria pela arte afro-brasileira: suponho que
ele não concordaria com o adjetivo “hediondo,” usado por Etienne Brazil para
desqualificar a escultura aqui em questão. Além disso, tal interesse - vindo,
cumpre lembrar, de um típico aluno da ENBA - não deixa de ser comparável ao de
artistas das ditas “vanguardas” do começo do séc. XX como o Cubismo ou
Expressionismo, cujas polêmicas apropriações das artes da África são há muito
famosas (RUBIN, 1997). Por fim, vale notar que Corrêa antecipa outras
apropriações das peças do Museu Histórico que foram feitas por artistas
“eruditos,” como demonstra, por exemplo, uma pintura do artista de origem russa
Dimitri Ismailovitch [Figura 35], feita poucos anos depois da publicação dos
artigos de O Sertão Carioca: nela,
reencontramos um dos oxês de Xangô registrados em 1911 por Brazil [Figura 17] e que
Magalhães Corrêa verteu para a forma de ilustração a bico de pena [Figura 36].
*
58. À guisa de considerações finais, gostaria
de frisar que o panorama das primeiras imagens de arte sacra afro-brasileira na
imprensa aqui apresentado não tem a pretensão de ser definitivo. É provável
que, no imenso corpus de artigos de imprensa ainda por analisar, se
encontrem outras tantas matérias que têm afinidade com as aqui apresentadas -
talvez até mais antigas. Além disso, deixei deliberadamente de considerar
material que não tem uma relação direta com o Rio de Janeiro. É notadamente o
caso, por exemplo, de A raça africana e os seus costumes na Bahia, um
artigo derivado da comunicação apresentada por Manoel Raymundo Querino em 1916 no V Congresso
Brasileiro de Geografia em Salvador. Esse artigo apresenta importantes
registros de arte sacra afro-brasileira do começo do séc. XX na Bahia, como,
por exemplo, imagens de esculturas e de pejis (santuários de orixás)
(VASCONCELLOS, 2009, p.99-100).
59. Mais do que elaborar um panorama completo,
o que busquei com o presente artigo foi contribuir para que reflitamos sobre a
efetiva integração dos diversificados aspectos da arte sacra afro-brasileira no
cânone mais amplo da história da arte no Brasil. Creio que essa integração
transcende os meros interesses acadêmicos e ganha contornos urgentes, em nosso
presente em que recrudescem a perseguição às religiosidades africanas e os
fascismos de todo gênero. Nesse contexto, é fundamental que reiteremos o estatuto
de patrimônio cultural da mais elevada importância para as manifestações de
arte sacra afro-brasileira, reconhecendo, simultaneamente, que resta muito a
fazer no sentido de sua devida historicização.
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______________________________
[1] O uso do termo “arte”
no título desse artigo é disputável e intencionalmente polêmico. Gostaria
apenas de lembrar que desde Nina Rodrigues (1904) até Roberto Conduru (2007),
passando por Marianno Carneiro da Cunha (1983), existe uma tradição historiográfica
na qual me apoio e que emprega “arte” - ao invés de, e. g., “cultura material,”
que eu mesmo já usei - para se referir às obras que aqui analisarei. O termo
“afro-brasileira” também levanta problemas epistemológicos que foram já bem
frisados por investigadores do campo da antropologia, como Stefania Capone
(2004). Esta, não obstante, também frisou o quanto “a simples utilização dos
termos específicos que identificam cada culto (umbanda, omolocô, candomblé
etc.) impede que se sublinhe a relação de continuidade (simbólica e ritual) que
liga as diferentes modalidades de culto” (CAPONE, 2004, p.48). Para Capone, o
uso do termo “afro-brasileira” parece uma boa opção, desde que não percamos de
vista que “a questão é complexa e necessita de um debate com outros pesquisadores
que trabalham em contextos próximos (Cuba, Haiti etc.), para que, juntos,
[eventualmente] encontremos novos caminhos, uma nova terminologia que dê conta
dessas realidades religiosas” (CAPONE, 2004, p.49-50). Pelas vias da
historiografia da arte, Helio Menezes concluiu, em artigo recente, pelo valor
da “disputada” expressão “arte afro-brasileira” nos seguintes termos: “como
uma categoria política de reivindicação de visibilidade e reconhecimento da
arte feita por mãos negras, [arte afro-brasileira] não só existe como
adquire uma importância fundamental.” (MENEZES, 2018, p.590. Grifos meus).
Peço, portanto, que o/a leitor/a tenha em mente essas ponderações ao ler a
expressão “arte [sacra] afro-brasileira” nesse texto.
[2] Trata-se do projeto
intitulado “Religiões afro-brasileiras e cultura visual: Perseguição,
iconoclastia e conservação desde os anos 1890.”
[3] Na ordem de
publicação, essas reportagens intitulavam-se: Os feiticeiros (9 mar.); As
“Yauô” (12 mar.); O feitiço (14 mar.); A casa das almas (16
mar.); Os novos feitiços do Sanin (29 mar.).
[4] Essa e todas as demais
citações de artigos de época - com exceção de seus títulos - tiveram a sua
grafia atualizada.
[5] Como bem define Ordep
Serra (2006, p.313), para Nina Rodrigues e seus seguidores “os ritos
afro-brasileiros, assunto de sua consideração etnológica, psiquiátrica,
jurídica, higiênica etc. nada têm em comum com os elevados saberes que os
contemplam. Representam, antes, o seu oposto. | Os líderes da referida Escola
[de Nina Rodrigues] levavam ainda mais longe essa oposição: faziam-no colocando
num dos campos a sua tecnologia da saúde e no outro - no espaço correspondente
aos ritos afro-brasileiros, seu objeto de estudo - a inclinação patológica,
tara da ‘raça inferior’.”
[6] DELAFOSSE, Maurice. Le
trône de Béhanzin et les portes des palais d'Abomé au Musée Ethnographique du
Trocadéro. La Nature. Revue des sciences et de leurs applications aux arts
et à l'industrie, v. 22, n. 1090, 1894. Ainda em 1894, Delafosse publicou
dois outros artigos sobre obras daomeanas: Statues des rois de Dahomé au
Musée ethnographique du Trocadéro (La Nature, n. 1086) e Une
Statue dahoméenne en fonte (La Nature, n. 1105).
[7]
O primeiro artigo intitulava-se apenas Candomblê e Makumba (25 nov.
1930). Os outros doze mantiveram esse título principal, mas tinham subtítulos
específicos. Na ordem de publicação, foram os seguintes: Os cumprimentos que
fez Nhança (28 nov. 1930); Um jantar de santo (data desconhecida); O
palpite de São Cosme... ou São Damião (9 dez. 1930); Dar comida à cabeça
(11 dez. 1930); Uma festa a Xangô na "Lei de Angola" (16 dez.
1930); "Mané Kurú", "Pereké", Allan Kardec e Cia.
(24 dez. 1930); A mythologia "nagô" (27 dez. 1930); "Ogum"
no Supremo Tribunal (31 dez. 1930); As origens das crenças dos negros
brasileiros (2 jan. 1931); As origens das crenças dos negros brasileiros
[continuação] (8 jan. 1931); As origens das crenças dos negros
brasileiros (continuação) (15 jan. 1931); As origens das crenças dos
negros brasileiros [fim] (30 jan. 1931)