Práxis enunciativa: relações interdiscursivas e criação plástica na obra histórica de Antônio Parreiras
Fábio Cerdera *
CERDERA,Fábio. Práxis enunciativa: relações interdiscursivas e criação plástica na obra histórica de Antônio Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 3, jul./set. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ap_praxis.htm>.
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1. Introdução
A produção artística como ato de linguagem individual gerador de conhecimento está sempre implicada em sua organização como campo específico do saber, bem como ao diálogo com outros campos do conhecimento e com outros sistemas de significação, participando assim da economia de valores inerente às interlocuções, às interações intertextuais e interdiscursivas presentes no ambiente social. Numa análise sobre a teoria literária de Mikhail Bakhtin aplicada à cultura de massa, Robert Stam diz que, para o autor russo, “a consciência individual é um fato sócio-ideológico: sem seu conteúdo semiótico, ideológico, ela não existe”.[1]
Essa consciência coletiva realizada num texto não é simples repetição de outros textos ou discursos, e, além de ser lugar comum na arte, sobretudo, até o séc. XIX, atua no poder de convencimento, no fazer persuasivo do enunciador-pintor sobre o fazer interpretativo e sensível do enunciatário-espectador.[2] Através do instrumental teórico da semiótica francesa, este artigo tem como objetivo discutir essa importante estratégia de manipulação do enunciatário republicano, relacionado à pintura histórica de Antônio Parreiras. A partir do reconhecimento da presença da tradição artística na obra de Parreiras, ou seja, da recuperação e da reutilização de procedimentos cristalizados pelo uso artístico, na criação do texto histórico do pintor, objetiva-se, identificar e analisar o papel do discurso do outro, esse contexto plástico específico, como um aspecto que sustenta o texto histórico de Antônio Parreiras. Para entrevermos aquilo que é particular no discurso histórico de Parreiras, através da interdiscursividade pictórica, faremos uso do conceito semiótico de práxis enunciativa.
2. Práxis enunciativa
Se a semiótica tem como unidade e amplitude de análise a imanência do texto, isto é, o que ele diz e como ele faz para dizer o que diz a partir de um determinado sistema de manifestação, como a pintura, por exemplo, o reconhecimento de múltiplas referências, que transcendem o texto, não estabelece uma relação de causa; essas referências não são pistas genéticas que servem de explicação ao texto, mas, podem, antes, ser entendidas como marcas gerativas que fazem parte do processo de significação articulado no próprio texto.
É nesse sentido que a coerção exercida pelas fontes históricas sobre a pintura de história de Antônio Parreiras não é, dentro desse ponto de vista, uma causa determinante de sua produção, mas faz parte de uma rede isotópica que sua pintura simultaneamente reitera e ressemantiza, no intuito de atingir o máximo de coerência discursiva, de afinar-se ao discurso oficial dos Institutos Históricos. Essa relação solidifica não a verdade histórica, mas no dizer semiótico, o dizer verdadeiro que é, nesse caso, um efeito de sentido verdadeiro, concretizado pela quantidade de vezes, pela previsibilidade dos valores veiculados. O mesmo ocorre com as referências pictóricas encontradas na produção histórica do pintor, e que fazem coro com uma práxis já estabelecida pela pintura nacional e universal, ao mesmo tempo em que ressignifica essa práxis.
A recuperação, a convocação, a atualização, a realização e a ressignificação, a ressemantização relacionadas a estruturas, a esquemas pertencentes ao campo discursivo da pintura faz parte do que a semiótica designou como práxis enunciativa. Um trecho de Denis Bertrand relacionado à práxis enunciativa diz o seguinte:
Compreende-se que a enunciação individual não possa ser examinada independentemente do imenso corpo de enunciações coletivas que a precederam e que a tornam possível. A sedimentação das estruturas significantes resultante da história determina todo ato de linguagem. Existe o sentido do que “já está aí”, depositado na memória cultural, arquivado na língua e nas significações lexicais, fixado nos esquemas discursivos, controlado pelas codificações dos gêneros e das formas de expressão que o enunciador, quando do exercício individual da língua, convoca, atualiza, reitera, refaz, ou ao contrário, recusa, renova e transforma.[3]
Ao recuperar e ressignificar procedimentos figurativos e procedimentos plásticos relacionados ao “corpo de enunciações coletivas” da pintura nacional e internacional, a pintura histórica de Parreiras, além de reafirmar a pintura como campo de conhecimento estabelecido, revive, reinventa certos esquemas implicativos, já utilizados ou consagrados pela pintura. Sendo fruto de uma prática interdiscursiva, esses esquemas não são somente estruturas textuais evocadas, mas atos de linguagem atualizados e ressemantizados, a partir de outros discursos. Analisaremos então alguns desses atos, que também configuram estratégias de manipulação, pois recriam procedimentos estabelecidos pertencentes a uma retórica artística que objetiva a persuasão do enunciatário.
O conceito de práxis enunciativa resvala em oposições artísticas tão antigas quanto polêmicas e não resolvidas, que estão sempre presentes no âmbito de sua teoria e de sua produção, e que podemos resumir aqui por oposições como /imitação/ vs. /criação/ ou /tradição/ vs. /originalidade/, como propõe o historiador de arte Janson:
Cada obra de arte ocupa seu próprio lugar específico no espectro daquilo que chamamos de tradição. Sem a tradição - a palavra significa “aquilo que nos foi legado” - nenhuma originalidade seria possível; ela nos propicia, por assim dizer, uma plataforma sólida e segura a partir da qual o artista dá o seu salto de imaginação [...] Estejamos ou não conscientes dela, a tradição é a estrutura dentro da qual forjamos nossa opinião sobre as obras de arte e avaliamos seu grau de originalidade.[4]
O que Janson designa por “tradição” é formado por aquele corpo de enunciações coletivas citado por Bertrand, sendo a “originalidade”, então, fruto dessa “plataforma sólida” em que os esquemas visuais são depositados, são arquivados nesse campo de conhecimento artístico, para depois serem invocados e atualizados na recriação operada pela produção. Daí, por exemplo, o pintor Degas dizer que a criação artística, “que a Arte é uma convenção, que a palavra arte implica a noção de artifício”.[5] Está claro que, nessa declaração, a tradição, o saber artístico acumulado dentro de uma práxis enunciativa, que Degas chama de “convenção”, é o ponto de partida da criação, convenção que é ressignificada pela relação com discursos pictóricos e objetos da semiótica natural.[6]
Há um vasto campo de aspectos a ser explorado em relação à práxis enunciativa na pintura, porém nos concentraremos naqueles que nos parecem mais gerais e pertinentes no momento. Estes procedimentos parecem ser de dois tipos: (1) transformam o discurso do outro através da paráfrase de certos procedimentos figurativos que cercam o tema; (2) transformam o discurso do outro através da estilização de certos procedimentos plásticos que envolvem a composição. Nesses dois procedimentos, Antônio Parreiras recupera de outras pinturas aspectos vinculados à força de formantes[7] figurativos e plásticos que, ora atuando em relações figurativas específicas, realizam uma espécie de paráfrase, no sentido de uma “tradução livre”,[8] ora atuando na própria constituição dos formantes plásticos, realizam um determinado efeito de sentido estilístico que, segundo Focillon, decorre não de relações específicas, mas de “uma série de relações”, de “uma sintaxe”[9] plástica disseminada por toda a superfície planar.
3. Paráfrases figurativas
De acordo com Fontanille, a práxis enunciativa comporta basicamente quatro operações existenciais através das quais as grandezas e os enunciados circulam, a saber, um devir constituído pelos modos de existência virtual, atual, real e potencial:
Em termos de presença - isto é, em relação, ao mesmo tempo, aos aspectos espaciais e temporais -, a práxis enunciativa administra, entre outras coisas, o modo de existência das grandezas e dos enunciados que compõem o discurso: ela os apreende no estágio virtual (enquanto entidades pertencentes a um sistema), ela os atualiza (enquanto seres de linguagem e de discurso), ela os realiza (enquanto expressões), ela os potencializa (enquanto produtos do uso) etc. Os modos de existência, dos quais a práxis administra a distribuição e a variação, dizem respeito diretamente às relações entre sistema e discurso, já que o sistema é por definição virtual.[10]
Assim é que traços de enunciados cristalizados por um partido de composição, como o romântico pitoresco, são recuperados por Parreiras do sistema virtual que os estoca num processo de atualização, sendo realizados pelo uso e potencializados novamente em direção à virtualidade do sistema. Daí decorre a associação entre esses traços que são ressignificados e aqueles pertencentes a uma determinada produção de origem. A práxis enunciativa associada ao universo figurativo na pintura histórica, que chamaremos de oficial, feita por encomenda, de Parreiras, por se tratar de uma produção caracterizada por um discurso implicativo, isto é, que trabalha com valores universais, evoca do sistema enunciados mais ou menos estereotipados. Isso contribui também para que essa produção seja considerada conservadora, já que seu tratamento figurativo, tendo como prioridade a previsibilidade dos enunciados históricos, problematiza sutilmente as questões estéticas, pois teme desvirtuar os enunciados originais e faltar com a “verdade” histórica. Essa transformação sutil das referências de origem gera distorções de interpretação que enxergam na pintura histórica de Parreiras simples valores documentais, como se estivesse ao alcance de qualquer produção registrar o real: “Os quadros históricos de Antônio Parreiras não são de grande valor artístico. Percebe-se uma maior preocupação documental nas obras, além da fidelidade às fontes históricas.”[11]
O procedimento parafrásico que recupera e traduz traços figurativos não tem tanto um efeito estilístico na obra, apropriando-se de fragmentos de enunciados figurativos para ressignificá-los em contextos específicos. Esse procedimento de “citação livre” presente na pintura histórica de Parreiras não resulta na inserção ou na construção de um estilo, mas na introdução de um acento na construção do sentido. Entretanto, utilizando em sua produção traços do que Janson designa por tradição, Parreiras inscreve sua pintura de história num discurso seguro, estabilizado, solidificado por uma retórica artística. O prestígio dessa retórica, mesmo já defasada com o advento do modernismo, sela a confiança, o contrato fiduciário[12] estabelecido entre enunciador e enunciatário, fazendo parte da estratégia enunciativa de tanto sucesso que Parreiras empreendeu.
O uso que o pintor faz da retórica figurativa da estética do pitoresco desloca completamente o uso que um ícone da paisagem romântica universal, como o pintor Caspar David Friedrich (1774-1840), faz da figuração humana no primeiro plano. Em trabalhos como O monge à beira-mar (1810) [Figura 1] ou Nascer da lua junto ao mar (c. 1821), o efeito é lírico, as figuras contemplam a paisagem numa narrativa materializada discursivamente pelo tema da saudade, do desejo de integração, de retorno à unicidade, à conjunção com o objeto natureza.
Parreiras opera um deslocamento desse contexto no pendant Os desterrados, particularmente, n’A partida (1902) [Figura 2] . As figuras humanas, numa postura de contemplação do horizonte, somadas ao cruzeiro no plano intermediário, concretizam a saudade e a busca por identidade como temas abstratos da estética do pitoresco. Contudo, o objeto concreto de busca desse sujeito, a natureza, não mais figurativiza uma saudade metafísica, elevada, desejosa de unicidade, de completude interior, mas uma saudade concreta da perda de identidade e de pertencimento a uma nação, a um mundo que, mesmo depois de instaurado, se apresenta como um cenário de desolação, oscilando melancolicamente entre os universais semânticos /vida/ vs. /morte/. Cabe à figura do cruzeiro, com seu tônico contraste entre vertical/horizontal, o papel de mediador dessa oposição semântica, encarnando a hesitação entre os dois polos. Dessa forma, a paráfrase figurativa desloca, desvirtua parcialmente e de forma sutil o conteúdo do enunciado pitoresco.
Essa práxis figurativa recupera também uma práxis vinculada à pintura de gênero e à estética realista de Courbet, particularmente à sintaxe plasmada em Depois do jantar em Ornans (c. 1849) [Figura 3].
Nesse trabalho de Courbet, a introdução da figura de costas em tamanho quase natural e no centro de numa cena doméstica, abre uma concessão em relação ao paradigma desse tipo de pintura de gênero. A concessão é tão intensa, que para Blake o efeito parece de negação do ponto de vista do enunciatário:
E, embora não fosse incomum nos quadros de refeições retratar pessoas vistas de costas, é pouco convencional colocar uma personagem nessa pose no centro da cena. Este artifício parece negar ao espectador o ponto de vista privilegiado de onde tudo o que tem importância é idealmente visível.[13]
Entretanto, o que esse procedimento nega efetivamente é a possibilidade de uma projeção enunciva do enunciatário no enunciado, mais frequente como ponto de vista nesse gênero, ou seja, sua posição objetiva de mero espectador localizado fora da cena, que foi transformada nessa obra pela introdução de uma marca enunciativa no âmbito figurativo. Uma projeção mais enunciativa, subjetiva, em que há uma maior interação do enunciatário ao texto figurativo, é um recurso padrão do romantismo, como esclarece Sônia Pereira, em relação à Primeira missa no Brasil (1860) [Figura 4], de Vítor Meireles:
O deslocamento do tema principal para um dos lados da composição [...] o apelo maior ao público, que quase se incorpora à cena, acompanhando os índios colocados de costas no primeiro plano - todos esses elementos apontam a absorção de alguns princípios românticos, como a dinamização da narrativa e a maior aproximação com o espectador.[14]
Por ser um actante[15] que introduz subjetividade na cena, ele “parece negar ao espectador o ponto de vista privilegiado”, que seria uma visão integral proporcionada pelo distanciamento. Em Depois do jantar, o sujeito enunciatário cognitivo transforma-se num sujeito passional através de sua projeção na figura central. Courbet afirma assim que o efeito de sentido realista, ao contrário de seu sentido lexical mais corriqueiro, que enfatiza a objetividade, se dá concessivamente pela resolução de mitologias, pela mediação de contrários, ocorrendo entre o objetivo e o subjetivo, entre o palpável e o impalpável.
Uma lógica concessiva também permeia A partida. Contudo, sua subjetividade sofre uma abertura de intensidade em direção a uma realidade mais concreta, mais prosaica - se comparada à subjetividade intensa, porém, mais poética, normalmente presente na paisagem pitoresca -, apesar do efeito de sentido inesperado, estranho, corolário da polifonia produzida pela articulação de valores poéticos e prosaicos. Se as figuras humanas convocam a práxis subjetiva do romantismo, as figuras do cruzeiro e da árida paisagem conduzem o enunciatário à objetividade de um realismo desolador. Daí o efeito crítico que essa obra tem para Levy,[16] criado em última análise por essa sintaxe figurativa heteróclita que aproxima a práxis histórica da práxis da paisagem romântica, através do tema abstrato comum da saudade e da angústia frente à falta de uma identidade nacional.
A práxis enunciativa d’A partida evoca ainda procedimentos discursivos presentes na obra Os descobridores (1899) [Figura 5], do pintor brasileiro Belmiro de Almeida (1858-1935). Percebe-se claramente que o que A partida recupera do quadro de Belmiro, assim como o que atraiu Belmiro para o assunto, “não é o aspecto brilhante do evento”, mas “a trágica odisséia dos degredados abandonados na nova terra por Cabral, gesto que pôs à mostra a melancólica pequeneza da alma humana”.[17] Perplexidade, saudade, identidade, são temas que atravessam Os descobridores. Se a figura de pé, que fita o horizonte, projeta, como formante remanescente da estética do pitoresco, uma espécie de subjetividade lírica e intemporal à cena, sendo regida pelos universais semânticos /vida/ e /liberdade/, a figura sentada que olha para fora da cena, sua sobreposição e sua continuidade em relação à árvore ressequida são traços figurativos regidos pelas categorias /morte/ e /opressão/. Ambas materializam, de forma objetiva, prosaica e crítica, os temas abstratos, inserindo-os na discussão proposta pelo regime republicano. O papel da figura da árvore em particular, quase sem folhas, mas de galhos extremamente dinâmicos, é reiterado em termos semânticos pelo cruzeiro d’A partida. Ambas as figuras concentram esses polos semânticos tanto na expressão, quanto no conteúdo. O emprego dessa sintaxe potencializa um novo tipo de enunciado a ser estocado no sistema, preservando em parte a paráfrase inicial de traços do estilo pitoresco.
Outro formante que figura na práxis enunciativa de Parreiras é o rochedo de Anchieta (1928) [Figura 6].
Presente de forma mais recorrente na produção de paisagem, a exemplo de Cataratas de Iguaçu (1920) ou Rochedos em alto mar (1932) [Figura 7], a utilização dessa figura em Anchieta evoca diretamente trabalhos de Johann Georg Grimm, que a empregou em diversas pinturas como em Rochedo da Boa Viagem (1887) [Figura 8] ou Vista da ponta de Icaraí (1884) [Figura 9], como um traço oriundo da estética romântica do sublime e do realismo de Courbet.
Na estética do sublime, a figuração do rochedo como actante antissujeito da narrativa, denota, empresta a sua força aparente, à agressividade da natureza face ao actante sujeito humano, disjungindo-o de seu objeto, falta que se concretiza semanticamente não mais como saudade, mas como angústia. A intensidade dessa figura, utilizada em Ravina rochosa (c. 1823) [Figura 10] por Friedrich, pode ser comparada ao primeiro plano da obra Ventania (1888), de Parreiras.
Em Anchieta, esse formante tem sua função deslocada, correspondendo sua força não a um valor semântico fundamental de intimidação ou de opressão, mas de libertação, por sua sintaxe plástica e figurativa específica relacionada à Anchieta, ao conteúdo que transcende a cena, o cativeiro dos índios Tamoios por conta do episódio com os franceses, bem como ao conteúdo imanente, representado pelo padre, prestes a escrever o seu Poema da virgem (1567) nas areias. O papel do rochedo, dentro do efeito de verdade histórica pretendido em Anchieta, é tributário tanto de um conteúdo poético e subjetivo, como o do romantismo, quanto de um conteúdo prosaico e objetivo, como o do realismo. A tonicidade opressora presente em Rochedo da Boa Viagem é convertida em instante transformador e libertador, concentrado na luz e na matéria rochosa de Anchieta. O herói ultrapassa, sublima a opressão de sua condição material figurativizada na rocha como discurso implicativo, através da matéria significante plástica desse actante, que transforma concessivamente na narrativa a sua função designada pelo romantismo, ao materializar o lampejo poético da personagem. A paráfrase figurativa é, nesse caso, desvirtuada e redirecionada em termos de conteúdo.
A práxis figurativa na produção de Parreiras é heterogênea, sendo esse material referencial variado. Na Fundação da cidade de São Paulo (1913) [Figura 11], a paráfrase recupera o enunciado principal da Primeira missa no Brasil (1860), de Meireles; no entanto, o que Parreiras convoca da cena, como nas paráfrases anteriores, não são somente as poses das figuras humanas e as outras figuras, como, de acordo com Franz, o próprio Meireles importa de outras pinturas:
Vítor Meireles buscou inspiração para a cena principal de sua obra em outra missa, a do pintor francês Horace Vernet (1789-1863). A missa pintada por Vernet intitula-se “Première messe em Kabyli” (1853) [Figura 12], lembrando que o procedimento por citação é absolutamente legítimo dentro do gênero Pintura Histórica [...] No Museu Granet, na Provença, França, encontramos outra missa intitulada “Une messe au Louvre pendant la Terreur”, datada de 1847, de autoria de Marius Granet (1775-1849) [Figura 13]. O altar do centro, com um padre levantando a hóstia, e outro de joelhos segurando suas vestes lembram a cena principal da “Missa” de Vítor Meireles.[18]
Ao invés dessa transposição, a Fundação cita ao mesmo tempo textual e livremente as posturas figurativas da Primeira Missa. Em termos gerais, a Fundação recupera o contraste dos personagens e figuras do enunciado principal, como o altar e a cruz, por exemplo. As figuras ajoelhadas e curvadas em torno do altar remetem diretamente às figuras dos quadros de Meireles e Vernet; por outro lado, o padre, localizado mais acima, ao invés de erguer tonicamente um cálice ou uma hóstia, como nas pinturas de Meirelles ou de Granet, faz um gesto átono com os braços que, contudo, ascende de forma gradativa pela forquilha do tronco da árvore e por sua copa que se espraia na área superior.
Nesse sentido, a Fundação também aproxima o seu discurso da Primeira missa ao ser contextualizado na paisagem e, assim como no texto de Meireles, Parreiras articula a elevação do altar à figura de uma árvore como o ápice, como o instante de maior expansão e intensidade da composição.
A figuração d’Os mártires (c. 1927) [Figura 14] cria paráfrase de parte do enunciado principal de Três de maio, 1808 (c. 1815) [Figura 15], de Francisco Goya (1746-1828).
A cena principal d’Os mártires parece atualizar e realizar grande parte da força do Três de maio descrita aqui por Janson:
A pintura tem toda a intensidade emocional da arte religiosa, mas esses mártires estão morrendo pela Liberdade, e não pelo Reino do Céu; seus carrascos, além do mais, não são agentes de Satã, mas da tirania política - uma formação de autômatos sem rosto, insensíveis ao desespero e revolta de suas vítimas.[19]
Esse comentário poderia perfeitamente ter sido feito para Os mártires, pois fala de um sujeito em processo de transformação, em vias de se disjungir definitivamente de seu objeto de valor mais precioso, a vida, desencadeada pela busca de outro objeto, a liberdade. Se há uma compensação na performance desse sujeito, essa não é uma recompensa material, mas o reconhecimento social que permanecerá como exemplo. No esquema narrativo dos textos de Goya e de Parreiras, a performance do antissujeito “carrascos”, destinatário manipulado pelo destinador “tirania política”, tem uma consequência negativa para o sujeito, a privação de seus objetos de valores, e uma consequência positiva para o antissujeito na aquisição dos mesmos objetos.
Esses sujeitos em disjunção, concretizados em Três de maio por “um grupo de cidadãos madrilenos”[20] prestes a serem executados pelas tropas bonapartistas, e em Os mártires pelos “principais chefes republicanos”[21] do levante de Pernambuco, configuram uma verdadeira figuração do mártir estereotipada a partir do esquema figurativo e compositivo de Goya. Se, em A execução do imperador Maximiliano (1867) [Figura 16], Édouard Manet (1832-1883) recupera em grande parte o procedimento figurativo e compositivo de Três de maio, falta-lhe o elã rápido e breve, dominante na obra de Goya em parte pelo efeito de grande contraste figurativo e plástico entre os grupos.
Esse elã é parcialmente atualizado e potencializado n’Os mártires. A obra inverte a posição dos grupos, posicionando os mártires à direita e seus carrascos à esquerda, mas o procedimento de contraste desses grupos é recuperado ao opor o papel opressor dos soldados, perspectivados numa fileira de figuras que desencadeia a execução, ao papel dos oprimidos, articulados numa relação estroboscópica que realiza a sua queda. Em relação a esse grupo, a figura caída no chão é praticamente uma citação da figura de Três de maio [Figura 17].
A inversão da posição dos grupos afeta diretamente o sentido. Se a leitura ocidental privilegia uma orientação topológica da esquerda para a direita, consequentemente há uma resistência maior se a leitura for da direita para a esquerda, que é o caso de Três de maio. Isso faz com que o ritmo de leitura da execução seja refreado. O que, contudo, não parece diminuir a intensidade da cena, pois aspectos figurativos, como a repetição dos soldados que o enunciatário percorre concretizando a série de disparos, a dinâmica das vítimas concretizando a queda para a morte, assim como a extrema proximidade dos grupos, geram forte tonicidade. Em decorrência desses aspectos, o discurso de Três de maio cria um efeito de suspense em torno do tema da falta da liberdade e da identidade, enquanto n’Os mártires o discurso sobre o martírio promove a aceleração de seu desfecho, um efeito de sentido de impiedade. As paráfrases do enfileiramento dos soldados e principalmente da figura executada são actantes narrativos opostos que, por seu uso, ressignificam a figuração do martírio, potencializando um novo esquema para o assunto.
Como um último exemplo de interdiscursividade figurativa, podemos ver em Primeiros passos para a independência da Bahia (1930) [Figura 18] a atualização da figuração revolucionária de O juramento dos Horácios (1784) [Figura 19], de Jacques-Louis David (1748-1825).
Primeiros passos recupera a postura solene e rígida das figuras d’O juramento. A obra, a despeito de seu estilo linear austero, prenuncia a Revolução Francesa, sendo considerada um signo do patriotismo e do sacrifício pessoal pelo bem comum. Se, por um lado, O juramento é um exemplo de discurso artístico concessivo, pois rompe com a estética pictórica e sensualista do rococó, por outro, contudo, essa ruptura se dá através da retomada de preceitos estilísticos da tradição clássica, apoiando-se na estabilidade do discurso implicativo do passado. O poder pode se utilizar das duas modalidades de discurso, como sublinha Hauser:
A arte classicista tende certamente para o conservadorismo e se presta à perfeição para representar ideologias autoritárias, mas a perspectiva aristocrática encontra com frequência uma expressão mais direta no sensualismo e na exuberância barrocos do que no classicismo abstêmio e realista.[22]
Quando Primeiros passos “repete” e multiplica as posturas figurativas d’O juramento, atualiza dois aspectos. Além de reiterar o discurso revolucionário d’O juramento, retoma também parte do estilo fortemente reconhecido do passado, fortalecendo o seu próprio discurso. No entanto, Primeiros passos reitera não o discurso de um sujeito que defende sua nação da invasão de inimigos estrangeiros que ameaçam a soberania nacional, caso recorrente do discurso imperial, mas o discurso de engajamento de um sujeito na defesa de algo que seria mais primordial: a identidade nacional. Assim, Primeiros passos retoma o gesto ascendente das figuras d’O juramento, ressemantizando-o como a manifestação plástica e figurativa da conquista da independência de uma região, da independência brasileira e da fundação de um novo regime de governo. Mais do que isso até, Primeiros passos ressemantiza e questiona a imagem nacional construída pelo período imperial, apoiando o seu dizer persuasivo na precedência dos fatos: numa manobra que tenta reformular o contrato de veridicção[23] sobre a independência, o discurso de Primeiros passos tenta instalar um novo crer verdadeiro, substituindo o grito do Ipiranga pelo que poderíamos chamar de o grito de Cachoeira.
Como forma ainda de acentuar o dizer verdadeiro a partir do interdiscurso figurativo, Primeiros passos recupera um procedimento figurativo do gênero histórico pintura de batalhas, que tem como estereótipo a inserção de figuras feridas no primeiro plano, como ressalta, por exemplo, Gonzaga Duque num comentário sobre a Batalha dos Guararapes, de Vítor Meireles: “As figuras do primeiro plano, em número diminuto, devido ao respeito votado à praxe acadêmica, estão, a dizer com propriedade, fora de ação.”[24] O contraste dessas figuras com outras figuras com performances distintas concretizadas em cenas de luta, de fuga, de observação ou de comemoração, por exemplo, materializa oposições em vários níveis de sentido.
Em Primeiros passos, a figura carregada e outras figuras menores na extrema direita, assim como o tambor-mor na parte central, são actantes que têm por objetivos marcar semanticamente termos disfóricos, enunciados disjuntivos numa etapa anterior da narrativa, assim como projeções temporais e espaciais a fim de tonificar o momento apoteótico final da conjunção com a liberdade e com a independência. Essa práxis cristalizada nos enunciados de batalhas permite que Primeiros passos estruture, organize o processo de significação de modo a operar no enunciatário um pequeno acento, acelerando suavemente a leitura em direção à etapa narrativa final figurativizada pela cena.
As paráfrases figurativas cumprem uma função importante na consolidação do discurso implicativo de estilo mais enuncivo e universal, inserindo o discurso de Parreiras na práxis da tradição, o que contribui para o contrato de confiança que estabelece a adesão do enunciatário ao modo de dizer do enunciador.
4. Estilizações plásticas
Se, em sua práxis figurativa, a obra de Parreiras dialoga com elementos de diferentes estilos e gêneros, sua práxis enunciativa plástica também recupera procedimentos heterogêneos. Para citar algumas dessas referências no discurso de sua produção histórica, vamos concentrar-nos em duas categorias plásticas: (1) topológica e (2) cromática.
Em termos topológicos/cromáticos, alguns trabalhos históricos recuperam plasticamente o que figurativamente consolida o papel temático de perda ou de conquista da liberdade e da identidade contido nas figuras de primeiro plano dos quadros de batalha. No texto d’A conquista do Amazonas [Figura 20], ao contrário de Primeiros passos, o conjunto das figuras do primeiro plano, formado principalmente por índios e pela árvore à extrema esquerda, possui esse papel disjuntivo, pois prepara a leitura para o triunfo da figura do colonizador.
Tanto figurativa, quanto plasticamente, A conquista atualiza parcialmente a Primeira missa, de Vítor Meireles. Nesse sentido, o dispositivo topológico/cromático d’A conquista, assim como da Primeira missa, é essencial para marcar a perda de um objeto de valor, enquanto a ausência desse mesmo dispositivo em Primeiros passos pretende claramente glorificar a identidade como recompensa narrativa, além de contemplar o princípio estético da pintura “mural”, observado na integração dessa obra com a tonalidade clara da sala que a abriga, no Palácio Rio Branco, em Salvador. A rigor, A conquista atualiza um esquema topológico presente em quadros como a Primeira missa e a Batalha dos Guararapes [Figura 21], de Meireles, bem como na Elevação da cruz (1879) [Figura 22], de Pedro Peres (1850-1923), que também adota o mesmo dispositivo da Primeira missa:
Os preceitos encontrados nesta soberba concepção [Primeira missa no Brasil] estão claramente positivados em muitas outras produções suas [de Vítor Meireles] e nas de muitos dos seus discípulos, principalmente na Elevação da Cruz, de Pedro Peres, e ainda nas pinturas do escultor Eduardo de Sá.[25]
Se tomarmos como referência, a composição clássica de Claude Lorrain (1600-82), Paisagem com Sacrifício a Apolo (1662) [Figura 23], podemos observar que esse dispositivo remonta a um esquema da tradição da pintura perpetuado desde então. E não estamos falando somente da topologia mais fortemente marcada entre centro e periferia do plano do quadro, mas igualmente da disposição horizontal em frisos e da suave perspectivação vertical dos planos da paisagem.
O dispositivo topológico d’A conquista estabelece uma relação entre as categorias /cercante/ vs. /cercado/, o que significa que a área cercante, precisamente no primeiro plano e à esquerda, cerca parcialmente o centro e a periferia oposta do quadro. Cromaticamente, a oposição se dá entre as categorias acromáticas /escuro/ vs. /claro/, ocorrendo a seguinte correspondência redundante dos termos: cercante : cercado : : escuro : claro.
Esse dispositivo utilizado por Meireles em quadros que Parreiras teria em alta conta, ao mesmo tempo que organiza a superfície de modo a criar uma espécie de janela que separa e emoldura a cena principal, deve, de acordo com Parreiras, integrar essas áreas sem criar um contraste excessivo, o que não acontece no quadro de Peres:
Não há porém convencionalismo a não ser na silhouette formada no primeiro plano à esquerda, que se prolonga e vai terminar no extremo à direita. Ela, como então se preceituava, destaca-se em campo luminoso, que pelo contraste se avigora. Não havia necessidade desta silhouette betuminosa. Peres era um forte colorista. Não precisava de bruscos “raportes” para a luminosidade e para a localização dos planos.[26]
A integração dessas áreas, que na Primeira missa ocorre por suaves “raportes”, ganha um acento maior n’A conquista, sem que essa oposição seja tão intensa quanto na Elevação da Cruz. Além do tom menos baixo na área cercante d’A conquista, a integração com a área cercada é realizada tanto pelas áreas de tom intermediário das sombras das árvores, quanto pela transição eidética das direções lineares das canoas. Encontramos variações desse dispositivo plástico em obras como Fundação da cidade de São Paulo e Fundação da cidade de Niterói (1909), que contrastam topológica e cromaticamente o primeiro plano com os demais.
Se, por um lado, encontramos na produção histórica de Parreiras elementos plásticos recolhidos de uma práxis enunciativa que prima por questões de ordenação da composição, e que sem dúvida foram essenciais para que o pintor fixasse a sobriedade do estilo mais universal das pinturas históricas encomendadas, por outro lado, toda a sua produção voltada para esse gênero herdou também a plástica, a fatura pictórica pronunciada de seu métier de paisagista. Dessa prática, os trabalhos históricos recuperam com maior ou menor intensidade a experiência que Parreiras obteve da pintura paisagística do século XIX, que em linhas muito gerais poderíamos salientar: a práxis proveniente do convívio com os integrantes do Grupo Grimm, do qual destacamos, pela fluência plástica de sua fatura, os trabalhos do pintor G. B. Castagneto [Figura 24], ou de trabalhos como os do italiano Filippo Cárcano (1840-1910) [Figura 25], haja vista que, depois de sua estada na Itália, Parreiras “assume, com ímpeto e vigor, uma maneira de pintar que só se encontra em seu trabalho”.[27]
Tal fatura, que encontra o seu momento mais tônico nas últimas pinturas históricas, está presente, contudo, em toda a produção, com maior ou menor intensidade. A Figura 26, que compara um pormenor de Primeiros passos com outro d’Os invasores (1936), mostra uma átona fatura por manchas imperceptível na apreensão da totalidade mais linear da primeira obra. Já n’O evangelho nas selvas (1920) [Figura 27], a construção por manchas participa efetivamente da leitura mais geral do enunciado. Enquanto a primeira obra dá ênfase ao enunciado enunciado, a segunda expõe de forma mais explícita as marcas de uma enunciação enunciada, do simulacro de enunciação, tanto em termos plásticos, quanto figurativos.[28]
Essa práxis enunciativa convoca procedimentos plásticos de pintores ecléticos ou progressistas do século XIX, como Thomas Couture (1815-1879) ou Manet, ao retomar o efeito inacabado que, por exemplo, Couture realizou em sua obra Os romanos da decadência (1847) [Figura 28, pormenor] .
Nesse quadro, Couture deixa aparente um efeito menos acabado que caracteriza o ébauche.[29] Se, no plano de conteúdo, Os romanos suscita uma crítica velada à monarquia francesa, no plano de expressão, sua fatura rejeita a uniformidade de acabamento, presente, muitas vezes, na pintura produzida nas academias de arte, veículo da aristocracia. Primeiros passos e outras pinturas de Parreiras atualizam o discurso d’Os romanos através da estilização de seus procedimentos cromáticos, que mantêm parte da mecânica gestual das pinceladas e do efeito pictórico, sem perder o nível de definição e os detalhes necessários à construção do enunciado histórico. Outro fator ainda reforça as relações interdiscursivas entre os dois pintores, como sublinha Álvarez:
Decididamente não parece ser acadêmico [o estilo de Parreiras] porque embora tenhamos muitos desenhos, não há indicação precisa de esboços preparatórios exaustivos antes de principiar uma tela. Há uma relação com a técnica de Couture na consideração entre a preparação e um resultado, seja nas telas de grandes dimensões ou nas de tamanho reduzido.[30]
A diminuição da quantidade de “esboços preparatórios exaustivos” está diretamente relacionada ao discurso de um sujeito pintor formado nas práxis modernas da pintura de paisagem e sintonizado com elas, discurso que se elabora e constrói seu enunciador no próprio ato de pintar, acarretando um aumento da força plástica do texto definitivo. É também nessa práxis atualizada em seu fazer, vibrante em sua superfície, recuperada por Parreiras com maior ou menor intensidade, que os investimentos semânticos, narrativos e discursivos vêm se incorporar, na tentativa de construir a nova identidade da nação.
Considerações finais
Se o signo é constituído pela conformação ou correspondência de dois planos de sentido, o plano de expressão e o plano de conteúdo, uma mudança ideológica será mais bem depreendida se o aparato retórico utilizado se reorganizar como um todo, desde a superfície figurativa do discurso até a sua manifestação plástica: “toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetiva na medida em que se traduz em mensagens que também subvertam os sistemas de expectativas retóricas”.[31] Nesse sentido, os quadros históricos dos últimos anos de Parreiras subvertem com maior intensidade a retórica do gênero, que “se retraduz em novo código e nova ideologia”,[32] pois, se essas pinturas, em particular, redimensionam o código de expressão do gênero histórico, a ideologia republicana por elas veiculada não passa incólume por isso, tornando-se mais vigorosa, mas igualmente menos objetiva. Ressignificando o modo de dizer, a maneira como se enuncia, uma pintura como Beckmann (1936) [Figura 29] ou como Os invasores potencializa e virtualiza o dito, o enunciado.
Enquanto as paráfrases figurativas tiram partido da confiança e da previsibilidade estabelecida por enunciados figurativos estocados no sistema da arte, absorvendo parcialmente a intensidade, a força de seus discursos universais, as estilizações cromáticas e matéricas têm uma função elementar de articular formalmente os elementos figurativos, levando um sopro de força sensível ao discurso implicativo das pinturas históricas encomendadas e manifestando toda a intensidade vibrante e sugestiva de revolução no discurso concessivo das pinturas históricas mais pessoais dos últimos anos.
* Departamento de Artes - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
[1] STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992, p. 30.
[2] Para a semiótica, “o fazer persuasivo está ligado à instância da enunciação [cf. nota 29] e consiste na convocação, pelo enunciador, de todo tipo de modalidades com vistas a fazer aceitar, pelo enunciatário, o contrato enunciativo proposto e a tornar, assim, eficaz a comunicação” (GREIMAS; COURTÉS. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008, p. 368). A enunciação (o ato produtor do discurso) pressupõe um sujeito da enunciação formado pelos polos enunciador (nesse caso, o pintor)/enunciatário (espectador) pressupostos no enunciado.
[3] “On comprend que l’énonciation individuelle ne puisse être envisagée indépendamment de l’immense corps des énonciations collectives qui l’ont précédée et qui la rendent possible. La sédimentation des structures signifiantes, résultant de l’histoire, determine tout acte de langage. Il y a du sens ‘déjà-là’, déposé dans la mémoire culturelle, archivé dans la langue et les significations lexicales, fixé dans les schèmes discursifs, contrôlé par les codifications des genres et des formes d’expression que l’énonciateur, lors de l’exercice individuel de la parole, convoque, actualise, réitère, ressasse, ou au contraire révoque, récuse, renouvelle et transforme” (BERTRAND, Denis. Introduction, p. 7-20. Figurativité, p. 97-164. In: Précis de sémiotique littéraire. Paris: Nathan, 2000, p. 55 e 56). (Todas as traduções foram realizadas pelo autor deste artigo).
[4] JANSON, H. W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 9.
[5] VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2003, p. 133.
[6] Semiótica natural: “O mundo natural, do ‘senso comum’, na medida em que ele é imediatamente informado pela percepção” constitui “em si mesmo um universo significante, quer dizer, uma semiótica” (“Le monde naturel, celui du ‘sens commun’, dans la mesure où il est d’emblée informé par la perception [...] en lui-même un univers signifiant, c’est-à-dire une sémiotique” (BERTRAND, op. cit., p. 101)).
[7] Há o formante plástico, que é uma unidade da expressão, como a linha, parte integrante de uma figura do conteúdo, como a figura humana, por exemplo, e o formante figurativo, que é uma unidade do conteúdo, como a figura de um dedo, parte que integra um todo figurativo, como a figura humana: “O formante não é, portanto, uma unidade sintagmática do plano de expressão (como são, por exemplo, o fema, o fonema ou a sílaba) considerada em si; é mais propriamente ‘o formante de...’, e decorre do uso e não da estrutura” (GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Sémiotique 2: dictionaire raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette, 1986, p. 4).
[8] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 404.
[9] FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 20.
[10] FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, p. 273.
[11] SILVA. Paloma Ferreira Coelho. A inconfidência revisitada: Antônio Parreiras e a Jornada dos Mártires. In: Revista Tempo de Conquista - história medieval e moderna, no 3, julho de 2008.
[12] O contrato fiduciário estudado pela semiótica é a relação de confiança estabelecida entre o fazer persuasivo do enunciador e o fazer interpretativo do enunciatário.
[13] BLAKE, Nigel; FRASCINA, Francis. As práticas modernas da arte e da modernidade, p. 50-140. In: FRASCINA, Francis et al (Orgs.). Modernidade e modernismo: a pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 71.
[14] PEREIRA, Sônia Gomes. A arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p. 35.
[15] Actante = função: no nível narrativo, falamos em ser, coisa ou conceito que sofre ou realiza um ato; no nível discursivo, “falamos em eu e tu [...] actantes da enunciação, ou seja, em posições dentro da cena enunciativa, aquele que fala e aquele com quem se fala” (FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido. São Paulo: Contexto, 2008-b, p. 138).
[16] LEVY, Carlos R. Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981.
[17] REIS JÚNIOR, José Maria dos. Belmiro de Almeida 1858-1935. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984, p. 51.
[18] FRANZ, Teresinha Sueli. Vítor Meireles e a construção da identidade brasileira. 19&20, Rio de Janeiro, vol. II, no 3, julho de 2007. Disponível em <http://www.dezenovevinte.net/obras/vm_missa.htm>. Acesso em 18 jan. 2009.
[19] JANSON, op. cit., p. 316.
[20] Id., ibid., p. 316.
[21] PARREIRAS. Antônio. Proposta de Antônio Parreiras para a obra Os mártires. S. l., 05 de nov. de 1927, 03 p. Acervo Manuscrito do Museu Antônio Parreiras, p. 1.
[22] HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 628.
[23] “O crer-verdadeiro do enunciador não basta, supomos, à transmissão da verdade: o enunciador pode dizer quanto quiser, a respeito do objeto de saber que está comunicando, que ‘sabe’, que está ‘seguro’, que é ‘evidente’; nem por isso pode ele assegurar-se de ser acreditado pelo enunciatário: um crer-verdadeiro deve ser instalado nas duas extremidades do canal da comunicação, e é esse equilíbrio, mais ou menos estável, esse entendimento tácito entre dois cúmplices mais ou menos conscientes que nós denominamos contrato de veridicção” (GREIMAS; COURTÉS, op. cit., p. 530).
[24] DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995, p. 177. Para citar alguns exemplos, podemos observar o uso desse procedimento figurativo em obras da pintura internacional como A tomada de Smalah (1845), de Émile-Jean-Horace Vernet (1789-1863) e a famosa A liberdade guiando o povo (1831), de Eugène Delacroix (1798-1863), ou em obras nacionais como a Batalha de Campo Grande (1871) e a Batalha do Avaí (1877), de Pedro Américo, por exemplo.
[25] PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói Livros. Fundação de Arte de Niterói, 1999, p. 196.
[26] Id., ibid., p. 222.
[27] LEVY, op. cit., p. 32.
[28] Enunciação: “é o ato de produção do discurso, é uma instância pressuposta pelo enunciado (produto da enunciação)” (FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2008-a, p. 55). Enquanto a enunciação enunciada é o simulacro que imita o fazer enunciativo, projetando as marcas do enunciador no enunciado, sendo, por isso, carregada de subjetividade, o enunciado enunciado é o resultado do ato de enunciação desprovido de suas marcas enunciativas, sendo, por isso, de natureza objetiva.
[29] O esboço executado na própria pintura: “Este, pintado de maneira rápida e esquemática, servia de base para o trabalho final. Menos ‘acabado’ que o esboço (esquisse), costumava ser feito com cores terrosas em uma técnica de esfregação (muitas vezes com panos), dando uma vaga indicação da modelagem da composição final. As massas mais importantes de luz e sombra eram aplicadas com uma superfície fina de tinta, sobre a qual eram aplicadas camadas de verniz ou de tinta mais espessa” (BLAKE; FRASCINA, op. cit., p. 86).
[30] ÁLVAREZ, José Maurício Saldanha. “Era terra do Brasil”: representação da nação brasileira na obra de Antônio Parreiras, p. 387-392. In: CAVALCANTI, Ana Maria Tavares; DAZZI, Camila; VALLE, Arthur (Orgs.). Oitocentos: Arte brasileira do império à primeira república. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, v. 1, 2008, p. 388.
[31] ECO, Umberto. Retórica e Ideologia, p. 83-94. In: A Estrutura Ausente. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 87.
[32] Id., ibid., p. 88.