A propaganda política de 1932, hoje

André Toral [1]

TORAL, André. A propaganda política de 1932, hoje. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI, n. 1, jan./jun. 2016. https://doi.org/10.52913/19e20.XI1.07

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1.      A memória de 1932 confunde-se com o espaço de mausoléus e túmulos dos mortos do conflito em cemitérios ou espaços públicos e com a rotina do cerimonial das celebrações oficiais no dia 9 de julho. A lembrança dos mortos ou da mobilização do período não produziu uma iconografia ou uma memória visual popular do movimento. Apesar da intensa utilização da propaganda política durante o conflito, a maior parte das imagens produzidas não voltou a ser exibida depois da derrota militar. Esse extenso material visual foi reunido em publicações utilizadas nesse trabalho (VILLA, 2008; MARTINS, 1954; DONATO, 1982; DE PAULO, 1999).

2.      Aqui, analiso desenhos e fotografias publicadas em jornais e cartazes e produzidas por desenhistas e fotógrafos a serviço do Movimento Constitucionalista, do jornal O Estado de São Paulo, Folha da Manhã e Diario Nacional, entre outros, ou envolvidos em campanhas cívicas como “Doe ouro para o bem de São Paulo”.

3.      Em boa parte, a construção de um sentido para o conflito deve-se ao sucesso dessa propaganda política onde a produção de imagens encontram-se inseridas. O público não especializado mesmo hoje em dia continua a entender o movimento como uma revolta do povo paulista contra a ditadura do Estado Novo, apesar de análises recentes de historiadores mostrarem que os eventos de 1932 foram expressão da vontade política de parcela dessa população paulista.

4.      Se compreendermos política como ação simbólica, como propõe o antropólogo Clifford Geertz (1980, 170), então a propaganda política, por operar basicamente por meio da manipulação de símbolos, constitui-se num tema privilegiado para a reconstituição do sistema de ideias e da cultura política da época. Esse artigo, em síntese, pretende abordar essas ideias, orientadoras dos interesses políticos envolvidos no movimento constitucionalista de 1932 por meio de algumas imagens muito conhecidas, produzidas  e utilizadas durante o conflito como forma de mobilização num autêntico esforço de guerra.

Imagem e propaganda

5.      Essa propaganda, utilizada pelos paulistas em 1932 e também pelo Estado Novo, não era um fenômeno único no seu tempo. Na década de 1930, com a crise dos governos que seguiam modelos liberais e o aparente sucesso dos regimes autoritários na Europa e na América do Sul, aparece a necessidade de estabelecer suas correspondentes políticas de massa e seus mecanismos de controle social (PAULO, 1994, 175). A análise da propaganda política, fenômeno da sociedade e da cultura de massas nas décadas de 1930 e 40, permite o estabelecimento da conexão entre política e cultura no Brasil (CAPELATO, 1998, 35) e em diversos outros países. A propaganda política do período utilizava-se, evidentemente, da maturação do desenvolvimento dos recursos técnicos de comunicação da época, como o rádio, jornais e impressos em geral. Era, enfim, como notou Walter Benjamin em 1936, o período do surgimento da nova obra de arte, tecnicamente produzida e destinada às massas.

6.      O surgimento do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, a presença de Josef Stalin na União Soviética, a vitória de Francisco Franco na Espanha e a implantação do "Estado Novo" em Portugal e no Brasil, iguais no nome e na matriz autoritária (PAULO, 1994, 176), criam as condições para o surgimento do realismo do entre-guerras, um estilo artístico adequado a governantes que tentam entrar em contato com a “alma do povo” utilizando-se, segundo define Clement Greenberg em 1939, o kitsch: uma arte de retaguarda, degradada, um expediente de regimes autoritários. No entre-guerra, constituem-se os aparelhos de propaganda oficiais nos países acima mencionados, destacando-se o Secretariado de Propaganda Nacional em Portugal, o Departamento de Imprensa e Propaganda no Brasil, o Reichsministerium für Volksanfkärung und Propaganda na Alemanha, e a produção do Istituto Nazionale Fascista di Cultura na Itália, entre outros.

7.      Em São Paulo, por sua vez e durante o movimento de 32, criou-se o “Serviço de Informações e propaganda da Revolução.” A análise que se segue esta baseada, portanto, em imagens consideradas ideologicamente apropriadas com uma estética em estreita ligação com o que se produzia em outros países, principalmente da Europa no mesmo período, na estética característica do Realismo do entre-guerras.

“Latifundiários em armas”

8.      O fim da Primeira República por meio da Revolução de 1930 tem sido explicado como uma reação das classes médias, ligadas ao mercado interno e representadas pelos "Tenentes" e pelo Exército, ao predomínio da oligarquia cafeeira voltada ao mercado externo. Esse modelo dualista, que opõe latifúndio vs burguesia, industrialização vs modelo agrário exportador e mercado interno vs mercado externo, tem sido revisto, questionando-se algumas dessas polaridades, bem como as premissas da chamada teoria do “dualismo” das sociedades dependentes latino-americanas (FAUSTO, 1997).

9.      Segundo outras abordagens, o processo histórico e a luta de classes no período de 1930 não se limitaram aos conflitos no seio da classe dominante, envolvendo apenas as elites regionais e o movimento Tenentista: procurou-se, por exemplo, ressaltar a importância da luta das oligarquias regionais, e da paulista em especial, contra a crescente mobilização operária (CAPELATO, 1981).

10.    De qualquer maneira, o estudo da Revolução de 1930 passa obrigatoriamente pela questão do Tenentismo e pela luta entre o poder central e os grupos e oligarquias regionais (FAUSTO, 2001). Nesse sentido, o chamado Movimento Constitucionalista de 1932, no qual o governo paulista exige a constitucionalização do país segundo o modelo das democracias liberais e a nomeação de um interventor civil e paulista para o Estado, articula as duas questões vistas acima, constituindo-se em período de interesse para o estudo da história republicana brasileira.

11.    A "revolução" paulista objetivava o “progresso” por meio da autonomia dos Estados brasileiros, reação ao centralismo adotado pós 30, e da imposição da "ordem", caracterizada, entre outras coisas, pelo aumento da repressão frente à crescente mobilização operária e pela luta anticomunista.

12.    Esse caráter de classe, digamos assim, do Movimento de 32 deve ser levado em consideração em um estudo das imagens do período. O aspecto propagandístico desse material se fazia numa linguagem naturalística, onde a imagem - seja ela pintura, charge, caricatura ou fotografia - estava a serviço das ideias que se deseja transmitir. Essa consideração é importante porque, além de explicar a ausência dos chamados Modernistas de 1922, conforme veremos adiante, estabelece um padrão de representação do real que fica entre uma concepção estética funcionalista e uma concepção naturalista. É bonito o que é útil ao movimento e é bonito aquilo que representa uma cópia fiel da realidade. Enquanto o meio artístico internacional reflete uma arte marcada pelo realismo e pela preocupação social (AMARAL, 2003), a propaganda política utilizava-se das idealizações acadêmicas, tão ao gosto de regimes imperiais e conservadores desde o início do século XIX, como mostram as alegorias de Oscar Pereira da Silva, por exemplo, sobre a campanha “Ouro para o bem de São Paulo”.

13.    Longe de ser característica apenas do Movimento de 32, a arte “retrô” da década de 1930 e a utilização de modelos “realistas” ou neoclássicos é comum ao vocabulário propagandístico da dita direita política - caso do fascismo e nacional-socialismo na Itália e Alemanha - e também da esquerda - caso da URSS, onde se decretou o final do abstracionismo e do suprematismo e o início do realismo socialista, uma arte mais adequada à “revolução”. É o retorno do figurativismo, da arte baseada na palavra de ordem, do texto, da concepção de arte como ilustração.

14.    A localização política à direita dos autores da iconografia de 1932 pode ser exemplificada pelo caso do oficial da Força Pública Antonio Feijó, o único artista a fazer in loco um registro do desenvolvimento da campanha militar. Ele afirma em suas memórias que o Movimento de 32 se fazia na defesa do legalismo e constitucionalismo, não admitindo “a derrocada de nossa terra pela loucura do comunismo” (BORGES, 1997, 176).

15.    Esse espírito pouco divulgado do Movimento de 32 - a saber, seu anticomunismo - explica as reservas de muitos intelectuais paulistas quanto ao apoio ao movimento. Especificamente os chamados Modernistas mantêm-se à margem do movimento, excetuando-se os poetas Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. Esse distanciamento se explica, em parte, pelo caráter de classe do movimento, quando boa parte desses intelectuais era de esquerda. Como lembra o pesquisador paulista Martin César Feijó, o escritor Oswald de Andrade, que foi atacado pelos estudantes da Faculdade de Direito, a vanguarda do movimento constitucionalista, dedicar-lhe-ia um retrato cáustico em seu livro A revolução melancólica, onde um capítulo leva o título de “Latifundiários em armas” (FEIJÓ, 1998).

16.    O caráter anticomunista do movimento transparece também na prisão, em 1932, da pintora Tarsila do Amaral, então casada com o comunista Osório César, juntamente com outras intelectuais, e Mary Pedrosa, esposa de Mário Pedrosa (AMARAL, 2003, 372). A detenção de Tarsila por um mês no Presídio do Paraíso se explicava tanto por sua recente visita à URSS, quanto pela sua presença em reuniões de esquerda (AMARAL, 2003, 371).

Arte para os filhos de Piratininga

17.    Da extensa iconografia do Movimento Constitucionalista Paulista, selecionei algumas imagens para análise. Todas elas foram extraídas de publicações dedicadas ao movimento e feitas, portanto, desde um ponto de vista “constitucionalista” (MARTINS, 1954; DE PAULA, 1994; DONATO, 1982). A primeira, Álbum de Família, é dedicada, no momento do IV Centenário de S. Paulo, à família “bandeirante” e “aos filhos de Piratininga”.

18.    A primeira imagem que desejo destacar é a de um “Batalhão Índio” formado por índios Kaingang, “voluntários [...] da região Noroeste e alta Sorocabana de São Paulo” [Figura 1]. Empregados “em tarefas auxiliares,” sua participação seria uma tentativa de “demonstrar a integração nacional no movimento” (DE PAULA, 1994, 169). Difícil supor sentimentos patrióticos e/ou conhecimento dos ideais constitucionalistas por parte desse grupo indígena com domínio parcial do idioma português e violentamente expropriado de suas terras, pela introdução do café e pela passagem da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil no início do século XX. O grupo sofreu a ação nefasta de “bugreiros,” que perpetraram massacres em massa por meio de “batidas” em diversas aldeias entre 1908 e 1910 (RIBEIRO, 1977). A instalação do Serviço de Proteção aos Índios entre os Kaingang, cerca de uma década mais tarde, foi marcada pelo rigoroso combate à cultura indígena e seu modo de ser, associados ao atraso, e pela tentativa humanitária, porém equivocada, de colocar o índio no caminho do “progresso,” compreendido em termos evolucionistas. Os custos humanos e culturais dessa tentativa de ”integração” à força junto à comunidade brasileira foram imensos. Um grande esforço de imaginação é necessário para se pensar que alguns índios dessa tribo tenham se apresentado como “voluntários” para lutar a guerra de seus patrões e conquistadores apenas alguns anos após seu trágico contato com os neo-brasileiros.

19.    A segunda imagem é o desenho de autoria anônima de um bandeirante se dirigindo aos seus colegas de trincheira em meio à luta: “Sustentae o fogo que a victória é nossa” [Figura 2]. O espectador é colocado ao lado e sob as ordens do velho paulista. “Nós,” paulistas, somos os seus soldados. A utilização de símbolos poderosos do imaginário paulista, como a figura dos bandeirantes, mostra a intenção do “Serviço de Informações e Propaganda da Revolução” em utilizar esses personagens, de triste memória entre negros e índios que tiveram suas vidas arruinadas por sua intervenção, como líderes da libertação de toda a população. A pergunta que se faz é: seriam esses os verdadeiros líderes de todos os paulistas ou apenas de parte deles?

20.    A terceira imagem é a foto de um grupo de homens de terno e colete, com bandeira paulista desfraldada, que marcha à frente de uma passeata [Figura 3]. A legenda diz: “A multidão empolgada, vibrante de patriotismo desfila pelas ruas da cidade” (MARTINS, 1954, n/p). Apesar da legenda destacar a participação de uma “ multidão,” o que se vê é um grupo de homens brancos, bem vestidos, de classe média ou classe média alta, atravessando uma rua do centro velho de São Paulo. Já a quarta imagem, outra foto, mostra, sob as arcadas da Faculdade de Direito de São Francisco, um grupo de homens - possivelmente estudantes -, todos de chapéu, terno ou paletó posam para o fotógrafo junto à bandeira paulista [Figura 4]. A legenda diz: “A esse chamado respondem também voluntários de todas as classes sociais, empolgados pelo movimento”.

21.    Essas duas fotos, entre muitas outras do mesmo gênero, foram selecionadas por sua tentativa de passar uma imagem de um movimento popular quando nas fotos só aparecem representantes da classe média ou classe média alta paulistana. É como se a legenda das fotos e o que a foto mostra estivessem em franca contradição. O que desejo frisar, porém, não é essa contradição evidente, mas o desejo manifestado por parte da imprensa e do “Serviço de Informações e Propaganda da Revolução” em promover o caráter de participação de todas as classes sociais no movimento.

22.    A quinta imagem, publicada na Folha da Manhã e utilizada na campanha “Ouro para o bem de São Paulo [Figura 5], é um desenho de Benedito Bastos Barreto, o Belmonte - conhecido jornalista, desenhista de humor e ilustrador paulistano. Mostra representantes de todas as classes sociais, sexo e idade doando ouro para financiar o conflito. Lá esta o menino doando uma moedinha; a elegante mulher que tira o brinco; o burguês que tira o prendedor de gravata; e uma senhora que traz um jarro de ouro. Chamo a atenção para um negro idoso, à esquerda, que deposita uma doação na bandeja cheia de joias encimada por uma cruz: seu terno puído ostenta um broche com as cores paulistas, seu cabelo branco e sua situação modesta pretendem mostrar a dignidade dos mais pobres e o envolvimento do proletariado com o movimento. A presença do negro aparece como uma tentativa de se fazer arte com doutrina, emprestando um caráter de alegoria àquilo que pretendia ser uma representação realista. Inadvertidamente, assim como os outros trabalhos examinados, querendo mostrar uma coisa, as imagens acabam por mostrar outra: procurando enfatizar seu caráter popular, é a expressão de classe dessas imagens que fica evidente. As imagens, entre as quais o desenho se inclui, são tão favoráveis ao movimento, as intenções do desenhista e do jornal tão óbvias, que adquirem uma nota de farsa.

Considerações finais

23.    O material fotográfico e os desenhos da chamada “Revolução” dão uma ideia equivocada do Movimento de 32. Como diz o historiador da fotografia Pedro Vasquez, as imagens nos dão a falsa impressão de que “tudo não passou de uma gincana política, promovida por animados paulistanos com o fito de obter a Constituição” (VASQUEZ, 1982: 7).

24.    Essa ideias que perdura é fruto do sucesso dos dirigentes paulistas em selecionarem apenas o material que interessava ao movimento constitucionalista. São essas as imagens que perduram e que vemos até hoje, em sucessivas reimpressões de material fac-símile. Onde estão as imagens das deserções em massa depois dos primeiros sucessos das tropas federais? Onde estão as fotos dos corpos dos mais de 900 mortos e das famílias desamparadas? Onde estão as fotos das praças vazias? Essas cenas não aparecem em parte alguma. Não existe uma "interpretação crítica" (CAPELATO, 1981: 8) desse extenso material iconográfico. Perdura, sim, o culto ao que se pretende ser as “imagens de 32”. Um rápido exame de algumas dessas imagens mostra o quanto elas são verdades parciais.

25.    A atualidade e a constante reutilização dessas imagens depois de mais de 80 anos do conflito pela imprensa e em obras acadêmicas recentes (DE PAULA, 1999), mostra o sucesso espantoso do “Serviço de Informações e Propaganda da Revolução,” bem como a necessidade de rever alguns de seus postulados. Aliás, sob essa perspectiva de “manipulação de massas” por meio de fotografias, Vasquez traça um paralelo, “isento de quaisquer conotações políticas [sic]”, entre as fotos de crianças paulistas de 32, travestidas de soldados junto a canhões em miniaturas, chupando o dedo sob a legenda “se preciso também iremos,” e fotos de colegiais berlinenses cantando o hino nacional alemão na década de 1930 (VASQUEZ, 1982: 10).

26.    Para concluir, pretendi mostrar, por meio de um rápido exame de alguns casos, que aquilo que conhecemos como as “imagens de 32” são, na verdade, imagens construídas e utilizadas para estender à totalidade da população do Estado de São Paulo um projeto político que, na verdade, se limitava a apenas alguns setores de classe média e de elites ligadas ao café no seu enfrentamento com o governo federal. Seu sucesso enquanto representação daquilo que deveria ser o caráter do movimento, amplo e democrático, paradoxalmente, não conseguiu aproximar a memória de 1932 da população. As imagens do Movimento Constitucionalista continuam limitadas ao espaço da academia, aos mausoléus e túmulos e celebrações oficiais do dia 9 de julho...

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[1] Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Imagens em desordem: a iconografia da guerra do Paraguai (Humanitas-FFLCH/USP, 2001). Professor na Faculdade de Comunicações da Fundação Armando Álvares Penteado (S. Paulo) e no Instituto de Artes da UNESP na Barra Funda (São Paulo).