A identidade de um orixá incerto
Anderson Diego da S. Almeida
ALMEIDA, Anderson Diego da S.. A identidade de um orixá incerto. 19&20, Rio de Janeiro, v. XIV, n. 1, jan.-jun. 2019. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XIV1.04
* * *
Do desenrolar dos fios, uma incerteza
Não sou preto, branco ou vermelho
Tenho as cores e formas que quiser.
Não sou diabo nem santo, sou Exu! [...]
Passo e cruzo
Traço, misturo e arrasto o pé
Sou reboliço e alegria
Rodo, tiro e boto,
Jogo e faço fé.
Sou nuvem, vento e poeira
Quando quero, homem, mulher
Sou das praias, e da maré.
Ocupo todos os cantos [...].
Sou a gente sem bandeira,
O espeto, meu bastão.
O assento? O vento!
Sou do mundo, nem do campo
Nem da cidade,
Não tenho idade.
Recebo e respondo pelas pontas,
Pelos chifres da nação
Sou Exu.
Sou agito, vida, ação
Sou os cornos da lua nova
A barriga da rua cheia!
Quer mais? Não dou,
Não tô mais aqui. (CRAVO JUNIOR, 1993)
No candomblé, diversas são as configurações que regem os orixás e suas características. Dentre estas, a representação do fálico está associado ao orixá Exu que possui, além das nomenclaturas, dependendo de cada nação, muitas funções, como a manutenção do equilíbrio e da restauração da ordem de todas as coisas existentes.
Partindo do pressuposto de pensar a estética do fálico, presente em Exu, este trabalho procura apresentar uma investigação a partir dos elementos simbólicos e estéticos presentes em uma das esculturas que fazem parte do conjunto que compõe a Coleção Perseverança, pertencente ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, na tentativa de identificar sua possível identidade e confrontar as concepções geradas por dois pesquisadores, Raul Lody e Fernando Gomes de Andrade, que em suas respectivas pesquisas, descreveram a referida escultura com nome de orixás diferentes: Xangô, Iemanjá, Oxum e/ou Ogum.
As suposições, acerca dessa incerteza, geraram certa curiosidade no trabalho de pesquisa doutoral, que vem sendo desenvolvido, onde estão sendo analisadas as mais de 215 peças da Coleção Perseverança, onde se encontra o “orixá incerto.” É importante situarmos que a escultura, com seu elemento fálico, introjetado no ânus e com traços de uma figura feminina, é fruto de um ato, conhecido como “Quebra de Xangô,” que aconteceu na noite de 1 de fevereiro de 1912 no Estado de Alagoas, principalmente na capital, a cidade de Maceió. O episódio teve como mote a invasão, por um grupo de ex-combatentes, às casas de culto de matriz africana. A justificativa para tal ato foi a de que o Governador em exercício, Euclides Malta, frequentava os terreiros e administrava o Estado sobre as coordenadas dos pais e mães de santo. Muitos dos terreiros foram saqueados, filhos de santo espancados e objetos queimados em praça pública.[1]
Desse intenso episódio, a Coleção Perseverança se forma como documento do “Quebra.”[2] Mais do que isso, se forma como a memória e a representação da imagética negra, da manifestação e da presença africana em Alagoas. Contudo, num universo repleto de adornos, instrumentos musicais, estatuária, insígnias e os objetos diversos, a análise de uma das esculturas, a partir de seu pressuposto estético e identitário, torna-se elemento fundamental para à construção de uma narrativa em curso que visa a compreensão da pathosformel e da origem dos objetos que compõem a coleção.
Das fontes, uma trama em construção
Como já mencionado, a Coleção Perseverança surge em um contexto turbulento. As peças que hoje a constituem ficaram sobre salvaguarda do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), depois de serem encontradas abandonadas em um depósito da antiga Sociedade Perseverança e Auxílio dos Caixeiros Viajantes de Maceió[3]. A coleção ganhou o nome de Perseverança em homenagem à Sociedade.
Atualmente a coleção possui mais de 215 objetos catalogados de acordo com as seguintes categorias: adornos, indumentária, instrumentos musicais, estatuárias e objetos diversos. Essa catalogação se deu com a produção do primeiro documento que foi considerado um inventário, o Catálogo Ilustrado da Coleção Perseverança, elaborado por Abelardo Duarte em 1974 [Figura 1].[4]
O catálogo produzido por Duarte[5] abrange a enumeração e a descrição dos objetos de acordo com suas finalidades: fetiches e insígnias, esculturas (ochês) e imagens, instrumentos musicais, indumentária e paramentos e diversos. Segundo Almeida,[6] no catálogo Duarte “traça um esboço histórico de modo como a coleção se constituiu, apresentando dados completos encontrados sobre o assunto em Alagoas.”
Anos depois da publicação de 1974, outro importante documento foi produzido com o objetivo de analisar a estética e uso dos objetos e apontar a possível identificação dos orixás. O catálogo produzido em 1985 por Raul Lody [Figura 2][7] teve o apoio do IHGAL e da Fundação Nacional de Arte (Funarte), em cooperação com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e o Instituto Nacional do Folclore.
A produção do catálogo de 1985 tornou-se um documento mais completo sobre a coleção, pois Raul Lody, museólogo responsável pela referida produção, teve como tarefa registrar todos os objetos, através de tombos e a partir de seu conhecimento e experiência em outros trabalhos sobre a mesma temática, bem como descrever, mesmo que de forma breve, alguns detalhes intrínsecos às peças. Contudo, no catálogo de 1985 encontramos as fotografias publicadas em preto e branco, o que muito dificulta a compreensão do que está sendo mencionado, e, consequentemente, nossa interpretação.
Trinta anos depois da publicação de Lody, o médico e diretor do Museu do IHGAL, Fernando Andrade, lançou o livro Legba: a guerra contra o Xangô em 1912 [Figura 3],[8] onde apresenta importantes documentos sobre episódio do “Quebra” de 1912, personagens e o cenário político em que se encontrava a sociedade alagoana.
Além de mencionar o contexto em que se deu a “Operação Xangô,”[9] Andrade apresenta os objetos da Coleção Perseverança como o principal documento sobre a invasão da noite de 1º de fevereiro de 1912. Sob esta perspectiva, encontramos em seu livro os objetos, agora fotografados e apresentados em fotos coloridas, descritos também de forma breve, assim como no catálogo de 1985, mas com conexões que ampliam nosso olhar para outras possibilidades. Andrade alude, em cada objeto apresentado, à contextos históricos, sejam focados na África, através da identificação de uma determinada representação cultural étnica, ou do fazer do artífice afro-alagoano.[10] Andrade é enfático ao se posicionar sobre a origem dos objetos. Para ele, há indícios de que parte dos objetos ter sido fabricada em Alagoas.
De um orixá incerto, uma identidade possível
Dentre os mais de 215 objetos que compõem a Coleção Perseverança, encontramos a escultura fálica que foi catalogada e descrita nos documentos que consideramos oficiais e mencionados na seção anterior [Figura 4a, Figura 4b e Figura 4c].[11]
Sob um contexto analítico, processo que vem sendo desenvolvido em pesquisa doutoral em Artes Visuais no PPGAV-UFRGS, pelo autor deste artigo, encontramos divergências quanto à identidade da escultura, ou melhor, à identificação a que orixá ela se refere. Nesta perspectiva, nossa análise se constrói a partir dessa inquietação.
Pelo catálogo produzido por Duarte em 1974 tratar-se de um inventário e por não descrever a escultura, apenas mencioná-la como parte da coleção, optamos por construir nossa narrativa, a partir das ideias apresentadas por Lody no catálogo de 1985 e das descritas por Andrade, em seu livro de 2015. Portanto, nesta seção, apresentaremos o que cada um desses autores descreveu sobre a escultura fálica e, em seguida, pontuaremos e construiremos nossa análise, evidenciando qual seria a possível identidade, até então incerta, do orixá.
Em seu catálogo Coleção Perseverança: documento do Xangô alagoano, Lody descreve a escultura da seguinte maneira:
Escultura em
madeira de braços articulados apresentando vestígios de pintura. O
escurecimento da madeira deve-se ao depósito de sangue e azeite de dendê sobre
a peça (alimentação do santo). É uma figura feminina em posição de ato sexual
em nítida intenção de mostrar um falo que também funciona como haste da
escultura. Na cabeça percebe-se que existiu um machado de asas. Decisivamente é
um Oxê antropomórfico, exibindo fios de miçangas na
cor branco-leitosa, provavelmente relação de uma qualidade de Xangô com o orixá
Oxalá.[12]
Em parte, repetindo a afirmação de Lody, no livro Legba: a guerra contra o Xangô em 1912, Andrade[13] acrescenta que a escultura é também representação de Nanamburucu, mãe e símbolo de fertilidade,[14] e que a presença dos fios de miçangas brancas é a manifestação da associação das duas deusas-mães, Iemanjá e Nanã, ou apenas uma, com Oxalá.[15] Em seguida, Andrade ainda menciona que a escultura pode se tratar de uma representação de Ogum ou Oxum.
Diante das suposições de cada um dos autores, não podemos afirmar qual seria a verdadeira identidade do orixá. Percebemos que Lody[16] parte do pressuposto visual, na tentativa de relacionar determinado elemento, como o colar branco de miçanga, a um referido orixá - neste caso Xangô. Mas, as informações apresentadas por este autor nos indicam algo muito importante para construímos nossa análise: “É uma figura feminina em posição de ato sexual em nítida intenção de mostrar um falo que também funciona como haste da escultura”[17].
No mesmo direcionamento, Andrade[18] reafirma alguns elementos estéticos já apresentados por Lody e acrescenta outras possíveis conexões, referenciando a escultura com outros orixás, como Nanambucuru e Ogum, por exemplo. Análise esta consideramos equivocada, pois em nossa pesquisa, não encontramos características peculiares dos orixás citados na escultura fálica da Coleção Perseverança.
Ora, se diante de dois documentos oficiais, aparentemente respaldados por um mapeamento sucinto, em uma leitura rasa não podemos afirmar a que divindade a escultura fálica pertence, resta-nos, diante de tais incertezas, enveredarmos sobre o viés iconográfico, partindo das próprias observações de Lody e Andrade, e tentar responder a questão: qual será a identidade desse orixá incerto? Diante de tais evidências e da leitura de alguns elementos da escultura, bem como embasados em algumas teorias, acreditamos que a identidade da escultura fálica está relacionada com o orixá Exu, especificamente a Exu iorubá, Elegbará.
Segundo Valle,[19] o acesso à mitologia iorubá é em grande medida indireto. Ela se baseava na tradição oral e somente a partir do século XIX começou a ser compilada em forma escrita; na maioria das vezes, isso foi feito por europeus e americanos, não somente na África, mas também em locais afetados pela diáspora, como Brasil e Cuba.[20] O sociólogo Reginaldo Prandi publicou uma das maiores coletâneas de mitos sobre Exu até hoje reunida, que conta com apenas trinta itens. Nessa coletânea, alguns objetos são diretamente associados ao orixá, “o principal sendo seu ogó, um poderoso porrete usualmente de madeira e com duas cabaças,”[21] evocando a anatomia do pênis. Valle,[22] analisando Prandi, ainda acrescenta que nos mitos, outros atributos associados a Exu são: “o ecodidé, pena vermelha de papagaio, um símbolo de respeito que levou Olorum a promover Exu à posição de mensageiro e decano dos orixás;”[23] um boné pontudo, de um lado branco e do outro vermelho, com o qual Exu provoca a discórdia entre dois amigos; uma panela, que se transforma na cabeça (ori) de Exu; um gorro branco de babalaô, que Exu usa quando cura Olofim; uma faca, com a qual Exu fere a mão de todos os habitantes de uma cidade, a fim de ajudar seu amigo Orunmilá; além disso, inhame, uma cabra e cocos também aparecem associados a Exu.
No que diz respeito às esculturas relacionadas a Exu produzidas pelos iorubás, um bom ponto de partida, ainda segundo Valle,[24] continua sendo o estudo de Joan Wescott sobre as imagens relacionadas a Exu-Elegba.[25] Alguns atributos - como o porrete, as cabaças e a faca - são os mesmos referidos nos mitos sobre Exu, mas diversos outros aparecem nas esculturas, como búzios, moedas, espelhos, pentes, colheres, apitos e cachimbos. Todavia, o traço distintivo e mais proeminente das esculturas iorubá relacionadas a Exu é o seu penteado em forma de rabo de cavalo, que se projeta a partir do topo de sua cabeça e por vezes adquire a forma de um pênis. Wescott[26] oferece interpretações para esses atributos, justificando a maioria deles como símbolos das qualidades fálicas de Exú, de sua “energia instintiva, força masculina e potencialidade.”[27]
Para Verger,[28] Exu é um orixá de múltiplos e contraditórios aspectos, dificultando assim uma definição coerente. Como orixá, Exu veio ao mundo com um porrete fálico (ogò), tendo como propriedade a capacidade de transportá-lo a centenas de quilômetros e de atrair, por seu poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes.
Tendo como principal característica a desordem, Exu gosta de provocar acidentes, seja no campo público como no privado, desencadeando brigas ou mal-entendidos. É representado por um montículo de terra ou de laterita, espécie de pedra, que possuem vagamente a forma de um homem agachado. Os fon, um dos principais grupos étnicos e linguísticos da África, enfeitam-no com um falo de tamanho respeitável; devido a esta forma. inúmeros viajantes erroneamente o tomaram como deus da fecundidade e da copulação.
Na verdade, de acordo com Verger, o pênis ereto é a afirmação de seu caráter truculento, violento, desavergonhado e o desejo de chocar os bons costumes. “No entanto, caso se queira excitar Esu contra alguém, basta derramar em cima dele azeite-de-palmiste, citando o nome da pessoa a qual se quer enviar Esu.”[29] Durand salienta que o esquema do agachamento provocará todos os arquétipos do colo e da intimidade.[30]
Ao referenciar Exu, Carneiro[31] enfatiza que os deuses são representados por objetos inanimados e que, sob a influência do catolicismo popular, se vão fazendo representar pelas suas insígnias - por exemplo, Exu pelo seu ogò fálico, seu bastão [Figura 5][32] ou pelo seu pênis avantajado. Para Verger,[33] as estátuas de Exu Elegbará trazem as marcas dos debates eróticos e do exibicionismo, e são esculpidas voltadas para um espírito mais humorístico do que religioso:
Lẹgba é dos dois sexos, mas raramente pertence ao
feminino. Desse último vi poucos e são ainda mais horríveis que o masculino. Os
seios projetam-se como metade de salsichas alemãs e o resto guarda a mesma
proporção. Nesse ponto Lẹgba diferencia-se do
clássico Pã e do deus Lampsacan, mas a ideia
implicada é a mesma.[34]
Os arquétipos em Exu Elegbará trazem à tona uma nova forma de pensar o masculino e o feminino no candomblé. Segundo Venancio e Del Priore, as religiões africanas estão ligadas às dificuldades diárias, sobretudo quando se trata de aliviar sofrimento e de assegurar paz, prosperidade e fecundidade.[35] Divindades da natureza confundem-se, muitas vezes, com figuras humanas deificadas e muitas delas confundem-se em relação ao sexo, como é o caso de Exu Elegbará que, para Verger, como vimos, é “dos dois sexos.” Portanto, o masculino e o feminino, representado em Exu, revelam o mais íntimo dos pensamentos humanos. Ele é o equilíbrio e ao mesmo tempo o infinito, o seu elo é a busca de novas formas de compreensão da realidade social.
Cunha informa que existem dois tipos de representação plástica de Exu entre os nagô-iorubá.[36] Uma, como referido, organizou-se em torno de um monte de laterita ou lama escura. Tais montículos encontram-se nas cidades, no santuário principal de Exu e em cada mercado. Esses altares têm, por vezes, uma vaga configuração de rosto humano feito de cauris incrustados. Outro grupo de esculturas encontra-se sobretudo nas cidades nigeriana, onde sua divindade chama-se Exu-Elegbá ou Elegbará, orixá ligeiramente diferente do Legbá Daomeano. São, em geral, estatuetas de personagens masculinos e femininos, cujo traço mais característico é a cabeleira longa e recurvada para trás e sempre pintada de preto. A versão masculina porta, via de regra, algo recobrindo as partes sexuais; quanto à feminina, encontra-se em geral ritualmente despida. Enfim, há quantidade razoável de representações plásticas de Exu nas artes com características femininas.
Descrevendo uma cena do cotidiano comum na Cidade de Salvador, na Bahia, Martins relata as aventuras de uma iniciada de nome Domingas, na procura de um artesão para confeccionar uma representação escultórica de Exu.[37] Feita a encomenda, executado o trabalho, o resultado a satisfaz, conforme relata a autora. Segundo Martins, Domingas olhou a escultura de frente e não pode conter o riso de satisfação: “Está linda! Uma verdadeira Diaba. Uma Exu de saia.” Por baixo, um rabo enorme, retorcido salientemente na ponta. As orelhas tinham furos à espera de enfeite e, por ousadia, uma língua enorme esparramada de fora. Nesta oportunidade Exu, além de ser denominado de “diaba,” preserva sobretudo a sua qualidade fálica, simbolizada por uma língua enorme.
Nessa dimensão, e diante de tais argumentos, afirmamos que a posição em que se encontra a escultura da Coleção Perseverança, sentada e com as mãos sobre as pernas, é característica de Exu e não de Xangô, mencionado por Lody, ou a Ogum e Nanã, enfatizados por Andrade. Outro ponto é a presença do falo, que não encontramos em representações dos outros orixás mencionados pelos autores. O falo é elemento exclusivo de Exu. Os outros orixás citados possuem características e elementos que divergem da escultura fálica: Iemanjá, figura feminina, geralmente com mãos abertas segurando o abebé); Nanamburucu, figura feminina, nas mãos possui um ibiri; e Ogum, orixá masculino, que segura uma espada.
O colar, com contas brancas, também é outro elemento que segundo Lody e Andrade aproximaria a escultura a Xangô e Oxalá. Acreditamos que tal afirmação se deve à cor das contas, visto que esses orixás têm em sua composição o branco, enquanto Exu é geralmente representado pelas cores preta e vermelha. Poderemos pensar que, na situação em que os objetos foram saqueados, na noite de 1º de fevereiro de 1912, muitas dos elementos foram arrancados (em muitos dos objetos não existem elementos e muitos deles estão danificados) e, posteriormente, foram reconstruídos de uma outra forma.
Também nossa análise pode-se direcionar para uma tentativa de mascarar a figura de Exu, pois durante o período Republicano, os terreiros foram perseguidos, uma vez que julgava-se que apresentavam “certa ameaça” para à sociedade. Sendo assim, com a associação de Exu à figura do diabo, por parte do catolicismo, os artesãos viram-se obrigados a despistar a polícia descaracterizando a imagem do referido orixá. Neste sentido, o colar branco de miçangas estaria relacionado a Oxalá, ocultando, assim, a verdadeira identidade da escultura, pois esse orixá foi associado, num processo de sincretismo, a figura de Jesus Cristo.[38]
Lody e Andrade afirmam que, na parte superior da escultura [Figura 6], possivelmente encontrava-se um oxê, espécie de machado que é característico de Xangô. Mas, como trata-se apenas de uma hipótese, acreditamos não ser um tipo de oxê, mas de um chifre que é também associado à Exu, visto que este, segundo Thompson, “tem sido caracterizado por missionários e também por sarcedotes Iorubá, com mentalidade ocidental com à figura do diabo.”[39] Outra possibilidade é pensar que ao invés de um oxê ou chifre, o que estaria compondo na cabeça da escultura é uma faca, elemento característico do Exu Elegbara. “Quando o elemento em forma de faca emerge da cabeça de Elegbara, é um sinal de que a demonstração de seus poderes começou.”[40] Quanto aos olhos esbugalhados, Thompson[41] enfatiza que personificam o “poder-de-fazer-as-coisas acontecerem, uma dádiva que Exu recebeu do deus no céu.”
De uma possibilidade, os últimos fios
Os caminhos que trilhamos para traçar uma linha tênue, mesmo que breve, permite-nos enfatizar que, em meio às informações aparentemente contraditórias, podemos encontrar o ponto de partida para discorrer sobre a escultura fálica da Coleção Perseverança. Este ponto é sua própria estética, seus elementos.
Sem dúvidas, de posse de toda a argumentação, reafirmamos que, com a presença do falo, a incerteza sobre o furo na cabeça, a postura de sentar com as mãos sobre as pernas, os olhos arregalados, o colar branco e a figura feminina, a identidade do orixá, que no início desta narrativa era incerta, trata-se da representação de Exu, especificamente uma leitura das esculturas de Elegbará iorubás.
Sendo assim, a escrita deste artigo
é um passo importante para desvendarmos outras informações, confusas e
hipotéticas, sobre a estética da Coleção Perseverança. Percebemos que os
documentos, considerados oficiais pelo IHGAL, onde hoje se encontra a coleção,
não possibilitam com segurança uma descrição sobre as peças. Estas carecem de
uma análise de teor iconológico, respaldada numa comparação com a arte africana
produzida pelos principais grupos étnicos que foram levados para o Estado de
Alagoas. Contudo, aqui, registramos ser esta breve narrativa um gatilho para
uma nova interpretação sobre a história do “Quebra de Xangô,” a partir da
estética dos objetos da Perseverança. Algo aparentemente estranho para uma
história vista, muitas vezes, pelo viés político, mas que se contada a partir
de suas pistas e sua dimensão estética, muda toda a compreensão. A identidade
da escultura fálica, Exu, é um exemplo.
Referências bibliográficas
ACERVO do Brooklyn Museum. Bastão
de madeira para ritual de Exu. Nigéria, Século XIX. Disponível em: https://www.brooklynmuseum.org/opencollection/objects/12656 Acesso em: 8 ago. 2018.
ALMEIDA, Anderson Diego da. Narrativa imagética da Coleção Perseverança: um conceito de etnodesign. Maceió: Fapeal:
Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 20018.
ANDRADE, Fernando Antônio Gomes de. Legba: a guerra contra o xangô
em 1912. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2015.
CARNEIRO, Edison. Candomblé da Bahia. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
CRAVO Junior, Mario. Exu
para Jorge Amado, 1993. Disponível em: https://floresemcasa.blogspot.com/2011/07/exu-para-jorge-amado.html
Acesso em: 8 ago. 2018.
CUNHA, Mariano C. da. Arte Afro-Brasileira. In: ZANNINI,
Walter. História Geral da Arte. São Paulo: Inst. Moreira Sales, 1983.
DUARTE, Abelardo. Catálogo ilustrado da Coleção
Perseverança. Maceió: [s.n.], 1974. 35 p. Catálogo de exposição
permanente. 1974. Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas –
IHGAL.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do
imaginário: introdução à arquetipologia geral.
Hélder Godinho (Trad.). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LODY, Raul. Coleção Perseverança: um documento
de xangô alagoano. Maceió: Universidade Federal de Alagoas; Rio de Janeiro:
FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore, 1985.
MARTINS, Vera. Artistas do Sagrado. In: Revista da Bahia,
Salvador, 1984. v. 303, n. 14, set/nov.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
TENÓRIO, Douglas Apratto. Metamorfose
das Oligarquias. Maceió:
EDUFAL, 2009.
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e
afro-americana. Tuca Magalhães (Trad.). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
VALLE, Arthur. Um Mefistófeles afro-brasileiro?
Considerações sobre uma extinta imagem de “Exu” do Museu da Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI,
n. 1, jan.-jun. 2016. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/exu.htm
Acesso em: 10 ago. 2018.
VENANCIO, R. P.; DEL PRIORE, M. Ancestrais: uma
Introdução à História da África Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
VERGER, Pierre Fatumbi. Notas
sobre o Culto aos Orixás e Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na
Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1999.
WESCOTT, J. The Sculpture and Myths of Eshu-Elegba,
the Yoruba Trickster: Definition and Interpretation in Yoruba
Iconography. Africa: Journal of
the International African Institute, vol. 32, n. 4, oct., 1962, p.
336-354.
______________________________
[1] ALMEIDA, 2018.
[2] Outro nome
dado ao Quebra de Xangô (ALMEIDA, 2018).
[3] TENÓRIO, 2009.
[4] DUARTE, 1974.
[5] DUARTE, op.
cit.
[6] ALMEIDA, 2018,
p. 144.
[7] LODY, 1985.
[8] ANDRADE, 2015.
[9] Outro nome dado
ao Quebra de 1912 (ALMEIDA, 2018).
[12] LODY, 1985, p. 42.
[13] ANDRADE, 2015.
[14] “Artur Ramos preferiu a Anambucuru
e relatou que as deusas-mães nos chegaram ao Brasil por intermédio de Iemanjá.
Encontramos: Nana Boukou, Bluku,
Buluku, Buruku, Bruku, que é entidade africana andrógina, venerada na
Nigéria. Togo, Benim e Gana; mata a quem procura fazer o mal ao próximo,
determina a amputação dos ladrões; confere às mulheres fecundidade. É a
divindade maior da cidade de Abéokouta. Foi
introduzida no Daomé por meio da rainha Wandilé ou Hwangele que foi
esposa do rei do Daomé Akadjá
e mãe do rei Tegbésou. Ela implantou no Daomé os vodous mais importantes:
Agé, Ayido Wédo, Dan, Hévioso, Legba, Lisa, Mawou, Ogoun, Sakpata, Soo e Fá. Ela
também foi transformada em um voudou na cidade de Ouidah
ou Uidá, Ajudá, Whidah, Ouidá, Hweda” (ANDRADE, 2015, p. 150).
[15] ANDRADE, op. cit.,
p. 150.
[16] 1985.
[17] LODY, 1985, p. 42.
[18] 2015.
[19] 2016.
[20] PRANDI, 2001, p.
26.
[21] PRANDI, op. cit. p.
41.
[22] 2016.
[23] PRANDI, 2001, p.
42.
[24] 2016.
[25] WESCOTT, 1962.
[26] WESCOTT, op. cit.
p. 349.
[27] WESCOTT, 1962, p. 348.
[28] VERGER, 1999.
[29] VERGER, 1999, p. 129.
[30] DURAND, 2002.
[33] VERGER, 1999.
[34] VERGER, 1999, p. 134.
[35] VENANCIO, DEL PRIORE, 2004.
[36] CUNHA, 1983.
[37] MARTINS, 1984.
[38] VALLE, 2016.
[39] THOMPSON, 2011, p. 36.
[40] THOMPSON, op. cit. p. 45.
[41] THOMPSON, op. cit.
2011, p. 43.