A estrutura da recordação: a tradição visual Kongo no Novo Mundo *
Robert Farris Thompson **
THOMPSON,
Robert Farris. A
estrutura da recordação: a tradição visual Kongo no Novo Mundo. 19&20, Rio de Janeiro,
v. XV, n. 2, jul.-dez. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.xv2.01
*
* *
O Espírito
Santo do Kongo me assombra.
-
Larry Neal, Hoodoo Hollerin’ Bebop Ghosts
[...] Still, alone, but with more vitality, the
taste of things remains poised a long time, like souls, ready to remind us,
waiting for their moment, amid the ruins of all the rest; and bear unfaltering,
in the tiny and almost impalpable drop of the essence, the vast structure of
recollection.
- Marcel Proust, Swann' Way
1. A celebração de Proust do drama da
memória mostrou que lembranças poderosas, por mais condensadas que sejam, podem
conferir força e significado à vida. A verdade expressa por Proust é paralela à
imagem de negros que restabelecem valor e aspiração pessoais com base em
aspectos fundamentais da cultura Kongo, apreendida como recordações em certas
cidades das Américas. Sobre “as ruínas de tudo o mais," os negros também
sustentam - nas pulsações produzidas em um ngoma [[tambor]]; na dança,
ao ficarem em pé com a mão esquerda no quadril e a direita estendida; ou ao
colocarem terra de cemitério em amuletos para a captura de espíritos - vastas
estruturas de recordações.
2. O gênio Kongo para capturar e exaltar
os espíritos nunca se perdeu no Baixo Zaire [[atual Congo Central, uma das
províncias da República Democrática do Congo]], nem nas plantations das
Américas. No Kongo atual, artesãos habilidosos modelam edifícios de concreto
para os mortos nos quais os ícones do passado retomam seu lugar na consciência
moderna. Nossa consideração desses edifícios, nos parágrafos iniciais deste
texto, nos prepara para o surgimento paralelo de antigos conceitos Kongo em
obras de arte ou arquitetura totalmente modernas, em regiões muito além dos
mares que são tocados pelo pensamento Kongo.
3. Um breve exame do comércio atlântico
revela a chegada de milhares de Bakongo e de seus vizinhos, como cativos, ao
Hemisfério Ocidental. Lá, suas imagens e aspirações foram lembradas e não
morreram. Essas recordações ganharam nova vida misturando-se com preceitos e
formulações similares oriundas de Angola, de Kwango. e do território
imediatamente ao norte do Kongo. Além disso, elas se misturaram com outras
forças: espanholas. inglesas, portuguesas ou francesas. Nesse processo, a
etnicidade Kongo se tornou uma influência cultural estratégica no Novo Mundo.
4.Comecemos, então, pelo exame dos
principais motivos de retidão e aspiração espirituais Kongo, como aspectos de
uma tradição clássica paralela no mundo atlântico.
Arte Kongo no Baixo Zaire moderno
5. No verão de 1980, Fu-Kiau analisou
duas fotografias de modernos mintadi [[sing. ntandi, esculturas
tumulares]] [Figura 1 e Figura 2]. Ele as analisou em absoluto silêncio.
Então falou: dianzenza beni! (muito estranho!). Não é difícil entender
por que ele disse isso. Pois estes são mintadi que fazem afirmações
culturalmente irreconhecíveis. Eles não se levantam e fazem uma pose de
desafio, com as mãos nos quadris. Eles não se ajoelham e estendem suas duas
palmas abertas. Eles não se sentam com as pernas cruzadas, sustentando a cabeça
e pensando no destino. Em vez disso, eles songa[1] (mostram, indicam, manifestam, exibem) tabuletas, nas
quais suas datas de morte e nomes seriam pintados ou gravados.
No primeiro exemplo [Figura 1], um personagem vestido de modo
tradicional e nobre exibe essa mensagem concisa e lúgubre:
6. Malaza 25
1921
No dia 25 de março de 1921
7. Kafua
morreu ali
8. Daniel
Daniel
9. Zamuna
Zamuna
10. No outro exemplo [Figura 2], um homem de bigode, usando um fez,
paletó, calça e sapatos, exibe uma tabuleta da qual seu nome e data da morte,
presumivelmente pintados, desapareceram. Esta figura pertence essencialmente ao
mundo moderno. Ambos os monumentos são lápides mintadi, fusões de dois
mundos.
11. Nas primeiras décadas do século XX,
enquanto tais fusões de mundos aconteciam na confecção de esculturas funerárias
em pedra, mintadi e bitumba [[sing. tumba]] à moda
clássica eram por vezes adicionados à decoração de uma nova forma de túmulo,
construída em concreto e pintada com cores brilhantes, que então surgia nos
vilarejos do Baixo Zaire.
12. Lançando mão de uma espécie de
cálculo cultural, é possível sugerir que as décadas de 1920 e 1930 marcaram o
início do modo de construção de túmulos Kongo que empregava o concreto. Em uma
conversa privada, Wyatt MacGaffey apontou que essas foram as décadas em que o
concreto se tornou um material amplamente utilizado para a construção de casas
no Baixo Zaire.[2] Em outras
palavras, o que conferia graça e permanência às casas dos vivos foi
inevitavelmente espelhado na confecção de casas para os mortos. No processo,
autênticos mintadi por vezes foram incorporados no concreto ainda úmido,
para decorar túmulos de importância perene.
13. Albert Maesen fotografou um exemplo
disso, em Palabala, perto de Matadi [Figura 3].[3]
Uma bela imagem de uma mãe que embala seu filho foi incorporada diretamente na
estrutura do novo estilo do monumento funerário. A figura se senta na posição funda
nkata (com as pernas cruzadas), sobre uma espécie de plataforma, conferindo
autoridade a esse canto do monumento.
14. A arte Kongo em concreto, na qual
este avatar do passado clássico foi memoravelmente ancorado, está conectada a
uma importante cerimônia chamada matanga. Trata-se de um contexto em que
se sacrificam animais caros - porcos e vacas - e se reúnem grandes multidões. É
também o momento em que túmulos de concreto são consagrados e pintados. Segundo
John Janzen,
15. O terceiro ritual funerário de
importância, matanga, acontece em uma data não especificada, algumas
vezes muitos anos depois [da morte de uma pessoa], na forma de um
banquete em homenagem aos antepassados da comunidade. Em certa
medida, corresponde a matondo, o histórico banquete de ação de graças.
Nos tempos contemporâneos, matanga tornou-se a ocasião para a
consagração dos túmulos de pessoas da linhagem materna recentemente falecidas.
16. Antigamente, havia um
considerável e ostensivo enterro de posses da linhagem junto com o cadáver.
Ainda hoje é esse o caso, mas túmulos de cimento, azulejo e outros enfeites
quase permanentes são recentes em Manianga. Muitas linhagens dependem de seus
membros assalariados para suprir as despesas que invariavelmente são
necessárias para a construção de um túmulo adequado, com os requisitos
estilísticos do gênero - e trata-se de um gênero de arte, talvez o mais
desenvolvido de todas as artes Kongo no momento (1967).[4]
17. Essas casas para os espíritos
representam não apenas uma das formas de arte Kongo mais importantes deste
século, mas também, sem sombra dúvida, uma maravilhosa síntese da coluna de
terracota Kongo, da figuração em pedra e da imagem-medicina. Em 1949, Lucien
Cahen, ex-diretor do Museu de Tervüren, fotografou um esplêndido exemplo dessa
nova tradição, localizado a “dois quilômetros antes de Seke Banza,” ao norte do
rio Zaire, em território Yombe [Figura 4].[5]
Em um único programa expressivo, este túmulo une as dimensões figurativa e
ideográfica da tradição visual Kongo. Na parte inferior, aparece uma estrutura
de quatro camadas. Estatuetas de concreto estão de pé ou se ajoelham nesses
níveis, sendo algumas virtuais “fugitivas” do mundo das esculturas bitumba
e mintadi, mas executadas com o novo material. Há duas mães com seus
filhos; há um alfaiate com sua máquina de costura; um gendarme com uma
espingarda; um homem que gesticula, trajando um esplêndido terno ocidental com
casaco e gravata;[6] e uma pessoa
trabalhando no fole tradicional de um ferreiro.
18. Em circunstâncias muito veneráveis,
os túmulos antigos eram às vezes marcados com um único ícone esculpido em
pedra, o ntadi, além de cerâmica e faiança. Neste novo contexto, o
desembolso de dinheiro coletado entre membros generosos do clã com empregos
remunerados em Kinshasa, Boma e em outros lugares do Zaire moderno permite que
formas mais expansivas de comemoração surjam, povoadas de figurações que
sugerem a unidade do clã. Aqui, a reunião das estatuetas também sugere uma
oração: “Que os talentos dos mortos, na liderança, na criação de filhos, na
confecção de roupas, na manutenção da lei e da ordem, na elaboração de
apreciáveis objetos em ferro - que todos esses talentos
permaneçam conosco.”
19. No centro, ao fundo, ergue-se uma bibanga
[[casa de dois andares]] esplendidamente miniaturizada, com paredes abertas
exibindo desenhos vazados. Variações do signo do cosmograma Kongo - motivos
parecidos com os de um cata-ventos - marcam os momentos do sol, desde seu
nascimento e o meio-dia até Mpemba [[o mundo de argila branca dos
mortos]] e retornam. A torre como que flutua sobre as figuras, tal qual uma
bandeira quadrangular do espírito.
20. Os túmulos de concreto de Yombe são
obras-primas de alusão cultural, percussivamente vazadas por aberturas
simbólicas, imitando elementos arquitetônicos - como colunas de terracota (maboondo
[[sing. diboondo]]) - e enaltecidas por emblemas mediadores, como
exemplares de niombo [[imagens feitas de tecido, usadas para transportar
os restos mortais de pessoas importantes deste mundo para o outro]].
21. Vamos examinar três exemplos. O
primeiro é datado de 2 de setembro de 1948 e foi fotografado em um cemitério
perto da vila de Kay Mbungu [Figura 5]. Os padrões florais curvilíneos e os
pontilhados se chocam com repetições fortemente geométricas de signos
triangulares. O campo inferior da decoração é vazado por duas janelas
goticizantes (neela). É dito que: "Os triângulos pintados apontam
para cima, para a vida, enquanto os triângulos brancos apontam para baixo, para
a morte. O branco representa 'os brancos' - i. e., os mortos -, indica o outro
mundo que transforma o nosso.”[7]
Essa oposição cintilante questiona, por suas iterações vitais, as aberturas
sombrias que se comunicam com a morte, demandando que se admita o triunfo do
espírito para além dos vazios ali delineados.
22. A mesma dialética - coisas iminentes
percebidas nas coisas imediatas - anima a estrutura e decoração de outro túmulo.
Este exemplo em particular foi fotografado na década de 1940, perto da
importante cidade administrativa de Tshela, no norte de Yombe [Figura 6].[8] É uma estrutura coberta com palha, traspassada por
aberturas retangulares, semicirculares e em forma de diamante, que se abrem
para o espaço onde repousa o morto. Os homens que decoraram este túmulo
pintaram pequenas cruzes em forma de suástica ao longo do registro superior
direito: "Em cada nível dessas cruzes há uma roda, simbolizando os
estágios pelos quais o homem viaja nesta vida.'' Há um elaborado padrão
cruciforme na parede da extrema esquerda: “Ele é muito complexo porque o morto
se torna mais poderoso a medida em que se move pelo mundo além da linha Kalunga.
Ele é muito, muito poderoso. Ele pode nos ver.” Há tênues silhuetas no canto
inferior direito, que sugerem homens em pé com as mãos nos quadris (pose pakalala).
Eles simbolizam a prontidão do homem invisível presente dentro do monumento:
“Seu semblante ainda está vivo na comunidade: ele ainda é capaz de nos ensinar
o que precisamos saber.”[9]
23. Há espelhos embutidos na parede
central deste túmulo; na fotografia, um deles capta a luz exterior. A
incorporação de espelhos nas paredes dos túmulos lembra os espelhos embutidos
no ventre dos minkisi [[sing. nkisi]] da escultura clássica
Kongo. Este símbolo da visão através dos mundos contribui para a definição do
monumento de concreto como um importante instrumento de mediação. Mas ele é
também um tipo de elogio por alusão visual, uma definição da pessoa ali enterrada
como um nkambakani (uma força mediadora): “Ele foi exemplar e através de
sua vida, como através de um espelho, podemos ver o que éramos e o que nos
tornaremos."[10]
24. Portanto, cada parte da decoração se
torna um estratagema para visualizar e compreender as coisas através das linhas
que separam os vivos dos mortos. Quanto mais os edifícios adquirem qualidades
ocidentais em seus contornos e coberturas, mais persistentemente os objetivos e
as ilustrações se afirmam. Essa noção é reiterada até em termos do que parece
ser um objeto extremamente ocidentalizado, uma máquina de costura (mashini
mantungila) de esteatita [Figura 7]. Este interessante objeto foi
encontrado na casa de um alfaiate em Lenge, uma vila Mboma no norte de Angola.[11] Existe uma presença notável
incorporada nessa cópia direta da estrutura de uma máquina.
25. Um ntadi na forma de uma
máquina de costura seria um memorial apropriado para o túmulo do alfaiate para
o qual ele foi adquirido. Nesse contexto, também teria indicado, em uma
mensagem aos mortos, a presença de novas técnicas: “Novas técnicas (makani
mampa) invadiram a terra - é assim que estamos vivendo agora."[12] Obviamente,
a makani mampa esteticamente mais impressionante do Baixo Zaire é a
própria tradição do túmulo de concreto, da qual daremos um último exemplo.
26. Em 1949, Cahen fotografou uma
estrutura funerária extraordinária no quilômetro 6 na estrada Seke Banza, perto
de Kibusu [Figura 8].[13] O túmulo é datada de 26 de outubro de 1926. A ambiência
de floresta circundante, a complexidade e as afirmações espelhadas dessa
estrutura lembram Angor Wat. E, no entanto, esse monumento caberia em uma única
grande sala ocidental. Ele assinala claramente o túmulo de uma pessoa muito
importante (nzo a nkisi wa mun tu wanene). Seu criador fala em uma
linguagem totalmente escultural, com um refinado senso de modelado da
substância e do vazio, criando o que poderia ser qualificado como um
espelhamento de formas significantes, muitas vezes duplicando imagens para
simbolizar a divisão estrutural entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
27. Representações emparelhadas de cactos (euphorbia)
guardam a entrada do túmulo. A espécie precisa é chamada diiza em
quicongo. Ela é plantada em sepulturas como proteção contra bruxaria e raios.
Também é extremamente tóxica e uma das suas duas espécies, diiza kyansende,
é empregada para envenenar as pontas das lanças.[14] Pode-se bem imaginar o porquê desse ícone de
persistência e poder protetor figurar nesse contexto funerário
28. Atrás dos cactos aparecem duas
rodas, uma representando o mundo dos mortos, a outra o dos vivos: “É um
ensinamento (longi) para as pessoas deste mundo de que os mortos não se
foram para sempre, de que eles vivem e estão em comunicação conosco dentro da
roda do cosmos (lulu a nza).”[15]
29. Acima das rodas, dois répteis se
enfrentam. São lagartos gigantes (mbambi a nkakala), varanos-do-Nilo. Os
Bakongo tradicionais sustentam que os varanos levam uma vida muito secreta: “É
muito difícil ver esses lagartos, pois eles raramente saem à luz.” Os lagartos
que se confrontam sugerem, portanto, qualidades raras de grandeza e realização
que são lembradas neste mundo ao se restabelecerem no outro.[16] Há um zig-zag ornamental embaixo dos mbambi,
representando um “friso” tradicional de folhas trançadas (makaya).
30. Um sino gigante domina o centro do
monumento. Em sua forma, ele lembra os sinos das igrejas ocidentais (ngunga)
que, segundo uma famosa etimologia popular, são supostamente citados em um dos
nomes de Mbanza Kongo: “Kongo dos Sinos” (Kongo dia ngunga - na verdade,
como MacGaffey nos informa, essa última frase tem a ver com mwanzi wa ngunga,
que significa “Kongo original”). Este instrumento é ladeado por dois sinos
menores, um para cada mundo, que denotam “um apelo à comunidade para perpetuar
a unidade de mundos, encarnada na forma dos sinos duplos.”
31. Muitas vezes, a morte de uma pessoa
importante ocasiona uma divisão dentro da comunidade. O coroamento de sinos
milita contra essa possibilidade: "Eu sou o sino que soa dentro da cidade.
Eu apelo pela unidade. Vocês precisam permanecer unidos, assim como eu
permaneço aqui, para sempre vinculado a vocês".[17]
32. Portanto, dos lendários primeiros
túmulos de Mbanza Kongo ao monumento perto de Kibusu, a arte funerária Kongo
apresenta um grandioso e rico panorama de pensamentos e aspirações. Ela faz
parte de uma tradição clássica imperecível.
O comércio de escravizados Kongo e a
ascensão da arte e cultura Kongo-americanas
33. A mesma tradição clássica discutida
acima uniu não apenas quatrocentos anos de existência documentada nos escritos
de exploradores e centenas de quilômetros de expansão em todo o território dos
Bakongo e de seus vizinhos, mas também se estendeu ao Novo Mundo. Ali, a
influência Kongo contribuiu para o surgimento da música nacional do Brasil - o samba
-, da dança fundamental de Cuba - a rumba -, e da música popular
estadunidense mais sofisticada e importante - o jazz. Todos os três
termos derivam de palavras em quicongo, uma indicação direta da importância da
influência Kongo na formação de algumas das mais importantes realizações
culturais dos negros no Hemisfério Ocidental.[18]
34. Philip Curtin, um dos principais
estudiosos do comércio de escravizados, nos adverte sobre algumas das
complexidades inerentes ao rastreamento de influências levadas da África
Central para o Hemisfério Ocidental:
35. Ao sul do Cabo Lopez, termos que
designam "nacionalidades" são [...] usados de modo impreciso.
"Congo," que realmente significava Bakongo no início do século XVI,
agora [durante o comércio francês do século XVIII] havia se generalizado
para qualquer povo de língua Bantu da África Central ocidental. Do mesmo modo,
o “Mondongue” das listas não é equivalente à Mondonga dos dias atuais: na
melhor das hipóteses, significava que o escravo em questão vinha do interior, mais
ou menos ao norte e leste da foz do Congo - assim como “Angola” se referia de
modo igualmente vago à região ao sul e leste do Congo.[19]
36. No século XIX, houve outra mudança
terminológica na escravidão oriunda de Kongo e Angola: “O termo “Angola” nas
tabelas [[de escravizados]] anteriores pode agora ser dividido em dois - ‘Norte
do Congo,’ incluindo pontos costeiros do Cabo Lopez em direção ao sul, até - e
incluindo - a foz do rio Congo; e ‘Angola,’ termo agora usado pra designar
Angola de modo apropriado, i. e., a região ao sul de Ambriz até Benguela.”[20]
37. Curtin também demonstra uma mudança
para o termo "Norte do Congo" no tráfico escravista brasileiro
durante o século XIX. Há boas razões para acreditar que essa mesma mudança
também ocorreu em Cuba, com base nos nomes oriundos do “Norte do Congo” entre
as sociedades de assistência mútua negras que emergem em Cuba no século XIX.
38. No contexto de tais evidências, é
essencial que dediquemos alguns parágrafos à origem dos escravizados, para não
assumirmos que o impacto Kongo veio de apenas uma sociedade - digamos, os
Mboma, ou os Yombe. A realidade é bem mais complexa. O que parece ter
acontecido é que uma mistura da cultura Kongo com outras a ela relacionadas foi
reunida no Novo Mundo, onde se reforçaram os traços culturais Bantu
compartilhados mais salientes e importantes, resultando em uma fusão na qual a
memória, a grandeza e o próprio nome Kongo foram mantidos.
39. A Voyage de la côte occidentale
d'Afrique fait dans les annees 1786 et 1787 de Louis Degrandpré inclui um
resumo do tráfego negreiro Kongo, tal como ele era pouco antes da Revolução Francesa.
Ali o comércio de escravizados concentrava-se essencialmente nas costas de
Loango, Kongo e Angola, sendo especialmente ativos os portos do norte de
Loango, Malemba e Cabinda. Escravizados "Congue'' (Bakongo) passavam por
Malemba; Loango comercializava escravizados Yombe, Teke e "Quibangue"
(Mbamba Kongo?); e por Cabinda passavam os "Congue,''
"Mondongue" e "Sogne" (Bakongo, pessoas trazidas rio acima
de Kongo, e membros do grupo Sogno Kongo?). Finalmente, Degrandpré observa que
"esses são os nomes das pessoas que fornecem os escravos ou pelas quais
eles passam e, assim, das quais mantêm a denominação.''[21]
40. Agora, vejamos uma lista parcial das
origens de escravizados levados para o Haiti no século XVIII:[22]
41. Mayombe
42. Mousombes
43. Mondongue
44. Congos
45. Comentando o grande número de
pessoas oriundas do Kongo, Jean Price-Mars, o falecido e grande decano dos
estudos afro-haitianos, observou: "Saint-Mery, historiador de
Sainte-Domingue, testemunhou formalmente o fato de que a maioria dos escravos
da colônia [que se tornou o Haiti] veio do Kongo."[23]
46. E comparemos com Nova Orleans, a
partir do famoso ensaio The Dance in Place Congo, de George W. Cable:
47. uma praça pública logo atrás desenha um
gracioso dossel de galhos de carvalho e sicômoro. Esse é o lugar... esta é a Congo
Square [[Praça Congo]] [Figura 9]. Veja-os vir! [...] homens e
mulheres de toda a grande costa do Congo - Angola, Malimbe [provavelmente
Malemba], Ambrice [Ambriz] [...] é em função deles que a dança e o lugar
foram batizados, eles constituem o grupo mais numeroso de negros nas colônias,
os Congo e os Franco-Congo.[24]
48. Portanto, Nova Orleans, cidade do
nascimento do jazz, possuía um elemento Kongo forte e predominante,
decorrente do comércio de escravizados. Não é por acaso que um dos poucos
documentos estadunidenses que atestam a referida pose sentada da funda nkata
provém da Congo Square. Naquele local culturalmente legendário, onde
jovens atletas de Nova Orleans jogavam uma forma cognata de lacrosse com
ameríndios, o ndungu - tambor Kongo muito longo e sonoro - era tocado.[25] As tremendas energias criativas
liberadas quando as tradições Kongo foram combinadas em Nova Orleans com as das
igualmente sofisticadas civilizações tradicionais do Mali, Nigéria e Camarões,
devem ter sido surpreendentes. E isso sequer dá conta do resultado
final: a mistura de todas essas culturas com a igualmente complexa fusão
de músicas - francesa, espanhola e inglesa - naquela cidade culturalmente
estratégica.
49. Robert Goffin, um estudioso belga do
jazz, comparou as descrições da dança e música na Congo Square
com a estrutura do jazz em seus primórdios e formulou interessantes
afirmações sobre as origens deste último. Na Congo Square, Cable notou
que o tambor grande e grave era batido com "veemência lenta,"
enquanto um tambor menor era tocado “feroz e rapidamente.” A instrumentação
completa incluía um banjo de quatro cordas; a parada de todos os outros
instrumentos quando o banjista performava de maneira mais virtuosa em seu
instrumento; um grito de "yeaaaaaah!;" e, em
seguida, a batida da bateria, metais e chocalhos. Goffin reagiu a essa
descrição com as seguintes observações astutas: “A presença do jazz já
pode ser percebida nessa descrição. O ritmo do bumbo e a batida mais rápida da
bateria, a melodia adicionada pelo banjo e pelas flautas de pã [...] a parada
repentina dos instrumentos, sua reentrada, os gritos de satisfação pontuando a
música - tudo isso está presente.”[26]
Esses traços também estão presentes em algumas formas de música afro-haitiana
e, em alguns casos, provavelmente foram reforçados por estruturas semelhantes
oriundas da música folclórica de origem europeia. Mas os grandes tambores no
centro de tudo isso quase certamente eram ndungu, recordações de fontes
da terra Kongo.[27]
50. Assim, os Bakongo e seus vizinhos
constituíam a população majoritária de Nova Orleans, aqueles que deram nome à Congo
Square e sua dança, que empenharam seus talentos na formação de novos
estilos crioulos que eventualmente reverberaram até a Broadway e resto do
mundo. Mas Charleston também era uma porta de entrada cultural para os
escravizados Kongo, daí a influência destes nessa cidade. Peter Wood revelou
que, durante um período específico de cinco anos - entre 1735 e 1740 - 70% de
todos os escravizados que entraram em Charleston parecem ter sido trazidos da
região africana de Angola.[28]
Esses números incluiriam grupos Kongo e outros relacionadas a essa cultura,
oriundos do norte ou ao sul do Kongo. Tudo isso resultou em um conjunto de
poderosos “kongoismos” na área da Carolina do Sul, dos quais o mais famoso
possivelmente é a própria dança charleston, que - com suas angulações,
chutes e tempo - é surpreendentemente semelhante a um estilo de dança “sobre
uma perna” (sembuka), que inclui chutes e palmas e é comum no norte do
Kongo.[29]
51. A intensa escravidão oriunda de
Kongo e Angola teve um efeito ainda mais significativo na cultura popular
cubana. A riqueza da presença Kongo na formação da cultura artística negra em
Cuba é atestada pela denominação de certos cabildos, confrarias de ajuda
mútua. Em Cuba no século XIX:
52. cabildos tinham nomes como Kongo
Real, Ntotila ou Nsombo. Kongo Banguela, Kongo Mumbala, Kongo Mumboma, Kongo
Mundamba, Kongo Motembo, Kongo Musuni, Kongo Masinga, Kongo Mondongo, Kongo
Musoso, Kongo Mayombe, Kongo Munyaca, Mongo Musalela, Kongo Mumbaque, Kongo Cabenda,
Kongo Loango.[30]
53. Os nomes dessas confrarias refletem
uma mistura de autênticos clãs Kongo como os Mboma, Nsundi, Yombe e Bazombo
("Nsombo"); grupos extra-Kongo, como os Mondongo, correspondentes aos
Mondongue de Degrandpré; e portos escravistas, como Benguela, Cabinda e Loango.
Em Havana, supunha-se que cada cabildo era formado por descendentes
desses diferentes grupos. Mas é provável que o caso seja mais parecido com o
descrito para o país, em que “um único cabildo Kongo abrangeria todo os
povos Bantu daquela porção da África Central, sem distingui-los em Ntotila
(Mbanza Kongo) e outras descendências.” Na mistura de referências à geografia e
sub-etnias, sentimos a enorme riqueza do impacto da cultura Kongo e outras
afins na cultura cubana. Sem isso, a ascensão da rumba, conga, mambo
e moçambique na história da música afro-cubana seria impensável. Além
disso, a instrumentação da música popular latino-americana, que incorpora
frequentemente os tambores conga e padrões de pulsação associados à
música afro-cubana, teria sido muito empobrecida.
54. No Brasil, a força da influência
cultural Kongo na música e na dança é igualmente dramática e profundamente
enraizada. Em seu estudo intitulado Angolan traits in Black music, games,
and dances of Brazil, Gerhard Kubik constata traços semelhantes aos
observados em Cuba:
55. o que se chamava de
"nações" no Brasil era definido por uma curiosa variedade de nomes
africanos, que nem sempre tinham origens étnicas. "Benguela," por
exemplo, é o nome de um porto em Angola do qual muitos escravizados foram
enviados para o Brasil. Um das nações era composta principalmente por Kirenge,
Humbi, Handa, Mwila, Chipongo, Ambo, Kwisi e outros grupos étnicos da vasta
área do sudoeste de Angola. Eles tinham uma cultura semelhante e eram
capazes de se comunicar entre si.[31]
[ênfase nossa]
56. Destacamos a última afirmação porque
ela se aplica especialmente à fusão similar dos Yombe, Nsundi e outros grupos
Kongo ocorrida em solo brasileiro, com base em uma síntese de ideias e
fundamentos de crença. Em face disso, a fusão através do reforço múltiplo
pareceria resultar em uma continuidade cultural quase indelével. Mas trata-se
de uma corrente étnica que se transforma gradualmente em recurso cultural, sem
uma distinção étnica específica. Assim, a dança Kongo samba se tornou
uma modalidade de arte nacional brasileira. Da mesma forma, Hermann Baumann, um
etnólogo alemão, há muito tempo demonstrou o compartilhamento do conceito de Kalunga
entre muitas civilizações da África Central.[32] Kalunga é o mar no sentido da perfeição de Deus e da
completude (lunga) de todo ser. Da fusão de correntes Kongo e Angola
emergiram os exemplos afro-brasileiros do conceito de Kalunga. Existem
contos folclóricos brasileiros ligando a palavra ao mar e uma dança de
carnaval, o maracatu, onde um dos principais protagonistas brande uma
boneca chamada Kalunga, “representando a deusa do mar e da morte.”
57. Em um importante estudo, The
Bantu-speaking heritage of the United States,[33] Winifred Kellersberger Vass faz uma
observação que simboliza o processo através do qual os povos Kongo e Angola se
reuniram, atraídos por grandes semelhanças de pensamento e cultura. Nesse
processo, eles transmitiram à história do mundo elementos culturais
indelevelmente reforçados:
58. A fala Bantu tem uma capacidade
comprovada de se instalar dentro de uma cultura, absorvê-la e mudar sua
linguagem. Ela adotou e adaptou cada novo grupo cultural à medida que se
expandia de sua área nuclear original (provavelmente na região Nok da Nigéria)
por quase todo o subcontinente africano ao sul do Saara. A notável
homogeneidade linguística dessa enorme região geográfica deve-se a esse corpo
central de vocabulário Proto-Bantu, que ainda une todas as línguas Bantu e dá
testemunho de sua antiga fonte comum. Os escravos de língua Bantu da África
Central desfrutavam de uma unidade linguística e capacidade de se comunicar com
seus companheiros de cativeiro que os escravos da África Ocidental não
compartilhavam.[34]
59. A perspectiva descrita nessa citação
é emocionante. Ela sugere que tremendas energias de expansão, características
da disseminação das línguas Bantu, foram restabelecidas no Novo Mundo,
resultando em influências palpáveis sobre o surgimento das
línguas crioulas, nas quais o quicongo e outras línguas Bantu foram
incorporadas. Essa unidade linguística compartilhada foi uma das forças-chave
que colocaram em movimento as transformações no mundo da arte e do pensamento
Kongo-americano. Ela contradiz a visão assumida de negros de diferentes
"tribos," que falam "dialetos" ininteligíveis, misturados
entre si e irremediavelmente separados uns dos outros. Além disso, a
continuidade de aspectos das instituições Kongo e Angola de cura, iniciação,
música e sepultamento forneceu contextos sociais em que os motivos da arte
Kongo em toda a sua extensão americana poderiam emergir, com uma força maior e
mais significativa do que a de traços que surgissem isoladamente.
60. Passemos, então, a aspectos da arte
Kongo para os mortos que afetaram o curso da arte de descendência africana do
Novo Mundo: (1) cosmogramas escritos sobre a terra, associados à iniciação
ritual e cura: (2) a transformação dos crânios de intimidação da realeza em
canecas Toby no Kongo, e a transformação análoga de jarras com faces feitos na
Carolina do Norte em imagens de intimidação; (3) a continuidade do uso de
jarras como instrumentos musicais graves; e (4) a colocação de garrafas
impregnadas de espíritos nos galhos de árvores diante de casas no Caribe e no
sul dos Estados Unidos, prática remanescente da colocação de garrafas em galhos
de árvores no Kongo, para capturar os talentos dos mortos ou afastar ladrões,
com a ameaça de captura mística. Além disso, (5) a presença de gestos derivados
da cultura Kongo ou a ela relacionados, conotando totalidade, negação, desafio
e exaltação religiosa, na fronteira entre dois mundos, é uma continuidade óbvia
e avassaladora no Novo Mundo negro. Isso significa que as famosas qualidades
gestuais da arte Kongo, podem, em vários casos significativos, ser
proveitosamente comparadas com gestos, posturas e atitudes vivas entre os
negros do Hemisfério Ocidental. Finalmente, (6) a complexa definição Kongo de
túmulo - como casa, medicina, cercamento, ponto de mediação entre mundos -
perdeu pouco da sua densidade de alusão no Novo Mundo negro, resultando no
surgimento de verdadeiros earthworks rituais, de grande importância nos
cemitérios do Haiti e dos Estados Unidos. Examinemos, portanto, essas
diferentes estruturas formais na plenitude de seu significado.
Cosmogramas de influência Kongo do mundo
Atlântico Negro
61. No norte do Kongo, existem experts
em rituais específicos, nganga nkodi e nganga nsibi, que talham
desenhos nos corpos de tartarugas ou peixes vivos, e então liberam essas
criaturas em seu elemento. Banganga nkodi e nsibi são
especialistas no uso de palavras, que enviam mensagens concentradas aos mortos.
Eles cravam seus sinais (bidimbu) na carapaça de uma tartaruga para que
o réptil, mergulhando de volta n’água, carregue esses sinais através da linha Kalunga
para o mundo do além. Lá, os ancestrais recebem essas mensagens codificadas e
agem em nome de seus descendentes.[35]
62. Comparemos isso com o relato do séc.
XIX de Harry Stillwell Edwards, sobre um escravizado oriundo na África que
vivia em uma plantation nos Estados Unidos:
63. O que me intrigava com relação a
Mine [...] era suas superstições. Sem dúvida, elas lhe foram ensinados
por sua mãe e a primeira insinuação delas que vi foi quando ele pegou uma
gopher [[uma tartaruga escavadora]] e, com um pedaço de arame com uma ponta
extremamente afiada, talhou em sua carapaça uma série de sinais ou hieróglifos
curiosos, diferentes de qualquer coisa que eu já tinha visto, com exceção de
uma representação bastante justa do sol. Ele então levou a gopher de
volta para onde a havia encontrado e a soltou na entrada de sua toca, fazendo
gestos que indicavam que ela estava indo para bem fundo na terra. Ele fazia
algo do gênero para cada gopher que capturava. Um dia, ele conseguiu
apanhar um pato-real e, em seu largo bico, talhou alguns hieróglifos. Isso
feito, [...] ele jogou o pássaro bem alto no ar e riu enquanto ele
fugia. Com o passar dos anos, eu o vi tratar muitos pássaros da mesma maneira.
Se houvesse espaço para apenas uma ou duas figuras, ele as talhava e deixava o
pássaro voar.[36]
64. Ao enviar uma tartaruga “marcada”
para a terra e um ser alado “marcado” para o céu, um africano cativo na América
estava aparentemente tentando se comunicar com seus ancestrais. Talvez ele
estivesse tentando dizer a eles onde estava ou pedir-lhes apoio espiritual. Ao
enviar mensagens para “bem fundo na terra” - para os ancestrais - e para bem
alto no céu - para Deus -, ele havia efetivamente escrito em seres vivos, em
répteis ou aves, o cosmograma Kongo.
65. Os Bakongo traçam esse símbolo
básico hoje com a mão direita, o dedo indicador indicando Deus acima, os
ancestrais abaixo, a linha Kalunga e, na direção inversa, suas próprias
gargantas. Em outras palavras, eles implicam suas próprias vidas na veracidade
do que acabaram de jurar, pelo signo do cosmos. Este gesto é chamado de leva
Nzambi, “jurando em Deus,“ ou zenga Nzambi,
“traçando Deus.”[37]
66. Os Bakongo tradicionalmente ficavam
em pé sobre este sinal, desenhado no chão, para fazer um voto, em nome de Deus
e dos ancestrais. Eles também colocavam amuletos importantes sobre este sinal,
garantindo seus poderes com a certeza e verdade do Todo-Poderoso e dos
falecidos. Este era, também, um sinal sobre o qual as pessoas iniciadas na
poderosa sociedade Lemba do norte do Kongo ficavam em pé. Os Bakongo faziam
isso durante suas iniciações a fim de demonstrar que entendiam o significado da
vida e da morte. Com este sinal, eles miniaturizaram não apenas a estrutura do
universo, mas também as fontes eternas de sanção moral: Deus acima, os mortos
abaixo.
67. Este sinal era, portanto, um selo e
testemunho de equidade, justiça e verdade sagradas. “Na costa,” observou Lievin
van de Yelder em 1886, sobre os Bakongo, “tenho visto com frequência negros
traçarem uma cruz na terra quando querem fazer, com todas as suas forças, um
juramento.”[38]
68. Atado pelo olhar fixo de Deus e dos mortos,
o cosmograma permeia uma miríade de províncias da cultura visual Kongo. Além
disso, entre as civilizações vizinhas, as pessoas são juramentadas em
sociedades tradicionais na presença de signos cognatos desenhados sobre a
terra, como exemplificam os rituais Bapende,[39] Ndembu[40] e Tu-Chockwe.[41]
69. Encruzilhadas, ou bifurcações em um
caminho, são vistas, em muitas culturas Bantu da região do Kongo-Angola, como
autênticos cosmogramas trouvés. Esses pontos de literal interseção
indicavam aonde se podia ir para oferecer sacrifícios
ou orações aos ancestrais. Um graveto bifurcado também miniaturizava todo o
conceito, fornecendo um modelo em escala da linha que separa os vivos do reino
ancestral. Por exemplo, entre o povo Basuku, a leste do Kongo, um pai pode
fazer um amuleto de caça, chamado mokongu, para a sorte de seu filho.
Ele faria esse amuleto com um pedaço de galho bifurcado, indicando, assim, a
invocação das “forças do outro lado.” Amuletos mokongu às vezes eram
colocados em uma encruzilhada real.[42]
70. Manifestações multiformes do
cosmograma básico, em desenhos sobre a terra, em gestos, utilizando
encruzilhadas reais ou gravetos bifurcados, constituem uma duradoura visão de
certeza e verdade que resiste no Kongo e em Angola. Esta forneceu aos Bakongo do
Novo Mundo uma base inabalável de continuidade cultural. Cosmogramas traçados
sobre a terra ressurgiram precisamente onde viveram e pensaram pessoas
influenciadas pela tradição Kongo.
71. Um dos principais canais
institucionais pelos quais as formas Kongo foram mantidas vivas nos Estados
Unidos Norte foi o curandeirismo popular dos negros.[43] Homens e mulheres nas comunidades negras que praticavam
formas tradicionais de curas, empregando folhas e raízes, também tendiam a
compreender o cosmograma ou seus equivalentes visuais, como a encruzilhada e
galhos bifurcados, como emblemas mediatórios.
72. No segundo volume de seu enorme
estudo sobre o curandeirismo tradicional e uso de raízes pelos negros
estadunidenses, Harry M. Hyatt comenta sobre seu mais copioso informante - “sua
entrevista preencheu 26 cilindros de telediphone” -, um homem de
Waycross, na Georgia. Como Darien e Sunbury, Waycross fica perto da região
alagadiça, onde autênticas fontes de influência Kongo e Angola se
estabeleceram. O curandeiro de Waycross ensinou a Hyatt como “amarrar”
misticamente uma pessoa, por meio de uma fórmula que incluía o sinal dos quatro
momentos do sol:
73. Pegue uma folha de papel em
branco, desenhe um círculo nessa folha e faça ali uma cruz, desse modo. Esses
são os quatro cantos da terra. […] você coloca esse selo no chão. Você
coloca [um] envelope [com] poeira de cemitério [dentro] e [uma]
fotografia lá - você coloca isso em cima do selo [...] você coloca seu pé
direito nele e vira seu rosto para o oeste, que é onde o sol se põe. Você toma,
bem, você pode falar as palavras se não as tiver escrito, você diz O. L.
Youngs, L. L. Young, venha até mim e faça como lhe ordeno [...] [44]
74. Outro curandeiro, de Memphis, no
Tennessee, usa o mesmo sinal desenhado para caçar tesouros e fazer remédios.
Ele chama este emblema de “os quatro cantos do mundo” e “os quatro ventos do
céu.”[45] Isso sugere uma dupla
proveniência, pois as frases são encontradas em Apocalipse 7: 1. Este
curandeiro também desenhou o cosmograma.
75. Newbell Niles Puckett, em um dos
primeiros clássicos dos estudos acadêmicos afro-estadunidenses, observou que o
sinal da cruz era usado “com demasiada frequência para nos permitir supor que
tenha uma origem cristã [...] sua eficácia original provavelmente derivava do
fato da cruz apontar para todos os quatro pontos cardeais, não permitindo,
portanto, que nada passe por ela.”[46]
76. A encruzilhada, um antigo substituto
do cosmograma, também funcionou como um símbolo poderoso no folclore
afro-estadunidense. Era para lá que alguém ia, como na África Central, a fim de
entrar em contato com seus ancestrais; era aonde se ia para pedir favores ao
cosmos. Um negro da Carolina do Norte sacrificou uma galinha na bifurcação de
uma estrada, implorando proteção contra uma epidemia que havia causado a rápida
morte de animais na sua região.[47]
E há lendas de músicos negros indo para uma encruzilhada e pactuando suas
guitarras com espíritos, para confirmar ou aumentar seus talentos. No Kongo, as
pessoas se ajoelham diante de túmulos, no limiar entre os mundos. Nos Estados
Unidos, a mesma imagem é recriada naquela narrativa de influências Kongo e
Angola, o blues:
77.
I went down to the crossroads, fell down on my knees
78.
I went down to the crossroads. fell down on my knees
79.
Ask the Lord above for mercy, say boy, if you please.[48]
80. Vislumbramos imagens semelhantes em
alguns dos barrios negros das cidades do oeste de Cuba. Em uma
publicação que antecedeu em 17 anos a marcante publicação de Fu-Kiau sobre
cosmologia Kongo, Fernando Ortiz, o afro-cubanista, publicou um desenho copiado
de outro executado por um sacerdote Kongo-cubano. O desenho original foi feito
a giz, no chão, como um selo sobre o qual se energizava o importante amuleto mbumba:[49]
81. Além disso, havia negros em Cuba que
se lembravam dos termos em quicongo para os pontos cardeais enfatizados pelo
desenho: céu (zulu); a terra dos mortos (nsi a fwa); e a linha de
Kalunga, que dividia o reino dos vivos, terra (ntoto) do reino dos
mortos. Lydia Cabrera, uma das folcloristas mais importantes de Cuba, registrou
testemunhos de que, para membros de grupos Kongo-cubanos, o círculo significava
“certeza,” enquanto a cruz dentro do círculo representava todos os poderes nele
ativados ou concentrados.[50]
82. No entanto, apesar de todo o
fascínio que exercem, esses exemplos estadunidenses e cubanos do antigo signo
Bantu do cosmos são expressões estáticas e isoladas. Em contraste, no Brasil e
no Haiti, eles floresceram como figuras de experiências da imaginação e
autênticas expressões nacionais. Diferente de curandeiros performando suas
curas e feitiços no isolamento rural da Georgia ou aparentemente sozinhos em
Memphis, homens e mulheres haitianos e brasileiros influenciados pelos digramas
no chão e invocações Kongo produziram uma ordem diferente de significação
social e histórica. Seus desenhos e cruzes para iniciação e juramento se
sobrepuseram às funções originárias das formas no antigo Kongo. No entanto,
aparentemente devido à particular intensidade e complexidade da vida religiosa
influenciada pela África no Rio e em Port-au-Prince, ocorreu uma fusão entre os
amuletos Kongo (minkisi) e os santos católicos, as divindades dos
iorubás nigerianos (orixás), os espíritos dos Fon e Ewe da República do
Benin (voduns), e até elementos da Maçonaria e da literatura ocultista
ocidental (em particular, no caso do Brasil, do Espiritismo). O resultado foi a
macumba, no Rio de Janeiro, e o vodu, no oeste de Saint-Domingue.
Os resultados foram diferentes, pois macumba e vodu são
expressões independentes e distintas da religiosidade negra nas Américas. Mas
ambas estimularam a transformação dos signos cruciformes derivados do Kongo em
brasões estéticos do Novo Mundo. Estes refletem diretamente a complexidade das
específicas religiões populares negras nas quais eles surgiram.
83. No Rio, o resultado foi uma explosão
de diagramas de influência Kongo, chamados de pontos riscados. No Kongo,
o principal objetivo ao se traçar o cosmograma sobre o chão era possibilitar a
imersão em dimensões espirituais mais amplas. Em alguns casos, alguém ungia a
testa com a terra impregnada de espírito de uma sepultura, ou pegava a terra
umedecida de uma incisão cruciforme feita sobre um túmulo. De igual modo,
constatamos que no Brasil, desde o início, a tradição dos pontos riscados
refletiu uma preocupação similar com a invocação de espíritos sobre um local
indicado visualmente por um diagrama.
84. No Rio, diz-se que os primeiros
desenhos feitos sobre a terra eram cruzes simples ou uma cruz em um círculo,
como no Kongo. Eles também devem ter servido para centralizar energias em
amuletos ou copos cheios de água, bem como invocar espíritos usando seus
emblemas visuais. Em seu livro Lemba 1615-1930: a drum of affliction in
Africa and the New World, Janzen faz uma importante observação: a lista de
medicinas antropomorfizadas no Brasil se assemelha a uma lista de minkisi
Kongo que Dapper apresenta em seu famoso texto de 1668. Logo, alguns minkisi
Kongo do século XVII mantêm sua existência no Brasil, especialmente em certos
cantos extáticos da macumba no Rio, que incluem também termos e frases
de cura em quicongo. Nesses cantos, eles são chamados Zambi, Bumba, Lemba, e
assim por diante.[51] Tanto os
cantos, que invocam essas medicinas Kongo crioulizadas (conceitualmente
fundidas com santos católicos, divindades iorubá e fon, e, às vezes, com
alusões a espíritos ameríndios), quanto os diagramas desenhados, que invocam os
espíritos, são chamados de “pontos.” Contudo, a data exata dos primeiros
cosmogramas Kongo no Rio ainda não pôde ser estabelecida, como ponderou Roger
Bastide:
85. Não temos, no momento, evidências
sobre o momento preciso em que esses diagramas surgiram na macumba do
Rio. De todo modo, eles são, sobretudo, de origem Kongo e angolana. As
religiões tradicionais dessas áreas Bantu usam desenhos iniciáticos feitos na
terra [...] os pontos, como tendência artística, são
Kongo-angolanos em sua concepção, mas incorporam, em sua forma final, invenções
locais e o contato com outras correntes afrodescendentes. Na caracterização de
seu surgimento, devemos também considerar a influência da Maçonaria e dos
livros de magia esotérica europeia.[52]
86. exemplificar a influência do signo
dos quatro momentos do sol no surgimento de uma miríade de signos e brasões no
Rio, examinando uma série bastante complexa de pontos riscados
modernos. Janzen observou que, no Rio, a fusão de minkisi Kongo, voduns
daomeanos, orixás iorubanos e santos católicos não foi casual. Pelo
contrário, ela seguiu uma lógica de correspondências, e os pontos riscados
são a quintessência final desta constante arte de classificação. Ilustramos
isso referindo-nos à fusão carioca da cruz dentro de um círculo - o conceito
Kongo de encruzilhada - com o espírito iorubá da encruzilhada, Exu-Elegba. Por
causa da imprevisibilidade dessa divindade da África Ocidental, ela foi
comparada ao Demônio bíblico. Todas essas qualidades estão presentes em seus pontos
cariocas.[53] Assim, o simbolismo
básico de mundos que se cruzam é atravessado por um duplo poder
de interpretação cultural, Kongo-Iorubá e Ocidental. Os pontos cardeais se
transformam nos tridentes de Satanás. A imprevisibilidade de Exu é sugerida em
um padrão giratório, similar a um cata-vento, no centro de um desses digramas.
E, em um segundo exemplo, os eixos originais de intersecção do cosmograma
submetem-se a ênfases ainda maiores de improvisação e repetição visual.
(a) Primeiros
cosmogramas de derivação Kongo no Rio (reconstrução a partir de informantes);[54] (b) Ponto riscado
moderno para Exu Vira-Mundo;
(c) Ponto riscado
moderno para Exu Pomba Gira da Kalunga
87. Logo, os pontos riscados,
brasões aparentemente explícitos dos espíritos e dos deuses, são palimpsestos
que comportam múltiplas alusões. Os tridentes ocidentais são desenhados sobre a
encruzilhada de Exu e a encruzilhada do antigo cosmograma. A fusão de correntes
distantes se espelha em elementos da nomenclatura litúrgica em vigor hoje no
Rio. “Pomba Gira” representa uma crioulização brasileira do termo Kongo para
encruzilhada (mpamba nzila).[55]
Note-se também a referência a Kalunga, o oceano de Deus, no nome desse mesmo ponto.
As novas experiências e o contato com diferentes influências culturais foram,
evidentemente, decisivos para a padronização desses brasões.
88. Esta parece ser uma tradição com uma
potencialidade ilimitada de crescimento. O interesse pelos pontos riscados
reside precisamente no fato de que cada sacerdote inventa constantemente novas
formulações ideográficas a partir de formas e padrões mais antigos.[56]· Assim, em 1951, 132 pontos
foram recolhidos, classificados e publicados;[57] em 1975, esse número havia se multiplicado para 1500.[58] A difusão dessa arte e de seu
conceito foi acompanhada pela apropriação de novas mídias: bordados em seda,
pinturas sobre vidro, ou novos padrões traçados na areia das praias de Ipanema
e Copacabana, e iluminados por velas. Em 1969, Wesley R. Hurt, da Universidade
de Indiana, coletou em Curitiba, capital do estado do Paraná localizada 400
milhas ao sul do Rio, um ponto para Exu-Rei [Figura 10].[59] Mais uma vez, os tridentes imaginários de Exu
configuram as linhas entrecruzadas do cosmos, aqui pintado sobre um retângulo
de isopor cuidadosamente recoberto com plástico transparente vermelho, como se
fosse uma oferenda embrulhada para a entidade. A partir das mais surpreendentes
apropriações do mundo moderno, o signo do cosmos como que nos mira através da
profundidade de três experiências culturais diferentes: a negro-crioula, a do
catolicismo latino e a das modernas tecnologias.
Vévé: o destino do cosmograma no Haiti
89. Comparáveis em sua
inteligência e fluência de adaptação são os vévé do Haiti, ideogramas
traçados no chão para celebrar, invocar e encarnar as divindades da religião
popular daquele país - o vodu. No vodu, foram mescladas as
religiões clássicas do Daomé, da Iorubalândia, do Kongo e de outras regiões
subsaarianas com a da Igreja Católica Romana. No processo, os cosmogramas
originais, usados para invocar espíritos ou fazer juramentos importantes, se
complicaram em termos de forma e significado. Tecnicamente, às originais cruzes
Kongo e quadrados do Daomé, foram adicionados submotivos ou “pontos,” que
incorporam referências não apenas às divindades Fon e Iorubá, aos simbi
e minkisi do Kongo, mas também e simultaneamente aos santos da Igreja
Católica Romana e seus atributos: a espada de São Tiago Maior; o coração da
Mater Dolorosa; e até mesmo o compasso sobre o quadrado da Maçonaria -
participantes do ritos do vodu de influência Kongo foram especialmente
atraídos por esta última, por causa de suas sugestões de rituais sigilosos e
ocultos.[60] No processo, assim
como os pontos riscados, os vévés constituíram um meio por
excelência de sugerir visualmente as forças que se combinam na arte religiosa
popular e na cultura do Haiti.
90. Mesmo assim, apesar de todas as
intensas recombinações e adaptações locais, um sabor Kongo perdura. Assim, ao
comparar Kongo Lemba com Petro-Lemba entre os praticantes de vodu no
Haiti, John Janzen notou:
91. os traços do espaço ritual na
etapa Petro de um ofício religioso apresentam semelhanças marcantes com rituais
Kongo. No estabelecimento dos pontos cardeais do mundo com velas, o [sacerdote]
usou um motivo muito comum, de difusão talvez global. Contudo, ao circular
seu espaço no sentido anti-horário e, em seguida, dividi-lo em duas metades,
uma definindo o reino doméstico (governado pelo senhor da casa, Mait
Habitation), o outro definindo o reino selvagem, das profundezas, da água
(governado pelo senhor das profundezas, Mait Source) ele estava traçando
um cosmograma do modo como é feito em muitos contextos Kongo.[61]
92. Além disso, no Haiti, quando
espíritos de evidente derivação Kongo (bisimbi) são invocados por seus
próprios vévés [Figura 11], o padrão, embora ricamente improvisado
e moderno, claramente incorpora em seu centro o antigo círculo dividido, com os
pontos cardeais enfatizados. Nosso exemplo foi desenhado por um sacerdote no
subúrbio oeste de Port-au-Prince, em Carrefour, na primavera de 1968. O
familiar círculo dividido em quadrantes reaparece, transfigurado por qualidades
de luz e linha semelhantes à de uma joia. As estrelas, as volutas e a borda
recortada em torno do centro, simbolizando a água em que alguns bisimbi
habitam, são improvisações crioulas ou engenhosas invenções.
93. Karen Brown, uma talentosa estudiosa
dessa tradição, apresenta outros elementos de potência mental e intelectual: “Vévés
sugerem que o homem pode pensar com a geometria [...] que a geometria, como a
lógica, fornece um esquema formal para focar e condensar a experiência.”[62] Com efeito, os vévés
fornecem um esquema para a organização de complexos pontos de contato e
experiência culturais, conforme ilustrado pelo exemplo da Figura 12. Este foi um vévé feito em
homenagem aos espíritos gêmeos (marassa), cultuados no vodu.
Pegando pitadas de farinha de milho cuidadosamente seca e peneirada, o artista,
André Pierre, começou este vévé na manhã de 28 de maio de 1978. Usando o
polegar e dois dedos, ele cuidadosamente pegava a farinha de milho e a
depositava no chão. Cada movimento constituía um “golpe,” que deixava um
segmento completo de reta ou de curva sobre a terra. Todo o processo demorou
quarenta e cinco minutos e, quando o vévé estava concluído, ele
combinava cerca de duzentos traços separados, verdadeiros segmentos de ação
visual configurados no chão.[63]
94. O resultado foi um aprofundamento e
multiplicação de signos que, em êxtase e primor de visão, nos remetem ao Kongo,
mas também é uma incorporação universalizante de expressão e interpretação. Por
exemplo, as quatro estrelas que "enquadram" o vévé não apenas
marcam os quatro cantos do universo, mas também, disse o artista, representam
os quatro Evangelistas. No mesmo modo de exegeses múltiplas, os círculos
triplos não só representavam os espíritos gêmeos e seu seguidor, mas também
sugeriam os Reis Magos que vieram a Jesus no primeiro Natal, bem como três
"pratos" para os marassa e três tambores para esses espíritos.[64] A preponderância do conteúdo é
uma medida da profundidade de síntese dos reinos de discurso africano e europeu
ali envolvidos.
95. Similarmente, assim como o
cosmograma no Haiti adquiriu uma riqueza de elaboração crioula, com a adição de
estrelas, volutas e referências a santos e outras divindades, no próprio Kongo
atual certos líderes messiânicos configuraram cosmogramas em paisagens rituais
e espaciais, enquanto prestavam atenção a vozes estrangeiras distantes.
Consideremos um exemplo fascinante. Em Kinanga, perto de Kimpese, no Baixo
Zaire, Wyatt MacGaffey fotografou, em 1966, uma rotatória de trânsito com
conotações místicas [Figura 13]. Esta foi projetada e construída por
um líder religioso, Mayeko Charles, que também é mostrado na foto, à esquerda
de sua criação.[65] Buscando
estruturar o interior da rotatória de maneira que ela se dividia nos quatro
segmentos primordiais, Mayeko colocou bem no centro um impressionante púlpito,
de onde MacGaffey foi convidado a pregar. No primeiro plano é visível um dos
quatro triângulos feitos de concreto e postos sobre cada ponto cardeal, com
seus vértices apontando nas direções apropriadas. Esses triângulos
perfeitamente configurados funcionam, em certo sentido. como as estrelas
delimitadoras sobre o vévé de André Pierre. Eles reiteram a força e o
significado da mensagem principal da construção, enquanto mediação e contato
com a palavra de Deus. Em suma, um indivíduo visionário no Kongo moderno
construiu um local sagrado que recorda um antigo padrão simbólico e
simultaneamente abriga alusões ao Cristianismo e ao mundo moderno. O choque do
concreto, tinta esmaltada, automóveis e tráfego é culturalmente ressignificado
por uma consciência mais rica e profunda, o que confere a este espaço a força
dos ancestrais e a geometria de Deus.
A “conexão Toby.” Música feita com
jarras no Kongo e no Novo Mundo negro
96. Das representações cosmográficas dos
espíritos, voltamos às expressões escultóricas de tais forças. Por exemplo. As
jarras Toby, de origem inglesa [Figura 14], forneceram um impressionante
substituto para os crânios usados pelos reis Kongo para beber, em público, o
vinho de palma, de um modo intencionalmente intimidador. A jarra Toby em si
tinha o formato de uma cabeça ou figura humana, e sua reluzente louça lembrava
a cor de ossos humanos. Animada com importantes interpretações locais, essa
forma se espalhou rapidamente durante os séculos XIX e XX, como um objeto de
prestígio e uma fonte de influência formal. Já na primeira metade do século
XIX, imagens “tobycizadas” começaram a surgir na arte Kongo, especialmente em
Mayombe. Em suma, a forma Toby causou uma forte impressão.
97. Ela afetou de modo semelhante um
artista negro das olarias do distrito de Edgefield, na Carolina do Sul, durante
a primeira metade do século XIX [Figura 15].[66] Este artista fez uma poderosa jarra-máscara, que hoje
se encontra na coleção Herbert Hemphill de arte popular estadunidense. A face
configurada nessa peça é pintada de preto (para indicar um espírito
afro-estadunidense?) e não esmaltada. Este objeto revela um conhecimento da
tradição Toby: seu bico recria o contorno do chapéu tricorne de Toby, e suas
linhas curvas são mais ou menos repetidas nas sobrancelhas e no contorno dos
olhos, fortemente estruturados. Estes últimos saltam com um brilho que lembra o
dos olhos de pessoas possuídas por espíritos em certas religiões tradicionais
da África Ocidental e Central.
98. Estilisticamente, o formato dos
olhos, a boca e outros detalhes faciais se relacionam a um pequeno grupo de
jarras com faces de grande mérito artístico [Figura 16
e Figura 17], atribuídos inicialmente a artesãos
escravizados afro-estadunidenses por Thomas Davies, proprietário de uma olaria
em Bath, no referido distrito de Edgefield. Ele datou os trabalhos de c. 1862 e
disse a um historiador de cerâmica estadunidense que seus escravizados fizeram
essas jarras “modeladas grosseiramente na parte frontal como um [...] rosto
humano, evidentemente visando a retratar traços africanos."[67] Apesar de sua atitude
condescendente, Davies foi forçado a admitir que um elemento estilístico
associado a esses trabalhos era muito "engenhoso:" o formato dos
olhos e da boca das jarras, com inserções de caulim. Essa abordagem multimídia
não tinha precedentes na cerâmica da Inglaterra, Alemanha ou em qualquer outro
lugar do mundo. Mas era muito semelhante à antiga prática de inserir fragmentos
de porcelana nas órbitas oculares de figuras humanas esculpidas em madeira no
norte do Kongo, particularmente entre os clãs Bembe e Kunyi.
99. O olhar espectral, branco como osso,
da imagem de madeira Kunyi de um tocador de ngoma [Figura 18] se aproxima do nível de intensidade e
sugestividade espirituais engendradas quando inserções de caulim (o material do
qual a porcelana é feita) foram embutidas nas órbitas das referidas jarras e
copos afro-carolinos do distrito de Edgefield.[68] Além disso, os Bakongo e seus vizinhos, desde
tempos imemoriais, consideraram as terras (especialmente quando brancas, a cor
dos mortos, ou vermelhas, a cor de transição espiritual), como intimamente
ligadas com os espíritos. Essas terras forneciam substâncias preciosas para
serem inseridas em um amuleto a fim de ativá-lo, conferindo-lhe uma alma
humana. É a mesma lógica que levou um feiticeiro afro-missouriano a inserir um
pedaço de papel alumínio em um amuleto para que esse enredasse, com seu lampejo,
um certo espírito.[69] Isso não
era de todo diferente de realçar o olhar de um jarra-máscara inserindo nela
bolas de caulim especialmente preparadas para representar os olhos, e uma massa
ovoide da mesma substância para os dentes, dentro dos lábios configurados com
um forte relevo.
100. O surgimento desses objetos únicos
aparentemente resultou de uma complexa combinação de ideias Kongo-Angola sobre
a inserção de caulim (ou de autêntica porcelana, como nos olhos das esculturas
Kongo, Bembe e Kunyi) em amuletos; ideias inglesas e anglo- estadunidenses
sobre moldar jarras como máscaras ou cabeças (“whimseys”); e ideias locais
anglo-estadunidenses sobre envidraçamento, queima e outros temas técnicos
ocidentais. Em tudo isso, o tipo da jarra Toby atuou como elemento de reforço:
tais jarras com faces podiam muito bem ser conhecidas entre os Bakongo que
chegaram como cativos nos primeiros anos do século XIX, ou seja, por homens e
mulheres que as viram em túmulos da realeza no Kongo.
101. Mas os “whimseys” ingleses e
estadunidenses são apenas uma das fontes de influência formal nessas jarras com
faces. Os Bakongo e culturas mais ao sul desenvolveram plenamente suas próprias
tradições de recipientes figurados. Isso envolve a confecção de pequenas jarras
d’água embelezadas com feições humanas. Os Lwena, que vivem ao sul do Kongo, e
os Mbundu fazem jarras d’água esféricas com cabeças humanas esculpidas em seus
topos [Figura 19]. Os Lunda e os Tu-Chokwe, no nordeste
de Angola, fazem jarras semelhantes, com bicos inclinados, alças em estribo e
pequenas cabeças humanas decorativas surgindo dos topos [Figura 20]. O tamanho e a forma das jarras d’água
Lunda/Chokwe lembram algumas peças feitas no norte do Congo, documentadas por
Janet MacGaffey [Figura 21].[70] A última série exibe, igualmente, uma alça em estribo e
um bico inclinado.
102. Portanto, é certamente mais do que
coincidência o fato de que, nas Índias Ocidentais, onde numerosos escravizados
oriundos do Kongo e de Angola estavam presentes, uma forma de cerâmica
afro-caribenha semelhante tenha surgido: as jarras monkey [Figura 22].[71] Estas são caracterizadas por suas formas esféricas,
bicos inclinados e alças em estribo. Até hoje, elas são feitas ou vendidas por
negros na Jamaica e nas ilhas de Nevis, Barbados e Antigua. A possibilidade de
que a jarra monkey tenha surgido em uma ilha particularmente
influenciada pelo Kongo e depois se difundido no comércio para outras ilhas deve ser considerada como uma hipótese alternativa. Em
todo caso, há uma forte semelhança com as peças Kongo e Angola que acabamos de
examinar.
103. Roger Abrahams nos informa que os
oleiros negros de Nevis, uma ilha das Índias Ocidentais, são bastante
conservadores. Podemos acreditar nisso porque a versão Nevis da jarra monkey,
como a mostrada na Figura 22, é muito próxima dos tipos correlatos
oriundos de Kongo e Angola. A Carolina do Sul pode ter recebido versões
crioulas dessa forma por várias vias: do comércio com Barbados; diretamente do
Kongo, das memórias de escravizados que chegavam e que haviam lá praticado a
fabricação de cerâmica; por meio de uma combinação desses meios; ou, ainda, por
via de outras correntes de influência, ainda não identificadas.
104. Em qualquer caso, é significativo
que um dos tipos proeminentes de jarra com face encontrado na área do Distrito
de Edgefield, onde os ceramistas negros trabalhavam, derivava do tipo básico da
jarra monkey - com bicos inclinados, alça em estribo etc. John Burrison,
uma autoridade em cerâmica popular do sul dos Estados Unidos, foi aparentemente
o primeiro estudioso a apontar a possibilidade de que a jarra monkey,
como forma básica - com alça de estribo na parte superior e um ou dois bicos
tubulares inclinados -, tenha sido introduzida a partir da África. Ele
acrescentou que “elas foram feitas por vários ceramistas no Sul, negros e
brancos, mas são raras no Norte. São desconhecidas na Grã-Bretanha e até agora
não consegui encontrá-las na Alemanha, as duas fontes mais lógicas de nossas
tradições de cerâmica estadunidense."[72] Mas Kongo e Angola oferecem muitos precedentes.
105. Ainda que a precisa natureza da
mistura de elementos Kongo, ingleses e anglo-estadunidenses esteja por definir,
a invenção mais surpreendente - a representação de olhos e bocas com inserções
de caulim - torna esse estilo único na história da cerâmica mundial. Já falamos
sobre seu paralelo óbvio: a inserção de caulim nos amuletos Kongo e de
fragmentos de porcelana, derivados do caulim, nos olhos das principais formas
de escultura do norte do Kongo.
106.. Mas há uma matriz restabelecida de
procedimentos artísticos semelhantes na própria Carolina do Sul negra. Lá, os
cemitérios mais antigos da área de Edgefield revelam montes revestidos de
conchas, pedras e pedaços de quartzo, todos deliberadamente selecionados por
causa de sua brilhante brancura. Além disso, uma espécie de neo-nkisi
foi encontrada “abandonada em um cemitério de Edgefield.” Trata-se um pote de
cerâmica marrom da Carolina do Sul, coberto com gesso e colorido de vermelho [Figura 23]. Embutidos no gesso estão numerosos
objetos, como parafusos, um osso de galinha e, com destaque, peças de porcelana
branca: uma colher em miniatura, um prato e uma estatueta. Este incrível objeto
está agora em posse do Museu Pottersville, perto de Edgefield. Ele foi datado
por Ralph McClendon, da equipe do museu, como sendo de c. anos 1870, com base
na forma e no estilo do recipiente de cerâmica marrom.[73] Este último se aproxima de produtos da oficina de W. F.
Hahn, no distrito de Edgefield, que datam desse período. De todo modo, a
inserção de objetos derivados de caulim e outros objetos brancos nas laterais
desta jarra do século XIX mostra que a tradição de embutir fragmentos de caulim
ou porcelana em peças de cerâmica - a principal invenção dos artesãos
afro-carolinos da área, em meados do século XIX - ainda estava viva, embora
transmutada, na década de 1870. Isso nos leva às "jarras de diabo,"
feitas por brancos no norte da Geórgia no século XX.
107. Ao lhe ser mostrada uma fotografia
do recipiente incrustado de objetos da Figura 23
e dito que ele foi
encontrado “jogado fora em um cemitério," Fu-Kiau comentou a seu respeito:
“É uma nova forma de n'kondi. Os objetos incrustados são signos (bidimbu).
As pessoas estavam tentando se comunicar com seus ancestrais na África através
desses objetos. Elas contavam a eles sobre as mudanças que estavam acontecendo
ao seu redor, e pediam aos mortos para protegê-los do aniquilamento neste novo
ambiente.”[74]
108. Não obstante, mesmo que essas
evidências culturalmente carregadas e geograficamente concentradas não
existissem, ainda haveria a continuidade da intimidação pelo impacto da
representação de algo análogo a um crânio humano na forma de um recipiente de
cerâmica.
109. De chefes Kongo instilando terror ao beberem
em crânios e jarras Toby aos pais afro-americanos que colocam uma pequena jarra
monkey com face em suas cabanas para assustar seus filhos e incitá-los a
um comportamento adequado, vemos uma fusão de forma e função que torna possível
pensarmos sobre continuidades culturais.[75] Isso também fornece um elo perdido entre os recipientes
de crânios do antigo Kongo e os numerosos crânios de argila feitos por James
“Son” Thomas, um artista negro de Leland, Mississippi. Um exemplo do trabalho
de Thomas, datado do outono de 1972, é mostrado na Figura 24. Observamos aqui uma abordagem
multimídia, com o uso de sementes de milho embutidas para representar os
dentes, enquanto na tradição Edgefield e outras correlatas, mais antigas, eram
usados para esse fim fragmentos de porcelana ou pasta de caulim.
110. Desde muito jovem, “Son” Thomas
sentiu uma necessidade urgente de fazer tais crânios, Seu esforço imediatamente
lhe trouxe a censura de um ancião, que disse ao jovem escultor que não queria
tal objeto em sua casa, por medo de “fantasmas.” Tal comentário, aparentemente
jocoso, ocultava a crença íntima do ancião no poder desse tipo de objeto.
111. Ao discutir como faz seus crânios
de argila, “Son” Thomas se exprime tal qual seus ancestrais artísticos:
"Você primeiro modela a cabeça normal de um homem. Então você a corta na
forma de crânio, porque você não poderia fazer um crânio diretamente, sem
cortá-la."[76] Suas palavras
ecoam o fato de que, no Kongo, a concavidade está conectada com a negação e com
a morte;[77] que as figuras do
relicário Kuta, relacionadas com o Kongo, às vezes combinam uma face sem boca
com concavidade; e que existem inúmeros estilos de máscara na área Bantu
caracterizados por um “corte” da convexidade facial, com a subsequente
decoração das concavidades resultantes com argila branca, exibindo assim a cor
dos mortos e do outro mundo. Em suma, a "conexão Toby" constrói uma
ponte sobre uma história de gestos artísticos feitos em alusão ao poder dos
mortos, desde os crânios usados como jarras no Kongo até os crânios esculpidos
de “Son” Thomas, no delta do Mississippi.
112. Existem outras qualidades ligando
as tradições cerâmicas populares do Kongo e das Américas. O próprio termo
“monkey,” que pode significar "espírito maligno" (como na expressão
"monkey on my back") mas também "jarra d’água," tem
intrigado os estudiosos. Parece haver vários “kongoismos” ocultos neste único
termo, daí a aparente confusão. Assim, mbugi, palavra quicongo para
"diabo," é certamente uma das origens para "monkey," no
sentido de espírito maligno, reforçada pela palavra inglesa "'bogey."
O mesmo percurso duplo nos legou o sentido de boogie como “música do
diabo," tal como costumava ser chamado o blues nos Estados Unidos
negro. Quanto ao emprego significando jarra, existe uma cabaça redonda, vagamente
semelhante a uma jarra ou cuia de cachimbo feita de barro, que os Bakongo usam
para fumar folhas de mandioca [Figura 25]. Em quicongo, este objeto é chamado munkoki,[78] certamente uma das origens de
"monkey," no sentido de objeto arredondado de cerâmica.
113. As formas de cerâmica americanas
relacionadas ao Kongo incluem uma dimensão musical. No Kongo, um termo padrão
para jarra d’água, mvungu, também se refere ao uso do mesmo objeto de
cerâmica para produzir o som grave, de uma única nota, em um conjunto
tradicional. Mvungu significa literalmente a voz mais grave em um coro
de cantores.[79] Esse fato
imediatamente lança luz sobre a ascensão das jug bands negras do sul dos
Estados Unidos, onde uma jarra é usada como instrumento que, na formação
inicial do jazz, desempenha o papel de baixo [Figura 26].[80] Também na cultura afro-cubana, os músicos ainda levam
uma jarra d’água aos lábios [Figura 27] e a empregam à guisa de instrumento de
voz grave.[81] Em certos casos,
apenas uma mesma nota é tocada por cada instrumento (hoquetus), como
fazem os biludi Kongo [Figura 28]. Essa prática também lembra o gesto
Bakongo de levar até os lábios formas semelhantes feitas de cerâmica (ou
cabaça), seja como utensílio para fumar ou como instrumento musical. Os
afro-cubanos chamam de bungas seus instrumentos graves feitos de jarras,
termo claramente derivado da palavra em quicongo para o mesmo tipo de
instrumento.[82] No surgimento no
hemisfério ocidental da música com jarras influenciada pelo Kongo, houve, sem
dúvida, uma enorme influência das tradições subsaarianas culturalmente
semelhantes de instrumentação, usando recipientes de cerâmica ou cabaças.[83] Assim, Robert Palmer, em seu
estudo de 1981 intitulado Deep Blues, observa que “um grupo fascinante
de instrumentos [centro-africanos] [...] cabaças musicais, podem ser tocadas
como trompas, com os lábios vibrando [...] Os Luba do Zaire usam suas cabaças
como se estivessem tocando trompetes, que contribuem assim com as partes graves
propulsoras para a música de conjunto. A técnica de execução e a função musical
do instrumento foram preservadas pelos sopradores de jarras nas jug bands
estadunidenses negras” [Figura 29].[84]
114. Por fim, assim como a faiança e
vidraria ocidentais coexistem com maboondo e mvungu em muitas
sepulturas Kongo, o estilo de uma nota da tradição das jarras-baixo nos Estados
Unidos coexiste com o uso de instrumentos de vidro, feito por negros.
115. O ilustre folclorista do
Mississippi, William Ferris, filmou Louis Dotson, um instrumentista negro,
tocando uma garrafa de Coca-Cola em um estilo que imediatamente lembra a música
de grupos de pigmeus no Zaire e no Congo-Brazzaville. Dotson, que mora em Lorman,
Mississippi, assim explica seu estilo: “Chamamos isso de talking the bottle.
Veja, você tem que encher a garrafa de Coca um pouco além da metade, com água.
Você pode soprar e uivar nela então. Se você não puser água, a garrafa consome
muito ar e você não pode produzir os uivos."[85] Desde tocar um cachimbo d’água no Kongo até usar
uma garrafa de Coca-Cola cheia com água "um pouco além da metade,"
temos uma lógica de performance musical duradoura e consistente. No processo,
outra tradição clássica Kongo retoma seu lugar na América do Norte por meio de
objetos aparentemente ocidentais. Finalmente, é bem possível que a tradição
branca sulista do final do século XIX de pôr jarras sobre túmulos [Figura 30][86] baseie-se em fontes insuspeitas, como maboondo [Figura 31] e outras tradições negras de lápides
de cerâmica. Tal influência foi restabelecida por meio do emprego de vasos
simples comprados em lojas [Figura 32] ou por traduções e empréstimos da
forma maboondo, em cemitérios negros do Velho Sul Profundo. Mas está é uma
questão cuja discussão devemos deixar para outra
publicação.
Gestos Kongo do mundo Atlântico negro
116. Tipos importantes de gestos
simbolizados pela arte funerária Kongo sobreviveram para além das pessoas que
originalmente os incorporaram. Sua reproposição nas Américas negras é óbvia e
muitíssimo frequente. William Stewart, um linguista estadunidense, está
preparando um dicionário definitivo da fala afro-estadunidense, para o qual já
compilou mais de dez mil verbetes. Ele descobriu que muitas palavras em inglês,
usadas entre afro-estadunidenses, têm seus próprios significados “negros.”[87] Como parte desta obra
monumental, há um dicionário de gestos - particularmente dos Gullah [[população
afro-estadunidense que vive na região costeira do sudeste do país]] - que
acompanha a dimensão lexical: estes gestos são inestimáveis para
historiadores da arte Kongo em uma perspectiva atlântica.
117. Comecemos pela posição sentada de
pernas cruzadas (funda nkata), brilhantemente exemplificada por uma
figura em madeira de uma mãe e seu filho, pertencente à coleção do Conde
Baudoin de Grunne [Figura 33]. Poderia parecer que falta a este
gesto cortês o poder de permanência de outras atitudes mais amplamente
disseminadas pela cultura Kongo. No entanto, funda nkata aparece no
início do século XIX na Congo Square de Nova Orleans: "O músico,
sentado com as pernas cruzadas, segurava a [mbira] com as duas mãos e
tocava as pontas das hastes com as unhas do polegar."[88] Esta cena lembra um tema comum na escultura Kongo.[89] Em outro ponto das Américas,
Jacob Elder, um estudioso da vida negra em Trinidad, lembra que naquela ilha,
no séc. XX, “havia um velho Kongo que raspou a cabeça e sentou-se de pernas
cruzadas." Ele se sentou desta maneira, assim foi relatado, para “pensar
em seus ancestrais.”[90]
118. Tuluwa lwa luumbu, um gesto
no qual os braços são cruzados sobre o peito para simbolizar o auto-cerceamento
silencioso [Figura 34], mantém sua poderosa mudez em algumas
comunidades negras estadunidenses. Em 1980, eu vi um homem negro no gramado da
cidade de New Haven cruzar os braços diante do peito para encerrar uma
conversa: com este gesto, ele sinalizou que nada mais tinha a dizer. Stewart
viu o mesmo emblema da negação entre os Gullah da Carolina do Sul, sendo “usado
em situações ligeiramente combativas, onde uma pessoa, cruzando os braços sobre
peito, não está discutindo per se, mas quer comunicar que
definitivamente não gosta do que lhe está sendo dito.”[91] O gesto luumbu sobrevive, de maneira clara e
distinta, entre certas populações afro-cubanas do Caribe.[92] Lydia Cabrera viu um sacerdote Kongo (nganga) em
Havana cruzar os braços, sinalizando altivez e reserva. O mesmo gesto, com
significados Iorubá e Kongo contrastantes, aparece em uma dança folclórica com
forte sabor Kongo, a rumba yambu [Figura 35].[93] Novamente, um aspecto da escultura Bakongo é ecoado por
padrões de dança e música no Novo Mundo negro.
119. A correlata postura em pé ou
sentada, com a cabeça virada para o lado (nunsa), também está presente
nas Américas negras. Como ponto de partida, consideremos uma bela representação
de nunsa na escultura clássica Kongo em marfim [Figura 36]. Nela, uma mulher é retratada em um
estado de nudez ritual; ela se ajoelha e coloca as mãos sobre suas coxas (fukama,
ye mooko va bunda). Esta é uma antiga pose de rendição, pedindo por perdão.
No entanto, a figura como que contradiz tal pedido com um sinal resoluto: com a
cabeça virada, ela indica negação. Com isso, temos uma tradução vernacular da
fusão de duas atitudes codificadas diferentes - uma negativa e outra positiva
-, justapostas em uma única peça: “Esteja avisado, a atenção do rei favorece
não apenas aqueles que sabem como fazer a autoridade ouvir suas queixas, mas
também os que se fazem respeitar.”[94]
120. Há um verdadeiro florescimento do
gesto Kongo da cabeça voltada para o lado no hemisfério ocidental. Ele é
invisível, porém, para aqueles que não vivem ou não observam de perto os
negros. Nas cerimônias afro-cubanas em que certas pessoas são possuídas pelo
espírito de uma pessoa morta (mfumbi), elas dançam com as cabeças
viradas para o lado. Desse modo, o espírito como que se distancia desse mundo,
que ele visita de modo apenas fugaz. Isso recupera parte da altivez inerente ao
gesto nunsa.[95]
121. Em 1977, vi um negro de Nova
Orleans se opor a acusações que lhe eram feitas virando a cabeça para um lado,
tendo os lábios cerrados.[96] Ele
se tornou um ícone da negação. Existem inúmeros ecos dessa pose em terra
Gullah, especialmente quando uma mãe negra repreende severamente seu filho.
Sobre isto, Stewart escreve: “A criança franze os lábios, vira a cabeça para o
lado e assim fica.”[97] Um
gesto correlato foi observado nos tempos coloniais por Charles William Day:
“Quando os negros brigam, eles raramente se olham cara a cara.”[98] Há uma maravilhosa
representação Kongo da pose de nunsa no Museu de Berlim, que registra
distintamente tanto o virar da cabeça quanto o franzir determinado dos lábios,
como se o sujeito estivesse com eles apontando para o fundamento de sua
negação. Em um estudo importante, Dynamics of a Black audience, Annelte
Powell Williams resume uma extensão desse gesto fundamental entre os negros dos
Estados Unidos: “Uma indicação de rejeição total é indicada virando a cabeça,
com os olhos fechados, para longe do orador.”[99]
122. Kebuka, uma pose correlata encontrada
no contexto das performances do ngoma [Figura 37], se liga logicamente aos procedimentos
gestuais dos tocadores negros de tambores conga em Cuba e na América do
Norte hispânica. Earl Leaf fotografou o famoso percussionista afro-cubano Chori
na década de 1940 nessa pose característica [Figura 38], com a cabeça virada para o lado,
concentrando-se em sua música, cancelando todas as distrações do fluxo e
andamento dos ritmos que produzia. Enquanto houver tambores conga (tumbadoras)
e timbales sendo tocados bem e de forma tradicional, este antigo gesto
de recolhimento criativo para uma zona de concentração e reflexão viverá nas
Américas.
123. Pakalala, uma postura com as duas mãos
nos quadris, é um gesto de desafio. A palavra significa em si um verbo de
atitude, referindo-se a puxar a orelha de alguém, a desfraldar um guarda-chuva
e a imagens de prontidão e aguçamento dos sentidos.[100] No Kongo, o homem ou mulher que coloca as mãos nos
quadris se proclama como uma pessoa pronta para aceitar os desafios de uma dada
situação. Esta postura é representada muitas vezes nos lusumu [[bastões]]
do Museu de Tervüren.
124. Nos Estados Unidos, ficar de pé com
as duas mãos na cintura se tornou a clássica pose de desafio das mulheres
negras.[101] Laguerre. A
Gascon of the Black Border, obra de Ambrose E. Gonzales, apresenta duas
descrições de mulheres negras em poses combativas (com as mãos nos quadris), em
litígios judiciais. Quando obras como a de Gonzales foram analisadas e
comparadas, talvez seja possível mostrar que tais poses constituem
reproposições das poses de um mambu, recolhidas e encenadas por negros
nos Estados Unidos.
125. No Haiti, as mulheres por vezes
adotam essa postura de desafio, na maior parte dos casos ao dançar com um
homem. Com essa postura, elas testam ou contradizem, com graça e humor, o
impulso do dançarino [Figura 39]. Este é um uso despreocupado,
informal, de uma atitude que tem um sentido geralmente severo e proibitivo no
mundo dos minkisi n'kondi, no próprio Kongo [Figura 40].[102]
126. A pose da encruzilhada - mão
direita apontando para o céu, mão esquerda paralela à linha do horizonte -
caracteriza os já referidos niombo. Curiosamente, uma representação
pintada do espírito dos cemitérios haitiano, Barão Samedi, o mostra nessa mesma
pose [Figura 41]. O espírito, cercado por instrumentos
que remetem à morte (picareta e pá para cavar sepulturas, uma lápide), aponta
com a mão direita erguida e se apoia sobre uma bengala, com a esquerda. Mas a
configuração do gesto permanece intacta.[103]
127. Outra representação desse gesto no
Haiti é muitíssimo presente na decoração encontrada no cume dos bastões das
bandeiras vodu. No Haiti, essas bandeiras são desfraldadas para anunciar
a vinda dos deuses. Frequentemente, elas desfilam de maneira
cosmogramática, saudando os pontos cardeais de um determinado santuário e
indicando, assim, a fronteira entre os mundos. Nesse contexto, é significativo
que muitas delas apresentem, no cume de seu fuste, um elemento curvado em forma
de S, esculpido em madeira e pregado ou fixado ao eixo. O resultado é um gesto
enigmático com a mão direita para cima e a esquerda para baixo, lembrando
precisamente a leitura antropomórfica dos protetores de mão das mbele a
lulendo. as espadas para execução usadas na corte do antigo Kongo.
128. Na confecção de um cosmograma
ritual (vévé), às vezes uma linha reta é cruzada por uma curva dupla, à
maneira da decoração no topo da haste de bandeiras vodu
desenhadas sobre o chão, com farinha de milho. Esse arranjo de
linhas se torna um pwe. Karen McCarthy Brown, especialista em simbolismo
artístico haitiano, nos diz que um pwe é um lugar onde os poderes se
cruzam. É um gesto traçado que sacraliza um lugar ou objeto por meio da
invocação dos espíritos.
129. O gesto aparente no cume dessas
bandeiras vodu, como se elas fossem espadas vivas com panos honoríficos
a ela atados, deve ser considerado uma possível reformulação crioula de uma
tradição Bakongo. No Kongo, este gesto - em espadas e niombo - marcava
as fronteiras entre dois mundos, e essa é precisamente a função da bandeira vodu.
(a)
Niombo; (b) Mbele a Lulendo; (c) Bandeira vodu
130. Talvez a incursão mais dramática de
um gesto Kongo no Haiti seja a reemergente posição biika mambu. Esta é a
famosa pose com a mão esquerda no quadril e a direita para frente,
frequentemente chamada de telama lwimba-nganga no norte do Kongo.
MacGaffey suspeita que a expressão significa “verticalidade,” em um sentido
especificamente cosmogramático: "As direções Norte-Sul são as direções de nganga,
pelas quais os ventos trazem tempestades especialmente violentas. Bitembo
bia nganga.”
131. A origem étnica desta pose era
conhecida e ela foi assim identificada, na década de 1930. Courlander escreve:
"As mulheres às vezes usam uma pose Kongo, com a mão esquerda no quadril e
o braço direito estendido para fora, num gesto que empresta boa dose de graça
ao que de outra forma poderia ser uma estética violenta."[104] Lembremos que, no Kongo,
acredita-se que colocar a mão esquerda no quadril subjuga todo o mal, enquanto
a mão direita estendida age para fazer “vibrar” o futuro de maneira positiva.
Mulheres importantes usavam essa postura ao amanhecer, para fazer "vibrar
positivamente" o futuro dos guerreiros da cidade. Advogados usavam o poder
da pose para bloquear ou encerrar um processo.
132. Karen Brown relata que este é um
gesto muito comum na dança ritual afro-haitiana. Também é adotado pelos major joncs, os balizas de banda em
desfiles de rua feitos antes da Quaresma e chamados rara. A
instrumentação dos rara é fortemente influenciada pela música Kongo. As
famosas trombetas de bambu de uma nota só (vaccines) usadas nos rara
quase certamente derivam das trombetas de bambu Kongo (disoso),
como verificamos ao comparar tocadores de vaccines em uma pintura
haitiana moderna [Figura 42] e um autêntico tocador de disoso
em Luangu Nzmbi, na margem norte do Zaire, em foto tirada durante o verão de
1980 [Figura 43]. A ressonância da nota única - ou par
de notas - do disoso é evocada de perto pelos sons das vaccines. Ambos
derivam da música dos pigmeus, onde apenas uma ou duas notas são tocadas por
cada músico.[105] Nessa
tradição, a linha melódica emerge da fusão entrelaçada de múltiplas notas
isoladas.
133. Bandas de rara observadas
nos invernos de 1975 e 1976 no oeste de Port-au-Prince incluíam um longo
instrumento de metal, sugerindo uma tradução da igualmente longa flauta
transversa usada no Kongo e feito de carica papaya.[106] Portanto, há um agrupamento significativo dessas
influências, especialmente da técnica de execução. Presumivelmente, esta foi
transladada para o Haiti dos bolsões da cultura dos pigmeus localizados ao
norte dos Bakongo, conforme documentado pelas fotografias de pigmeus e seus
acampamentos feitas por Manker e apresentadas em um livro sobre a cultura do
Kongo setentrional. Portanto, é certo que os criadores dos rara incluíam
ou foram fortemente influenciados pela música de pessoas com herança Kongo.
134. Hoje, contudo, o rara
tornou-se uma estratégia cultural haitiana, não um símbolo da etnicidade
africana. O conhecimento das ligações conscientes com práticas Kongo foi
apagado por improvisação e mudança completas. Ainda assim, a “pose Kongo”
continua sendo parte integrante da estruturação percussiva de certos líderes
que marcham ao ritmo dos rara. No Kongo, esta era uma pose ligada à
autoridade. Nos rara, ela é uma prerrogativa do importante major jonc,
“que faz malabarismos com uma batuta de metal” e é uma das principais figuras
das bandas.[107] Quando um grupo rara encontra um grupo rival, os respectivos major
joncs giram seus bastões e fazem a pose Kongo, como que tentando anular o
virtuosismo de seus rivais.
135. R. Duvivier, um pintor popular do
Haiti, captou brilhantemente o espírito dos rara em uma obra que
aparentemente data da década de 1970 [Figura 44].[108] O grupo é conduzido por um líder a cavalo e por um
indivíduo que carrega o estandarte do grupo, onde se lê Bel Mevêil.
Mulheres dançam em uma pose de desafio, com as duas mãos na cintura; vacinnes
são tocadas; e tambores de derivação Kongo são percutidos. No meio dessa alegre
cena, dois major joncs performam. Um se
inclina para o chão enquanto gira sua batuta de metal; mas o outro, em uma
jaqueta reluzente com lantejoulas, gira seu bastão com a mão direita e mantém a
mão esquerda no quadril. Assim, ele abre caminho, com vitalidade e poder.
136. Sabemos que as chamadas
"shotgun shacks" [[residências domésticas retangulares e estreitas]]
da Nova Orleans negra derivam, na verdade, de protótipos haitianos, trazidos
por migrações negras de Sainte-Domingue para o porto de Mississipi, no início
do século XIX.[109] Também há
pouca dúvida de que o esplendor de contas, lantejoulas e penas dos trajes
usados nas ruas pelos grupos de “índios” em Nova Orleans derivam, em conceito e
nos seus pormenores, de trajes com lantejoulas e contas semelhantes encontrados
nos rara afro-haitianos - o mesmo tipo de traje usado pelo personagem
que faz o gesto biika mambu na pintura haitiana acima referida.[110]
137. Assim, a "pose Kongo"
pode ser rastreada por meio dessas várias correntes de influência. Telama
lwimba-nganga tornou-se pose Kongo no Haiti; em seguida, pose
Kongo se tornou a pose drum majorette nos Estados Unidos
continental. Quase todos os primeiros balizas de banda do Sul, dentro e ao
redor de Nova Orleans, eram negros, ou ao menos assim afirmam os informantes em
Nova Orleans.[111] Mas a
qualidade dominante, estritamente cinzelada e nítida da pose, com a mão
esquerda no quadril e a direita estendida, girando um bastão brilhante, era
evidentemente poderosa demais para que os brancos por ela não se encantassem.
Hoje, diz-se que o centro mundial a arte do baton twirling [[giro do
bastão]] é o Mississippi. E acontece do Mississippi ficar a leste da Louisiana
e sob influência de Nova Orleans.[112]
O livro Baton twirling: the fundamentals of an art and skill, de
Constance Atwater, foi gentilmente compartilhado comigo por John Szwed, que
argumentava, já em 1970, que o baton twirling, hoje considerado
tipicamente estadunidense, podia muito bem esconder profundas raízes africanas
(Szwed, de fato, inspirou a reinvestigação das raízes desse importante fenômeno
popular). Em certo trecho de seu livro, Atwater observa que o modo adequado de
performar envolve colocar a mão esquerda no quadril e girar o bastão com a mão
direita. Em outro trecho, ela diz: "Faça um pequeno movimento corporal
atrevido, de modo que você não pareça um zumbi usando salto alto.”[113] Por uma coincidência que os
tradicionalistas Bakongo diriam não ser em absoluto uma simples coincidência,
esta passagem - em um livro que ensina as pessoas a fazerem poses, duas das
quais na verdade podem ser de influência Kongo - usa, sem o respeito apropriado,
ambos os nomes em quicongo para Deus (Nzambi) e cadáver (nzambi).
138. Desde encorajar guerreiros à
vitória no Kongo até incentivar esportistas à vitória no Missisippi, a função
desse gesto mudou muito pouco. Um dos mistérios que cercam os
balizas de banda nas Índias Ocidentais e em outras partes das Américas
negras se refere ao fato de homens nessa função às vezes adotarem elementos de
vestimenta feminina.[114] Tal
anomalia talvez possa ser explicada pela relação com uma herança cultural
derivada do uso do telama e que diz respeito à presença de mulheres
importantes incentivando a força e o sucesso dos homens. No entanto, este é um
problema muito complicado para ser resolvido nestas páginas. É quase certo que
a confiança e autoridade inerentes a esta postura, com ou sem um bastão ou
cetro de autoridade, mantiveram sua vitalidade em três culturas (Kongo,
haitiana e negro-estadunidense), durante dois séculos de circulações pelo
Atlântico.
139. Este complicado gesto sobrevive em
outro contexto, como ícone da performance negra estadunidense. Em meados dos
anos 1960, as Supremes, um grupo de cantoras negras, ficaram famosas por
uma música em que clamavam "Stop” in the name of love!"[115], enquanto faziam a exata
pose Kongo que os anciãos costumavam usar para impedir o mau comportamento em
uma dança tradicional: mão esquerda no quadril, mão ou palma direita à frente
do corpo. E esta é apenas uma faceta de algo que provavelmente envolve toda a
arte verbal afro-estadunidense.
140. um estudo importante chamado Aesthetic
patterning of verbal art and the performance-centered text, Elizabeth Fine
examinou os meios estilísticos de um performer negro em ação, recontando a saga
de Stagolee, um clássico do folclore negro. O artista era James Hutchinson, se
apresentando em Austin, Texas, em maio de 1977. Fine o observou detidamente:
141. [Hutchinson] realiza suas
graciosas e fluidas mudanças de personagem por meio de um sistema de posturas
extremamente econômico e altamente padronizado. A postura mais comum [de
Hutchinson] envolve duas variações. Ele frequentemente fica de pé com a mão
esquerda no quadril e seu peso sobre o pé esquerdo, seja com mão direita
erguida na altura do ombro para enfatizar algo, ou com o braço direito sobre o
peito, com a mão fechada. Essas duas posturas intimamente relacionadas ocorrem
com tanta frequência que comecei a abreviá-las como pose “quadril/mão” ou pose
“quadril/braço.”[116]
142. Ela apresenta esquematicamente
estes gestos básicos assim:
(a)
Pose “quadril/mão”; (b) Pose “quadril/braço”
143. Ambos são ícones relacionados ao
Kongo, vividos como expressão fundamental dos afro-estadunidenses. O gesto telama
é imediatamente reconhecível como derivado do léxico dos antigos gestos Kongo,
especialmente naqueles famosos contextos para declamação e oratória de alto
nível - os tribunais de justiça. Mas o outro gesto - mão esquerda no quadril,
mão direita fechada contra o coração, chamado no Kongo de futika nkome -
nós ainda não encontramos em nossas discussões sobre os gestos Bakongo. No
entanto, também ele carrega um significativo peso semântico:
144. No Kongo, futika nkome
("atar o polegar") ou kanga mooko ("atar a mão"), ou
seja, segurar a mão direita fechada sobre o coração, com a mão esquerda no
quadril é [um gesto] muito comum. É uma forma de tentar escapar de uma
situação negativa. Você pressiona o lado maligno com a mão esquerda no quadril
e, com o punho sobre o coração - um sinal de poder - você comunica, sem
palavras, um sentimento que tem em seu coração (ntima), alcançando o que
é profundo dentro de você. Com este gesto você liga, como se fosse um motor, o
seu coração e então você escapa, livre do poder opressor do mal.[117]
145. Assim, tanto os gestos relacionados
a telama quanto os relacionados a futika nkome têm a ver com
poder e força mediadora. O performer negro no Texas usava esses ícones - que
originalmente simbolizavam conquista de poder e contenção do mal - como
estratagemas culturalmente estéticos, ao invés de ferramentas aplicadas de modo
estrito em um processo judicial ou em algum outro momento importante, sagrado.
Mas nós constantemente voltamos ao seu poder e força recorrentes, tão ritmados
que quase param o próprio fluxo do tempo, como postula Fine:
146. Essas posturas básicas também
fazem parte da estrutura rítmica. Eles fornecem uma “grade rítmica” de base,
para usar o termo de Harold Scheub, da qual emergem todas as outras imagens
não-verbais. Uma maneira pela qual a grade não-verbal funciona esteticamente é
gerando antecipação na audiência. Conforme os padrões não-verbais começam a
emergir, a atenção do público é cativada pela atratividade das repetições
padronizadas [...] é uma antecipação que é sentida [...] parte do
poder por trás dos movimentos [de Hutchinson] de imitar Stagolee
correndo ou cumprimentando seu irmão e irmã no Inferno parece derivar do seu
contraste com relação a tantos outros ícones que são construídos a partir das
poses “quadril/braço” e “quadril/mão.”[118]
147. A definição dessas poses como
"ícones" é historicamente apropriada. Este era precisamente o impacto
e a realidade delas no mundo da jurisprudência e da arte funerária Kongo. Este
era certamente o impacto da pose “quadril/mão" no domínio dos minkisi
n’'kondi, imagens veiculadoras de leis e moralmente intimidantes por
excelência.[119]
148. A performance de Hutchinson durava
cinco minutos, mas parecia durar mais: "As repetições contínuas das mesmas
posturas básicas [...] parecem funcionar contra a progressão do tempo."[120] De fato, elas o fazem e um
dos propósitos do mambu era exatamente esse: desacelerar o tempo,
construir uma tessitura de dança, provérbio, ditado, postura e oratória para
ganhar tempo a fim encontrar um compromisso honroso para todas as partes. Isso
era feito para que o caso pudesse terminar em harmonia, não em ódio e dissenso
permanentes. E, em outro nível, como elementos espirituais e intuitivos, telama,
pose Kongo, a pose drum majorette e a pose “quadril/mão” se
misturam em uma corrente de influências historicamente relacionadas que, em
última análise, nos leva de volta a Mbanza Kongo, onde os grandes advogados
declamavam, onde as grandes autoridades ficavam em pé com confiança e
sabedoria, muitas vezes nesta pose de grandeza.
149. Nossa discussão das claras ligações
entre postura e altitude nas estátuas Kongo e nos gestos afro-estadunidenses
termina com a altitude mais indelevelmente negra de todas, o gesto booka
ou yangalala. Booka refere-se a elevar as duas mãos acima da
cabeça, com os dedos bem separados. A palavra se refere a gritar por socorro,
chorar ou proclamar. Com este gesto, a pessoa muitas vezes proclama sua
alegria; portanto, também é chamado yangalala. Este é um verbo de
atitude, que significa: estar em êxtase, exultante, alegre, bem.[121]
150. Existem implicações místicas para
os usos desse gesto. Erguer as mãos acima da cabeça com os dedos bem afastados
(nlembo nia zibuka) é em si um sinal de alegria e plenitude de vida (sakalala).
Também proclama “ser conhecido e muito ativo” (mwangana). Para alguns
tradicionalistas Kongo, o motivo dos dedos amplamente separados lembra cerdas (mwekese),
no sentido de irradiar forças e, portanto, expressa “sentir-se pronto para voar
com espírito próprio.”[122]
151. Um detalhe do lado de um diboondo
Mboma Kongo [Figura 45] captura a versão de um oleiro para
esse gesto. Aqui, uma pessoa em lamentação grita, proclamando uma vitalidade desafiadora
contra o vazio escuro da morte. A contraste nítido entre o vazio deliberado e
as mãos levantadas, carregadas de positividade, lembra as palavras de Fu-Kiau,
um Mu-Kongo: "Com este gesto, uma pessoa está enviando forças cintilantes
(minienie), forças positivas, dos ancestrais para este mundo."[123] Em outras palavras, o sinal
de êxtase faz da pessoa um conduíte, um vau através das águas, recebendo e
compartilhando mensagens de felicidade e poder. É uma resposta, expressa no
fraseado e elevação das mãos, ao desafio da encruzilhada, à presença da morte,
à proximidade de Deus.
152. Já em 1673, escrevendo sobre os
negros na ilha de Barbados, Richard Ligon capturou um fragmento desse
patrimônio comunicativo. Ele havia acertadamente notado a presença de cativos
de “Angola” na ilha, bem como de escravizados vindos de Guiné, Bonny, Cacheu e
Gâmbia. De forma perspicaz, ele escreveu sobre esse gesto entre os negros: “A
maioria reconhece Deus, conforme transparece por meio de suas ações [...] [uma
pessoa] olha para o céu em busca de retratação e levanta as duas mãos.”[124]
153. Em seu New and exact account of
Jamaica (1740), Charles Leslie relatou o sacrifício de um porco em um
enterro onde havia um homem batendo em um tambor, relembrando os sacrifícios de
porcos e os tambores ngoma em funerais Kongo. Uma tigela de sopa havia
sido colocada na cabeceira do túmulo e uma garrafa de rum na extremidade
oposta.[125] Os detalhes da
garrafa de rum e do sacrifício do porco são dignos de nota, pois Arna Bontemps
- que mergulhou em narrativas de escravizados a ponto de incorporá-las em seu
próprio manancial criativo -, ficou impressionado com gestos honoríficos
idênticos, que caracterizavam os funerais negros tradicionais do continente.
Ele os representou na forma de um enterro ficcional e hibridizado, em que
descreveu cuidadosamente o gesto que contraria o vazio com vitalidade e
afirmação:
154. Para baixo, para baixo, para
baixo; o velho Bundy já se foi. Ponha uma jarra de rum a seus pés [...] Asse
um porco e ponha em sua sepultura [...] Eles haviam entoado uma canção
sem palavras. Eles estavam ajoelhados com os rostos voltados para o sol.
Suas mãos estavam no ar, os dedos separados [...] no lugar onde os dois
mundos se encontram. [ênfase nossa].[126]
155. Stewart enfatiza o caráter
afro-americano desse gesto: "Ele não é um aparte; é fundamental. Raramente
vi brancos engajados nesse gesto, braços esticados, dedos abertos. Mas vi isso
nos Estados Unidos negro, no Suriname, no Brasil e em Senegal.''[127] Isso sugere um reforço
maciço. Dada a preponderância do impacto Kongo nos Estados Unidos, no entanto,
é justo homenagear os detentores desta tradição com seu nome. De pessoas
ajoelhadas e fazendo este sinal na fronteira entre os mundos, em Black
Thunder de Bontemps, até o trabalho de outra artista, Eudora Welty, a
documentação desse tesouro inestimável continua. Na década de 1930, Welty
fotografou mulheres negras em uma igreja em Jackson, Mississippi. As mulheres
estavam "falando em uma língua desconhecida." Muitos estavam em
estado de êxtase; outros estavam ajoelhados no altar. E uma mulher, vestida de
branco, fazia o familiar gesto com suas mãos [Figura 46].[128]
Dos ramos com garrafas Kongo às árvores
de garrafa afro-estadunidenses
156. Do leste do Texas até a costa da
Carolina do Sul, estende-se uma incrível tradição visual afro-estadunidense: as
árvores de garrafa.[129] Eudora
Welty as menciona em um de seus contos sobre o Mississippi:
157. Na frente havia um pátio de
terra limpa, com cada vestígio ou grama cuidadosamente arrancado e o chão
marcado em espirais profundas pelos golpes da vassoura de Livvie. [...]
contornando o caminho do corte profundo do Natchez Trace abaixo, havia uma
fileira de árvores de murta de crepe desfolhadas, com cada um de seus galhos
terminando em uma garrafa colorida, verde ou azul.[130]
158. Terra varrida ao redor de
habitações é algo comum nas Áfricas Ocidental e Central tradicionais. A árvore
de garrafa em si é uma invenção crioula, derivada de fontes sutilmente
misturadas. Mas voltemos à narração de Welty:
159. Livvie [uma mulher negra] sabia
que poderia haver um feitiço colocado nas árvores e ela estava familiarizada,
desde que nasceu, com a forma como as árvores de garrafa impediam os espíritos
malignos de entrarem em casa, atraindo-os para dentro das garrafas coloridas,
de onde eles não podiam mais sair. Solomon havia feito as árvores de garrafa
com suas próprias mãos ao longo dos nove anos, trabalhando cerca de um ano em
cada árvore, e sem sinal de que tivesse qualquer desconforto em seu coração.
Pois ele tinha tanto orgulho de suas precauções contra espíritos quanto tinha
com relação à sua casa. Às vezes, quando banhadas pelo sol, as árvores de
garrafa pareciam mais bonitas do que a própria casa. [ênfase nossa] [131]
160. Árvores de garrafa do Mississippi não são
apenas objetos rituais. São obras de arte cuidadosamente executadas [Figura 47]. O sol nas garrafas, visto contra o
céu limpo, é, com efeito, deslumbrante. Na verdade, é tão deslumbrante que os
vizinhos anglo-saxões se apropriaram desse costume e o converteram em seu
próprio, misturando os galhos com garrafas de derivação Kongo com a imagem da
árvore de Natal. Há, porém, diferenças nas duas tradições, sendo a versão negra
mais afinada com o contorno orgânico do esqueleto da árvore, produzindo uma
espécie de dança gestual das garrafas azul cobalto, verde ou de outras cores,
nas pontas de seus galhos. Eudora Welty ilustra o modo negro em Simpson County,
ao sul de Jackson, com um exemplo da década de 1930 [Figura 48].[132] Em contraste com essa forma, executada em murta de
crepe e em outras espécies em um estilo que poderíamos designar de
“garrafa-ramo,” a tradição anglo-estadunidense é um tanto diferente. James D.
Martin, um morador do Mississipi que escreveu um cuidadoso estudo dessas
manifestações, nos diz o porquê: "Os brancos valorizam os cedros como
molduras das árvores de garrafa por causa de suas formas; eles gostam do fato
do cedro ter muitos galhos ascendentes para colocar garrafas em exposição. Pelo
mesmo motivo, os cedros são as árvores de Natal do Mississippi, e sua madeira é
dura, durável e relativamente resistente ao apodrecimento."[133]
161. As árvores de garrafa
anglo-estadunidenses no Mississippi costumam mostrar o efeito aparado e bem
agrupado de um abeto natalino, enfeitado com esferas e outras bugigangas
coloridas. Hubert Glenn, um anglo-estadunidense da cidade de Sarepta,
localizada no norte do estado e ao sul de Oxford, misturou o brilho
afro-estadunidense (os azuis, marrons e verdes brilhantes das garrafas que
selecionava) com toques do Ocidente industrializado e do Cristianismo. No topo
de uma de suas árvores, por exemplo, ele colocou um farol de automóvel e, sobre
este, uma estrela de Belém de lata [Figura 47].
162. Mas, enquanto o Natal acontece
apenas uma vez por ano, essa árvore dura o ano todo. Não há dúvida de que o
costume de proteger quintais e residências de todo o mal com galhos enfeitados
com recipientes de vidro veio do Kongo e de outros territórios culturalmente
correlatos na África Central. A mimese da ideia central feita por brancos não
pode esconder as origens desta tradição. O costume veio na memória dos negros
do Kongo, via Nova Orleans, Charleston e Índias Ocidentais. Em algumas partes
dessa última região, existem árvores de garrafa desde o final do século
XVIII.
163. L'Abbé Proyart, em sua história do
Loango publicada em 1776, menciona o costume original de combinar galhos de
árvores com recipientes, como ele viu na costa norte do Kongo:
164. Todos, depois de terem cultivado
seus campos, cuidam para afastar a esterilidade e os feitiços maléficos fixando
na terra, de certa maneira, ramos de determinadas árvores, ornados com alguns
pedaços de cerâmica quebrada. Eles fazem mais ou menos a mesma coisa na frente
de suas casas, quando devem se ausentar por um tempo considerável. O mais
determinado dos ladrões não ousaria cruzar a soleira dessas casas, quando as vê
assim protegidas por esses misteriosos sinais.[134]
165. No Kongo, onde a cerâmica perfurada
ou quebrada é praticamente um sinônimo da imagem do cemitério, e onde os
especialistas em rituais são famosos por sua habilidade de fazer curas ou
lançar maldições usando certos galhos e ramos, é óbvio para os iniciados o que
"esses sinais misteriosos" comunicavam: a retribuição moral levada à
cabo pelos mortos e espíritos, em cujo mundo a cerâmica perfurada ou quebrada é
misticamente restaurada. anos depois, o mesmo costume foi observado entre
uma população afro-americana da ilha de Dominica, nas Índias Ocidentais. Em um
livro publicado em 1791, Thomas Atwood ficou maravilhado com a convicção dos
negros da ilha “no poder dos mortos, do sol e da lua [...] até mesmo no de
varas, pedras e terra de túmulos penduradas em garrafas em seus jardins.”[135]
166. Mudanças sutis podem ser percebidas
já aqui: um câmbio no uso da cerâmica - perfurada ou quebrada, a fim de liberar
o domínio deste mundo sobre esses objetos e propiciar seu uso no outro mundo -
para garrafas, presumivelmente ocidentais. Mas o uso apotropaico de terra do
cemitério, intimamente ligada aos espíritos, para proteger os lares das pessoas
e trazer boa sorte é um conceito Kongo profundamente arraigado.
168. Entretanto, no próprio Kongo
ocorreram mudanças semelhantes. Garrafas, jarras, bacias, faianças e louças
importadas aparecem ou substituem as formas tradicionais de cerâmica. Um
cemitério tradicional perto do que é hoje a cidade de Mbanza Ngungu, entre Kinshasa
e Matadi, foi fotografado por R. P. Gérard em 1909-10 [Figura 49].[136] Sua foto mostra a exposição deliberada de garrafas e
pratos perfurados ocidentais, pregados no tronco de uma árvore ou
cuidadosamente fixados nas pontas de galhos propositalmente afiados. Trata-se
de uma autêntica escultura de pratos em galhos semelhante a que Proyart
relatou. Fu-Kiau explicou por que essas constelações de vidro e faiança,
círculos e cilindros, são erguidas acima de uma sepultura:
169. Você pode ver garrafas alçadas
em postes acima de um túmulo em quase qualquer lugar nas aldeias Kongo
tradicionais. Elas podem conter facas ou pregos. As garrafas erguidas (manika
bwaata) são colocadas no alto, tal qual uma bandeira (tedimisa bwaata).
170. As garrafas podem conter vinho
de palma, por intermédio do qual os vivos pedem ao morto [neste caso, um
famoso taberneiro] que não leve consigo todas as suas habilidades para o
outro mundo. Ou as garrafas podem estar cheias de óleo de palma, o que
significa que um curandeiro morto está sendo solicitado a não levar todas as
suas curas apaziguadoras e seus conhecimentos com ele para a sepultura, para
que assim os vivos não sejam forçados a reaprender sua tradição por si próprios.[137]
171. No caso do túmulo perto de Mbanza
Ngungu, o poder e a bênção do espírito da pessoa que possuía esses símbolos que
foram alçados e perfurados à força são solicitados a ficar e, assim, continuar
a inspirar e aumentar a fortuna dos vivos. A elevação interrompe o contato com
o solo. Ela impede a partida de conhecimentos preciosos, acumulados como
micropontos místicos, sobre esses pratos, garrafas e utensílios. Transladar
esses gestos de elevação e de encapsulamento do cemitério para o jardim na
frente de uma casa é algo realmente intimidador.
172. James D. Martin lembra que as
árvores de garrafa que viu em sua infância no Delta eram especialmente bonitas:
“Lembro-me de uma estrutura azul ao lado do rio Yazoo [...] em sua maioria,
senão inteiramente, azul e lançando uma sombra azul no quintal. Lembro-me da
declaração de seu proprietário, firme e positiva, de que ela afastava os
fantasmas do rio.”[138] Ele
também foi informado por um negro que produzia árvores de garrafa perto de
Oxford, na parte norte do estado, que a função principal dessas estruturas
reluzentes era a captura de "assombrações." Esse último informante
até revelou a Martin a fórmula para fazer árvores de garrafa: "Despeje
tinta na garrafa escolhida a fim de cobrir totalmente seu interior, usando
cores brilhantes para atrair os espíritos hesitantes; unte a boca da garrafa
com um pouco de gordura para que eles entrem sem dificuldade; e arrume as
garrafas em uma árvore em um local ensolarado para que a luz da manhã destrua
os espíritos malignos nelas presos."[139] Em uma estrada para a cidade de Bruce, ao sul de
Oxford, no condado de Calhoun, uma árvore de garrafa muito elaborada foi
encontrada, contendo duzentas e vinte e cinco garrafas, de diferentes formas e
tamanhos. Mas a maioria dessas estruturas incorpora uma quantidade bem menor de
receptáculos.[140]
173. O costume está também relacionado a
formas improvisadas de arte ao ar livre na América negra e nas Índias
Ocidentais. Roger Abrahams revelou que, na ilha de Nevis, negros amarram placas
de metal e objetos em árvores para produzir "relâmpagos."[141] Em sua própria
reinterpretação dessa tradição, o falecido Henry Dorsey, um artesão
afro-kentuckiano de grande talento, ergueu no ar objetos que tinham a ver com
movimentos giratórios. São emblemas de movimento e de revolução, estruturas do
mundo industrial que obviamente o desafiavam [Figura 50].[142] Perto de Killen, Alabama, há um notável homem negro
que vive sozinho e que, por razões secretas próprias, pregou chinelos e outros
objetos no tronco e nos galhos de uma árvore diante de sua casa.[143] Estas são faíscas privadas,
produzidas pela colisão de uma maciça continuidade Kongo e Angola com as
percepções criativas dos negros estadunidenses.
Revelações de uma quarta dimensão:
túmulos Kongo-Atlânticos
Como
pretensas epifanias de experiências extrassensoriais, os Readymades pressupõem a existência de
um "metamundo" que Duchamp descreveu como
"quadridimensional." Ele explica que, se uma sombra é uma projeção
bidimensional de uma forma tridimensional, então um objeto tridimensional deve
ser a projeção de uma forma quadridimensional. Assim, o objeto mais simples
contém a possibilidade de uma revelação.
-
William S. Rubin. Dada. Surrealism and Their Heritage. 1968
Os membros de
um dos clãs podem ir ao cemitério para pedir a seus ancestrais que venham em
seu auxílio e lhes comuniquem, por meio de sonhos, a solução.
- Kimpianga
Mahaniah, La Mort Dans la Pensée Kongo. 1980
174. O poder dos túmulos Kongo e dos de
negros estadunidenses, que herdam um conjunto de influências formais
originárias do Kongo e Angola [Figura 51, Figura 52, Figura 53, Figura 54, Figura 55
e Figura 56], deriva do além, que é indicado pelos
objetos que os adornam. Uma árvore mbota, plantada no túmulo de um
ancião, é uma indicação perene do mundo sob suas raízes; pedaços de tubulações
de ferro ou cerâmica sugerem, da maneira similar, viagens subterrâneas, através
da água; uma concha branca representa o tempo e o cosmos na forma de uma
requintada miniatura espacial, mas também indica “o branco,” o mundo dos
ancestrais abaixo ou além do mar.
175. Assim ornamentados, os túmulos
Kongo tornam-se earthworks rituais, portas conceituais para outro
universo, um campo intrincado de signos mediadores. A função desses signos, às
vezes materialmente simples mas conceitualmente muito
ricos, antecipou alguns dos objetivos da arte moderna ocidental, especialmente
aqueles expressos por Marcel Duchamp. Existem potentes analogias entre os
"readymades" de Duchamp e alguns dos objetos colocados sobre os túmulos
Kongo e afro-americanos - relógios parados, telefones com seus receptores fora
do gancho, guidões, âncoras e muitas outras coisas. Pois, como Duchamp, os
Bakongo procuram impor uma quarta dimensão à tridimensionalidade das coisas
comuns. No entanto, a colocação de uma máquina de costura [Figura 57][144] ou de um guarda-chuva sobre um túmulo Kongo gera mais
do que surpresa estética ou potencialidade expressiva por meio de justaposições
incomuns. Quando tais objetos foram as últimas coisas usadas pelo morto,
acredita-se que eles ficam impregnados com traços de seu espírito e podem ser
usados para persuadi-lo a franquear seus talentos, em sonhos e
inspiração, para o benefício de seus descendentes, como na epígrafe citada no
início desta seção.
176. Em suma, a arte Kongo para os mortos impõe a
sabedoria e o brilho do mundo do quarto momento do sol - o meio-dia dos mortos,
quando é meia-noite em nosso mundo - sobre objetos iluminados pelos três
primeiros momentos - o intervalo de tempo que define o arco da vida de uma
pessoa. Com efeito, as decorações dos túmulos Kongo impõem múltiplas dimensões
em formas e gestos aparentemente simples. Como vimos, essas dimensões no Kongo
incluem medicina, direito, urbanidade, poder ideográfico de expressão e mediação.
177. Assim, fazer incisões na forma de
losangos ou perfurações deliberadas do mesmo formato na lateral de uma lápide
de terracota [Figura 58], por exemplo, serve para atravessar a
materialidade dos objetos assim tratados. Isto os conecta aos seus duplos
espirituais, onde todos os vazios são preenchidos na completude do círculo do
sol, no reino dos mortos. Até mesmo ficar de pé, como um sacerdote ou uma
mulher importante, na clássica pose Kongo, com a mão esquerda nos quadris e a
direita estendida, girando ou brandindo um bastão, se refere, como diz
MacGaffey, a ficar em pé em um sentido cosmográfico, em uma quarta dimensão. De
pé dessa maneira, a pessoa incorpora o eixo norte-sul, o eixo do especialista
em rituais, a linha que indica a fonte dos ventos que trazem tempestades
particularmente violentas, tembo bia nganga.[145]
178. Uma vez que a persistência e a
importância de uma tradição clássica são definidas em termos da riqueza dos
valores associativos agrupados em torno de suas expressões mais apropriadas,
fica claro como e por que a arte Kongo para os mortos sempre muda, mas ainda
assim permanece a mesma. Ela pode incorporar qualquer número de novas
expressões para efetivar os antigos gestos de poder e realização espiritual.
Não importa que a técnica de fazer figuras niombo aparentemente tenha se
perdido no trânsito Atlântico para as Américas. O mesmo tópico, o do retorno
espiritual - que poderia ser resumido pintando a emblemática espiral de uma
concha no peito de uma daquelas grandes figuras de pano vermelho no norte do
Kongo -, é produzido de forma igualmente potente pela colocação de uma concha
real nas superfícies dos túmulos em cemitérios negros no Texas, Missouri,
Geórgia, Carolina do Sul, Delaware e em outras partes do Sul estadunidense. E
não importa se o costume de esculpir bitumba ou mintadi se
restringe a um determinado tempo e espaço no Kongo. O mesmo júbilo relativo à
presença espiritual e vigilância, primorosamente miniaturizado, poderia ser
invocado no Kongo [Figura 55] ou na Carolina do Sul [Figura 56] colocando, sobre o túmulo, estatuetas
chinesas de porcelana associadas às pessoas falecidas.[146] Tais estatuetas tornam-se, assim, substitutas dos mintadi
no mundo Kongo-Atlântico.
179. Em termos da temporalidade Kongo, o
desaparecimento da estrutura social e dos conjuntos de instituições que deram
origem às elegantes lápides de terracota maboondo não é importante. No
Kongo, a eterna associação dos processos judiciais com a morte podia ser
simbolizada chamando os processos de bulu - perfurações feitas nas
coisas. Essa mesma imagem da morte e do fim das coisas neste mundo pode ser
indicada perfurando o fundo de uma caneca de porcelana ordinária, a ser
depositada sobre um túmulo [Figura 59]. Símbolos idênticos de quebrar a
concha da vida, reforçados por concepções, crenças e práticas semelhantes entre
outras civilizações da África Ocidental e Central, deram origem à quebra ritual
do fundo de copos, canecas, jarras e xícaras colocadas em cima de túmulos
afro-estadunidenses [Figura 60]. E, finalmente, os gestos de
cercamento (fazer luumbu) e incorporação (evocando os nkondi),
que estão intimamente entrelaçados na feitura desses recintos encantados para
os mortos, adquirem uma lógica de travessia criativa do tempo e do espaço.
Assim, garrafas embutidas no Kongo [Figura 54] transfiguram-se em uma única peça de
cerâmica embutida em um túmulo no oeste da Carolina do Sul [a peça mais
distante do observador na Figura 53].[147] O luumbu de garrafas da Figura 54, a meio caminho entre as paliçadas do
antigo Kongo e as paredes de concreto das tumbas do Kongo moderno, dá lugar a
blocos de concreto no oeste da Carolina do Sul. Essas paredes de garrafas
invertidas ainda marcavam túmulos na vizinha Geórgia até 1950. E equivalentes
de decorações de túmulos Kongo como kinzu (chaleiras de ferro) e nsu
mpembe (imagens de galinhas brancas) continuam a ser usados
na Carolina do Sul do final do século XX.
180. Assim, a arte tumular Kongo e
outras por ela influenciadas, ligadas a duradouras ideologias de mediação e
legitimidade, exibe sua própria lógica de persistência, transcendendo tempo,
lugar e classe. Seu notável poder de auto-abstração, compactando e remodelando
acalentadas percepções, elevou-se acima dos traumas da escravidão, do
imperialismo, da independência e mesmo dos desafios e alarmes que marcam nosso
século.
181. Já observamos a transformação da
arquitetura de concreto moderna em novas expressões de certeza atemporal nos
túmulos de importantes Bakongo desde a Primeira Guerra Mundial. Agora,
acrescentamos a essa evidência de resiliência a incrível difusão de influências
semelhantes, dos portos escravistas originais de Annapolis, Charleston, Nova
Orleans e outros lugares, para vastas porções dos Estados Unidos ao longo de
rios, trilhas e ferrovias do antigo Sul Profundo. O resultado foi o surgimento
de uma forma fundamental de arte estadunidense influenciada pela África. As
memórias de Mbanza Kongo e dos tribunais de nobres e plebeus podem ter se
perdido à medida que a etnicidade Kongo se confundia com afirmações culturais
afro-estadunidenses mais genéricas. Mesmo assim, a concepção do túmulo como um
amuleto animado, servindo de mediação para com os espíritos, permaneceu
intacta. De modo semelhante, sobreviveu a crença de que o monte de terra sobre
sepultura estava unido ao espírito dentro dela. Na delimitação de muitos
túmulos afro-estadunidenses com uma fileira de conchas ou vidro, constatamos
também vagos ecos do conceito de túmulo como pátio ou cercamento. O mais
impressionante é a continuidade de um conjunto de signos que advertem o
espírito dentro do cercamento, e abaixo da terra, com ênfase em antigas moedas.
182. As fontes para nossa avaliação
preliminar da influência artística Kongo sobre os cemitérios negros do Novo
Mundo necessitam ser explicitadas. As ligações entre o Kongo e a Estados Unidos
são discerníveis não apenas na literatura de viagens no Sul Profundo durante o
século XIX e às vezes antes, mas também na literatura correspondente referente
ao Caribe - em particular ao Haiti -, aonde muitos negros chegaram do Kongo e
de Angola durante o século XVIII. Os haitianos usam alguns dos mesmos símbolos
que os Bakongo na decoração de seus túmulos: árvores, conchas e casas em
miniatura. Além disso, às vezes eles consideram esses elementos de um modo que
é exatamente congruente com os argumentos Kongo. Isso é crucial se lembrarmos
dos conhecidos e bem documentados contatos entre a cultura artística dos negros
haitianos e a de Nova Orleans, efetivados por meio de migrações no início do
século XIX.[148]
183. Em tudo isso, o símbolo principal
da consciência inclusiva diz respeito à definição do túmulo como um amuleto (nkisi)
para intimidação moral e transcendência espiritual. Lembremos que a essência de
um nkisi no Kongo é o aprisionamento do espírito dentro de um recipiente
apropriado, em meio a terras espiritualmente impregnadas, além de elementos de
admoestação que comunicam ao espírito, por meio de formas, trocadilhos e
gestos, o que ele deve fazer ou não fazer para seu(s) dono(s).
184. Os túmulos Kongo e seus correlatos
literalmente encerram o espírito na terra. Acredita-se que essa terra esteja
impregnada de poderes místicos, o que é confirmado, nos Estados Unidos negro,
por uma miríade de amuletos cujo ingrediente principal é a chamada goofer
dust, a terra retirada da superfície de uma sepultura. Este nome deriva do
termo quicongo para uma pessoa morta, kufwa. Assim, o túmulo funciona
como um tribunal invisível de última apelação, onde uma pessoa que sofreu uma
humilhação pode recorrer aos seus ancestrais e pedir-lhes que vinguem,
misticamente, seus algozes. Da mesma forma, nos Estados Unidos, diz-se que uma
mulher negra, se preocupada com o alcoolismo do marido, pode ir ao cemitério e
marcar seu túmulo com a medida de uma de suas vestes. Em uma extremidade desse
eixo, ela crava uma estaca, como se fosse a cabeceira de uma cama; na outra
extremidade, ela crava outra estaca como estribo. Ao fazer isso, ela desperta o
espírito na terra do cemitério, assim como a alma de um nkondi é
despertada pelo martelar de pregos e lâminas [Figura 61].[149] O espírito então literalmente adquire o tamanho do
cônjuge que se comporta mal e que faria bem em corrigir seus modos
imediatamente. Pôr o espírito (simbolizado pela terra do cemitério) em contato
com uma pessoa (por meio da medida de sua vestimenta) exemplifica o
direcionamento do primeiro na confecção de um amuleto. Concentrando-nos nestes
princípios organizadores - incorporação e admoestação do espírito -, podemos
compreender o fluxo de outros elementos da tradição Kongo-Atlântica.
185. Vamos nos concentrar, portanto, em
oito elementos de admoestação do espírito nas sepulturas Kongo: (1) a árvore
plantada, com usos correlatos como a instalação de troncos ou árvores como
“faróis” ou “vaus” para o outro mundo; (2) tubulações, de todos os
tipos, que reafirmam a metáfora da viagem canalizada através dos mundos: (3) o
conceito de cercamento (luumbu): (4) conchas, que
espacializam o tempo e indicam a jornada em espiral ao mundo do além, bem como
estabelecem trocadilhos com a ideia de persistência: (5) espelhos, vidro,
fogueiras e lâmpadas; (6) captura do espírito nos últimos objetos usados
por uma pessoa (kanga mfunya); (7) o tema da
galinha branca (nsusu mpembe); e (8) emblemas modernos de
mediação.
(1) O emblema da árvore plantada
186. No Kongo e nos Estados Unidos
negro, árvores são plantadas diretamente sobre túmulos para expressar ideias de
imortalidade e durabilidade. Há, de fato, toda uma coleção de árvores no Congo,
cada uma com sua nuance simbólica especial, que emerge dramaticamente em
contextos funerários. Assim, por exemplo, a árvore mbota, famosa por sua
madeira extremamente dura, sugere a robustez dos espíritos dos ancestrais e
resistência às forças do tempo. Tais associações podem ter reforçado o uso
correlato do cedro nos Estados Unidos negro como madeira preferida para estacas
e cabeceiras de camas. Árvores mfuma são plantadas sobre túmulos da
realeza no Kongo, se valendo de trocadilhos verbais para ordenar ao rei (mfumu)
que busque a energia (fuma) primordial, segundo o ditado que diz:
“Aquele que está em contato com a origem permanece vivo” (mu kala kintwadiya
tubu i mu zinga).[150]
187. No caso de pessoas comuns, uma
árvore pode ser plantada para orientar o espírito a seguir suas raízes, que
indicam a direção do reino dos mortos: “Esta árvore é um sinal do espírito a
caminho da terra dos antepassados” (nti wau sinsu kya mooyo ku mpemba).[151]
188. Consideremos o túmulo de um chefe
Kongo do século XIX, fotografado perto da estação missionária de Mukimbungu,
cerca de trinta quilômetros a sudoeste da importante cidade de Luozi, no rio
Kongo [Figura 62]. A fotografia revela três túmulos, um
no primeiro plano e dois no segundo. Todos são ancorados misticamente e emanam
um sentido de eixo cosmográfico por conta das árvores sobre eles plantadas, que
indicam a consciência ancestral das analogias que ligam árvores a pessoas. O
túmulo em primeiro plano é cercado por um círculo de bacias brancas, furadas e
postas de cabeça para baixo. Elas são furadas justamente para indicar sua união
com a concha quebrada do corpo do morto; elas estão de cabeça para baixo para
comunicar o poder desagregador da morte; e elas formam um círculo para encerrar
o espírito do chefe dentro de um luumbu. Um rico depósito de canecas e
garrafas dentro do cercamento profere mensagens de preocupação e amor: que o
chefe, seguindo as raízes das árvores, possa ir a Mpemba em felicidade e
contentamento, e assim trazer sorte e fortuna aos seus descendentes. Logo, os
objetos reunidos focam sobre o ponto de entrada de suas mensagens para dentro
do outro mundo, por meio dos poderes mediadores das árvores.
189. A persistência dessa concepção nos Estados
Unidos negro foi observada no século XIX. Em suas Letters of a traveller
(1850), William Cullen Bryant registrou o fato de que um cemitério de brancos
na Carolina do Sul era localizado perto da cidade, enquanto os negros
enterravam seus parentes “perto de uma floresta [...] [onde] algumas árvores,
cobertas com longo musgo, erguem-se acima de centenas de sepulturas sem nome.'”[152] Até hoje, os túmulos mais
espetacularmente tradicionais na Geórgia e na Carolina do Sul negras costumam
ser localizados perto de - e, em alguns casos, até mesmo escondidos por -
bosques ou aglomerados de floresta. Eugene Aubin ilustrou a dramática presença
de uma árvore mapou sobre um túmulo na planície de Leogane, no sul do
Haiti, no início deste século. Na península sul do Haiti, onde as influências
Kongo são fortes, existem cemitérios do século XIX ou do início do século XX,
onde túmulos aparecem sob imponentes árvores [Figura 63], alguns deliberadamente aninhados em
suas raízes. Nesses cemitérios, diz-se que as árvores honram e fornecem sombra
aos mortos. De modo ainda mais importante, elas representam, como no Kongo, a
persistência do espírito: “As árvores em sepulturas no Haiti lembram o fato de
que elas sobrevivem para além de nós, de que a morte não é o fim."[153]
190. Uma fascinante pintura de Rigaud
Benoit, intitulada The Recall of the Dead, datada de 3 de junho de 1973
[Figura 64], é um poderoso documento sobre o papel
das árvores com relação aos mortos no Haiti. Em seu catálogo de pintura
haitiana, Pierre Apraxine explica alguns dos significados desse ritual, que é
mostrado se desenrolando perto das raízes de uma árvore junto às águas - que,
na consciência haitiana, dividem nosso mundo do além:
191. As almas, respondendo à
invocação do hougan [sacerdote] e usando as águas como porta de
entrada, passam do abismo para os govis, ou vasos de barro, dentro dos
quais serão mantidas e adoradas no altar da família.[154]
192. Sacerdotisas desenrolam as
bandeiras que portam, como sinais de mediação espiritual e de respeito pela
chegada dos mortos. A agitação do tecido na fronteira entre os mundos lembra
fortemente o costume Kongo de nikusa minpa, “balançar ou agitar pedaços
de tecido,” a fim de abrir a porta dos mortos com um sinal de saudação e
respeito.[155]
193. Mas o protagonista desta pintura é
a árvore. Ela indica “o ponto,” a porta entre os mundos. Suas raízes,
literalmente embebidas em poder espiritual e sobrenatural, ecoam nas formas de
seus ramos desfolhados, que buscam o céu. A árvore é uma pessoa. Ela é também
uma concha, abrindo-se para um vazio estígio no centro de sua verticalidade.
Uma parte de seu tronco parece assumir as características humanas de um rosto,
que é, na verdade, um crânio, de cujas cavidades oculares emergem raízes ou
ramos. A majestade do olhar artístico de Benoit permitiu-lhe, como praticamente
a nenhum outro pintor do Haiti, discernir as qualidades que identificam, na
imaginação haitiana, uma árvore como um sentinela, uma
pessoa e um caminho para os mortos. Tal qual um diboondo sobre um
túmulo, a árvore é, na verdade, uma concha quebrada, cujas formas rimam com a
da cruz e das duas casas com paredes partidas mais ao fundo, que de fato agem
como túmulos ou cercamentos simbólicos para o espírito invisível.
194. Embutida na estrutura da árvore
está uma inteligência cosmográfica que continua a ser enfatizada no paisagismo
ritual de alguns cemitérios afro-estadunidenses. Além disso, em contraste com
empregos meramente decorativos, o uso ritual de árvores em comunidades negras
dos Estados Unidos foi por vezes explicitamente explicado ou fundamentado.
Notemos este exemplo oriundo de Hazelhurst, no Mississippi: "No funeral,
os pregadores têm a oportunidade de proferir seus sermões cuidadosamente
compostos. É então que uma árvore de folhas perenes é plantada sobre a
sepultura. Tais árvores são identificadas com os que partiram e se florescem,
isso indica que tudo está bem com as almas."[156]
195. Existem inúmeros exemplos de tais
arranjos nos Estados Unidos. Em um cemitério perto da costa da Carolina do Sul,
o túmulo de Lenard Johnson (1836-1923) é presidido por um pinheiro, torcido
pelo vento, que há muito rompeu o pote de metal em que foi plantado e hoje se
eleva, com ímpeto, do meio do túmulo. No mesmo cemitério, há um pinheiro
plantado na cabeceira de uma sepultura em novembro de 1975. Tais tradições se
difundiram por toda a parte leste no sul dos Estados Unidos e se estenderam até
o Texas e outros estados do sudoeste. Assim, em Dallas - onde os primeiros
escravizados teriam chegado em 1847, com a família Miller do Tennessee -, o L.
Butler Nelson Memorial Park, um cemitério negro, tem várias árvores plantadas a
poucos centímetros das lápides [Figura 65].[157] Neste cemitério, não há como deixar de perceber a
correlação entre árvores e espíritos imortais, pois são muito frequentes as
lápides acompanhadas por tais imponentes presenças vivas.
196. Chegamos agora às estruturas
semelhantes a andaimes, feitas de toras, que no século XIX eram usadas como
"faróis" erigidos em colinas, para guiar os carregadores no que hoje
é o Baixo Zaire. Estruturas semelhantes, algumas sendo autênticas carruagens [Figura 66], são encontradas sobre túmulos,
possuindo conotações claras de apontar o caminho para o outro mundo.
197. Esse tipo de estrutura se eleva sobre dois
túmulos afro-estadunidenses em um desenho publicado em A zig-zag journey in
the sunny South, de Hezekiah Butterworth, datado de 1887 [Figura 67]. O sítio representado, no norte da
Flórida, data provavelmente da primeira metade do século XIX e revela uma
extraordinária riqueza de influências Kongo e Angola. Segundo informantes
Bakongo, a estrutura em andaime desenvolve o tema da "chama" como
emblema da mediação espiritual. Além disso, alguns informantes insistem em uma
interpretação ligada à mumificação, o que conecta essa estrutura
afro-floridiana à prática de certos povos Bantu que “por vezes colocam o corpo
em uma plataforma em uma árvore para que seque, em uma espécie de mumificação,
cujo propósito é assegurar a imortalidade do corpo para uso no outro
mundo."[158] Mas não há
como provar, a partir desse único desenho, se tal prática realmente existia
entre os negros dos rios do nordeste da Flórida durante o século XIX, mesmo em
assentamentos de escravizados fugitivos nos pântanos isolados.
198. Por outro lado, uma riqueza de
outras influências surge neste desenho: depósito de bens pessoais quebrados;
alimentos postos em um recipiente, para uso no primeiro dia no outro mundo; e,
o mais impressionante de tudo, um exemplo da tradição ntadi no Novo
Mundo negro: uma imagem sentada em uma pose de luto, com as mãos nos joelhos.
Além disso, o hasteamento da pele de uma raposa, como uma espécie de bandeira,
pode ser diretamente comparado com o hasteamento de bandeiras feitas com a pele
de gatos selvagens nos túmulos Kongo. Isso é também comparável com o
hasteamento da tanga honorífica feita de pele de gato (mbati), à qual
sinos (dibu) normalmente eram fixados e que serviu como indumentária da
nobreza Kongo durante séculos, como mostrado em ilustrações nos volumes de
Olfert Dapper, de 1668 [Figura 68] e de Degrandpré, de 1786-1787 [Figura 69].
199. Diz-se que pendurar uma pele ou um
tecido em uma haste acima de um túmulo originalmente indicava a contenção do
mal. Esse costume está relacionado à colocação de garrafas em galhos no Kongo e
em árvores no Velho Sul estadunidense, pois o espírito do morto era assim
conduzido a perseguir o mal, como um gato selvagem movendo-se durante a noite,
ou como um cão de caça, identificado por seu sino dibu. Era uma imagem
de fusão, mesclando nobre, Ieopardo, gato selvagem, cão e sino.[159] Aqui, a perseguição mística
do mal é expressa pela metáfora de uma raposa que se move atrás de sua presa
durante a noite. Um bico ou garra suspensos no andaime pode representar uma
versão crioula do amuleto nkisi a kibinda, que, com a ponta de uma garra
ou de um bico (koto), flagela os inimigos com doenças.[160] Trata-se, portanto, de um
gesto de proteção.
200. No Kongo, o costume de pendurar peles de gatos
selvagens sobre túmulos evidentemente desapareceu, mas a mesma admoestação aos
nobres mortos, para que mediem entre mundos e, como um leopardo, cacem todo o
mal a ser destruído, permanece em vigor por uma transferência sutil no sistema
de codificação. Hoje, essa advertência espiritual continua a ser feita
pontilhando paredes com manchas de leopardo, atrás de figuras humanas em pé, ou
outros tipos de decoração, que acrescentam assim o poder e a graça da mediação
feita por felinos à aura de transferência e retorno. Nosso exemplo, na Figura 70
foi fotografado cerca de
trinta e cinco quilômetros a leste de Tshela, em território Yombe, na primavera
de 1976.
(2) Tubulações
201. Os túmulos de alguns chefes Kongo
eram encimados por uma tora que sinalizava uma ponte entre os mundos, suspensa
em um monte de pedras [Figura 71]. A "ponte"-tora era chamada
de mwinga, uma palavra que se refere a um talo que sobrevive em pé em
uma pradaria após um incêndio, simbolizando, portanto, resiliência.[161] Mwinga também se
relaciona com mukookolo, “uma ponte formada quando uma árvore cai sobre
a água ou um riacho.”
202. Por extensão lógica - talvez
reforçada por um trocadilho ligando a palavra para ponte (mukookoo) à
palavra para tubo (nkoka) -, a haste oca de um instrumento para fumar
também passou a conotar o contato entre dois mundos: "O tuyau (mpimpa)
é algo por meio do qual os mortos projetam seu espírito e mensagens do mundo de
baixo chegam ao mundo superior."[162]
Finalmente, existe também a imagem do rei fumando seu cachimbo e misticamente
registrando, ou absorvendo, pensamentos ancestrais por meio da fumaça.
203. Há uma reconstituição notável desses traços
nos Estados Unidos negro: "Se um espelho refletir um cadáver, ele reterá o
espírito do morto e o impedirá de sair da casa; o mesmo acontecerá com a fumaça
de um cachimbo ou do fogo que arde na chaminé."[163] A imaginária do espírito passando como fumaça
canalizada ou água por tubulações nos prepara para as inúmeras sepulturas de
negros nos Estados Unidos decoradas com pedaços de tubo de ferro ou cerâmica
ou, às vezes, acessórios completos de encanamento. A frequência com que
encontramos decorações desse tipo no Velho Sul não nos permite supor que tais
tubulações tenham sido deixados nas sepulturas de modo acidental. O fenômeno é
muito difundido, de Staten lsland, em Nova York [Figura 72], passando por Delaware, no Missouri [Figura 73], e Virgínia, até as Carolinas, onde um
túmulo [Figura 74] exibe vasos de flores de cabeça para
baixo, comunicando o ponto de vista do mundo subterrâneo, e um pedaço de
encanamento, indicando resiliência e o fluxo da água. Em Dallas, no Texas, a
imagem da resistência ao tempo é expressa de três maneiras: por meio de uma
sólida pedra, de uma árvore plantada e de seções eretas de encanamentos.
Durante seu trabalho de campo na Virgínia durante o verão de 1980, Gregory
Stringfellow encontrou um notável túmulo em Norfolk, feito de acessórios para
encanamento [Figura 75] que, nesses ambientes sagrados,
libertem-se do discurso utilitarista. Eles estão ancorados em dimensões onde o
fluxo do espírito e o contato entre os mundos se tornam uma possibilidade,
através da passagem da água, tal qual uma concretização em miniatura do mítico
rio Jordão.
(3) O conceito do Luumbu
204. O conceito de cercamento [Figura 76
e Figura 77], que sempre foi uma metáfora forte no
Kongo, conceitualmente protege o morto de forças externas e os vivos das
emanações de poder do morto.
205. Na construção de santuários
especiais para os ancestrais (minzo a bakuu), no século XIX e no início
do século XX, os troncos das árvores senga eram cortados em segmentos
longitudinais para construir uma paliçada em miniatura. Deleval documentou tal
solução na terra Yombe e a fotografou em 1908 [Figura 78]. Ela é feita de pedaços de senga,
sendo que o nome do material compõe um trocadilho com a noção de reflexão séria
(senga, "deitar de costas" e pensar
sobre o que se deseja dizer aqui, diante desta casa) e de desafio peremptório
para o visitante. O impacto de tal paliçada é claro e forte na imaginação
tradicional. As imagens neste cercamento representam os antepassados, senhores
do luumbu, em seu espaço privilegiado, “porque nem todos têm o direito
de falar com o rei.”[164]
206. Aproximadamente do mesmo período e
na mesma área, existe outro santuário ancestral [Figura 79] que ilustra claramente uma dupla
formulação do motivo do luumbu, primeiro como uma parede externa
tradicional de senga, depois como um cercamento interno de garrafas de
vinho europeias.
207. A posterior miniaturização da ideia
de um muro de proteção chegou às Américas, onde se espalhou como uma
manifestação de proteção espiritual, em que o cercamento do jardim era tão
importante quanto o túmulo. Da autobiografia de James Weldon Johnn vem esta
vívida lembrança:
208. Lembro que flores cresciam no
jardim da frente e que, ao redor de cada canteiro de flores, havia uma cerca de
garrafas de vidro de várias cores, enfiadas no chão com o gargalo para baixo.
Lembro-me que uma vez, enquanto brincava na areia, fiquei curioso para saber se
as garrafas cresciam ou não como as flores, e comecei a desenterrá-las para
descobrir. Tal investigação me rendeu uma surra terrível, que fixou
indelevelmente o incidente em minha mente.[165]
209. Assim, um gesto com intenção
exteriormente decorativa aparentemente também ocultava uma proteção contra o
mal. Outras evidências para tal interpretação vêm do Texas: “Quando usado em
túmulos, o vidro mantém os 'espíritos malignos afastados’ ou 'afasta o espírito
do morto’.”[166] Este
comentário lembra a dupla função do luumbu acima referida.
210. Há um magnífico exemplo de um
túmulo cercado por conchas na costa nordeste da Carolina do Sul [Figura 80]. Fixado como uma embarcação
transparente através da qual a grama desta área alagadiça penetra, o cercamento
de conchas envolve um eixo interrompido, composto por outras conchas e flores.
Este eixo interno é cravejado de sinais de amor (as flores), ao mesmo tempo em
que traça uma linha que guia o espírito, com respeito e honra, para o outro
mundo.
(4) Conchas
211. A cobertura de conchas neste túmulo
da Carolina do Sul nos conduz à discussão de um dos temas primordiais da
metafísica Kongo. No Haiti, onde as mesmas influências filosóficas estão
presentes, encontram-se belas e impressionantes conchas sendo usadas para
adornar as superfícies de túmulos e sepulturas [Figura 81]. André Pierre, um sacerdote da
religião popular do Haiti e um dos pintores mais ilustres de seu país, comentou
sobre o significado deste elemento: “Conchas simbolizam a existência do
espírito no mar; o corpo está agora morto, mas o espírito continua seu caminho.
A concha engloba elementos de água, terra e vento. É um mundo em miniatura. Ela
simboliza a animação das gerações seguintes pelo espírito dos ancestrais.
Aponta para a ilha no mar para a qual todos iremos viajar.''[167]
212. Ao investigar os significados dos
túmulos negros em White Bluff, Geórgia, no verão de 1950, Simon Ottenberg
descobriu que, para um informante, moldar o monte de terra sobre uma sepultura
era um ato de comunicação com os mortos: “Algumas pessoas acumularam pilhas de
sujeira em cima das sepulturas novamente. Ele não achava que isso era certo.
Não era respeitoso. Era como tocar os mortos.”[168] Mas, no túmulo da Carolina do Sul que acabamos de
observar, e em muitos outros como este, tal “regra” foi quebrada. Restabelecer
o monte de terra e sobre ele colocar uma cerca de conchas admoesta o espírito
com uma mensagem complexa de preocupação, proteção, reclusão e imortalidade.
213. No Kongo, as conchas implicam a
imortalidade por meio de um trocadilho fundamental, ligando zinga
("concha em forma de espiral '') com zinga ("viver
muito"), e dão origem aos seguintes conceitos, que tem uma oração a eles
associada:
214. Mbamba é uma grande concha do
mar. Encontrando muitas dessas conchas. as pessoas antigamente as consagravam
[aos] seus bisimbi. Elas escondiam suas almas nas conchas e as
enterravam na floresta, com apenas as pontas aparecendo acima do solo, e as
tratavam da seguinte forma: “Tão forte quanto essa sua morada, você preservará
minha vida para mim. Quando você partir para o mar, leve-me junto, para que eu
possa viver para sempre com você.”[169]
215. Comparemos isso com uma
recapitulação afro-estadunidense da essência desses padrões de crença, no
seguinte exemplo oriundo de St. Simons Island, na Geórgia:
216. As conchas representam o mar. O
mar nos trouxe, o mar nos levará de volta. Portanto, as conchas sobre nossos
túmulos representam a água, os caminhos da Glória e a terra da morte.[170]
(5) Espelhos, vidro, fogueiras e
lâmpadas
217. Os especialistas em rituais Bakongo
costumavam incorporar a brilhante e iridescente carapaça de um tipo específico
de besouro[171] em seus
amuletos, como “algo cheio de luz, como água, através da qual se pode olhar o
outro mundo.''[172] Mais tarde,
quando os espelhos ocidentais importados (tala-tala) replicaram
exatamente esse efeito poderoso, o conceito se aprofundou em extensão e
tradução materiais. Todavia, nos amuletos originais com carapaças de besouro, a
ideia do brilho do espírito fundiu-se com a noção de segunda visão, por meio de
um voo simbólico, nitidamente miniaturizado através da inserção das asas do
inseto. O significado do voo era "expandir a visão do além" (vila
mu bangula bweno a ku mpemba).[173]
218. Intimações da Glória em objetos
cintilantes e a incorporação do espírito neles se tornaram um fundamento
espiritual na feitura dos amuletos afro-estadunidenses. Uma miríade de
"mãos" ou "Tobys" envolve um núcleo de pó branco; cajados
encantados[174] incluem strass
ou algum outro tipo de material brilhante. Observemos este exemplo do Missouri
negro: "Uma ‘luck ball’ mais complicada foi feita para Charley Leland
[...] dentro dela foi colocado papel alumínio (representando o brilho do
pequeno espírito que estaria na bola)."[175] Além disso, Julia Peterkin apontou que: “Espelhos
atraem raios e lançam feitiços sobre aqueles que contemplam suas próprias
imagens. Se um espelho refletir um cadáver, ele reterá o espírito do morto e
impedirá que ele saia da casa."[176]
Assim, na costa da Geórgia (como no Kongo moderno), espelhos ou vidro são
retirados da casa do morto e embutidos em seu túmulo ou, às vezes, em sua
lápide [Figura 82]. Isso mantém o espírito a uma
distância segura dos vivos. Notáveis equivalentes de espelhos
também surgiram, como os faróis de automóveis colocados dentro de uma lápide no
condado de Oldham, Kentucky, ou na Geórgia [Figura 83]. Este último monumento, como as asas
encantadas de um besouro inseridas em um amuleto Kongo, imediatamente prende o
espírito com sua luz e seus indícios de movimento rumo ao outro mundo.
219. Crenças semelhantes animam o
embelezamento de túmulos com tinta de alumínio brilhante, na Virgínia, e
provavelmente explicam uma prática testemunhada em muitos túmulos negros do
Sul. Em um relatório sobre a Igreja Metodista Mt. Sion em Jacksonville, Flórida,
podemos ler: "Em todos os túmulos novos, o envoltório dos vasos de flores
- uma folha verde - tinha sido virado para o lado reverso, que era de um branco
prateado brilhante. As folhas faiscavam brilhantemente e chamavam a atenção
para os túmulos."[177]
220. A ideia da proximidade espiritual
no brilho e na iluminação deu origem a outro costume Kongo: acender fogueiras
em certos túmulos para conduzir as almas para o outro mundo. Comparemos isso
com o costume negro-crioulo, no Sul Profundo, de colocar chaminés de lamparinas
sobre os túmulos. Os negros do Texas dizem que "isso conduz o falecido à
Glória." Um negro do Alabama afirma que chaminés de lamparinas são postas
nas sepulturas porque "fornecem luz na hora da morte." Mary Jackson,
uma mulher negra de Dallas, diz que lamparinas identificam especificamente os
túmulos de pessoas que morreram à noite: "Nunca vi uma inteira sobre um
túmulo, pois apenas o espírito de luz, simbolizado por um fragmento de lamparinas,
é importante para o fantasma [ênfase nossa].”[178]
221. Na plenitude dessa tradição, surgiram túmulos
impressionantes, com chaminés de lamparina fragmentadas exalando brilho
espiritual, como em um exemplo do oeste da Carolina do Sul onde uma lamparina é
colocada junto com vasos de flores envoltos em papel de alumínio brilhante [Figura 84].
(6) Captura do espírito nos últimos
objetos usados pelo morto (kanga mfunya)
222. Alguns dos objetos que decoram um
túmulo - uma xícara, um chapéu castigado pelo tempo, uma tesoura enferrujada -
carecem do fulgor que incorpora o espírito. Frequentemente, esses são objetos
que prendem o ser da pessoa que partiu de outras maneiras. Por causa de sua
relação íntima com o falecido, as últimas coisas usadas por ele tornam-se
especialmente importantes: "A última força de uma pessoa morta está
presente naquele tipo de objeto."[179] Tocá-los significa receber, misticamente, mensagens
poderosas dos mortos, comunicadas por meio de sonhos: ''Ao tocar esses objetos,
automaticamente eu compreendo o mambu que minha mãe desejava me
transmitir." [180] Colocar
esses objetos sobre o túmulo ancora com segurança sua incrível potencialidade e
evita que os mortos retornem à casa para reivindicá-los. Isso é chamado de
“prender as emanações de uma pessoa" (kanga mfunya). A frase também
significa "amarrar eflúvios" e, por um trocadilho, "amarrar a
raiva dos mortos."
223. Kanga mfunya chegou intacto aos Estados
Unidos negro. Vejamos esse comentário datado de entre 1845 a 1865, oriundo da
Colerain Plantation, perto de Savannah: "Os túmulos de negros sempre eram
decorados com o último objeto usado pelo falecido."[181] Comparemos isso com as crenças dos residentes de St.
Helena Island, na Geórgia, em 1919,[182]
segundo as quais as últimas gotas de remédio usado por uma pessoa doente devem
ser drenadas pela terra do túmulo. Isso garante a cura do falecido no outro
mundo e, novamente, evita que seu espírito deambule. Por fim, consideremos a
seguinte evidência oriunda do condado de Hunt, Texas, localizado em Greenville,
a nordeste de Dallas:
224. No cemitério East Mont, se
encontra o túmulo de uma negra de 15 ou 20 anos. Seu marido ergueu sobre o
túmulo um barracão ou casa. Ali ele colocou o último par de sapatos de sua
esposa, sua última fotografia e seu lenço, suspenso no teto por um cordão.[183]
225. O marido tinha, com efeito,
ancorado elementos poderosos do legado material de sua mulher morta e os honrou
dentro de uma cuidadosa moldura arquitetônica. O marido também incluiu ali uma
imagem da vaca que havia chutado e matado sua esposa.
(7) O tema da galinha branca (nsusu
mpembe)
226. Em 1887, R. E. Dennett relatou o
sepultamento de um chefe Kongo em um grande caixão de oito rodas, cujo topo era
ornamentado por um leopardo empalhado, um guarda-chuva aberto, vários vasos e
duas caixas de madeira, uma delas esculpida na forma de pato, a outra na de uma
galinha. Quando a grande estrutura com rodas - uma espécie de niombo
quadrado, sem a figuração de corpo inteiro que marca os exemplos vistos da
cidade de Kingoyi - finalmente foi enterrada, a galinha e os outros ornamentos
foram colocados sobre a superfície do túmulo.[184] Em partes do Kongo, imagens de galinhas pintadas de
branco são colocadas sobre sepulturas até hoje. Essas imagens de nsusu
mpembe ("galinha branca") simbolizam, em primeiro lugar, ''os
ancestrais, o morto.”[185]
227. Além disso, elas simbolizam a
mediação poderosa, muitas vezes curativa, dos mortos:
228. Então ela pegou uma galinha
branca, ergueu-a em direção aos céus e dirigiu-se a Deus. “Se esta criança
morrer, será ‘a galinha branca’," pedindo então ajuda para salvar a vida
dela [...] A iniciação liberou os poderes do “branco” além das águas.
Esses poderes eram mediados por uma galinha branca e duas plantas, dotando
Nzoamambu de pureza e visão.[186]
229. O mais tardar em 1816, encontramos
este costume no Caribe negro de língua inglesa: "A caiação de túmulos é
repetida cuidadosamente todas as manhãs de Natal e antigamente era costume
matar, nessas ocasiões, um galo branco e borrifar seu sangue sobre os túmulos
da família.”[187] A invocação
do poder de cura do além por meio de uma ave branca aparece no Mississippi
negro no primeiro quartel deste século: "A cura mais estranha da qual ouvi
falar no Mississippi diz respeito a Overlea, o sétimo filho de sua família,
nascido vidente, que soltou cinco pombos brancos, que nunca conheceram a
liberdade, para curar uma criança doente. Quando os pombos cruzaram sobre água,
a criança foi curada."[188]
Peter Alston, um velho trabalhador negro da área leste de Charleston, afirmou,
no outono de 1975, que se lembrava de “muitas galinhas de porcelana chinesa”
sobre os túmulos de sua região no primeiro quartel do séc. XX.[189] Correspondentemente, um
informante de Sapelo lsland, ao sul da Geórgia, afirmou explicitamente em 1939:
“Eles matam uma galinha branca quando desejam manter os espíritos afastados.”[190]
230. Consideremos o túmulo de um menino
negro que morreu em 1967 no oeste da Carolina do Sul [Figura 85]. Um enorme galo branco guarda o
túmulo, que brilha com sua caprichada cobertura de cascalho branco e é animado
com outros elementos de conotação amorosa: um par de sapatos de metal em
miniatura e pequenas lamparinas, para iluminação mística, como a luz posta à
noite no quarto da criança. Ela acordará na Glória e caminhará para Deus,
calçando seus sapatos prateados e esmagando sob eles o cascalho branco
brilhante.
(8) Emblemas modernos de mediação
231. Quando os meios modernos de
transporte chegaram ao Kongo, eles foram reunidos em tudo o que nos interessou
até aqui: a concentração em um ponto sagrado de mediação espiritual. Wyatt
MacGatffey fotografou, em Ndemba, em 1965, um túmulo Kongo moderno situado
dentro de uma área isolada [Figura 86]. O túmulo ergue-se em quatro níveis,
simbolizando que “esta pessoa viveu positivamente em relação ao seu povo, que
agora espera que ela volte.” Seus descendentes puseram em cima da estrutura a
imagem de um avião (ndeke), "para chamá-lo rapidamente (nswalu)
de volta"[191] da região
que fica além das quatro portas (mweel) do cosmos, indicada no túmulo
por representações de quatro garrafas (binzu) nos pontos cardeais.
232. Analogamente, consideremos uma
tumba perto de Lombe, em território Ingembe, que foi fotografada por L. Cahen
por volta de 1949 [Figura 87]. Trata-se da representação escultural
em concreto de um automóvel (tombalilu), antes de mais
nada uma estrutura relacionada com a visão ancestral de retorno e apenas
secundariamente com o caráter da modernidade. Ou seja, ver este túmulo
meramente como um emblema de “aculturação" significa forçosamente perder a
rica reformulação nele implícita de antigas expressões de transcendência.
233. É dito que: (1) este tipo de túmulo
indica um homem que era um notável motorista; (2) que tais túmulos às vezes
homenageiam pessoas que morreram em acidentes automobilísticos; e (3) tenha ou
não morrido em um acidente violento, espiritualmente o morto deixou este mundo
de carro. Pois uma pessoa do Kongo que, nos anos 1930 ou 1940, dissesse
"Eu sou um motorista," transmitia aos mais velhos uma mensagem muito
poderosa de estranheza e potencialidade.[192] Portanto, há potência na configuração deste
veículo-túmulo, que adiciona força à prece comunitária para que a pessoa que
partiu continue a trabalhar em nome de seus descendentes naquele modo de
transporte moderno.
234. Como os heroicos maboondo em
cerâmica, o carro é fortemente vazado, com entradas deliberadamente sem portas
e outras fendas, sugerindo aberturas arquitetônicas. Ancorado na terra, mas
viajando magicamente através de tempo e espaço vastos, com seus faróis
brilhando invisivelmente, o carro-fantasma se move com uma assonância de
quadridimensionalidade.
235. Nos cemitérios tradicionais dos
Estados Unidos negro, veículos modernos foram transformados de maneira
semelhante. Em Newport News, há uma lápide gravada com o contorno de um navio;
um guidão, tirado de uma bicicleta, indica um túmulo na Geórgia; e, no túmulo
de um menino no oeste da Carolina do Sul, um avião a jato de brinquedo
enferrujava ao sol, em uma tarde de novembro de 1975 [Figura 88]. A colocação deste último elemento foi
explicada pelo falecido xerife McTeer de Beaufort, Carolina do Sul - ele
próprio um autor famoso na localidade por seus numerosos trabalhos sobre
artesanato feito com raízes e outros aspectos da religião afro-estadunidense
tradicional - como um meio de “chegar rapidamente ao céu.”[193]
Envoi
236. Este texto procurou fornecer um
sentido provisório do fundamento sobre o qual repousa uma tradição clássica. Os
cosmogramas primordiais, ligando Deus e os ancestrais às mulheres e aos homens,
surgem no início e nunca desapareceram do horizonte. Por trás da cruz de Jesus,
se encontram simultaneamente a cruz de Deus, os ancestrais e a linha Kalunga.
A concha no peito de um niombo, que comunica renascimento e retorno,
torna-se, por assim dizer, a concha no túmulo de uma pessoa negra em Algiers,
na Louisiana, na margem do rio oposta a Nova Orleans, bem como a concha em uma
sepultura em St. Louis, ambas comunicando o mesmo sentido. Os artistas Kongo
grafaram em pedra os gestos-chave de sua terra no corpus de mintadi.
Alguns desses gestos chegaram às Américas, onde são vividos até hoje por negros
que viram a cabeça para o lado, em sinal de forte negação, ou que ficam em pé,
elegante e poderosamente, com a mão esquerda na cintura e mão direita estendida
para frente. Os maboondo exaltam suas aberturas estilizadas ao sol. Seu
perfurações estão relacionadas, em última análise, com o costume Teke de abrir
um buraco na parede da câmara de um chefe moribundo, “para que seu último
suspiro encontre um ponto de saída.”[194]
Isso têm afinidade espiritual com a perfuração e a quebra dos bens de uma
pessoa morta na Georgia," de modo que a corrente [que liga os vivos aos
mortos] seja quebrada.”[195] O
pano amarrado em torno dos braços de um certo niombo, que codifica
mensagens de despedida, está relacionado aos costumes em Harris Neck, na
Georgia, onde tambores eram percutidos, a maneira ngoma, para acompanhar
o corpo do morto até seu túmulo e onde "se fala com a pessoa e lhe
transmite uma última mensagem." De maneira semelhante, isso se relaciona
com um cartão de Dia das Mães, carinhosamente escrito por todos os seus filhos,
deixado no túmulo de uma mulher negra em Hilton Head, em 1955.[196]
237. Aspectos dessa grande tradição
contribuíram para o surgimento das músicas populares internacionais deste
século - rumba, mambo, samba e jazz -, algumas das
quais portam nomes quicongo crioulizados. O signo dos quatro momentos do sol
anima, em fusões crioulas com muitos novos padrões e desenhos, o surgimento dos
pontos riscados no Rio de Janeiro, dos véve em Port-au-Prince e
do “signo dos quatro ventos” em Havana e Memphis.
238. Tocar tambores pela manhã e dançar
vividamente, para que um rei morto não parta em fúria para a floresta, levando
outros com ele, fornece uma racionalização duradoura para a fusão Kongo de
arte, música, poesia e dança no clímax da vida de uma pessoa - i. e., o seu
funeral. Isso explica a poderosa música Kongo para os mortos, vista na
consideração dada aos enormes trompetes biludi. Isso deitou raízes em
Nova Orleans, onde o jazz floresce em toda a sua glória marchante,
enquanto os biludi se transformam em clarinete e trompete, ngoma
em baixo e bateria de caixa, ngongi em címbalo. Enquanto isso, nikua
minpa, o costume de agitar tecidos para abrir, de maneira honrosa, a porta
para o outro mundo, se transforma no costume de dançar e girar guarda-chuvas
brilhantes na marcha de jazz que volta de um enterro. Tais traços seriam
impensáveis, exceto se considerarmos o impacto da história que procuramos
contar. Vejamos um último e vívido exemplo, uma cena de funeral na Nova Orlens
negra: “De repente, guarda-chuvas abertos, de todos os tamanhos, cores e
formatos, aparecem, alguns fantasticamente adornados com sinos, penas, flores e
fitas. A alegria é exuberante e geral. Músicos e espectadores querem dar ao
falecido uma ótima despedida.'”[197]
Essa preocupação perene, no amor e na arte, com a Glória - o reino do quarto
momento do sol - sustenta a todos nós com uma visão que flui entre dois
mundos.
Tradução do inglês por Arthur Valle
______________________________
* Nota do Tradutor -
Originalmente publicado como: THOMPSON, Robert Farris. The Structure of Recollection: The Kongo New World
Visual Tradition. In: THOMPSON, Robert Farris; CORNET, Joseph. The
Four Moments of the Sun: Kongo Art in Two Worlds. Washington,
DC: National Gallery of Art, 1981, p. 141-210. As interpolações com colchetes
duplos - [[ ]] - foram usadas para inserir traduções
e/ou explicações de expressões cujas grafias, no texto original, foram
mantidas. Vale notar, que no original de Proust, a passagem que corresponde ao
título do artigo (“the structure of recollection”) é a seguinte: “[...] seules,
plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus
fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se
rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans
fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du
souvenir.” Na tradução de Mario Quintana, temos: “[...] sozinhos, mais
frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o
odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando,
aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder,
em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.”
** N. do T. - Robert Farris Thompson é “Colonel John Trumbull
Professor” de história da arte e professor de estudos afro-americanos na Yale
University. “[...] começando com um artigo sobre dança e música afro-cubanas
publicado em 1958, ele dedicou sua vida ao estudo da história da arte do mundo
afro-atlântico. Seu primeiro livro, Black Gods and Kings, era uma
minuciosa leitura iconográfica da história da arte dos quarenta milhões de
Iorubás do sudoeste da Nigéria. Publicou textos sobre a estrutura e o
significado de danças africanas, African Art in Motion, e um reader
sobre a história da arte das Américas negras, Flash of the Spirit, que
permaneceu sendo reeditado desde sua primeira publicação, em 1983. Thompson
publicou dois livros sobre a arte de tecido feito de casca de árvore pelos
pigmeus da Floresta Ituri, além do primeiro estudo internacional sobre altares
do mundo Atlântico Negro, Face of the Gods, e mais recentemente Tango:
The Art History of Love. Além disso, ele publicou uma introdução aos
diários de Keith Haring, estudou a arte de José Bedia e Guillermo Kuitca, e foi
antologizado quinze vezes. Algumas de suas obras foram traduzidas para o
francês, alemão, flamengo e português.” Tradução de texto disponível em: https://arthistory.yale.edu/people/robert-thompson
[1] Informante: Gweta Lema, da
região das Cataratas, Baixo Zaire. Entrevistado em Kinshasa, 23 ago. 1979
[2] Comunicação pessoal, outono de
1980. Paralelamente à transformação dos túmulos de pedra ou argila em túmulos
de concreto, MacGaffey indica a transformação, ocorrida no século XX, de
pilares de pedra simples encontrados sobre túmulos Kongo (tadi dya
n'senzebele ou tadi dya n'seenzele, lápide de pedra - cf. LAMAN,
Karl E.. Dictionnaire Kikongo-Français.
Farnborough: Gregg international Publishers, 1964, v. II, p. 764) em
declarações mais elaboradas. Em 1924, lápides simples estavam sendo
substituídas por lápides com símbolos complexos. Assim, um exemplo transicional
apresenta a seguinte série de símbolos: no topo, um pequeno entrecruzamento
dentro de um círculo, significando "ele morreu;" em seguida, um
círculo embrasonado com uma inscrição em quicongo, "wafwa
1924;" por fim, uma estrela (significando "sua alma") acima de
um semicírculo, unido a uma seta apontando para baixo ("foi para
baixo").
[3] Arquivo de fotos do Museu de
Tervüren, no. 93179
[4] JANZEN, John. Elemental
categories, symbols, and ideas of association in Kongo-Manianga society. Tese
(Doutorado). Chicago: University of Chicago, 1967, p. 307-308.
[5] Arquivo de fotos do Museu de
Tervüren, no. E.PH. 3522.
[6] Arquivo de fotos do Museu de
Tervüren, no. E.PH. 3535.
[7] Fu-Kiau, entrevista, 25 out. 1980. Os padrões florais
(bifulu) lembram flores colocadas em sepulturas modernas, para embelezá-las.
Notar que as paredes internas deste nzo a nkisi estão manchadas. Os
precedentes para isso são antigos. Assim, no cahier 372 de Laman, Ngoma,
falando dos artistas Kongo tradicionais na virada do século, diz: "Eles
esfregam cores nas portas ou sobre um nkisi ou tumba (sobre uma
imagem) quando o colocam em um túmulo. Eles usam carvão e giz (peso) e
sândalo vermelho para fazer as manchas (vanga masona masona).” Tais
manchas são adequadas em um contexto funerário, seja como símbolos das manchas
do leopardo - caso em que elas louvam a pessoa ali enterrada como um chefe ou
cabeça de uma linhagem - ou, como manchas da pele de um gato selvagem, da qual
eram feitas as bandeiras que se costumava colocar sobre os túmulos Kongo, como
emblemas clássicos da encruzilhada e que simbolizam a mediação de poder entre
os mundos.
[8] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no.
E.PH. 3561.
[9] Fu-Kiau, entrevista, 25 out.
1980. Todas as declarações entre aspas nesse parágrafo são dele.
[10] Ibid.
[11] Arquivos do Museu de Tervüren, 55.45.11.
[12] Fu-Kiau.
entrevista, 6 dez. 1979. Ele descreveu a máquina de costura de pedra como uma
"carta para o morto."
[13] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no.
E.PH. 3513.
[14]
LAMAN, op. cit., v. I, p. diiza,
p. 126.
[15] Fu·Kiau, entrevista, 12 abr. 1980.
[16] lbid. Além disso, MacGaffey relata que mbambi a
nkakala, o lagarto varano (varanus niloticus), é "uma das
bestas ferozes cuja pele era simbolicamente apropriada para
sobre ela um chefe ser entronizado." O emparelhamento dessas feras
poderia então gerar um significado adicional: "Entronizado neste mundo,
entronizado no mundo vindouro," ou "Realeza entre os vivos e os
mortos".
[17] Fu-Kiau, entrevista, 12 abr. 1980. Van Wing
apresenta o texto da canção de uma esposa em luto pelo chefe de seu clã. Os
seguintes trechos são pertinentes: “Ndinga nzonzi […] | Ndinga ngunga
[Voz do advogado | Sua voz era um sino].” Cfr. VAN WING, J..
Etudes Bakongo: sociologie, religion et magie. Brussels: Desclée de
Brouwer, p. 265-6.
[18] Eu discuto essas etimologias em um livro próximo, Flash
of the spirit, a ser publicado por Random House em 1982. N. do T. - Tradução portuguesa: THOMPSON, Robert
Farris. Flash of the Spirit. Arte e Filosofia Africana e
Afro-americana. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.
[19]
CURTIN, Philip. The Atlantic slave trade: a census. Madison: University of
Wisconsin Press, 1969, p. 188.
[20] lbid., p. 241
[21] Degrandpré afirma que aquilo que se costumava
entender pela designação genérica de "costa de Angola" era "toda
a área situada entre o Cabo López e Benguela". A sua menção da escravatura
em Cabinda, Malembe e Loango encontra-se em: DEGRANDPRÉ, L..
Voyage a la côte occidentale d'Afrique
fait dans les années 1786 et 1787. Paris: Dentu. 1801, v. 1, p. xxiii.
[22]
COURLANDER, Harold. Haiti
singing. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1939, p. 3.
[23]
PRICE-MARS, Jean. Les survivances
africaines dans la communauté haitienne. Etudes Dahomeennes,
Porto Novo, Institut Français d'Afrique Noire, VI, 1951, p. 7.
[24]
CABLE, George W. The dance in
Place Congo. Carrollton: Faruk van Turk, 1972, p. 1-2, p. 6.
O excelente livro de Dena Epstein, Sinful tunes and spirituals (Chicago:
University of Chicago Press, 1977) inclui muitas referências que sugerem a
contínua presença de danças Kongo na Nova Orleans do início do século XIX. (p.
95): "Três dos negros do grupo mais próximo a nós eram ex-reis ou
ex-chefes no Kongo" (1817); (p. 96): "Em 1819, uma carta vinda de
Nova Orleans relatou que 'no sábado à noite os escravizados africanos se
encontravam no gramado, perto do pântano, e faziam a cidade tremer com suas
danças Kongo’”; (p. 132): "1821 [...] a dança Kongo "; (p. 133):
"1823 [...] a grande dança Kongo é performada."
[25]
TINKER, Edward Larocque. Toucoutou.
New York: Dodd, Mead & Co., 1930, p. 93. Raquette era
jogado com duas pequenas raquetes em vez de uma, como no lacrosse
moderno.
[26]
GOFFIN, Robert. Jazz: from
Congo to swing. London: Musicians Press Ltd., 1946, p. 25.
[27]
Cfr. SÕDERBERG, Bertil. Les
instruments de musique au Bas-Congo et dans les régions avoisinantes. Stockholm:
Statens Etnografiska Museum, 1956, prancha XIX, 1, homem tocando tambor ndungu,
vila de Kimpongi, território Bembe.
[28]
WOOD, Peter. Black Majority.
New York: Knopf, 1972, p. 335.
[29] Testemunhado pelo autor no Zaire, em março e junho
de 1973. Cf. LAMAN, op. cit., v. II, p. 888. Sembuka literalmente se
refere a pular sobre uma perna só.
[30] ORTIZ, Fernando. Los instrumentos de la música
afrocubana. Havana: Ministerio
de Educación, 1952, v. III, p. 390.
[31]
KUBIK, Gerhard. Angolan traits
in Black music, games and dances of Brazil. Lisboa: Junta De
lnvestigações Científicas do Ultramar, 1979, p. 10.
[32] BAUMANN, H.. Schöpfung und Urzeit des Menschen im Mythus der
Afrikanischen Võlker. Berlin,
1936, p. 89.
[33]
BASTIDE, Roger. The african
religions of Brazil. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978, p.
347.
[34]
VASS, Winifred Kellersberger. The
Bantu speaking heritage of the United States. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, UCLA,
1979, p. 3.
[35]
Fu-Kiau, entrevista, 1 fev. 1981.
[36]
EDWARDS, Harry Stillwell. The
two runaways and other stories. New York: Century, 1889, p. 202-203, p.
205.
[37]
Informante: Balu Dalila, cidade de
Muanda (Bawoyo), Collectivité de la Mer. Entrevistado em Kinshasa, 26 jun.
1980.
[38] VAN DE VELDE, Liévin. La région de Bas-Congo. Bulletin
Societé Royal Belge de Geographie, 10, p. 383. Ver também Van
Wing (op. cit., p. 463), que ilustra uma trincheira cruciforme, mvulu-mvulu.
[39] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no.
117556: iniciação Kiwila (para mulheres), povo Pende, região de Kandale,
cidade de Kinzunda. Agradeço a Marie Louise Bastin por chamar minha atenção
para esta fotografia. Ela também compartilhou comigo uma cópia do Cahier XV,
dos manuscritos não publicados de L. de Sousberghe, nos quais ele ilustra uma
versão Pende do cosmograma: kata ya mungangi.
[40]
TURNER, Victor. Chihamba the
white spirit. Manchester: Manchester University Press, 2. ed., 1969,
prancha. 8b: "Imagem de
Kavula.”
[41] SANTOS, Eduardo dos. Sobre a religião dos Quicos.
Lisboa: Junta de lnvestigações do Ultramar, 1962, fig. I: "O ideograma
chamado Kalunga.”
[42] Igor Kopytoff, comunicação pessoal, mar. 1968.
[43]
DUBOIS, W. E..
The religion of the American Negro. New World, dez. 1900, IXX, p. 618. Citado em BLASSINGAME, John W..
The Slave Community. New York: Oxford University Press, 1972,
p. 33: "A principal instituição remanescente era o sacerdote [expert em
rituais] Ele logo apareceu na plantation e encontrou sua função como
curador dos enfermos, intérprete do desconhecido, consolador do sofrimento,
vingador sobrenatural do mal. […]”
[44]
HYATT, Harry Middleton. Hoodoo-Conjuration-Witchcraft-Rootwork.
Hannibal: Western Publishing, Inc., 1970, v. II p. 1173. Eu
padronizei a ortografia "pitoresca" de Hyatt.
[45] Ibid, p. 1266
[46] PUCKETT, Newbell Niles.
Folk beliefs of the Southern Negro. New York: Dover reprint, 1969, p. 319. Com
relação ao Brasil, comparar com: LANGGUTH, A. J.. Macumba.
New York: Harper & Row, 1975, p. 136: "Signos usados quando se deseja
alcançar os espíritos dos mortos. Ambos são muito antigos. [...] A cruz sugere
o cristianismo.” Mas Vatter afirma que "Este signo é muito mais antigo do
que isso. [...] É um dos mais antigos signos africanos." A antiga cruz de
derivação Kongo está de fato presente, como veremos, no Rio de Janeiro.
Fragmentos de conhecimentos cosmográficos semelhantes ainda aparecem entre os
negros no sul dos Estados Unidos. Assim, em uma comunicação pessoal em 30 ago.
1977, Charles L. Perdue, do Departamento de Antropologia da Universidade da
Virgínia, relatou que uma mulher negra de Mariella, na Geórgia, “sempre pegava
uma peça de prata e desenhava um círculo no chão e uma cruz dentro círculo,
colocava a batedeira sobre o círculo-cruz e então batia a manteiga. [...] ela
fazia isso porque havia um menino ruivo na família, evidentemente para proteger
o leite dos poderes especiais que se acredita que os ruivos têm."
Finalmente, ainda no final do século XVII (1654-1667), os europeus sabiam que a
cruz Kongo coexistia com a cruz dos cristãos. Isso é apresentado pelo padre
Giovanni Antonio Cavazzi (Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba
e Angola. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965, v. I. par.
198), que se refere a pessoas Bakongo desenhando o sinal da Santa Cruz,
"mascarando, com esses signos da verdadeira religião, convicções
ocultas" de sua própria religião clássica. É interessante que, quase
trezentos anos depois, a mesma queixa foi dirigida contra o uso (de influência
Kongo) do sinal da cruz para simbolizar a encruzilhada e um espírito de
cemitério, no Haiti. (Ver:
BIRD, M. B.. The Black Man or Haytian Independence.
N.Y.:
American News Co., 1869, p. 322: "A forma do cristianismo há muito foi
apresentada aos haitianos, mas uma cruz de madeira não é Cristo").
[47]
PUCKETT, op cit, p. 319.
[48]
Robert Johnson: King of The Delta
Blues Singers. Columbia
LPCL1654, lado 1, faixa 1, gravado em 27 nov. 1936
[49] ORTIZ, op. cit. 168-9, fig. 168
[50] CABRERA, Lydia. Reglas de Congo: Palo Monte,
Palo Mayombe. Miami: Peninsular Printing, Inc., 1979, p. 146.
[51] Sou grato ao professor Janzen por me permitir ler e
citar a partir deste seu trabalho.
[52] Roger Bastide, comunicação pessoal, 8 mai. 1968.
[53] FIGUEIREDO, Napoleão. Os Caminhos de Exu. In:
7 brasileiros e seu universo. Brasília: Departamento de Documentação e
Divulgação, 1974), p.89, estampa V, Ponto de Exu Vira-Mundo, e p. 86,
estampa Ill, C. Ponto de Pomba-Gira da Kalunga.
[54] Informantes entrevistados em Duque de Caxias e São
João de Meriti, no Rio de Janeiro, ago. 1968. No verão de 1973, Elsbeth Selver
fotografou pontos cruciformes simples, feitos a giz, sobre os quais
copos cheios de água - destinados a sacerdotes e sacerdotisas incorporando
entidades espitrituais -, cada um marcado com seu próprio ponto, tinham
sido centralizados. Tais pontos assemelhavam-se a algumas das formas
putativas dos primeiros pontos do Rio. Uma seriação completa dessas
formas fascinantes é necessária com urgência.
[55] John Janzen, comunicação pessoal, verão de 1979.
[56] Roger Bastide, comunicação pessoal, 8 mai. 1968.
[57] Pontos cantados e riscados da Umbanda. - 9.
Ed. - Rio de Janeiro: Editora Espiritualista Ltda., 1951.
[58] 3000 pontos riscados e cantados na Umbanda e
Candomblé. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1975.
[59] Wesley R. Hurt, comunicações pessoais, inverno de
1975 e primavera de 1981.
[60] BROWN, Karen
McCarthy The vèvè Of Haitian Vodou: a
structural analysis of visual imagery. Ann
Arbor: University Microfilms, 1975, p. 165: "No braço direito [do vévé
para Simbi] aparece o signe Masonique, o símbolo dos maçons. Os maçons
no Haiti são um grupo muito importante, principalmente nos círculos do vodu.
O movimento é fortemente matizado pelo arcano e se tornou, no Haiti, uma
espécie de magia cristã."
[61]
JANZEN, John. Lemba.
Manuscrito em xerox, capítulo Vlll, "Lemba in the New World."
[62] BROWN, op. cit., p. 159.
[63] Gráfico de Nancy Gaylord Thompson que registra a
realização, por André Pierre, do vévé para marassa, 28 mai. 1978.
[64] Entrevista com André Pierre, 28 mai. 1978.
[65] Wyatt MacGaffey,
comunicação pessoal, mar. 1981. Sou grato ao Professor MacGaffey pela permissão
para reproduzir sua fotografia de campo da rotatória mística de Mayeko.
[66] Comunicação
pessoal, John Burrison, outono de 1975.
[67] BARBER, Ewin Atlee. The
pottery and porcelain of the United States. New York: Feingold and
Lewis, 1976, p. 4.
[68] Os dois exemplos
mostrados são aqui publicados pela primeira vez. Eles foram coletados, por
volta de 1940, nas cabanas de afro-estadunidenses que moravam entre Aiken e
Langley, na Carolina do Sul. Quem os coletou foi o falecido Joseph Sevier Eve,
neto do Coronel Davies (entrevista com o Sr. William R. Eve, mãe de J. S. Eve,
1 jan. 1969). As duas obras estavam em uma caixa com o rótulo "Propriedade
de J. S. Eve. ‘Monkey Jugs’, agosto de 1940," que foi redescoberta no
verão de 1968. Elas estão agora em uma coleção particular.
[69] PUCKETT, op cit, p.
233.
[70] A jarra d’água Lwena (mulondo)
foi coletada por Baumann em 1930 e agora está no Museu de Berlim (Ill C 37489
a, b). Ver KRIEGER, Kurt. Westafrikanische Plastik, Ill. Berlim: Museum
für Võlkerkunde, 1969, prancha 337 e p. 93; jarra d’água Lunda/Tu-Chokwe de
Cambomba de Moriengo, Angola, publicado em: lnquerito - l Artesanato.
Angola: Edição da Junta Provincial de Povoamento, 1966, sem paginação; Estribo
para jarra d’água Kongo de Mayivangwa Therèse, 1965-70, em Janet MacGaffey. Two Kongo Pottery. African Arts, IX, 1 (out.
1975), p. 3.
[71] VLACH, John. The
Afro-American tradition in decorative arts. Cleveland: Cleveland Museum of
Art, 1978, p. 81-90.
[72] BURRISON, John.
Afro-American Folk Pottery in the South. Southern Folklore Quarterly, 42,
2/3 (1978), p. 196.
[73] Comunicação pessoal, fev. 1981.
[74] Fu-Kiau, entrevista, 8
nov. 1980.
[75] VLACH, op. cit, p. 8: "Dizem que uma pequena
jarra com face era usada por pais negros como uma espécie de figura de
bicho-papão para assustar seus filhos pequenos e fazê-los se comportar."
Franklin Fenenga, comunicação pessoal a Vlach, jan. 1977. Quanto às ligações
entre o artesanato do distrito de Edgefield e Misissippi, onde os crânios de
“Son” Thomas emergiram na década de 1960, é importante mencionar que a falecida
Sra. William R. Eve, descendente do Coronel Davies, em cuja olaria várias famosas
jarras monkey feitos por escravizados foram achadas, disse-me, em 1 jan.
1969, que o coronel Davies "levou seus escravos para o Mississippi e
libertou alguns deles lá".
[76] FERRIS, William. Vision
in Afro-American Folk Art: The Sculpture of James Thomas. Journal of
American Folklore, LXXXVIII (1975), p. 125. Citado em: VLACH, op. cit, p. 9.
[77] KIA BUNSEKI, Fu-Kiau.
N'Kongo Ye Nza Yakun'zungidila: Nza Kongo. Kinshasa:
Office National de la Recherche et de Developpement, 1969, tendwa no.54,
onde a concavidade está associada tanto com a cor branca
quanto com objetos postos de cabeça para baixo - ambas são qualidades que
simbolizam a morte e o outro mundo na iconografia Kongo. O branco também
simboliza exoneração.
[78] LAMAN, op. cit., v. II, p. 614; munkoka,
"cachimbo de cabaça;" munkoki, "cachimbo.”
[79] lbid., p. 639.
[80] CHARTERS, Samuel. The Jug Bands.
RBF Records Album no.
RF 6,1963: "O som característico das jug bands era o da jarra,
baixo e rouco, mais grave do que o tom mais agudo do violino, da gaita ou mesmo
do clarinete e saxofone." Ver também, Heroes of the Blues:
a set of 36 cards. New
York: Yazoo Records,1980, que inclui três cards colecionáveis
mostrando jug bands, desenhados por Robert Crumb. John
Szwed chamou minha atenção para esta encantadora referência.
[81] ORTIZ, op. cit., v. V,
p. 336.
[82] Ibid, p. 340; LAMAN,
op. cit., v. II, p. 639.
[83] As jarras d’água são usadas como
instrumentos musicais por certas civilizações da Baía de Biafra,
que também figuraram com destaque na escravidão dos Estados Unidos.
[84] PALMER, Robert. Deep Blues.
New York: Viking, 1981, p. 29. Fu-Kiau,
em entrevista de 12 abr. 1980, diz que, quando jarras d’água são usadas
como instrumentos musicais no Kongo, acredita-se que elas ressoam
com “força invisível atuante [...] a jarra está vazia, é uma cavidade, e nela
acredita-se que soam forças invisíveis. Você não ouve uma voz comum; você ouve
um som sagrado, uma voz sagrada. Isso simboliza, portanto, que não há realmente
uma divisão total entre a comunidade dos vivos e a dos mortos, mas que entre os
dois mundos existe um meio de comunicação, o ato de fazer soar a jarra (sika
vudinga)."
[85] Cfr. FERRIS,
William. Bottle up and go. Center for Southern Folklore, Memphis,
Tennessee. Filme. A declaração da Dotson foi extraída da transcrição xerocada
de uma entrevista de William Ferris: Louis Dotson: one-string guitar
maker, Loran, Misisippi, Bom 1917, p. 4. Sou grato a William Ferris por
disponibilizar uma cópia desta entrevista para mim.
[86] Ver WADSWORTH, Anna. Missing
pieces. Georgia Folk
Art, 1770-1976. Atlanta: Georgia Council for the Arts and Humanities,1976, p.
78 e especialmente p. 25, onde John Burrison aponta: "O pote tumular
parece ser um fenômeno sulista [...] e não tem precedentes claros no Velho
Mundo."
[87] William Stewart,
comunicação pessoal, dez. 1980.
[88] CABLE, op. cit., p. 3.
Também reimpresso em: CABLE, George W.. Creoles and Cajuns. Garden
City: Doubleday Anchor, 1959, p. 370.
[89] ROBBINS, Warren. African
Art ln American Collections. New York: Praeger, 1966, prancha 247: Músico
sentado [de pernas cruzadas] tocando marimba, Sundi, Smithsonian Institution,
Ward Collection, Wahington D.C.
[90]
Jacob Elder, comunicação pessoal,18
out. 1970
[91] William Stewart,
comunicação pessoal, dez. 1980.
[92] Lydia Cabrera,
comunicação pessoal, jan. 1981.
[93] RODRÍGUEZ, Raul Martínez; GONZALES, Pedro de la Hoz. De la
Columbia aI Guaguancó. Bohemia, 68, 23 (4 jun.
1976), p. 13. O gesto de braços cruzados sobre o peito traz a seguinte legenda:
“Salomé Femández no gesto de saudação do yambú.” Observe os significados
contrastantes já referidos - altivez e saudação - que, provisoriamente,
parecem refletir diferentes nuances Kongo e Iorubá do gesto. No Haiti, de
acordo com André Pierre (entrevista, 22 mar. 1981), o mesmo gesto tem
aproximadamente os mesmos dois significados: "Fraternidade" e "Não
posso mais falar".
[94] Fu-Kiau, entrevista,15 dez. 1980.
[95] Lydia Cabrera, comunicação pessoal, nov. 1980.
[96] Este gesto relacionado
a nunsa foi mantido durante a maior parte da discussão
[97] William Stewart, comunicação pessoal, out. 1980.
[98] DAY, Charles William. Five years’ residence in the
West Indies. London: Colburn,1852, v. II, p. 61-64. É
cognato, mas não idêntico: "[Eles] geralmente ficam de costas um para o
outro."
[99] WILLIAMS, Annette Powell. Dynamics of a Black
audience. In: KOCHMAN, Thomas (ed.). Rappin’ and Stylin' Out:
Communication in Urban Black America. Urbana: University of lllinois
Press, 1972, p. 103. Para um excelente exemplo do motivo nunsa na
escultura figurativa Kongo, cfr. prancha 195 em KRIEGER, Kurt. Westafrikanische Plastik, I. Berlim:
Museum für Võlkerkunde, 1965.
[100] LAMAN, op. cit., v. II, p. 842.
[101] GONZALES, Ambrose E. Laguerre: a Gascon of the Black Border. Columbia, S.C.: The
State Company, 1924, p. 79: "Alice colocou as mãos nos quadris e olhou-o
com desprezo, como alguém que, sob o mandato da Corte, usurparia seu precioso
privilégio de falar!"; p. 265: "Daphne, com os braços na cintura, tensa
como uma mola de aço em espiral, estava convidativamente diante dele, e o
convite a pressionava, pois ela estava determinada a incitá-lo a bater."
Evelyn Neal, da cidade de Nova York, me disse que, crescendo como uma jovem
negra, a pose estava tão fortemente relacionada à discussão que assumi-la descuidadamente levava imediatamente a ser
desafiada: "Por que você está de pé, com as mãos na cintura!" O gesto
também é anglo-estadunidense. Cfr. STEINBECK, John. The Red Pony. New
York: Bantam, 1978, p. 99: "Uma das vizinhas o chamou e o xingou com tanta
violência que ele ficou sem graça e não deu ouvidos. Ela colocou as mãos nos
quadris e olhou para ele com desprezo."
[102] No contexto n'kondi, como no magnífico exemplo de
Detroit ilustrado neste artigo [Figura 40], o
gesto pakalala simboliza a prontidão para assumir as dificuldades e
responsabilidades de um processo. André Pierre afirma (entrevista, 22 mar.
1981) que a razão pela qual o gesto das mãos nos quadris está associado à uma divindade, a Rainha do Kongo (Reine Kongo), no vodu,
é porque o gesto de deu men son coté "demonstra que ela é rainha da
terra, da direita e da esquerda. E o pacquet dela também é assim, fica
de pé para representar a força divina em quatro partes, alto, baixo, esquerda e
direita.” Em outras palavras, Pierre claramente lê o gesto em termos
cosmográficos.
[103] Mas no Haiti o gesto está impregnado de interpretações
cristãs: "A ressurreição de Jesus," o "Triunfo do poder de Deus
sobre a morte" - representado pelo gesto apontando para cima, com a mão
direita.
[104] COURLANDER, Harold. Haiti singing. Chapel Hill:
University of North Carolina Press, 1939, p. 131. A
referência está inserida no contexto de rituais Petro no Haiti, sobre os quais
Courlander comenta: "Há fortes evidências de que o serviço religioso Petro
se baseou fortemente em antigos ritos Kongo. Mas eles não são de forma alguma
considerados a mesma coisa hoje."
[105] BASCOM,
William; HERSKOVITS, Melville J.. Continuity
and change ln African cultures. Chicago: University of
Chicago Press, 1959, "African Music," Alan P. Merriam, p. 77: "A
música dos pigmeus é caracterizada principalmente pela técnica do hoquetus
ou durch-brokene Arbeit, na qual cada indivíduo em um grupo de cantores
contribui, em um tempo preciso, com uma, duas ou três notas para uma linha
melódica mais longa." Agradeço ao padre Cornet e aos membros da equipe do
Institut des Musées Nationaux du Zaïre por facilitarem minha estada na aldeia
de Luangu Nzambi, onde pude fotografar e gravar música do disoso
(trompete de bambu) em junho de 1980.
[106] SÕDERBERG,
op. cit., prancha XXIII, p. 6: “Tocador de flauta transversa feita de carica
papaya, Bembe, Mouyondzi,” fotografia: Sõderberg, 1950.
[107] COURLANDER, Harold. The drum and the hoe.
Berkeley: University of California Press, 1960, p. 107-108. Cfr.: GILLIS, Vema.
Rara in Haiti, Gaga in the Dominican Republic. New
York: Folkways Records Album no. FE 4531, 1978, panfleto anexo, p.
4: "Existem dois tipos principais de danças rara: uma é considerada
uma dança de amor e consiste basicamente em um movimento giratório do ventre,
executado sozinho, em casal ou em grupo; a outra é a dança solo especial,
específica em seus passos e muito graciosa e hábil, que é executada pelo major
jonk. Uma banda rara normalmente inclui pelo menos
dois major jonks. São homens que executam suas próprias
danças enquanto giram bastões de uma maneira muito talentosa. Alguns major jonks importantes frequentam
escolas especiais para treinar para essa função; o treinamento às vezes começa
na infância.” O movimento giratório do ventre corresponde a um padrão básico da
dança Kongo, que filmei em Luangu Nzambi em 29 jun. 1980 e que observei em
outras danças no Baixo-Zaire em 1976. Isso evidencia outro forte elemento Kongo
no mundo da dança e da instrumentação rara.
[108] Haiti: Premiere
Republique Noire du Nouveau Monde. Port-au-Prince: Haiti Visite, n.d., p. 59:
pintura, Performers de rara a noite [título fornecido] por R. Duvivier.
Para uma série interessante de fotografias do giro de bastão dos majors
joncs, ver: HONORAT, Michel Lamentiniere. Les Danses Folkloriques Haitiennes. Port·au-Prince: lmprimerie de L'Etat, 1955, p. 132-3. Observe
também o desafiador comentário de Honorat sobre a religiosidade inerente à
performance do rara, incluindo o giro do bastão (p. 131):" Rara
merece ser objeto de uma monografia. Seu aspecto mágico-religioso deve ser
estudado, assim como seu caráter como divertimento por ocasião da ressurreição
de Cristo [...] aqui, a elegância e a majestade do major jonc desafiam
todas as descrições." André Pierre aprofunda, de forma independente, a
dimensão mística da pose telama no rara haitiano, quando diz, a respeito dos balizas de grupos rara que se
confrontam com esta pose: "Com a ‘pose jouer jean’ eles mostram, um para o
outro, que é o espírito que lhes confere sua força. A mão no quadril
ancora a força, a mão direita representa o triunfo do Senhor; ela representa a
ascensão de Cristo " (22 mar. 1981).
[109] VLACH,
John. Sources of the shotgun house: African and Caribbean antecedents
for Afro-American architecture. Ann Arbor: University
Microfilms, 1975, v. 1, p. 69-73.
[110] Comparar o Auto-retrato em fantasia de carnaval (1958) de
Wilson Bigaud (em: STEBICH, Ute. Haitian Art. New York: Abrams, 1978, p.
95) com ilustrações dos trajes do grupo Wild Magnolias. Cfr. as túnicas
de contas e lantejoulas amplamente semelhantes e os cocares de penas destes
últimos. Os mascarados de Nova Orleans são ilustrados por fotografia, em
detalhe, em: Polydor LP PD 6026 (1974): The Wild Magnolias. Para um
documento visual interessante de grupos de drum majorettes com bastões,
completamente formados por negros, ver: WICKISER, Ralph; DURIEUX, Caroline;
MCCRADY, John. Mardi Gras Day. New York: Henry Holt and Company. 1948,
p. 16: "Mascarados negros: cinco negros, liderados por uma mulher
mascarada, vão ver o desfile Zulu mesmo que não façam parte nele."
[111] WICKISER et al., op. cit,
p. 16. Além disso, embora as cheerleaders [[líderes de torcida]] que
giram bastão sejam mais ou menos restritas a jogos de football nos
Estados Unidos em geral, baton twirling e cheerleading
acompanham, no Sul negro, jogos de basquete, beisebol, de qualquer espécie de
esporte. Na verdade, essa arte fenomenalmente popular está enraizada ampla e
firmemente entre os negros do Sul: sua origem - ou, pelo menos, seu
desenvolvimento mais intenso - parece ter ocorrido nesse contexto. Isso
encontra paralelo e é reforçado pela ascensão do costume de girar o bastão com
a mão esquerda no quadril no Caribe negro, notavelmente no Haiti, onde as
influências Kongo são palpáveis e fortes.
[112] A história definitiva do baton
twirling nos Estados Unidos ainda está por ser escrita. A obra de Constance
Atwater, Baton twirling: the fundamentals of an art and skill, é útil
sobretudo para conhecer as dimensões anglo-estadunidenses dessa arte. Estamos
em um estágio comparável aos dias em que Benny Goodman, Gene Krupa, Bix
Biederbecke e Dave Brubeck representavam, para o público estadunidense em
geral, o mundo do jazz, em vez dos verdadeiros criadores, Armstrong,
Lester Young, Bird, e outros - ou seja, um estágio quando a mimese branca da
moda negra obscureceu as questões de origem, desenvolvimento e realização.
Percorrendo as evidências disponíveis,
tenho a impressão de que, conforme as cerimônias do intervalo de jogos surgiram
na cultura estadunidense, após a ascensão do football na década de 1890,
a pose principal do giro de bastão, com a mão esquerda no quadril, foi
incorporada a partir de fontes originalmente negras do Sul. Em 1939,
observou-se que "algumas das líderes de torcida mais versáteis [estão] em
faculdades do Sul (notadamente no Alabama e Tennessee)". Ver: AII-America.
Time, 34, 24, 11 dez. 1939, p. 42. Uma série de influências europeias e
afro-estadunidenses se misturaram, se fundiram ou foram performadas de forma
independente, como no seguinte relato, datado de 1940: "Milhares de gritos
roucos sempre saúdam as bandeiras suíças de Wisconsin e Oklahoma ou as
emocionantes bandas de swing do Texas Christian e Southern Methodist. A
banda Scotch Kiltie de Iowa é uma das favoritas dos Big Ten. Os
fãs de Louisiana apreciam mais esquetes de comédia musical e sapateadores"
- Football Floorshow. The American Magazine, CXXX, 5, nov. 1940, p.
88-89. Nesse processo, passos de jazz e rotinas de strutting
reforçaram o componente negro. Cfr.: Life, 11, 19, 10 nov. 1941, p.
58-60. Em meio a essa dinâmica e criatividade, a pose telama manteve-se
intacta (e.g.: American Magazines, nov. 1940 e mai. 1941, onde as
fotografias, sem legendas, registram a sua continuidade). Em meio a isso, o
giro de bandeira suíço tornou-se um rival importante e um elemento de reforço,
de origem europeia, levando pelo menos um estudioso a apontar a Suíça como o
berço do baton twirling estadunidense. (Para evidências fotográficas do
giro de bandeira suíço, consultar: Life, 9, 16, 14 out. 1940, p. 50. No
entanto, assim como para os blues estadunidenses, jarras monkey,
couve e quiabo, os centros significativos de difusão do baton twirling permaneceram
no Sul Profundo, como fica implícito em Newsweek, XLVI, 10, 5 set. 1955:
"Os jovens do Sul levam particularmente a sério o [baton twirling].”
Com efeito, o Dixie National Baton Twirling Institute fica localizado em
Oxford, Mississippi. Provavelmente, só com o artigo de Terry Southern sobre o baton
twirling (Esquire, UX, 2, feb. 1963) o véu da imitação branca
começou a se romper e os criadores e continuadores mais elegantes da prática
começaram a fazer sentir sua presença (p. 103): "O melhor strutting
é performado nas escolas negras do Sul, e destas, a maior de todas é o Alabama
State Teachers College." Contra um caleidoscópio cultural brilhante - o
som e o brilho de tambores e kilts escoceses, o agitar e girar de
bandeiras no ar à la suisse, marchas de precisão europeia - a pose telama
lwimbanganga emergiu como um elemento indestrutível, fundamental e
contribuinte para a formação de um rico aspecto da cultura popular dos Estados
Unidos. As rotinas de lindy, conga, mambo e rock
vêm e vão, com o fluxo e refluxo das modas musicais, mas a figura na frente ou
nas laterais da banda, com bastão na mão e mão no quadril, continua presente e
importante. Para um documento recente, muito fugaz, da pose em filme, ver: Beauty
knows no pain, um documentário sobre as Kilgore College Rangerettes, de
1971-2. Para documentação do século XIX de negros girando bastões, com a mão
esquerda no quadril, ver: HARRIS, Middleton. The Black Book. N.
Y.: Random House, 1974, p. 42-43 e p. 45.
[113] SZWED,
John. Introduction. In: FAUSET, Arthur Huff. Black
Gods of the Metropolis. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1971, vii: "A maioria dos comentaristas sobre possessão espiritual
na América do Norte notou, no passado, que alguns euro-estadunidenses,
especialmente no Sul, também a experimentam em seus serviços religiosos e
argumentaram, portanto, que a possessão espiritual deve ter se difundido dos
brancos para os negros. A mesma lógica arrogante presumivelmente atribuiria
contribuições afro-estadunidenses à cultura dos Estados Unidos - como jazz,
baton twirling, dialetos negros e culinária negra - à Europa,
simplesmente porque um grande número de brancos também as pratica."
[114] John Szwed chamou minha
atenção para esse problema.
[115] Stop!
ln the name of love
(Motown HLB-113303, 1965). A pose preserva sua dupla face através do
Atlântico: aqui, ela aprofunda o arrebatamento em função amor; lá - no Kongo,
em depoimento coletado por Cornet -, ela é feita para sinalizar o desejo de uma
mulher de pôr fim ao casamento.
[116] FINE,
Elizabeth. Aesthetic patteming of verbal art and the performance-centered text.
Working Papers in Sociolinguistics, Austin, Texas: Southwest Educational
Development Laboratory, nov. 1980, 74-80, p. 31.
[117] Fu-Kiau, entrevista, 26
nov. 1980.
[118] FINE, op. cit., p. 32.
[119] Por exemplo, entre os
exemplares da coleção de minkisi n'kondi do Museu Tervüren: 19845,
22480, 22433, 59.48.1, 22436, e assim por diante.
[120] FINE,
op. cit., p. 33.
[121] Fu-Kiau,
entrevista, 21 jan. 1981.
[122] Ibid.
[123] Fu-Kiau diz que a pose
também simboliza, em contextos fúnebres, "alegria" e "a
continuidade da vida.”
[124] LIGON,
Richard. A true and exact history of the Island of Barbados. London,
1657.
[125] LESLIE,
Charles. A new and exact account of Jamaica. Edinburgh, 1740, p.
325-326.
[126] BONTEMPS,
Arna. Black Thunder. Boston: Beacon Press, 1968, p. 52-53.
[127] William Stewart,
comunicação pessoal, dez. 1980.
[128] WELTY,
Eudora. One Time, One Place. New York: Random House, 1972,
p. 85, legenda: "Falando em língua desconhecida, Holiness
Church/Jackson."
[129] A distribuição de árvores de garrafa ao longo do Sul é
impressionante, mas uma discussão completa não pode ser feita aqui. Algumas das
concentrações mais importantes incluem East Texas (Mrs. C. E. Hilton, San
Augustine Library, comunicação pessoal, 8 dez. 1978); o sudeste de Arkansas
(James D. Martin, comunicação pessoal, out. 1980); e o sul do Alabama (James
Poteet, comunicação pessoal, outono de1979). Além disso, eu estudei e
fotografei árvores de garrafa no norte do Mississippi, em março de 1980; e em Sheldon,
na Carolina do Sul, em dezembro de 1976. Em uma publicação futura, após estudos
de campo adicionais, abordarei a questão da geografia artística e da história
dessa forma nos Estados Unidos.
[130] WELTY,
Eudora. The wide net and other stories. New York: Harcourt,
Brace, Jovanovich.1971, p. 156.
[131] Ibid. O trecho é interessante, não só pela estimativa do
tempo gasto por um artesão negro em suas árvores (nove anos, cerca de uma
árvore por ano), mas também pela observação implícita sobre o cuidado dedicado
a essas estruturas espirituais, que iguala ou até supera aquele dedicado à
própria casa. É uma observação comparável ao comentário de Anita
Jacobson-Widding sobre as estruturas kiimbi ou muzidi em terra
Bwende: "Em quase todos os pátios [...] há [...] uma casa-túmulo. Esta
casa extra é geralmente de melhor qualidade do que a casa em que os vivos
habitam."
[132] WELTY,
One Time…, p. 41.
[133] James
D. Martin, comunicação pessoal, jan. 1981.
[134] L'Abbé
Proyart. Histoire de Loango, Kakongo et autres royaumes d'Afriques.
Paris: Berton and Crapart, 1776, p. 192-3
[135] ATWOOD, Thomas. The history of the Island of
Dominica. London: J. Johnson, 1791, p. 265.
[136] Arquivo de fotos do Museu
de Tervüren, no. 21124. A maior parte das louças suspensas e
pregadas são brancas e por isso brilham com a cor do outro mundo.
[137] Fu-Kiau, comunicação
pessoal, nov. 1978. Em entrevista de 8 nov. 1980, Fu-Kiau acrescenta:
"Suspender pratos em árvores simboliza 'isso não o fim.' 'A morte não
acabará com nossa luta.' Pratos deixados, não no chão, mas no ar, significam
'ainda não terminamos.’ Isso é consistente com outra ideia, a da continuidade
dos talentos do morto."
[138] ANÔNIMO. Mississippi Bottle Trees ward off “Evil
Spirits." Vicksburg Evening Post,
Vicksburg, Mississippi, 20 fev. 1974, p. 22. Agradeço a William Ferris por
chamar minha atenção para este artigo e a James Martin por muitas conversas
úteis.
[139] Ibid.
[140] Ibid. Em adição: James Martin, comunicação pessoal, fev.
1981.
[141] Reportado ao autor por
Roger Abrahams, no verão de 1972.
[142] Sou grato a Guy Dorsey, irmão do falecido Henry Dorsey, por
me guiar, no condado de Oklham, em Kentucky, até esta escultura em particular,
em fevereiro de 1975.
[143] Willy Ruff, comunicação pessoal, set. 1979.
[144] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren. E. PH. 3487.
Fotografia de L. Cahen, 29 out. 1948. Um rifle (nkele) e a representação
de um elefante (nzau) adicionam outras imagens de poder a este túmulo.
[145] Wyatt MacGaffey,
comunicação pessoal, mar. 1981.
[146] Arquivos da Svenska Missionsforbundet, Estocolomo. no.
A 897.
[147] Fotografia de R. F. Thompson. oeste da Carolina do Sul, 29
dez. 1976.
[148] VLACH, Sources...,
v. I, p. 69: "Em 1810, Nova Orleans tinha 12.225 habitantes: 4.507
brancos, 4.386 escravizados e 3.332 negros livres. Os 7.718 negros eram quase o
dobro do número de brancos. O influxo de imigrantes haitianos fez de Nova
Orleans uma cidade verdadeiramente negra;" p. 70: "Foi provavelmente
essa grande comunidade de negros livres a responsável pela construção das shotgun
houses;" p. 72: "Em 1839, François Ducoing solicitou que Laurent
Cordier construísse uma maison basse. Este termo é usado no Haiti para
edifícios do tipo shotgun;" p. 73: "As shotgun houses
parecem se desenvolver em Nova Orleans quase ao mesmo tempo em que há uma
entrada maciça de negros livres do Haiti na cidade. Esta circunstância sugere
que elas tem um passado fora dos Estados Unidos [...]
na ilha do Haiti." Comparar com: REED, Ishmael. "I Hear You, Doc." Shrovetide
ln Old New Orleans. Garden City: Doubleday & Company, 1978, p.
281: "Durante o carnaval, os haitianos observam as tradições Arawak e se
vestem como índios, um costume que foi transportado para Nova Orleans."
Para fontes sobre a influência Kongo nas Índias Ocidentais durante a época
colonial, é inestimável o livro: SZWED, John F.; ABRAHAMS, Roger D.. Afro-American
folk cuture: an annotated
bibliography. Philadelphia: lnstitute for the Study of Human lssues. 1978.
[149] HYATT, op. cit., v. III (1973), p. 1959: "Ele não vai
beber mais uísque; se o fizer, será um homem morto.” O informante de Hyatt era
um curandeiro negro de Waycross, capital do condado de Ware, sudeste da
Geórgia.
[150] Fu-Kiau, entrevista, 17 abr. 1981.
[151] Fu-Kiau, entrevista, 9 out. 1977.
[152] Túmulo mukimbungu,
citado acima, dos Arquivos da Svenska Missionsforbundet, Estocolmo, no.
A 1070. 1953. Agradeço a Ragnar Widman por disponibilizar cópias das
fotografias dos arquivos. Sobre a referência a árvores e sepulturas negras na
Carolina do Sul do século XIX, ver: BRYANT, William Cullen. Letters
of a traveler: or notes of things seen in Europe and America. New York: Putnam, 1850, p. 94.
[153] AUBIN, Eugene. En Haiti. Paris: Librairie Armand
Colin, 1910, p. 212, prancha XXIII: "Túmulo sob um 'mapou,' na planície de
Léogane." Agradeço a Tom Steinberg, de San Francisco, por compartilhar
suas fotos de túmulos na área de Jacmel, no sul da península do Haiti. Em 21
mar. 1981, fotografei o cemitério ilustrado na Figura 63,
perto de Les Cayes. Entrevista com
André Pierre, 22 mar. 1981.
[154] APRAXINE, Pierre. Haitian Painting. New York:
The American Federation of Arts, 1973, p. 27.
[155] Fu-Kiau, entrevista, 22 abr. 1981.
[156] BASS,
Ruth. The Little Man, reimpressão de Scribner’s Magazine, 97
(1935), p. 120-23, in: DUNDES, Alan. Mother Wit from the Laughing
Barrel. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973, p. 395.
[157] EISENCRAFT, Barbara. Grave traditions in Africa and
America. New Haven, Connecticut, 11 abr. 1977, estudo datilografado
não publicado, p. 8, citando materiais sobre o Millermore Estate, da Dallas
Historical Society. Sou grato a Barbara Eisencraft pela cópia de suas
fotografias de campo.
[158] BUTTERWORTH, Hezekiah. A zigzag journey in the
sunny South. Boston; Estes and Lauriat, 1887, p. 229. A
legenda dessa ilustração diz: "Antigos cemitérios de negros." Cfr. Mort,
funerailles, deuil et culte des ancêtres. Bandundu: Publications du Centre
d'Etudes Ethnologiques, 1969, p.15: "No entanto, a exposição de cadáveres
no mato ou em árvores nem sempre é praticada com a intenção de recusar o
sepultamento."
[159] Fu-Kiau, entrevista, 17 abr. 1981.
[160] lbid.
[161] lbid.
[162] Fu-Kiau, entrevista, 22 abril de 1981.
[163] PETERKIN, Julia, Roll, Jordan, Roll. New York: Robert O. Bailou, 1933, p. 146.
[164] Fu-Kiau, entrevista, 12 abr. 1980.
[165] JOHNSON, James Weldon. The autobiography of an
Ex-Colored Man. New York: Hill and Wang, 1960, p. 4.
[166] MICHAEL, Dorothy Jean. Grave Decoration. Publications
of the Texas Folklore Society, 18 (1943), p. 130: "O
vidro é usado muito profusamente em cemitérios negros."
[167] André Pierre, entrevista, 22 mar. 1981.
[168] OTTENBERG, Simon. Notes on burials and graveyards
ln the community of White Bluff. Georgia, segmento
datilografado não-publicado de um caderno de campo, verão de 1950, p. 3. Sobre
a própria comunidade, Ottenberg observa (comunicação pessoal, 14 fev. 1981):
“Muitas coisas sobre a liderança dos vivos me parecem muito africanas (sua
natureza conciliatória, o controle exercido por algumas poucas famílias, a
presença de grupos associativos, os líderes religiosos sendo também líderes seculares, etc.). "
Para mais detalhes, ver: OTTENBERG, Simon. Leadership and change in a Coastal
Georgia Negro Community. Phylon, XX, 1, primavera 1959, p. 2-18.
[169] LAMAN, Karl E.. The Kongo.
Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia, 1962, v. III, p. 37.
[170] Bessie
Jones, entrevista, outono de 1975. Ela cita as tradições dos
negros de St. Simons Island, na Georgia.
[171] Mbungu amputu (Diplognatha
gagates), um besouro semelhante ao escaravelho, com uma carapaça de brilho
metálico brilhante. Cfr: LAMAN, Dictionnaire…, v. II, p. 542. Ver
também: LAMAN, Kongo…, v. III, p. 74: "Os cernes medicinais das
imagens contêm um inseto vivo ou um objeto oriundo de uma sepultura, que está
possuído por um nkuyu e que pode ser incorporado à imagem e ao nkisi.
Antigamente, as imagens continham besouros ou outros animais com brilho
metálico, destinados a assustar os bandoki com seu brilho e fulgor, mas
estes são agora substituídos por pedacinhos de espelho ou vidro comum."
[172] Fu-Kiau, entrevista, 22 abr. 1981. Observe os variados
significados atribuídos ao uso de carapaças brilhantes ou espelhos, no centro
de um amuleto, para capturar, atrair ou repelir um espírito, bem como sugerir
as águas faiscantes através das quais alguém espia o outro mundo, na busca pelo
poder legitimador dos mortos.
[173] Ibid.
[174] Cfr., por exemplo, o bastão da família Patton, c. 1916, em
Cherry Valley, no Arkansas. Este é um bastão de fabricação afro-estadunidense,
decorado com a figura de um homem no topo, uma serpente implícita e o brilho de
strass embutido. John Szwed relata a inserção de folhas de alumínio atrás de
vidros, em lápides perto de Midway, na Georgia; tinta prateada é usada para
conferir brilho a abóbadas e túmulos em cemitérios negros em Norfolk, Virgínia
e Geórgia; conchas brancas, ao contrário de outras variedades, são usados
para forrar ou decorar sepulturas em todo o Sul: e, finalmente,
em Tallahassee, como exemplo último e único, há uma lápide triangular
fascinante, datada de 28 de junho de 1974, que é adornada com uma cabeça de
boneca embutida e trinta e uma gudes de vidro reluzentes.
[175] PUCKETT, op. cit., p. 233.
[176] PETERKIN, op. cit., p. 146.
[177] BENTLEY, Jeremiah. Kongo influence on an old Black
cemetery: Mt. Zion Methodist Church, Jacksonville, Florida. Artigo
não publicado, mai. 1977, p. 3.
[178] Ver Fu-Kiau, entrevista, outono de 1977, sobre fogueiras
acesas em túmulos importantes no Kongo como um precedente para os fragmentos de
lamparinas em túmulos afro-estadunidenses. Ver também: MICHAEL, op. cit., p.
133: "Uma crença dos negros é que [lamparinas] 'iluminam' ou 'conduzem o
falecido para a Glória'. Um negro do Alabama diz que elas são usadas
porque 'fornecem luz na hora da morte' [...] lamparinas são
empregadas em cemitérios mais amplamente do que globos de luz, mas a nova moda
está substituindo a antiga, mesmo em cemitérios." James Agee, em Let us
now praise famous men (New York: Ballantine Books, 1966), publicou uma
fotografia assombrosa desta última tradição entre os brancos pobres do Alabama.
[179] Fu-Kiau,
entrevista, 30 set. 1980.
[180] Ibid.
[181] TORIAN, Sarah Hodgson. Notes and documents: Ante-bellum
and war memories of Mrs. Telfair Hodgson. Georgia Historical
Quarterly, 27, 4, dez. 1943, p. 352: "Os túmulos de negros eram
sempre decorados com o último objeto usado pelos falecidos, e jarros quebrados
e cacos de vidro colorido eram considerados ainda mais apropriados do que as
conchas brancas da praia próxima. Às vezes, eles esculpiam rudes figuras de
madeira, como imagens de ídolos, e às vezes uma colcha de retalhos era colocada
sobre o túmulo.” É interessante que esse estilo das plantations seja
semelhante ao que ainda é encontrado hoje em muitos túmulos tradicionais, sem
as colchas, e com exceção das figuras guardiãs, semelhantes a mintadi,
que agora são vistas apenas esporadicamente ou referidas implicitamente, por
meio da presença de figuras de porcelana e outras imagens compradas em lojas.
[182] PARSONS, Elsie Clews. Folk-Lore of the Sea lslands,
South Carolina. Memoirs of the American Folk-Lore Society, Cambridge,
The American Folklore Society, 16, p. 1923, p. 214. Comparar
com: Drums and shadows. Athens: University of Georgia Press, 1940, p.
58: "[Em Brownsville, Geórgia] Eles costumavam colocar na sepultura as
últimas coisas usadas pelo falecido. Isso deveria satisfazer o espírito e
evitar que ele os seguisse de volta para a casa" [Ênfase e padronização da
ortografia "pitoresca" nossas].
[183] MICHAEL,
op. cit., p. 135.
[184] DENNETT, R. E.. Seven
years among the Fjort. Londres: Sampson Low et al, 1887, p.
177-179, ilustração em frente a p. 104.
[185] Fu-Kiau, entrevista, 25 out. 1980.
[186] JANZEN, John M.. The quest
for therapy in Lower Zaire. Berkeley: University of California Press, 1978,
p. 162-3.
[187] BARCLAY, Alexander. A practical view of the present
state of slavery. London, 1828, p. 131-33.
[188] BASS, Ruth. Mojo. In: DUNDES, Alan (ed.).
Mother Wit from The Laughing
Barrell. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973, p. 382.
[189] Sou
grato a Judith Wragg Chase por me apresentar o Sr. Alston.
[190] Drums
and shadows, op. cit., 167. See
also VLACH, The Afro·American tradition, p. 144: "Em 1924, Homer
Eaton Keyes encontrou um cemitério negro em Camden, Carolina do Sul, que
‘estava repleto de galinhas de vidro.’ Suas fotos registram galinhas de vidro
prensado em meio a conchas de ostras em frente a uma lápide datada de 1912.”
[191] Fu-Kiau, entrevista, 18 abr. 1981.
[192] Ibid.
[193] Xerife J. E. McTeer de
Beaufort, Carolina do Sul, entrevista, 13 nov. 1975.
[194] Mort,
funerailles …, op. cit., p. 34.
[195] Drums
and shadows, op. cit., p.
130.
[196] COHEN, Hennig. Burial of the drowned among the Gullah
Negroes. Southern Folklore
Quarterly, XXII, 2, jun. 1958,
p. 95. Ver também: Drums and shadows, op. cit., 130. Para
uma manifestação informal da tradição das últimas palavras ditas aos mortos, no
mundo do jazz: MEZZROW, Mezz; WOLFE, Bernard. Really the Blues.
Garden City: Anchor Books, 1972, p. 256, onde um homem negro faz piada com um
cadáver: "Que cara era o Buck! Ele não ficou
feliz com a morte de Tommy, entenda: apenas tirou proveito disso, tentando
continuar e me dar coragem."
[197] CHASE,
Kathleen. Syncopated Dirges, Ragtime Parades. Americas, 16, 3, mar.
1964, p. 20.