A Imagem do Éthos e do Páthos Republicano na Pintura
Histórica de Antônio Parreiras
Fábio Cerdera *
CERDERA, Fábio. A
Imagem do Éthos e do Páthos Republicano na Pintura Histórica de Antônio
Parreiras. 19&20, Rio de Janeiro, v.
XII, n. 1, jan./jun. 2017. https://doi.org/10.52913/19e20.xii1.08
*
* *
1. A
depreensão de um modo de dizer na análise da totalidade da pintura histórica de
Antônio
Parreiras determina um caráter para o pintor, configurando também uma
identidade republicana a partir de sua produção. Tal caráter pode ser desenhado
a partir das marcas de um eu que enuncia - o sujeito enunciador para a
semiótica francesa, perspectiva teórica que apoia este artigo. Como propõe a
semiótica, esse sujeito enunciador é logicamente uma instância pressuposta
pelas marcas projetadas no enunciado.[1]
2. Enquanto
o eu pressuposto é chamado de enunciador, o eu projetado é chamado de narrador,
como explica José Luiz Fiorin: “Teoricamente, essas duas instâncias não se
confundem: a do eu pressuposto é a do enunciador e a do eu projetado no
interior do enunciado é a do narrador.”[2]
3. Assim,
podemos dizer que as marcas enunciativas das pinturas de Parreiras denunciam a
presença desse narrador-pintor no interior do enunciado planar. Definir o
caráter desse eu pressuposto a partir do eu projetado do pintor no interior de
cada texto não nos dá o éthos, isto é, a “imagem do autor,”[3]
e consequentemente a imagem de seu discurso como um todo, mas simplesmente
alguns traços do narrador Parreiras em cada obra.
4. Como
afirmar a presença de um narrador no texto planar é algo que nos parece
inviável, propomos que a projeção desse eu enunciador do pintor se figurativize
na instância das personagens, no caso, naquelas voltadas para o interior do
enunciado, já que esse ponto de vista parece-nos ser o mais próximo de um
observador externo à cena, como bem indica a pesquisadora Sônia Gomes Pereira,
quando se refere à pintura romântica, ao analisar a Primeira missa no Brasil
(1860) [cfr. Imagem], de Vítor
Meirelles:
5.
O
deslocamento do tema principal para um dos lados da composição [...] o apelo
maior ao público, que quase se incorpora à cena, acompanhando os índios
colocados de costas no primeiro plano - todos esses elementos apontam a
absorção de alguns princípios românticos, como a dinamização da narrativa e a
maior aproximação com o espectador.[4]
6. Na
obra histórica de Parreiras, em particular, essas figuras assumem no nível
narrativo a função actancial de sujeitos de estado ou de fazer em conjunção ou
não com os seus objetos de valores, recebendo no nível semântico discursivo o
investimento temático da perda ou da aquisição da identidade.[5]
7. Considerando
não toda a produção histórica de Parreiras, mas um corpus representativo
dessa produção, o quadro da Tabela 1
abaixo reúne uma série de aspectos que, se forem tomados isoladamente podem
levar a resultados muitos particulares, como, por exemplo, se compararmos as
obras Fundação do Rio de Janeiro (1934) [Figura
1] e Os desterrados (1900-1902) [Figura 2a e
Figura 2b].[6]
Apesar de certas semelhanças, como o fato de constituírem cenas independentes
que ao mesmo tempo se complementam, as obras exibem muitas particularidades em
suas estruturas compositivas e no desenvolvimento de seus aspectos de
significado, como a maior objetividade no efeito de sentido geral da Fundação,
ao passo que Desterrados parece conter uma maior continuidade cromática
e tonal. Vale esclarecer aqui que, por continuidade cromática e tonal, nos
referimos a uma maior semelhança na escala de cores e de valores de
luminosidade, ao passo que, por objetividade, queremos dizer, grosso modo, que
inexistem elementos ou interferências consideravelmente subjetivas no texto
plástico, como, por exemplo, pontos de vista com grande perspectivação - os
quais poderiam gerar acentuadas distorções ou escorços , ou uma tessitura que
evidenciasse em demasia padrões abstratos estruturantes, o que, em última
instância, poderia prejudicar a estabilidade figurativa da cena.
Tabela 1 - Síntese das
articulações entre composição e conteúdo
8. Esses
traços particulares não podem nos dar mais do que vários éthe
individuais em cada texto. Contudo, quando esses traços são reunidos,
buscando-se as semelhanças, as reiterações na totalidade do discurso, temos
então como depreender, ainda que provisoriamente, o éthos do pintor
republicano no discurso histórico de Parreiras: “Quando analisamos uma obra
singular, podemos definir os traços do narrador, quando estudamos a obra
inteira de um autor é que podemos apreender a imagem do éthos do
enunciador.”[7] Mas onde encontrar esses traços gerais, a
reiteração dessas marcas no conjunto dos discursos, no “espaço discursivo”?[8]
9.
Onde
se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas do éthos do
enunciador? Dentro desse todo, procuram-se recorrências em qualquer elemento
composicional do discurso ou do texto: na escolha do assunto, na construção das
personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo, na
figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc.[9]
10. Se nos
determos na análise desse corpus, o surgimento de recorrências torna
visível uma coerência na totalidade dos discursos de gênero histórico de
Parreiras. A Tabela 1 mostra que, a
despeito das diferenças entre as obras, elas exibem certa coerência discursiva.
Tal coerência está centrada no discurso de um sujeito interessado nas ações
heroicas para o estabelecimento de uma identidade para a nação, mas que, em
última instância distingue-se pelo discurso de denúncia da injustiça e da
opressão por parte dos colonizadores, traços que recebem como investimento
discursivo a tematização abstrata da identidade nacional.
11. Essa
coerência começa pela escolha dos assuntos, que giram em torno basicamente dos
desbravamentos, das fundações, dos momentos de heroísmo, de revolução e dos
martírios, assuntos que privilegiam o período colonial em oposição às cenas da
corte e de batalhas, estes mais recorrentes do período imperial. A comparação
entre os períodos é fundamental, pois é através do confronto que se pode
perceber características próprias no éthos de um determinado discurso,
como aponta Fiorin: “A análise dos éthe da segunda e da terceira
gerações do romantismo brasileiro [na literatura] mostra que o caráter de um
enunciador se constitui sempre em oposição a outro.”[10]
12. Aos assuntos
tratados por Parreiras no período republicano subjaz a temática abstrata da
identidade nacional, que os entretece. Essa temática, que recobre a oposição
semântica fundamental /opressão/ vs. /liberdade/, opõe-se diretamente ao
discurso pictórico imperial, que se baseava, muitas das vezes, na temática
abstrata da soberania nacional. Enquanto a narrativa imperial abafava a
performance de um sujeito narrativo que busca a transformação interna da nação,
concentrando-se nas ameaças de um antissujeito estrangeiro, a narrativa que
Parreiras pretende trazer à tona no período republicano tem como foco
diferencial justamente a performance desse sujeito que se opõe ao domínio da
metrópole, de um sujeito que quer, mas não pode transformar a sua realidade no
que diz respeito à cristalização desse universo. O que se vê como concretização
dessa temática é o predomínio de figuras caracterizadas principalmente pela
perda, pela opressão ou pela falta (como o indígena e o mártir), e mais
raramente pela conquista (como o herói).
13. A
construção das personagens prima pela altivez, buscando manter o máximo de
traços possíveis que as identifiquem com a diversidade presente na semiótica do
mundo natural. A elaboração dos atores do enunciado busca esse tom verdadeiro
como efeito de sentido, crendo numa construção que seria menos idealizada.
Nota-se isso no seguinte trecho da carta em que Parreiras responde às críticas
do historiador Diogo de Vasconcelos sobre o croquis
para Felipe dos Santos:
14.
Quanto
à indumentária, que tanto recomendava o Dr. Diogo de Vasconcellos eu me limito
a dizer - dela só tenho que me documentar quando tratar do Conde de Assumar
[...] O resto apenas a nudez coberta por farrapos, ou peças de roupa sem cor
nem forma rigorosamente determinada - pois assim é que andava a população de
Vila Rica em 1720 [...] O que restaria de um homem elegantemente vestido -
depois de lutar durante dias e noites - ser martirizado, encarcerado em imundas
prisões dormindo no chão úmido e lamacento, caminhando através de florestas, escondendo-se
em furnas alagadas, arrastado pelas estradas, como foram Felipe dos Santos e
Thomé Affonso [...] A não representá-los assim seria mentir - seria voltar às
priscas eras de Watteau, o famoso pintor de pastoras de saia de seda bordadas a
fios de ouro e sapatinhos de cetim [...] [11]
15. Faz
parte também dessa construção, desse fazer crer verdadeiro, que as figuras
tenham dimensões naturais, como na proposta que o pintor faz ao Governo de
Minas Gerais para o referido quadro Felipe dos Santos: “os personagens
do quadro serão de grandeza natural.”[12] Outro dado importante na construção das
personagens históricas é a execução de retratos na cena: “as personagens que se
distinguiram em tão glorioso momento serão retratadas quando houver retratos ou
documentos que sirvam como orientação para este fim.”[13]
16. A
pintura de história brasileira em geral mantém um efeito de sentido objetivo,
sendo esporádicas as inserções efetivamente alegóricas a
despeito de, por exemplo, o universo figurativo de uma Batalha dos Guararapes (1879), de Vítor Meirelles [cfr. Imagem], ter sido considerada por críticos da época
como “uma alegoria”[14]
porque reuniria personagens que não se encontraram de fato.
17. Se o
discurso histórico de Parreiras se afasta das codificações, das erudições do
gênero alegórico, o seu nível de linguagem também zela pelo efeito de
objetividade. A objetividade desse discurso é atingida também pela manutenção
da clareza de uma composição que chamaremos aqui de uma tendência mais
justapositiva, e de um estilo mais eidético e universal figurativamente.
18. O
ritmo dessas obras, analisado através da reunião de conceitos da semiótica
tensiva, como andamento e tonicidade, tende à desaceleração e à atonização, [15] resultado de uma estabilidade predicativa entre as
figuras e a cena e entre as figuras e o modo de dizer plástico, bem como da
difusão, da explicitação das etapas narrativas e das projeções enuncivas, isto
é, mais objetivas, de tempo, espaço e pessoa.
19. Há
ainda a presença de outras isotopias que entretecem esse éthos
republicano nas pinturas encomendadas, as quais podemos elencar aqui de uma
forma simplificada. A saber: (a) as projeções figurativas do enunciador são
sempre marcadas por sujeitos em disjunção com seu objeto de valor (com exceção
de Fundação de Niterói); (b) há nas figuras humanas a recorrência de
posturas mais rígidas; (c) as projeções compositivas ascendentes marcam
transformações; (d) do ponto de vista da estabilidade do enunciado figurativo,
a maior discreção dessas pinturas é responsável por um estilo mais universal,
se comparadas à menor legibilidade, ao estilo mais absoluto da produção mais
pessoal dos últimos anos do pintor. Entretanto, esse ponto de vista pode ser
invertido se tomarmos outro ângulo de análise: a univocidade presente nas
encomendas pode ser vista como um traço absoluto, enquanto a riqueza de vozes
dos últimos quadros é também um traço mais universal. Nesse sentido, é lícito
afirmar também que as projeções cromáticas e matéricas, ora mais, ora menos
subordinadas aos contrastes eidéticos, marcam um caráter mais inacabado, em
construção, menos rígido e de tendência mais universal para o éthos
republicano na totalidade da obra histórica de Parreiras, se comparado ao
caráter mais acabado, mais rígido, definitivo e assim mais absolutista do que
talvez possamos chamar de um éthos monarquista.
20. Se
essas marcas do sujeito da enunciação desenham a imagem de um eu enunciativo,
um éthos republicano, esse autor, claro, como diz Fiorin, não é o autor
real, de carne e osso, mas uma imagem dele. Enquanto actante da enunciação,
esse autor é uma instância mais abstrata deduzida a partir do enunciado;
enquanto ator da enunciação, concretiza temático-figurativamente o actante da
enunciação, como explicam Greimas e Courtés:
21.
Do
ponto de vista da produção do discurso, pode-se distinguir o sujeito da
enunciação, que é um actante implícito logicamente pressuposto pelo enunciado,
do ator da enunciação: neste último caso, o ator será, digamos, “Baudelaire”,
enquanto se define pela totalidade de seus discursos.[15]
22. O ator
da enunciação na totalidade da produção histórica oficial de Parreiras tem como
enunciador o próprio pintor, e como destinador, aquele que determina, até certo
ponto, esse discurso: o Estado. A definição da imagem de um éthos na
pintura republicana de Parreiras passa, dessa forma, pela detecção de traços
enunciativos desses dois actantes no enunciado.
23. Num
parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre o
croquis para o quadro Julgamento de Frei Miguelinho [Figura 3], projetam-se as marcas de um
sujeito-destinador que exibe sua competência e a usa na manipulação do
sujeito-enunciador, um sujeito-destinador que sabe e que faz o outro saber e fazer.
A precisão histórica na correção da quantidade de personagens do croquis marca bem a imagem desse éthos
realista presente na totalidade da produção oficial do pintor:
24.
Há
uma outra alteração que nos parece necessária: a sentença condenatória de Frei
Miguelinho, conforme o documento transcrito nos “Traços Biográficos do P.
Miguel Joaquim de Almeida e Castro”, por Manoel Dantas, foi assinada por dez
juízes, que tantos eram os membros da comissão militar da Bahia.[16]
25. Noutro
parecer a respeito do croquis para O
julgamento de Felipe dos Santos, vemos no discurso o saber do destinador
Diogo de Vasconcelos determinar modalmente um dever ser, um dever fazer, um não
poder fazer ao enunciador pintor:
26.
[...]
para merecimento de valor histórico, temos de ser fieis
e realistas [...]. A liberdade [...] não pode ir até a extravagância. Um quadro
histórico tem por ponto cardial a veracidade e precisa ser útil para ser belo.
Um episódio histórico inventado perde sua razão de ser; não atinge o fim
de comover; não é belo e será quando muito bonito.[17]
27. O ator
do discurso, o historiador Vasconcelos, constrói a imagem de um éthos rigoroso,
exigente quanto à veracidade dos fatos: para ser verdadeiro, o pintor deve ser
fiel às fontes, deve moldar a sua imaginação com base em documentos dignos de
fé. Esses traços do destinador que determinam o éthos do discurso
oficial de Parreiras são levados em conta pelo pintor, como atesta o seguinte
trecho de outro documento, o memorial de Parreiras endereçado a Pedro Ernesto
para a realização do tríptico Fundação da cidade do Rio de Janeiro:
28.
A
composição desses três quadros será baseada em documentos autênticos de modo a
que eles traduzam com fidelidade a verdade histórica, e só serão executados de
completo acordo com o Instituto Histórico do Rio de Janeiro que sobre a sua
composição dará o seu parecer.[18]
29. Em
contrapartida, em outro trecho de seu parecer, Vasconcelos elogia a figura “de
Felipe dos Santos puramente imaginada,” propondo modificações na postura da
personagem, que acarreta aquilo que chamamos de euforização moral, o que, em
última análise, mostra o reconhecimento da competência do enunciador, de seu
saber e de seu fazer na construção da cena.
30.
A
[figura] de Felipe dos Santos puramente imaginada, centro da ação, está
igualmente bem lançada [...] Na execução definitiva
essa figura deve tomar uma atitude menos vulgar, mais hierática, mais cheia de
grandeza moral, e tudo estará na fisionomia que o artista lhe der, na qual
transpareça a alma heróica do homem.[19]
31. A fala
de Vasconcelos se mostra contraditória, na medida em que euforiza, que vê
positivamente o que condenara em outros momentos: a invenção pura. Esse sujeito
passional, ambíguo em seu saber, surge como um traço isolado dentro da imagem
do destinador, não influenciando na definição do éthos que permeia a
totalidade dos discursos do pintor.
32. Por
outro lado, um enunciador fala a um enunciatário, que na totalidade dos
discursos configura o “páthos ou o estado de espírito do auditório,” não
“a disposição real do auditório, mas a de uma imagem que o enunciador tem do
enunciatário,”[20] uma imagem do leitor, do espectador.
33. O páthos,
a imagem do público republicano da obra histórica oficial de Parreiras, tem
como traço fundamental e se reflete no modo de pensar do pintor na preocupação
com o efeito de sentido verdadeiro a ser plasmado no enunciado plástico, em
traduzir “com fidelidade a verdade histórica.”[21]
Ao mesmo tempo em que esse “estado de espírito” demanda em relação ao
dizer-verdadeiro aspectos quantitativos capazes de operar uma difusão
convincente dos valores republicanos, esse leitor/espectador também demanda
aspectos passionais ligados à força que o enunciado deve conter, sem se ater ao
fato de que esses aspectos falam diretamente da construção do dizer-verdadeiro
e, portanto, relativizam a própria verdade histórica.
34. Fiorin
nos diz que o “discurso, ao construir um enunciador, constrói também seu
correlato, o enunciatário.”[22] A imagem do enunciatário na totalidade
dos discursos das pinturas históricas encomendadas, isto é, o páthos
republicano nestas pinturas, coincide com o sujeito mais detalhista em sua
busca pelo objeto de valor verdade histórica. A partir da totalidade desses
discursos é que podemos depreender um estilo de valores mais universal para
essas pinturas, estilo mais enuncivo que privilegia o caráter mais inteligível
dos contrastes eidéticos, e que se define por um discurso atravessado por uma
lógica mais implicativa. A fortuna crítica sobre a obra histórica oficial de
Parreiras tem momentos bem contundentes, como a famosa crítica de Lima Barreto
à pintura histórica de Parreiras: “[...] o maior cabotino da pintura no Brasil
[...] o Sr. Parreiras deu um dia para pintar quadros históricos, nus e outras
coisas por fotografias [...] nunca se viu uma coisa assim, tão errada, tão
estúpida e tão sem senso.”[23]
35. Além desse
verdadeiro ataque do escritor às motivações que levaram o pintor à produção de
pintura histórica, há críticas à veracidade dos fatos, como as do historiador
Vasconcelos e outras à composição e à anatomia das figuras:
36.
[...] preferiam insistir na questão
formal, lançando objeções contra a anatomia das figuras, a poderosa e dramática
dinâmica das composições, ou simplesmente colocando em dúvida a veracidade de
insignificantes detalhes que eventualmente não correspondem aos relatos da
história oficial.[24]
37. O
estilo que chamamos de mais universal nessa produção, implica também numa
“precisão” exigida para a construção das figuras ou do que se convencionara
como uma boa composição. Esse público mais crítico reflete o páthos
projetado na obra histórica oficial de Parreiras, páthos que podemos
denominar de racional ou figurativo. É lógico que o discurso mais implicativo
dessas obras atinge um público bastante diversificado, abrange um leque de
espectadores muito mais amplo, mas, apesar da grande possibilidade de
comunicação, alicerçada, sobretudo, pela linguagem figurativa mais direta, mas
também pelo fato de serem geralmente composições em grandes formatos para
espaços públicos de maior circulação, é essencialmente para os olhos de um
público mais crítico que Parreiras parece produzir, mesmo que, na concepção do
pintor, a pintura histórica seja “um livro que pode ser lido mesmo pelos que
não sabem ler.”[25] Grande parte de seu esforço tem como
objetivo cumprir as exigências do destinador, cujo éthos rigoroso se
aproxima do páthos da crítica e do apreciador mais refinado de arte.
38. É também
pela totalidade dos discursos que podemos afirmar a existência de um segundo
estilo de pintura histórica, mais enunciativo, a partir dos anos de 1930,
estilo de valores de absoluto, calcado no caráter mais sensível dos contrastes
cromáticos e matéricos, os quais definem um discurso permeado por uma lógica
mais concessiva, lógica pautada pela estratégia discursiva da surpresa, na qual
a produção não depende diretamente de um destinador que impõe e cerceia o
discurso: nesse caso, a produção não é mais uma encomenda. Um exemplo dessa
produção é a obra Os Invasores (1936) [Figura
4].
39. Esse
segundo tipo de discurso, por ser mais subjetivo e projetar traços mais
individuais do pintor enunciador, projeta igualmente as marcas de um
enunciatário mais individualizado, marcas constituidoras de um páthos
republicano mais sensível, traços de um sujeito que busca menos por detalhes na
construção dos enunciados históricos, sujeito ávido por uma plástica mais
particular, que acaba por constituir enunciados mais subjetivos.
40. Pintor
festejado, em especial por sua produção paisagística, mas com uma sólida
carreira de pintor de história, em 1925 Parreiras “é eleito, com cerca de 20000
votos, pelos leitores da revista Fon-Fon o mais ‘célebre pintor brasileiro
vivo’.”[26] A expressiva votação desse público,
consagrando o pintor, pode também muito bem refletir a imagem do páthos
projetada principalmente na obra histórica tardia de Parreiras, imagem
identificada com o uso de empastamentos acentuados e de sutis desdobramentos
cromáticos, numa clara correlação com a opulência da paisagem natural que se
articula à temática histórica nacional. Esse páthos, sensível às
estratégias plásticas do enunciado histórico, podemos chamar de sensorial ou
plástico.
41. Esses
dois páthe e seus correspondentes éthe sublinham assim
estratégias enunciativas distintas que, apesar de suas diferenças, são
traspassadas por um sujeito em busca de seu espaço, que recebe o investimento
temático da identidade nacional. Essa diferença de discursos marca um sujeito
enunciador passional, modalmente instável, que, em seu discurso implicativo, de
uma lógica subserviente às diversas coerções externas, quer, mas sobretudo,
deve fazer em função de seu destinador contratante, em oposição ao saber e ao
querer que regem o fazer plástico e figurativo de seu discurso concessivo, do
qual é destinador.
42. O éthos
do discurso implicativo dá ênfase ao dito, ao enunciado, porque é endereçado a
um páthos que deve crer na solidez e no acabamento do seu discurso, ao
passo que o éthos do discurso concessivo enfatiza as marcas maleáveis e
inacabadas do dizer, os vestígios da enunciação, haja vista que seu páthos
constitui-se pela relatividade de seu fazer interpretativo.
43. Em
última análise, o éthos e o páthos do discurso histórico
implicativo de Parreiras exibem o caráter de um sujeito da enunciação coletivo
que, mesmo dialogando com outros discursos pictóricos, tenciona o consenso e
tem a monofonia como efeito discursivo. O apagamento das marcas plásticas
daquele que enuncia visa suprimir as diferenças e dar um tom objetivo, fazendo
coro à “verdade histórica” dos diversos discursos que subsistem no interior dos
enunciados, mas ao mesmo tempo silenciando suas particularidades
fragmentadoras. No discurso concessivo das últimas obras, o éthos e o páthos
projetam um caráter individual, sendo, porém polifônicos. Têm por estratégia a
difusão das diferenças, apresentando, em certa medida, como o discurso eclético
do pintor Thomas Couture, a tendência para a harmonização de vozes dissonantes,
para misturar, embaralhar o dito e o modo de dizer. Como discurso pleno de
marcas individuais, podemos dizer que ele é uma verdadeira síntese das fases,
dos gêneros, dos estilos experimentados pelo pintor, refletindo bem as
mudanças, as idiossincrasias, os conflitos e as
conciliações, enfim, o sujeito passional, o paisagista e o pintor de história
Antônio Parreiras.
______________________________
* Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro
[1] A enunciação (o ato
produtor do discurso) pressupõe um sujeito da enunciação formado pelos polos
enunciador (nesse caso, o pintor) /enunciatário (espectador) pressupostos no
enunciado.
[2] FIORIN, José Luiz. Em
busca do sentido. São Paulo: Contexto, 2008, p. 138.
[3] Ibidem, p. 139.
[4] PEREIRA, Sônia Gomes. A
arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p. 35.
[5] Cabe ressaltar aqui que
esses conceitos se referem ao modelo básico de análise semiótico, chamado de
percurso gerativo de sentido. Esse percurso criado pela semiótica é um
simulacro metodológico, ou seja, um modelo teórico de análise que propõe a
desconstrução do sentido de um texto em vários patamares de produção, os quais
se adensam progressivamente. São eles: fundamental (estruturas semânticas),
narrativo e discursivo.
[6] A Chegada que tem como par A
partida, formam um pendant (conjunto de duas pinturas que se
complementam) denominado Os desterrados. Atualmente, essas pinturas
pertencem ao atual Centro Cultural da Justiça Federal, localizado na Rua
Primeiro de Março, no centro do Rio de Janeiro.
[7] FIORIN, op. cit, p.
141.
[8] FIORIN, José Luiz. A multiplicação dos
ethe: a questão da heteronímia. In:
MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Org.). Ethos discursivo.
São Paulo: Contexto, 2011, p. 60.
[9] FIORIN, 2008, p. 143.
[10] Ibidem, p. 150.
[11] PARREIRAS. Antônio. Carta de Antônio Parreiras a Mello Vianna
respondendo às críticas de Diogo
Vasconcellos. S. l., s. d, p. 7. 9 p. Acervo do Museu Antônio Parreiras
(AMAP).
[12] GOVERNO do Estado de
Minas Gerais. Cópia do termo de
contrato com o Estado de Minas Gerais para a obra Felipe dos Santos. S.
l., 12 de jan. de 1923, p. 2. 4 p. AMAP.
[13] GOVERNO do Estado da
Bahia. Cópia do termo de contrato com
o Governo do Estado da Bahia. S. l., 24 de out. de 1928. 1 p. AMAP.
[14] DUQUE-ESTRADA, Luis Gonzaga. A arte brasileira. Campinas, SP:
Mercado das Letras, 1995, p. 176.
[15] O ritmo segundo a conceituação da semiótica tensiva,
entende a noção como uma variação das subdimensões da tonicidade
(tonificação/atonização) e do andamento (aceleração/desaceleração), na dimensão
sensível da intensidade, da força (representado por um eixo, por um gradiente
vertical no esquema tensivo). Nesses termos, uma grandeza sensível percebida de
maneira forte, intensa, por um sujeito, equivale a um ritmo de leitura tônico e
acelerado do texto, desfavorecendo o inteligível e a dimensão da extensidade
(representado por um eixo horizontal no esquema tensivo). Por outro lado, se
ocorre uma desaceleração desse ritmo, a apreensão das grandezas no campo de
presença (o ato perceptivo do sujeito) será átona e inteligível, o que
desfavorece o sensível.
[16] GREIMAS; COURTÉS. Dicionário
de semiótica. Tradução de Alceu Dias
Lima, Diana Luz Pessoa de Barros, Eduardo Peñuela Cañizal, Edward Lopes,
Ignacio Assis da Silva, Maria José Castsgnetti Sombra, Tieko Yamaguchi
Miyazaki. São Paulo: Contexto, 2008, p. 45.
[17] LEMOS, Vicente de et
al. Parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre a obra
Julgamento de Frei Miguelinho. 30 de dez. de 1917, p. 172 e 173. In: Revista do IHGB. S.
l., 1919, p. 171-174.
[18] VASCONCELLOS, Diogo de. Carta de Diogo de Vasconcellos a Mello Vianna. Belo Horizonte, 25 de mar. de 1923, p. 4. AMAP.
[19] PARREIRAS. Antônio. Cópia do Memorial de Antônio Parreiras a
Pedro Ernesto. S. l., 1934-b, p. 3. 4
p. AMAP.
[20] Op. cit.,
p. 3.
[21] FIORIN, 2008, p. 154.
[22] PARREIRAS, 1934-b, p. 3.
[23] FIORIN, 2008, p. 157.
[24] BARRETO, Lima. Os Pintores. Correio da Noite, 5
mar. 1915, n. p.
[25] LEVY, Carlos R. Maciel.
Antônio
Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1981, p. 42.
[26] PARREIRAS. Antônio. A
arte, como meio educativo e de perpetuar as tradições. O Estado, n. 1823,
S. l., 1936, p. 1. 2 p. AMAP.
[27] LEVY, op. cit., p. 54.