A estrutura da recordação: a tradição visual Kongo no Novo Mundo *

 Robert Farris Thompson **

THOMPSON, Robert Farris. A estrutura da recordação: a tradição visual Kongo no Novo Mundo. 19&20, Rio de Janeiro, v. XV, n. 2, jul.-dez. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.xv2.01

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O Espírito Santo do Kongo me assombra.

- Larry Neal, Hoodoo Hollerin’ Bebop Ghosts

[...] Still, alone, but with more vitality, the taste of things remains poised a long time, like souls, ready to remind us, waiting for their moment, amid the ruins of all the rest; and bear unfaltering, in the tiny and almost impalpable drop of the essence, the vast structure of recollection.

- Marcel Proust, Swann' Way 

1. A celebração de Proust do drama da memória mostrou que lembranças poderosas, por mais condensadas que sejam, podem conferir força e significado à vida. A verdade expressa por Proust é paralela à imagem de negros que restabelecem valor e aspiração pessoais com base em aspectos fundamentais da cultura Kongo, apreendida como recordações em certas cidades das Américas. Sobre “as ruínas de tudo o mais," os negros também sustentam - nas pulsações produzidas em um ngoma [[tambor]]; na dança, ao ficarem em pé com a mão esquerda no quadril e a direita estendida; ou ao colocarem terra de cemitério em amuletos para a captura de espíritos - vastas estruturas de recordações.

2. O gênio Kongo para capturar e exaltar os espíritos nunca se perdeu no Baixo Zaire [[atual Congo Central, uma das províncias da República Democrática do Congo]], nem nas plantations das Américas. No Kongo atual, artesãos habilidosos modelam edifícios de concreto para os mortos nos quais os ícones do passado retomam seu lugar na consciência moderna. Nossa consideração desses edifícios, nos parágrafos iniciais deste texto, nos prepara para o surgimento paralelo de antigos conceitos Kongo em obras de arte ou arquitetura totalmente modernas, em regiões muito além dos mares que são tocados pelo pensamento Kongo.

3. Um breve exame do comércio atlântico revela a chegada de milhares de Bakongo e de seus vizinhos, como cativos, ao Hemisfério Ocidental. Lá, suas imagens e aspirações foram lembradas e não morreram. Essas recordações ganharam nova vida misturando-se com preceitos e formulações similares oriundas de Angola, de Kwango. e do território imediatamente ao norte do Kongo. Além disso, elas se misturaram com outras forças: espanholas. inglesas, portuguesas ou francesas. Nesse processo, a etnicidade Kongo se tornou uma influência cultural estratégica no Novo Mundo.

4.Comecemos, então, pelo exame dos principais motivos de retidão e aspiração espirituais Kongo, como aspectos de uma tradição clássica paralela no mundo atlântico.

Arte Kongo no Baixo Zaire moderno

5. No verão de 1980, Fu-Kiau analisou duas fotografias de modernos mintadi [[sing. ntandi, esculturas tumulares]] [Figura 1 e Figura 2]. Ele as analisou em absoluto silêncio. Então falou: dianzenza beni! (muito estranho!). Não é difícil entender por que ele disse isso. Pois estes são mintadi que fazem afirmações culturalmente irreconhecíveis. Eles não se levantam e fazem uma pose de desafio, com as mãos nos quadris. Eles não se ajoelham e estendem suas duas palmas abertas. Eles não se sentam com as pernas cruzadas, sustentando a cabeça e pensando no destino. Em vez disso, eles songa[1] (mostram, indicam, manifestam, exibem) tabuletas, nas quais suas datas de morte e nomes seriam pintados ou gravados. No primeiro exemplo [Figura 1], um personagem vestido de modo tradicional e nobre exibe essa mensagem concisa e lúgubre:

6. Malaza 25 1921                      No dia 25 de março de 1921

7. Kafua                                    morreu ali

8. Daniel                                   Daniel

9. Zamuna                                 Zamuna

10. No outro exemplo [Figura 2], um homem de bigode, usando um fez, paletó, calça e sapatos, exibe uma tabuleta da qual seu nome e data da morte, presumivelmente pintados, desapareceram. Esta figura pertence essencialmente ao mundo moderno. Ambos os monumentos são lápides mintadi, fusões de dois mundos.

11. Nas primeiras décadas do século XX, enquanto tais fusões de mundos aconteciam na confecção de esculturas funerárias em pedra, mintadi e bitumba [[sing. tumba]] à moda clássica eram por vezes adicionados à decoração de uma nova forma de túmulo, construída em concreto e pintada com cores brilhantes, que então surgia nos vilarejos do Baixo Zaire.

12. Lançando mão de uma espécie de cálculo cultural, é possível sugerir que as décadas de 1920 e 1930 marcaram o início do modo de construção de túmulos Kongo que empregava o concreto. Em uma conversa privada, Wyatt MacGaffey apontou que essas foram as décadas em que o concreto se tornou um material amplamente utilizado para a construção de casas no Baixo Zaire.[2] Em outras palavras, o que conferia graça e permanência às casas dos vivos foi inevitavelmente espelhado na confecção de casas para os mortos. No processo, autênticos mintadi por vezes foram incorporados no concreto ainda úmido, para decorar túmulos de importância perene.

13. Albert Maesen fotografou um exemplo disso, em Palabala, perto de Matadi [Figura 3].[3] Uma bela imagem de uma mãe que embala seu filho foi incorporada diretamente na estrutura do novo estilo do monumento funerário. A figura se senta na posição funda nkata (com as pernas cruzadas), sobre uma espécie de plataforma, conferindo autoridade a esse canto do monumento.

14. A arte Kongo em concreto, na qual este avatar do passado clássico foi memoravelmente ancorado, está conectada a uma importante cerimônia chamada matanga. Trata-se de um contexto em que se sacrificam animais caros - porcos e vacas - e se reúnem grandes multidões. É também o momento em que túmulos de concreto são consagrados e pintados. Segundo John Janzen,

15. O terceiro ritual funerário de importância, matanga, acontece em uma data não especificada, algumas vezes muitos anos depois [da morte de uma pessoa], na forma de um banquete em homenagem aos antepassados ​​da comunidade. Em certa medida, corresponde a matondo, o histórico banquete de ação de graças. Nos tempos contemporâneos, matanga tornou-se a ocasião para a consagração dos túmulos de pessoas da linhagem materna recentemente falecidas.

16. Antigamente, havia um considerável e ostensivo enterro de posses da linhagem junto com o cadáver. Ainda hoje é esse o caso, mas túmulos de cimento, azulejo e outros enfeites quase permanentes são recentes em Manianga. Muitas linhagens dependem de seus membros assalariados para suprir as despesas que invariavelmente são necessárias para a construção de um túmulo adequado, com os requisitos estilísticos do gênero - e trata-se de um gênero de arte, talvez o mais desenvolvido de todas as artes Kongo no momento (1967).[4]

17. Essas casas para os espíritos representam não apenas uma das formas de arte Kongo mais importantes deste século, mas também, sem sombra dúvida, uma maravilhosa síntese da coluna de terracota Kongo, da figuração em pedra e da imagem-medicina. Em 1949, Lucien Cahen, ex-diretor do Museu de Tervüren, fotografou um esplêndido exemplo dessa nova tradição, localizado a “dois quilômetros antes de Seke Banza,” ao norte do rio Zaire, em território Yombe [Figura 4].[5] Em um único programa expressivo, este túmulo une as dimensões figurativa e ideográfica da tradição visual Kongo. Na parte inferior, aparece uma estrutura de quatro camadas. Estatuetas de concreto estão de pé ou se ajoelham nesses níveis, sendo algumas virtuais “fugitivas” do mundo das esculturas bitumba e mintadi, mas executadas com o novo material. Há duas mães com seus filhos; há um alfaiate com sua máquina de costura; um gendarme com uma espingarda; um homem que gesticula, trajando um esplêndido terno ocidental com casaco e gravata;[6] e uma pessoa trabalhando no fole tradicional de um ferreiro.

18. Em circunstâncias muito veneráveis, os túmulos antigos eram às vezes marcados com um único ícone esculpido em pedra, o ntadi, além de cerâmica e faiança. Neste novo contexto, o desembolso de dinheiro coletado entre membros generosos do clã com empregos remunerados em Kinshasa, Boma e em outros lugares do Zaire moderno permite que formas mais expansivas de comemoração surjam, povoadas de figurações que sugerem a unidade do clã. Aqui, a reunião das estatuetas também sugere uma oração: “Que os talentos dos mortos, na liderança, na criação de filhos, na confecção de roupas, na manutenção da lei e da ordem, na elaboração de apreciáveis ​​objetos em ferro - que todos esses talentos permaneçam conosco.”

19. No centro, ao fundo, ergue-se uma bibanga [[casa de dois andares]] esplendidamente miniaturizada, com paredes abertas exibindo desenhos vazados. Variações do signo do cosmograma Kongo - motivos parecidos com os de um cata-ventos - marcam os momentos do sol, desde seu nascimento e o meio-dia até Mpemba [[o mundo de argila branca dos mortos]] e retornam. A torre como que flutua sobre as figuras, tal qual uma bandeira quadrangular do espírito.

20. Os túmulos de concreto de Yombe são obras-primas de alusão cultural, percussivamente vazadas por aberturas simbólicas, imitando elementos arquitetônicos - como colunas de terracota (maboondo [[sing. diboondo]]) - e enaltecidas por emblemas mediadores, como exemplares de niombo [[imagens feitas de tecido, usadas para transportar os restos mortais de pessoas importantes deste mundo para o outro]].

21. Vamos examinar três exemplos. O primeiro é datado de 2 de setembro de 1948 e foi fotografado em um cemitério perto da vila de Kay Mbungu [Figura 5]. Os padrões florais curvilíneos e os pontilhados se chocam com repetições fortemente geométricas de signos triangulares. O campo inferior da decoração é vazado por duas janelas goticizantes (neela). É dito que: "Os triângulos pintados apontam para cima, para a vida, enquanto os triângulos brancos apontam para baixo, para a morte. O branco representa 'os brancos' - i. e., os mortos -, indica o outro mundo que transforma o nosso.”[7] Essa oposição cintilante questiona, por suas iterações vitais, as aberturas sombrias que se comunicam com a morte, demandando que se admita o triunfo do espírito para além dos vazios ali delineados.

22. A mesma dialética - coisas iminentes percebidas nas coisas imediatas - anima a estrutura e decoração de outro túmulo. Este exemplo em particular foi fotografado na década de 1940, perto da importante cidade administrativa de Tshela, no norte de Yombe  [Figura 6].[8] É uma estrutura coberta com palha, traspassada por aberturas retangulares, semicirculares e em forma de diamante, que se abrem para o espaço onde repousa o morto. Os homens que decoraram este túmulo pintaram pequenas cruzes em forma de suástica ao longo do registro superior direito: "Em cada nível dessas cruzes há uma roda, simbolizando os estágios pelos quais o homem viaja nesta vida.'' Há um elaborado padrão cruciforme na parede da extrema esquerda: “Ele é muito complexo porque o morto se torna mais poderoso a medida em que se move pelo mundo além da linha Kalunga. Ele é muito, muito poderoso. Ele pode nos ver.” Há tênues silhuetas no canto inferior direito, que sugerem homens em pé com as mãos nos quadris (pose pakalala). Eles simbolizam a prontidão do homem invisível presente dentro do monumento: “Seu semblante ainda está vivo na comunidade: ele ainda é capaz de nos ensinar o que precisamos saber.”[9]

23. Há espelhos embutidos na parede central deste túmulo; na fotografia, um deles capta a luz exterior. A incorporação de espelhos nas paredes dos túmulos lembra os espelhos embutidos no ventre dos minkisi [[sing. nkisi]] da escultura clássica Kongo. Este símbolo da visão através dos mundos contribui para a definição do monumento de concreto como um importante instrumento de mediação. Mas ele é também um tipo de elogio por alusão visual, uma definição da pessoa ali enterrada como um nkambakani (uma força mediadora): “Ele foi exemplar e através de sua vida, como através de um espelho, podemos ver o que éramos e o que nos tornaremos."[10]

24. Portanto, cada parte da decoração se torna um estratagema para visualizar e compreender as coisas através das linhas que separam os vivos dos mortos. Quanto mais os edifícios adquirem qualidades ocidentais em seus contornos e coberturas, mais persistentemente os objetivos e as ilustrações se afirmam. Essa noção é reiterada até em termos do que parece ser um objeto extremamente ocidentalizado, uma máquina de costura (mashini mantungila) de esteatita [Figura 7]. Este interessante objeto foi encontrado na casa de um alfaiate em Lenge, uma vila Mboma no norte de Angola.[11] Existe uma presença notável incorporada nessa cópia direta da estrutura de uma máquina.

25. Um ntadi na forma de uma máquina de costura seria um memorial apropriado para o túmulo do alfaiate para o qual ele foi adquirido. Nesse contexto, também teria indicado, em uma mensagem aos mortos, a presença de novas técnicas: “Novas técnicas (makani mampa) invadiram a terra - é assim que estamos vivendo agora."[12] Obviamente, a makani mampa esteticamente mais impressionante do Baixo Zaire é a própria tradição do túmulo de concreto, da qual daremos um último exemplo.

26. Em 1949, Cahen fotografou uma estrutura funerária extraordinária no quilômetro 6 na estrada Seke Banza, perto de Kibusu [Figura 8].[13] O túmulo é datada de 26 de outubro de 1926. A ambiência de floresta circundante, a complexidade e as afirmações espelhadas dessa estrutura lembram Angor Wat. E, no entanto, esse monumento caberia em uma única grande sala ocidental. Ele assinala claramente o túmulo de uma pessoa muito importante (nzo a nkisi wa mun tu wanene). Seu criador fala em uma linguagem totalmente escultural, com um refinado senso de modelado da substância e do vazio, criando o que poderia ser qualificado como um espelhamento de formas significantes, muitas vezes duplicando imagens para simbolizar a divisão estrutural entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

27.  Representações emparelhadas de cactos (euphorbia) guardam a entrada do túmulo. A espécie precisa é chamada diiza em quicongo. Ela é plantada em sepulturas como proteção contra bruxaria e raios. Também é extremamente tóxica e uma das suas duas espécies, diiza kyansende, é empregada para envenenar as pontas das lanças.[14] Pode-se bem imaginar o porquê desse ícone de persistência e poder protetor figurar nesse contexto funerário

28. Atrás dos cactos aparecem duas rodas, uma representando o mundo dos mortos, a outra o dos vivos: “É um ensinamento (longi) para as pessoas deste mundo de que os mortos não se foram para sempre, de que eles vivem e estão em comunicação conosco dentro da roda do cosmos (lulu a nza).”[15]

29. Acima das rodas, dois répteis se enfrentam. São lagartos gigantes (mbambi a nkakala), varanos-do-Nilo. Os Bakongo tradicionais sustentam que os varanos levam uma vida muito secreta: “É muito difícil ver esses lagartos, pois eles raramente saem à luz.” Os lagartos que se confrontam sugerem, portanto, qualidades raras de grandeza e realização que são lembradas neste mundo ao se restabelecerem no outro.[16] Há um zig-zag ornamental embaixo dos mbambi, representando um “friso” tradicional de folhas trançadas (makaya).

30. Um sino gigante domina o centro do monumento. Em sua forma, ele lembra os sinos das igrejas ocidentais (ngunga) que, segundo uma famosa etimologia popular, são supostamente citados em um dos nomes de Mbanza Kongo: “Kongo dos Sinos” (Kongo dia ngunga - na verdade, como MacGaffey nos informa, essa última frase tem a ver com mwanzi wa ngunga, que significa “Kongo original”). Este instrumento é ladeado por dois sinos menores, um para cada mundo, que denotam “um apelo à comunidade para perpetuar a unidade de mundos, encarnada na forma dos sinos duplos.”

31. Muitas vezes, a morte de uma pessoa importante ocasiona uma divisão dentro da comunidade. O coroamento de sinos milita contra essa possibilidade: "Eu sou o sino que soa dentro da cidade. Eu apelo pela unidade. Vocês precisam permanecer unidos, assim como eu permaneço aqui, para sempre vinculado a vocês".[17]

32. Portanto, dos lendários primeiros túmulos de Mbanza Kongo ao monumento perto de Kibusu, a arte funerária Kongo apresenta um grandioso e rico panorama de pensamentos e aspirações. Ela faz parte de uma tradição clássica imperecível.

O comércio de escravizados Kongo e a ascensão da arte e cultura Kongo-americanas

33. A mesma tradição clássica discutida acima uniu não apenas quatrocentos anos de existência documentada nos escritos de exploradores e centenas de quilômetros de expansão em todo o território dos Bakongo e de seus vizinhos, mas também se estendeu ao Novo Mundo. Ali, a influência Kongo contribuiu para o surgimento da música nacional do Brasil - o samba -, da dança fundamental de Cuba - a rumba -, e da música popular estadunidense mais sofisticada e importante - o jazz. Todos os três termos derivam de palavras em quicongo, uma indicação direta da importância da influência Kongo na formação de algumas das mais importantes realizações culturais dos negros no Hemisfério Ocidental.[18]

34. Philip Curtin, um dos principais estudiosos do comércio de escravizados, nos adverte sobre algumas das complexidades inerentes ao rastreamento de influências levadas da África Central para o Hemisfério Ocidental:

35. Ao sul do Cabo Lopez, termos que designam "nacionalidades" são [...] usados de modo impreciso. "Congo," que realmente significava Bakongo no início do século XVI, agora [durante o comércio francês do século XVIII] havia se generalizado para qualquer povo de língua Bantu da África Central ocidental. Do mesmo modo, o “Mondongue” das listas não é equivalente à Mondonga dos dias atuais: na melhor das hipóteses, significava que o escravo em questão vinha do interior, mais ou menos ao norte e leste da foz do Congo - assim como “Angola” se referia de modo igualmente vago à região ao sul e leste do Congo.[19]

36. No século XIX, houve outra mudança terminológica na escravidão oriunda de Kongo e Angola: “O termo “Angola” nas tabelas [[de escravizados]] anteriores pode agora ser dividido em dois - ‘Norte do Congo,’ incluindo pontos costeiros do Cabo Lopez em direção ao sul, até - e incluindo - a foz do rio Congo; e ‘Angola,’ termo agora usado pra designar Angola de modo apropriado, i. e., a região ao sul de Ambriz até Benguela.[20]

37. Curtin também demonstra uma mudança para o termo "Norte do Congo" no tráfico escravista brasileiro durante o século XIX. Há boas razões para acreditar que essa mesma mudança também ocorreu em Cuba, com base nos nomes oriundos do “Norte do Congo” entre as sociedades de assistência mútua negras que emergem em Cuba no século XIX.

38. No contexto de tais evidências, é essencial que dediquemos alguns parágrafos à origem dos escravizados, para não assumirmos que o impacto Kongo veio de apenas uma sociedade - digamos, os Mboma, ou os Yombe. A realidade é bem mais complexa. O que parece ter acontecido é que uma mistura da cultura Kongo com outras a ela relacionadas foi reunida no Novo Mundo, onde se reforçaram os traços culturais Bantu compartilhados mais salientes e importantes, resultando em uma fusão na qual a memória, a grandeza e o próprio nome Kongo foram mantidos.

39. A Voyage de la côte occidentale d'Afrique fait dans les annees 1786 et 1787 de Louis Degrandpré inclui um resumo do tráfego negreiro Kongo, tal como ele era pouco antes da Revolução Francesa. Ali o comércio de escravizados concentrava-se essencialmente nas costas de Loango, Kongo e Angola, sendo especialmente ativos os portos do norte de Loango, Malemba e Cabinda. Escravizados "Congue'' (Bakongo) passavam por Malemba; Loango comercializava escravizados Yombe, Teke e "Quibangue" (Mbamba Kongo?); e por Cabinda passavam os "Congue,'' "Mondongue" e "Sogne" (Bakongo, pessoas trazidas rio acima de Kongo, e membros do grupo Sogno Kongo?). Finalmente, Degrandpré observa que "esses são os nomes das pessoas que fornecem os escravos ou pelas quais eles passam e, assim, das quais mantêm a denominação.''[21]

40. Agora, vejamos uma lista parcial das origens de escravizados levados para o Haiti no século XVIII:[22]

41. Mayombe

42. Mousombes

43. Mondongue

44. Congos

45. Comentando o grande número de pessoas oriundas do Kongo, Jean Price-Mars, o falecido e grande decano dos estudos afro-haitianos, observou: "Saint-Mery, historiador de Sainte-Domingue, testemunhou formalmente o fato de que a maioria dos escravos da colônia [que se tornou o Haiti] veio do Kongo."[23]

46. E comparemos com Nova Orleans, a partir do famoso ensaio The Dance in Place Congo, de George W. Cable:

47.  uma praça pública logo atrás desenha um gracioso dossel de galhos de carvalho e sicômoro. Esse é o lugar... esta é a Congo Square [[Praça Congo]] [Figura 9]. Veja-os vir! [...] homens e mulheres de toda a grande costa do Congo - Angola, Malimbe [provavelmente Malemba], Ambrice [Ambriz] [...] é em função deles que a dança e o lugar foram batizados, eles constituem o grupo mais numeroso de negros nas colônias, os Congo e os Franco-Congo.[24]

48. Portanto, Nova Orleans, cidade do nascimento do jazz, possuía um elemento Kongo forte e predominante, decorrente do comércio de escravizados. Não é por acaso que um dos poucos documentos estadunidenses que atestam a referida pose sentada da funda nkata provém da Congo Square. Naquele local culturalmente legendário, onde jovens atletas de Nova Orleans jogavam uma forma cognata de lacrosse com ameríndios, o ndungu - tambor Kongo muito longo e sonoro - era tocado.[25] As tremendas energias criativas liberadas quando as tradições Kongo foram combinadas em Nova Orleans com as das igualmente sofisticadas civilizações tradicionais do Mali, Nigéria e Camarões, devem ter sido surpreendentes. E isso sequer dá conta do resultado final: a mistura de todas essas culturas com a igualmente complexa fusão de músicas - francesa, espanhola e inglesa - naquela cidade culturalmente estratégica.

49. Robert Goffin, um estudioso belga do jazz, comparou as descrições da dança e música na Congo Square com a estrutura do jazz em seus primórdios e formulou interessantes afirmações sobre as origens deste último. Na Congo Square, Cable notou que o tambor grande e grave era batido com "veemência lenta," enquanto um tambor menor era tocado “feroz e rapidamente.” A instrumentação completa incluía um banjo de quatro cordas; a parada de todos os outros instrumentos quando o banjista performava de maneira mais virtuosa em seu instrumento; um grito de "yeaaaaaah!;" e, em seguida, a batida da bateria, metais e chocalhos. Goffin reagiu a essa descrição com as seguintes observações astutas: “A presença do jazz já pode ser percebida nessa descrição. O ritmo do bumbo e a batida mais rápida da bateria, a melodia adicionada pelo banjo e pelas flautas de pã [...] a parada repentina dos instrumentos, sua reentrada, os gritos de satisfação pontuando a música - tudo isso está presente.”[26] Esses traços também estão presentes em algumas formas de música afro-haitiana e, em alguns casos, provavelmente foram reforçados por estruturas semelhantes oriundas da música folclórica de origem europeia. Mas os grandes tambores no centro de tudo isso quase certamente eram ndungu, recordações de fontes da terra Kongo.[27]

50. Assim, os Bakongo e seus vizinhos constituíam a população majoritária de Nova Orleans, aqueles que deram nome à Congo Square e sua dança, que empenharam seus talentos na formação de novos estilos crioulos que eventualmente reverberaram até a Broadway e resto do mundo. Mas Charleston também era uma porta de entrada cultural para os escravizados Kongo, daí a influência destes nessa cidade. Peter Wood revelou que, durante um período específico de cinco anos - entre 1735 e 1740 - 70% de todos os escravizados que entraram em Charleston parecem ter sido trazidos da região africana de Angola.[28] Esses números incluiriam grupos Kongo e outros relacionadas a essa cultura, oriundos do norte ou ao sul do Kongo. Tudo isso resultou em um conjunto de poderosos “kongoismos” na área da Carolina do Sul, dos quais o mais famoso possivelmente é a própria dança charleston, que - com suas angulações, chutes e tempo - é surpreendentemente semelhante a um estilo de dança “sobre uma perna” (sembuka), que inclui chutes e palmas e é comum no norte do Kongo.[29]

51. A intensa escravidão oriunda de Kongo e Angola teve um efeito ainda mais significativo na cultura popular cubana. A riqueza da presença Kongo na formação da cultura artística negra em Cuba é atestada pela denominação de certos cabildos, confrarias de ajuda mútua. Em Cuba no século XIX:

52. cabildos tinham nomes como Kongo Real, Ntotila ou Nsombo. Kongo Banguela, Kongo Mumbala, Kongo Mumboma, Kongo Mundamba, Kongo Motembo, Kongo Musuni, Kongo Masinga, Kongo Mondongo, Kongo Musoso, Kongo Mayombe, Kongo Munyaca, Mongo Musalela, Kongo Mumbaque, Kongo Cabenda, Kongo Loango.[30]

53. Os nomes dessas confrarias refletem uma mistura de autênticos clãs Kongo como os Mboma, Nsundi, Yombe e Bazombo ("Nsombo"); grupos extra-Kongo, como os Mondongo, correspondentes aos Mondongue de Degrandpré; e portos escravistas, como Benguela, Cabinda e Loango. Em Havana, supunha-se que cada cabildo era formado por descendentes desses diferentes grupos. Mas é provável que o caso seja mais parecido com o descrito para o país, em que “um único cabildo Kongo abrangeria todo os povos Bantu daquela porção da África Central, sem distingui-los em Ntotila (Mbanza Kongo) e outras descendências.” Na mistura de referências à geografia e sub-etnias, sentimos a enorme riqueza do impacto da cultura Kongo e outras afins na cultura cubana. Sem isso, a ascensão da rumba, conga, mambo e moçambique na história da música afro-cubana seria impensável. Além disso, a instrumentação da música popular latino-americana, que incorpora frequentemente os tambores conga e padrões de pulsação associados à música afro-cubana, teria sido muito empobrecida.

54. No Brasil, a força da influência cultural Kongo na música e na dança é igualmente dramática e profundamente enraizada. Em seu estudo intitulado Angolan traits in Black music, games, and dances of Brazil, Gerhard Kubik constata traços semelhantes aos observados em Cuba:

55. o que se chamava de "nações" no Brasil era definido por uma curiosa variedade de nomes africanos, que nem sempre tinham origens étnicas. "Benguela," por exemplo, é o nome de um porto em Angola do qual muitos escravizados foram enviados para o Brasil. Um das nações era composta principalmente por Kirenge, Humbi, Handa, Mwila, Chipongo, Ambo, Kwisi e outros grupos étnicos da vasta área do sudoeste de Angola. Eles tinham uma cultura semelhante e eram capazes de se comunicar entre si.[31] [ênfase nossa]

56. Destacamos a última afirmação porque ela se aplica especialmente à fusão similar dos Yombe, Nsundi e outros grupos Kongo ocorrida em solo brasileiro, com base em uma síntese de ideias e fundamentos de crença. Em face disso, a fusão através do reforço múltiplo pareceria resultar em uma continuidade cultural quase indelével. Mas trata-se de uma corrente étnica que se transforma gradualmente em recurso cultural, sem uma distinção étnica específica. Assim, a dança Kongo samba se tornou uma modalidade de arte nacional brasileira. Da mesma forma, Hermann Baumann, um etnólogo alemão, há muito tempo demonstrou o compartilhamento do conceito de Kalunga entre muitas civilizações da África Central.[32] Kalunga é o mar no sentido da perfeição de Deus e da completude (lunga) de todo ser. Da fusão de correntes Kongo e Angola emergiram os exemplos afro-brasileiros do conceito de Kalunga. Existem contos folclóricos brasileiros ligando a palavra ao mar e uma dança de carnaval, o maracatu, onde um dos principais protagonistas brande uma boneca chamada Kalunga, “representando a deusa do mar e da morte.”

57. Em um importante estudo, The Bantu-speaking heritage of the United States,[33] Winifred Kellersberger Vass faz uma observação que simboliza o processo através do qual os povos Kongo e Angola se reuniram, atraídos por grandes semelhanças de pensamento e cultura. Nesse processo, eles transmitiram à história do mundo elementos culturais indelevelmente reforçados:

58. A fala Bantu tem uma capacidade comprovada de se instalar dentro de uma cultura, absorvê-la e mudar sua linguagem. Ela adotou e adaptou cada novo grupo cultural à medida que se expandia de sua área nuclear original (provavelmente na região Nok da Nigéria) por quase todo o subcontinente africano ao sul do Saara. A notável homogeneidade linguística dessa enorme região geográfica deve-se a esse corpo central de vocabulário Proto-Bantu, que ainda une todas as línguas Bantu e dá testemunho de sua antiga fonte comum. Os escravos de língua Bantu da África Central desfrutavam de uma unidade linguística e capacidade de se comunicar com seus companheiros de cativeiro que os escravos da África Ocidental não compartilhavam.[34]

59. A perspectiva descrita nessa citação é emocionante. Ela sugere que tremendas energias de expansão, características da disseminação das línguas Bantu, foram restabelecidas no Novo Mundo, resultando em influências palpáveis ​​sobre o surgimento das línguas crioulas, nas quais o quicongo e outras línguas Bantu foram incorporadas. Essa unidade linguística compartilhada foi uma das forças-chave que colocaram em movimento as transformações no mundo da arte e do pensamento Kongo-americano. Ela contradiz a visão assumida de negros de diferentes "tribos," que falam "dialetos" ininteligíveis, misturados entre si e irremediavelmente separados uns dos outros. Além disso, a continuidade de aspectos das instituições Kongo e Angola de cura, iniciação, música e sepultamento forneceu contextos sociais em que os motivos da arte Kongo em toda a sua extensão americana poderiam emergir, com uma força maior e mais significativa do que a de traços que surgissem isoladamente.

60. Passemos, então, a aspectos da arte Kongo para os mortos que afetaram o curso da arte de descendência africana do Novo Mundo: (1) cosmogramas escritos sobre a terra, associados à iniciação ritual e cura: (2) a transformação dos crânios de intimidação da realeza em canecas Toby no Kongo, e a transformação análoga de jarras com faces feitos na Carolina do Norte em imagens de intimidação; (3) a continuidade do uso de jarras como instrumentos musicais graves; e (4) a colocação de garrafas impregnadas de espíritos nos galhos de árvores diante de casas no Caribe e no sul dos Estados Unidos, prática remanescente da colocação de garrafas em galhos de árvores no Kongo, para capturar os talentos dos mortos ou afastar ladrões, com a ameaça de captura mística. Além disso, (5) a presença de gestos derivados da cultura Kongo ou a ela relacionados, conotando totalidade, negação, desafio e exaltação religiosa, na fronteira entre dois mundos, é uma continuidade óbvia e avassaladora no Novo Mundo negro. Isso significa que as famosas qualidades gestuais da arte Kongo, podem, em vários casos significativos, ser proveitosamente comparadas com gestos, posturas e atitudes vivas entre os negros do Hemisfério Ocidental. Finalmente, (6) a complexa definição Kongo de túmulo - como casa, medicina, cercamento, ponto de mediação entre mundos - perdeu pouco da sua densidade de alusão no Novo Mundo negro, resultando no surgimento de verdadeiros earthworks rituais, de grande importância nos cemitérios do Haiti e dos Estados Unidos. Examinemos, portanto, essas diferentes estruturas formais na plenitude de seu significado.

Cosmogramas de influência Kongo do mundo Atlântico Negro

61. No norte do Kongo, existem experts em rituais específicos, nganga nkodi e nganga nsibi, que talham desenhos nos corpos de tartarugas ou peixes vivos, e então liberam essas criaturas em seu elemento. Banganga nkodi e nsibi são especialistas no uso de palavras, que enviam mensagens concentradas aos mortos. Eles cravam seus sinais (bidimbu) na carapaça de uma tartaruga para que o réptil, mergulhando de volta n’água, carregue esses sinais através da linha Kalunga para o mundo do além. Lá, os ancestrais recebem essas mensagens codificadas e agem em nome de seus descendentes.[35]

62. Comparemos isso com o relato do séc. XIX de Harry Stillwell Edwards, sobre um escravizado oriundo na África que vivia em uma plantation nos Estados Unidos:

63. O que me intrigava com relação a Mine [...] era suas superstições. Sem dúvida, elas lhe foram ensinados por sua mãe e a primeira insinuação delas que vi foi quando ele pegou uma gopher [[uma tartaruga escavadora]] e, com um pedaço de arame com uma ponta extremamente afiada, talhou em sua carapaça uma série de sinais ou hieróglifos curiosos, diferentes de qualquer coisa que eu já tinha visto, com exceção de uma representação bastante justa do sol. Ele então levou a gopher de volta para onde a havia encontrado e a soltou na entrada de sua toca, fazendo gestos que indicavam que ela estava indo para bem fundo na terra. Ele fazia algo do gênero para cada gopher que capturava. Um dia, ele conseguiu apanhar um pato-real e, em seu largo bico, talhou alguns hieróglifos. Isso feito, [...] ele jogou o pássaro bem alto no ar e riu enquanto ele fugia. Com o passar dos anos, eu o vi tratar muitos pássaros da mesma maneira. Se houvesse espaço para apenas uma ou duas figuras, ele as talhava e deixava o pássaro voar.[36]

64. Ao enviar uma tartaruga “marcada” para a terra e um ser alado “marcado” para o céu, um africano cativo na América estava aparentemente tentando se comunicar com seus ancestrais. Talvez ele estivesse tentando dizer a eles onde estava ou pedir-lhes apoio espiritual. Ao enviar mensagens para “bem fundo na terra” - para os ancestrais - e para bem alto no céu - para Deus -, ele havia efetivamente escrito em seres vivos, em répteis ou aves, o cosmograma Kongo.

65. Os Bakongo traçam esse símbolo básico hoje com a mão direita, o dedo indicador indicando Deus acima, os ancestrais abaixo, a linha Kalunga e, na direção inversa, suas próprias gargantas. Em outras palavras, eles implicam suas próprias vidas na veracidade do que acabaram de jurar, pelo signo do cosmos. Este gesto é chamado de leva Nzambi, “jurando em Deus,“ ou zenga Nzambi, “traçando Deus.”[37]

66. Os Bakongo tradicionalmente ficavam em pé sobre este sinal, desenhado no chão, para fazer um voto, em nome de Deus e dos ancestrais. Eles também colocavam amuletos importantes sobre este sinal, garantindo seus poderes com a certeza e verdade do Todo-Poderoso e dos falecidos. Este era, também, um sinal sobre o qual as pessoas iniciadas na poderosa sociedade Lemba do norte do Kongo ficavam em pé. Os Bakongo faziam isso durante suas iniciações a fim de demonstrar que entendiam o significado da vida e da morte. Com este sinal, eles miniaturizaram não apenas a estrutura do universo, mas também as fontes eternas de sanção moral: Deus acima, os mortos abaixo.

67. Este sinal era, portanto, um selo e testemunho de equidade, justiça e verdade sagradas. “Na costa,” observou Lievin van de Yelder em 1886, sobre os Bakongo, “tenho visto com frequência negros traçarem uma cruz na terra quando querem fazer, com todas as suas forças, um juramento.”[38]

68. Atado pelo olhar fixo de Deus e dos mortos, o cosmograma permeia uma miríade de províncias da cultura visual Kongo. Além disso, entre as civilizações vizinhas, as pessoas são juramentadas em sociedades tradicionais na presença de signos cognatos desenhados sobre a terra, como exemplificam os rituais Bapende,[39] Ndembu[40] e Tu-Chockwe.[41]

69. Encruzilhadas, ou bifurcações em um caminho, são vistas, em muitas culturas Bantu da região do Kongo-Angola, como autênticos cosmogramas trouvés. Esses pontos de literal interseção indicavam aonde se podia ir para oferecer sacrifícios ou orações aos ancestrais. Um graveto bifurcado também miniaturizava todo o conceito, fornecendo um modelo em escala da linha que separa os vivos do reino ancestral. Por exemplo, entre o povo Basuku, a leste do Kongo, um pai pode fazer um amuleto de caça, chamado mokongu, para a sorte de seu filho. Ele faria esse amuleto com um pedaço de galho bifurcado, indicando, assim, a invocação das “forças do outro lado.” Amuletos mokongu às vezes eram colocados em uma encruzilhada real.[42]

70. Manifestações multiformes do cosmograma básico, em desenhos sobre a terra, em gestos, utilizando encruzilhadas reais ou gravetos bifurcados, constituem uma duradoura visão de certeza e verdade que resiste no Kongo e em Angola. Esta forneceu aos Bakongo do Novo Mundo uma base inabalável de continuidade cultural. Cosmogramas traçados sobre a terra ressurgiram precisamente onde viveram e pensaram pessoas influenciadas pela tradição Kongo.

71. Um dos principais canais institucionais pelos quais as formas Kongo foram mantidas vivas nos Estados Unidos Norte foi o curandeirismo popular dos negros.[43] Homens e mulheres nas comunidades negras que praticavam formas tradicionais de curas, empregando folhas e raízes, também tendiam a compreender o cosmograma ou seus equivalentes visuais, como a encruzilhada e galhos bifurcados, como emblemas mediatórios.

72. No segundo volume de seu enorme estudo sobre o curandeirismo tradicional e uso de raízes pelos negros estadunidenses, Harry M. Hyatt comenta sobre seu mais copioso informante - “sua entrevista preencheu 26 cilindros de telediphone” -, um homem de Waycross, na Georgia. Como Darien e Sunbury, Waycross fica perto da região alagadiça, onde autênticas fontes de influência Kongo e Angola se estabeleceram. O curandeiro de Waycross ensinou a Hyatt como “amarrar” misticamente uma pessoa, por meio de uma fórmula que incluía o sinal dos quatro momentos do sol:

73. Pegue uma folha de papel em branco, desenhe um círculo nessa folha e faça ali uma cruz, desse modo. Esses são os quatro cantos da terra. […] você coloca esse selo no chão. Você coloca [um] envelope [com] poeira de cemitério [dentro] e [uma] fotografia lá - você coloca isso em cima do selo [...] você coloca seu pé direito nele e vira seu rosto para o oeste, que é onde o sol se põe. Você toma, bem, você pode falar as palavras se não as tiver escrito, você diz O. L. Youngs, L. L. Young, venha até mim e faça como lhe ordeno [...] [44]

74. Outro curandeiro, de Memphis, no Tennessee, usa o mesmo sinal desenhado para caçar tesouros e fazer remédios. Ele chama este emblema de “os quatro cantos do mundo” e “os quatro ventos do céu.”[45] Isso sugere uma dupla proveniência, pois as frases são encontradas em Apocalipse 7: 1. Este curandeiro também desenhou o cosmograma.

75. Newbell Niles Puckett, em um dos primeiros clássicos dos estudos acadêmicos afro-estadunidenses, observou que o sinal da cruz era usado “com demasiada frequência para nos permitir supor que tenha uma origem cristã [...] sua eficácia original provavelmente derivava do fato da cruz apontar para todos os quatro pontos cardeais, não permitindo, portanto, que nada passe por ela.”[46]

76. A encruzilhada, um antigo substituto do cosmograma, também funcionou como um símbolo poderoso no folclore afro-estadunidense. Era para lá que alguém ia, como na África Central, a fim de entrar em contato com seus ancestrais; era aonde se ia para pedir favores ao cosmos. Um negro da Carolina do Norte sacrificou uma galinha na bifurcação de uma estrada, implorando proteção contra uma epidemia que havia causado a rápida morte de animais na sua região.[47] E há lendas de músicos negros indo para uma encruzilhada e pactuando suas guitarras com espíritos, para confirmar ou aumentar seus talentos. No Kongo, as pessoas se ajoelham diante de túmulos, no limiar entre os mundos. Nos Estados Unidos, a mesma imagem é recriada naquela narrativa de influências Kongo e Angola, o blues:

77. I went down to the crossroads, fell down on my knees

78. I went down to the crossroads. fell down on my knees

79. Ask the Lord above for mercy, say boy, if you please.[48]

80. Vislumbramos imagens semelhantes em alguns dos barrios negros das cidades do oeste de Cuba. Em uma publicação que antecedeu em 17 anos a marcante publicação de Fu-Kiau sobre cosmologia Kongo, Fernando Ortiz, o afro-cubanista, publicou um desenho copiado de outro executado por um sacerdote Kongo-cubano. O desenho original foi feito a giz, no chão, como um selo sobre o qual se energizava o importante amuleto mbumba:[49]

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81. Além disso, havia negros em Cuba que se lembravam dos termos em quicongo para os pontos cardeais enfatizados pelo desenho: céu (zulu); a terra dos mortos (nsi a fwa); e a linha de Kalunga, que dividia o reino dos vivos, terra (ntoto) do reino dos mortos. Lydia Cabrera, uma das folcloristas mais importantes de Cuba, registrou testemunhos de que, para membros de grupos Kongo-cubanos, o círculo significava “certeza,” enquanto a cruz dentro do círculo representava todos os poderes nele ativados ou concentrados.[50]

82. No entanto, apesar de todo o fascínio que exercem, esses exemplos estadunidenses e cubanos do antigo signo Bantu do cosmos são expressões estáticas e isoladas. Em contraste, no Brasil e no Haiti, eles floresceram como figuras de experiências da imaginação e autênticas expressões nacionais. Diferente de curandeiros performando suas curas e feitiços no isolamento rural da Georgia ou aparentemente sozinhos em Memphis, homens e mulheres haitianos e brasileiros influenciados pelos digramas no chão e invocações Kongo produziram uma ordem diferente de significação social e histórica. Seus desenhos e cruzes para iniciação e juramento se sobrepuseram às funções originárias das formas no antigo Kongo. No entanto, aparentemente devido à particular intensidade e complexidade da vida religiosa influenciada pela África no Rio e em Port-au-Prince, ocorreu uma fusão entre os amuletos Kongo (minkisi) e os santos católicos, as divindades dos iorubás nigerianos (orixás), os espíritos dos Fon e Ewe da República do Benin (voduns), e até elementos da Maçonaria e da literatura ocultista ocidental (em particular, no caso do Brasil, do Espiritismo). O resultado foi a macumba, no Rio de Janeiro, e o vodu, no oeste de Saint-Domingue. Os resultados foram diferentes, pois macumba e vodu são expressões independentes e distintas da religiosidade negra nas Américas. Mas ambas estimularam a transformação dos signos cruciformes derivados do Kongo em brasões estéticos do Novo Mundo. Estes refletem diretamente a complexidade das específicas religiões populares negras nas quais eles surgiram.

83. No Rio, o resultado foi uma explosão de diagramas de influência Kongo, chamados de pontos riscados. No Kongo, o principal objetivo ao se traçar o cosmograma sobre o chão era possibilitar a imersão em dimensões espirituais mais amplas. Em alguns casos, alguém ungia a testa com a terra impregnada de espírito de uma sepultura, ou pegava a terra umedecida de uma incisão cruciforme feita sobre um túmulo. De igual modo, constatamos que no Brasil, desde o início, a tradição dos pontos riscados refletiu uma preocupação similar com a invocação de espíritos sobre um local indicado visualmente por um diagrama.

84. No Rio, diz-se que os primeiros desenhos feitos sobre a terra eram cruzes simples ou uma cruz em um círculo, como no Kongo. Eles também devem ter servido para centralizar energias em amuletos ou copos cheios de água, bem como invocar espíritos usando seus emblemas visuais. Em seu livro Lemba 1615-1930: a drum of affliction in Africa and the New World, Janzen faz uma importante observação: a lista de medicinas antropomorfizadas no Brasil se assemelha a uma lista de minkisi Kongo que Dapper apresenta em seu famoso texto de 1668. Logo, alguns minkisi Kongo do século XVII mantêm sua existência no Brasil, especialmente em certos cantos extáticos da macumba no Rio, que incluem também termos e frases de cura em quicongo. Nesses cantos, eles são chamados Zambi, Bumba, Lemba, e assim por diante.[51] Tanto os cantos, que invocam essas medicinas Kongo crioulizadas (conceitualmente fundidas com santos católicos, divindades iorubá e fon, e, às vezes, com alusões a espíritos ameríndios), quanto os diagramas desenhados, que invocam os espíritos, são chamados de “pontos.” Contudo, a data exata dos primeiros cosmogramas Kongo no Rio ainda não pôde ser estabelecida, como ponderou Roger Bastide:

85. Não temos, no momento, evidências sobre o momento preciso em que esses diagramas surgiram na macumba do Rio. De todo modo, eles são, sobretudo, de origem Kongo e angolana. As religiões tradicionais dessas áreas Bantu usam desenhos iniciáticos feitos na terra [...] os pontos, como tendência artística, são Kongo-angolanos em sua concepção, mas incorporam, em sua forma final, invenções locais e o contato com outras correntes afrodescendentes. Na caracterização de seu surgimento, devemos também considerar a influência da Maçonaria e dos livros de magia esotérica europeia.[52]

86. exemplificar a influência do signo dos quatro momentos do sol no surgimento de uma miríade de signos e brasões no Rio, examinando uma série bastante complexa de pontos riscados modernos. Janzen observou que, no Rio, a fusão de minkisi Kongo, voduns daomeanos, orixás iorubanos e santos católicos não foi casual. Pelo contrário, ela seguiu uma lógica de correspondências, e os pontos riscados são a quintessência final desta constante arte de classificação. Ilustramos isso referindo-nos à fusão carioca da cruz dentro de um círculo - o conceito Kongo de encruzilhada - com o espírito iorubá da encruzilhada, Exu-Elegba. Por causa da imprevisibilidade dessa divindade da África Ocidental, ela foi comparada ao Demônio bíblico. Todas essas qualidades estão presentes em seus pontos cariocas.[53] Assim, o simbolismo básico de mundos que se cruzam é ​​atravessado por um duplo poder de interpretação cultural, Kongo-Iorubá e Ocidental. Os pontos cardeais se transformam nos tridentes de Satanás. A imprevisibilidade de Exu é sugerida em um padrão giratório, similar a um cata-vento, no centro de um desses digramas. E, em um segundo exemplo, os eixos originais de intersecção do cosmograma submetem-se a ênfases ainda maiores de improvisação e repetição visual.

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(a) Primeiros cosmogramas de derivação Kongo no Rio (reconstrução a partir de informantes);[54] (b) Ponto riscado moderno para Exu Vira-Mundo;

(c) Ponto riscado moderno para Exu Pomba Gira da Kalunga

87. Logo, os pontos riscados, brasões aparentemente explícitos dos espíritos e dos deuses, são palimpsestos que comportam múltiplas alusões. Os tridentes ocidentais são desenhados sobre a encruzilhada de Exu e a encruzilhada do antigo cosmograma. A fusão de correntes distantes se espelha em elementos da nomenclatura litúrgica em vigor hoje no Rio. “Pomba Gira” representa uma crioulização brasileira do termo Kongo para encruzilhada (mpamba nzila).[55] Note-se também a referência a Kalunga, o oceano de Deus, no nome desse mesmo ponto. As novas experiências e o contato com diferentes influências culturais foram, evidentemente, decisivos para a padronização desses brasões.

88. Esta parece ser uma tradição com uma potencialidade ilimitada de crescimento. O interesse pelos pontos riscados reside precisamente no fato de que cada sacerdote inventa constantemente novas formulações ideográficas a partir de formas e padrões mais antigos.[56]· Assim, em 1951, 132 pontos foram recolhidos, classificados e publicados;[57] em 1975, esse número havia se multiplicado para 1500.[58] A difusão dessa arte e de seu conceito foi acompanhada pela apropriação de novas mídias: bordados em seda, pinturas sobre vidro, ou novos padrões traçados na areia das praias de Ipanema e Copacabana, e iluminados por velas. Em 1969, Wesley R. Hurt, da Universidade de Indiana, coletou em Curitiba, capital do estado do Paraná localizada 400 milhas ao sul do Rio, um ponto para Exu-Rei [Figura 10].[59] Mais uma vez, os tridentes imaginários de Exu configuram as linhas entrecruzadas do cosmos, aqui pintado sobre um retângulo de isopor cuidadosamente recoberto com plástico transparente vermelho, como se fosse uma oferenda embrulhada para a entidade. A partir das mais surpreendentes apropriações do mundo moderno, o signo do cosmos como que nos mira através da profundidade de três experiências culturais diferentes: a negro-crioula, a do catolicismo latino e a das modernas tecnologias.

Vévé: o destino do cosmograma no Haiti

89. Comparáveis ​​em sua inteligência e fluência de adaptação são os vévé do Haiti, ideogramas traçados no chão para celebrar, invocar e encarnar as divindades da religião popular daquele país - o vodu. No vodu, foram mescladas as religiões clássicas do Daomé, da Iorubalândia, do Kongo e de outras regiões subsaarianas com a da Igreja Católica Romana. No processo, os cosmogramas originais, usados para invocar espíritos ou fazer juramentos importantes, se complicaram em termos de forma e significado. Tecnicamente, às originais cruzes Kongo e quadrados do Daomé, foram adicionados submotivos ou “pontos,” que incorporam referências não apenas às divindades Fon e Iorubá, aos simbi e minkisi do Kongo, mas também e simultaneamente aos santos da Igreja Católica Romana e seus atributos: a espada de São Tiago Maior; o coração da Mater Dolorosa; e até mesmo o compasso sobre o quadrado da Maçonaria - participantes do ritos do vodu de influência Kongo foram especialmente atraídos por esta última, por causa de suas sugestões de rituais sigilosos e ocultos.[60] No processo, assim como os pontos riscados, os vévés constituíram um meio por excelência de sugerir visualmente as forças que se combinam na arte religiosa popular e na cultura do Haiti.  

90. Mesmo assim, apesar de todas as intensas recombinações e adaptações locais, um sabor Kongo perdura. Assim, ao comparar Kongo Lemba com Petro-Lemba entre os praticantes de vodu no Haiti, John Janzen notou:  

91. os traços do espaço ritual na etapa Petro de um ofício religioso apresentam semelhanças marcantes com rituais Kongo. No estabelecimento dos pontos cardeais do mundo com velas, o [sacerdote] usou um motivo muito comum, de difusão talvez global. Contudo, ao circular seu espaço no sentido anti-horário e, em seguida, dividi-lo em duas metades, uma definindo o reino doméstico (governado pelo senhor da casa, Mait Habitation), o outro definindo o reino selvagem, das profundezas, da água (governado pelo senhor das profundezas, Mait Source) ele estava traçando um cosmograma do modo como é feito em muitos contextos Kongo.[61]

92. Além disso, no Haiti, quando espíritos de evidente derivação Kongo (bisimbi) são invocados por seus próprios vévés [Figura 11], o padrão, embora ricamente improvisado e moderno, claramente incorpora em seu centro o antigo círculo dividido, com os pontos cardeais enfatizados. Nosso exemplo foi desenhado por um sacerdote no subúrbio oeste de Port-au-Prince, em Carrefour, na primavera de 1968. O familiar círculo dividido em quadrantes reaparece, transfigurado por qualidades de luz e linha semelhantes à de uma joia. As estrelas, as volutas e a borda recortada em torno do centro, simbolizando a água em que alguns bisimbi habitam, são improvisações crioulas ou engenhosas invenções.   

93. Karen Brown, uma talentosa estudiosa dessa tradição, apresenta outros elementos de potência mental e intelectual: “Vévés sugerem que o homem pode pensar com a geometria [...] que a geometria, como a lógica, fornece um esquema formal para focar e condensar a experiência.”[62] Com efeito, os vévés fornecem um esquema para a organização de complexos pontos de contato e experiência culturais, conforme ilustrado pelo exemplo da Figura 12. Este foi um vévé feito em homenagem aos espíritos gêmeos (marassa), cultuados no vodu. Pegando pitadas de farinha de milho cuidadosamente seca e peneirada, o artista, André Pierre, começou este vévé na manhã de 28 de maio de 1978. Usando o polegar e dois dedos, ele cuidadosamente pegava a farinha de milho e a depositava no chão. Cada movimento constituía um “golpe,” que deixava um segmento completo de reta ou de curva sobre a terra. Todo o processo demorou quarenta e cinco minutos e, quando o vévé estava concluído, ele combinava cerca de duzentos traços separados, verdadeiros segmentos de ação visual configurados no chão.[63]   

94. O resultado foi um aprofundamento e multiplicação de signos que, em êxtase e primor de visão, nos remetem ao Kongo, mas também é uma incorporação universalizante de expressão e interpretação. Por exemplo, as quatro estrelas que "enquadram" o vévé não apenas marcam os quatro cantos do universo, mas também, disse o artista, representam os quatro Evangelistas. No mesmo modo de exegeses múltiplas, os círculos triplos não só representavam os espíritos gêmeos e seu seguidor, mas também sugeriam os Reis Magos que vieram a Jesus no primeiro Natal, bem como três "pratos" para os marassa e três tambores para esses espíritos.[64] A preponderância do conteúdo é uma medida da profundidade de síntese dos reinos de discurso africano e europeu ali envolvidos. 

95. Similarmente, assim como o cosmograma no Haiti adquiriu uma riqueza de elaboração crioula, com a adição de estrelas, volutas e referências a santos e outras divindades, no próprio Kongo atual certos líderes messiânicos configuraram cosmogramas em paisagens rituais e espaciais, enquanto prestavam atenção a vozes estrangeiras distantes. Consideremos um exemplo fascinante. Em Kinanga, perto de Kimpese, no Baixo Zaire, Wyatt MacGaffey fotografou, em 1966, uma rotatória de trânsito com conotações místicas [Figura 13]. Esta foi projetada e construída por um líder religioso, Mayeko Charles, que também é mostrado na foto, à esquerda de sua criação.[65] Buscando estruturar o interior da rotatória de maneira que ela se dividia nos quatro segmentos primordiais, Mayeko colocou bem no centro um impressionante púlpito, de onde MacGaffey foi convidado a pregar. No primeiro plano é visível um dos quatro triângulos feitos de concreto e postos sobre cada ponto cardeal, com seus vértices apontando nas direções apropriadas. Esses triângulos perfeitamente configurados funcionam, em certo sentido. como as estrelas delimitadoras sobre o vévé de André Pierre. Eles reiteram a força e o significado da mensagem principal da construção, enquanto mediação e contato com a palavra de Deus. Em suma, um indivíduo visionário no Kongo moderno construiu um local sagrado que recorda um antigo padrão simbólico e simultaneamente abriga alusões ao Cristianismo e ao mundo moderno. O choque do concreto, tinta esmaltada, automóveis e tráfego é culturalmente ressignificado por uma consciência mais rica e profunda, o que confere a este espaço a força dos ancestrais e a geometria de Deus.   

A “conexão Toby.” Música feita com jarras no Kongo e no Novo Mundo negro

96. Das representações cosmográficas dos espíritos, voltamos às expressões escultóricas de tais forças. Por exemplo. As jarras Toby, de origem inglesa [Figura 14], forneceram um impressionante substituto para os crânios usados pelos reis Kongo para beber, em público, o vinho de palma, de um modo intencionalmente intimidador. A jarra Toby em si tinha o formato de uma cabeça ou figura humana, e sua reluzente louça lembrava a cor de ossos humanos. Animada com importantes interpretações locais, essa forma se espalhou rapidamente durante os séculos XIX e XX, como um objeto de prestígio e uma fonte de influência formal. Já na primeira metade do século XIX, imagens “tobycizadas” começaram a surgir na arte Kongo, especialmente em Mayombe. Em suma, a forma Toby causou uma forte impressão. 

97. Ela afetou de modo semelhante um artista negro das olarias do distrito de Edgefield, na Carolina do Sul, durante a primeira metade do século XIX [Figura 15].[66] Este artista fez uma poderosa jarra-máscara, que hoje se encontra na coleção Herbert Hemphill de arte popular estadunidense. A face configurada nessa peça é pintada de preto (para indicar um espírito afro-estadunidense?) e não esmaltada. Este objeto revela um conhecimento da tradição Toby: seu bico recria o contorno do chapéu tricorne de Toby, e suas linhas curvas são mais ou menos repetidas nas sobrancelhas e no contorno dos olhos, fortemente estruturados. Estes últimos saltam com um brilho que lembra o dos olhos de pessoas possuídas por espíritos em certas religiões tradicionais da África Ocidental e Central.

98. Estilisticamente, o formato dos olhos, a boca e outros detalhes faciais se relacionam a um pequeno grupo de jarras com faces de grande mérito artístico [Figura 16 e Figura 17], atribuídos inicialmente a artesãos escravizados afro-estadunidenses por Thomas Davies, proprietário de uma olaria em Bath, no referido distrito de Edgefield. Ele datou os trabalhos de c. 1862 e disse a um historiador de cerâmica estadunidense que seus escravizados fizeram essas jarras “modeladas grosseiramente na parte frontal como um [...] rosto humano, evidentemente visando a retratar traços africanos."[67] Apesar de sua atitude condescendente, Davies foi forçado a admitir que um elemento estilístico associado a esses trabalhos era muito "engenhoso:" o formato dos olhos e da boca das jarras, com inserções de caulim. Essa abordagem multimídia não tinha precedentes na cerâmica da Inglaterra, Alemanha ou em qualquer outro lugar do mundo. Mas era muito semelhante à antiga prática de inserir fragmentos de porcelana nas órbitas oculares de figuras humanas esculpidas em madeira no norte do Kongo, particularmente entre os clãs Bembe e Kunyi. 

99. O olhar espectral, branco como osso, da imagem de madeira Kunyi de um tocador de ngoma [Figura 18] se aproxima do nível de intensidade e sugestividade espirituais engendradas quando inserções de caulim (o material do qual a porcelana é feita) foram embutidas nas órbitas das referidas jarras e copos afro-carolinos do distrito de Edgefield.[68]  Além disso, os Bakongo e seus vizinhos, desde tempos imemoriais, consideraram as terras (especialmente quando brancas, a cor dos mortos, ou vermelhas, a cor de transição espiritual), como intimamente ligadas com os espíritos. Essas terras forneciam substâncias preciosas para serem inseridas em um amuleto a fim de ativá-lo, conferindo-lhe uma alma humana. É a mesma lógica que levou um feiticeiro afro-missouriano a inserir um pedaço de papel alumínio em um amuleto para que esse enredasse, com seu lampejo, um certo espírito.[69] Isso não era de todo diferente de realçar o olhar de um jarra-máscara inserindo nela bolas de caulim especialmente preparadas para representar os olhos, e uma massa ovoide da mesma substância para os dentes, dentro dos lábios configurados com um forte relevo.

100. O surgimento desses objetos únicos aparentemente resultou de uma complexa combinação de ideias Kongo-Angola sobre a inserção de caulim (ou de autêntica porcelana, como nos olhos das esculturas Kongo, Bembe e Kunyi) em amuletos; ideias inglesas e anglo- estadunidenses sobre moldar jarras como máscaras ou cabeças (“whimseys”); e ideias locais anglo-estadunidenses sobre envidraçamento, queima e outros temas técnicos ocidentais. Em tudo isso, o tipo da jarra Toby atuou como elemento de reforço: tais jarras com faces podiam muito bem ser conhecidas entre os Bakongo que chegaram como cativos nos primeiros anos do século XIX, ou seja, por homens e mulheres que as viram em túmulos da realeza no Kongo. 

101. Mas os “whimseys” ingleses e estadunidenses são apenas uma das fontes de influência formal nessas jarras com faces. Os Bakongo e culturas mais ao sul desenvolveram plenamente suas próprias tradições de recipientes figurados. Isso envolve a confecção de pequenas jarras d’água embelezadas com feições humanas. Os Lwena, que vivem ao sul do Kongo, e os Mbundu fazem jarras d’água esféricas com cabeças humanas esculpidas em seus topos [Figura 19]. Os Lunda e os Tu-Chokwe, no nordeste de Angola, fazem jarras semelhantes, com bicos inclinados, alças em estribo e pequenas cabeças humanas decorativas surgindo dos topos [Figura 20]. O tamanho e a forma das jarras d’água Lunda/Chokwe lembram algumas peças feitas no norte do Congo, documentadas por Janet MacGaffey [Figura 21].[70] A última série exibe, igualmente, uma alça em estribo e um bico inclinado. 

102. Portanto, é certamente mais do que coincidência o fato de que, nas Índias Ocidentais, onde numerosos escravizados oriundos do Kongo e de Angola estavam presentes, uma forma de cerâmica afro-caribenha semelhante tenha surgido: as jarras monkey [Figura 22].[71] Estas são caracterizadas por suas formas esféricas, bicos inclinados e alças em estribo. Até hoje, elas são feitas ou vendidas por negros na Jamaica e nas ilhas de Nevis, Barbados e Antigua. A possibilidade de que a jarra monkey tenha surgido em uma ilha particularmente influenciada pelo Kongo e depois se difundido no comércio para outras ilhas deve ser considerada como uma hipótese alternativa. Em todo caso, há uma forte semelhança com as peças Kongo e Angola que acabamos de examinar.

103. Roger Abrahams nos informa que os oleiros negros de Nevis, uma ilha das Índias Ocidentais, são bastante conservadores. Podemos acreditar nisso porque a versão Nevis da jarra monkey, como a mostrada na Figura 22, é muito próxima dos tipos correlatos oriundos de Kongo e Angola. A Carolina do Sul pode ter recebido versões crioulas dessa forma por várias vias: do comércio com Barbados; diretamente do Kongo, das memórias de escravizados que chegavam e que haviam lá praticado a fabricação de cerâmica; por meio de uma combinação desses meios; ou, ainda, por via de outras correntes de influência, ainda não identificadas.

104. Em qualquer caso, é significativo que um dos tipos proeminentes de jarra com face encontrado na área do Distrito de Edgefield, onde os ceramistas negros trabalhavam, derivava do tipo básico da jarra monkey - com bicos inclinados, alça em estribo etc. John Burrison, uma autoridade em cerâmica popular do sul dos Estados Unidos, foi aparentemente o primeiro estudioso a apontar a possibilidade de que a jarra monkey, como forma básica - com alça de estribo na parte superior e um ou dois bicos tubulares inclinados -, tenha sido introduzida a partir da África. Ele acrescentou que “elas foram feitas por vários ceramistas no Sul, negros e brancos, mas são raras no Norte. São desconhecidas na Grã-Bretanha e até agora não consegui encontrá-las na Alemanha, as duas fontes mais lógicas de nossas tradições de cerâmica estadunidense."[72] Mas Kongo e Angola oferecem muitos precedentes. 

105. Ainda que a precisa natureza da mistura de elementos Kongo, ingleses e anglo-estadunidenses esteja por definir, a invenção mais surpreendente - a representação de olhos e bocas com inserções de caulim - torna esse estilo único na história da cerâmica mundial. Já falamos sobre seu paralelo óbvio: a inserção de caulim nos amuletos Kongo e de fragmentos de porcelana, derivados do caulim, nos olhos das principais formas de escultura do norte do Kongo.

106.. Mas há uma matriz restabelecida de procedimentos artísticos semelhantes na própria Carolina do Sul negra. Lá, os cemitérios mais antigos da área de Edgefield revelam montes revestidos de conchas, pedras e pedaços de quartzo, todos deliberadamente selecionados por causa de sua brilhante brancura. Além disso, uma espécie de neo-nkisi foi encontrada “abandonada em um cemitério de Edgefield.” Trata-se um pote de cerâmica marrom da Carolina do Sul, coberto com gesso e colorido de vermelho [Figura 23]. Embutidos no gesso estão numerosos objetos, como parafusos, um osso de galinha e, com destaque, peças de porcelana branca: uma colher em miniatura, um prato e uma estatueta. Este incrível objeto está agora em posse do Museu Pottersville, perto de Edgefield. Ele foi datado por Ralph McClendon, da equipe do museu, como sendo de c. anos 1870, com base na forma e no estilo do recipiente de cerâmica marrom.[73] Este último se aproxima de produtos da oficina de W. F. Hahn, no distrito de Edgefield, que datam desse período. De todo modo, a inserção de objetos derivados de caulim e outros objetos brancos nas laterais desta jarra do século XIX mostra que a tradição de embutir fragmentos de caulim ou porcelana em peças de cerâmica - a principal invenção dos artesãos afro-carolinos da área, em meados do século XIX - ainda estava viva, embora transmutada, na década de 1870. Isso nos leva às "jarras de diabo," feitas por brancos no norte da Geórgia no século XX.

107. Ao lhe ser mostrada uma fotografia do recipiente incrustado de objetos da Figura 23 e dito que ele foi encontrado “jogado fora em um cemitério," Fu-Kiau comentou a seu respeito: “É uma nova forma de n'kondi. Os objetos incrustados são signos (bidimbu). As pessoas estavam tentando se comunicar com seus ancestrais na África através desses objetos. Elas contavam a eles sobre as mudanças que estavam acontecendo ao seu redor, e pediam aos mortos para protegê-los do aniquilamento neste novo ambiente.”[74]

108. Não obstante, mesmo que essas evidências culturalmente carregadas e geograficamente concentradas não existissem, ainda haveria a continuidade da intimidação pelo impacto da representação de algo análogo a um crânio humano na forma de um recipiente de cerâmica.

109.  De chefes Kongo instilando terror ao beberem em crânios e jarras Toby aos pais afro-americanos que colocam uma pequena jarra monkey com face em suas cabanas para assustar seus filhos e incitá-los a um comportamento adequado, vemos uma fusão de forma e função que torna possível pensarmos sobre continuidades culturais.[75] Isso também fornece um elo perdido entre os recipientes de crânios do antigo Kongo e os numerosos crânios de argila feitos por James “Son” Thomas, um artista negro de Leland, Mississippi. Um exemplo do trabalho de Thomas, datado do outono de 1972, é mostrado na Figura 24. Observamos aqui uma abordagem multimídia, com o uso de sementes de milho embutidas para representar os dentes, enquanto na tradição Edgefield e outras correlatas, mais antigas, eram usados para esse fim fragmentos de porcelana ou pasta de caulim. 

110. Desde muito jovem, “Son” Thomas sentiu uma necessidade urgente de fazer tais crânios, Seu esforço imediatamente lhe trouxe a censura de um ancião, que disse ao jovem escultor que não queria tal objeto em sua casa, por medo de “fantasmas.” Tal comentário, aparentemente jocoso, ocultava a crença íntima do ancião no poder desse tipo de objeto.

111. Ao discutir como faz seus crânios de argila, “Son” Thomas se exprime tal qual seus ancestrais artísticos: "Você primeiro modela a cabeça normal de um homem. Então você a corta na forma de crânio, porque você não poderia fazer um crânio diretamente, sem cortá-la."[76] Suas palavras ecoam o fato de que, no Kongo, a concavidade está conectada com a negação e com a morte;[77] que as figuras do relicário Kuta, relacionadas com o Kongo, às vezes combinam uma face sem boca com concavidade; e que existem inúmeros estilos de máscara na área Bantu caracterizados por um “corte” da convexidade facial, com a subsequente decoração das concavidades resultantes com argila branca, exibindo assim a cor dos mortos e do outro mundo. Em suma, a "conexão Toby" constrói uma ponte sobre uma história de gestos artísticos feitos em alusão ao poder dos mortos, desde os crânios usados como jarras no Kongo até os crânios esculpidos de “Son” Thomas, no delta do Mississippi. 

112. Existem outras qualidades ligando as tradições cerâmicas populares do Kongo e das Américas. O próprio termo “monkey,” que pode significar "espírito maligno" (como na expressão "monkey on my back") mas também "jarra d’água," tem intrigado os estudiosos. Parece haver vários “kongoismos” ocultos neste único termo, daí a aparente confusão. Assim, mbugi, palavra quicongo para "diabo," é certamente uma das origens para "monkey," no sentido de espírito maligno, reforçada pela palavra inglesa "'bogey." O mesmo percurso duplo nos legou o sentido de boogie como “música do diabo," tal como costumava ser chamado o blues nos Estados Unidos negro. Quanto ao emprego significando jarra, existe uma cabaça redonda, vagamente semelhante a uma jarra ou cuia de cachimbo feita de barro, que os Bakongo usam para fumar folhas de mandioca [Figura 25]. Em quicongo, este objeto é chamado munkoki,[78] certamente uma das origens de "monkey," no sentido de objeto arredondado de cerâmica.  

113. As formas de cerâmica americanas relacionadas ao Kongo incluem uma dimensão musical. No Kongo, um termo padrão para jarra d’água, mvungu, também se refere ao uso do mesmo objeto de cerâmica para produzir o som grave, de uma única nota, em um conjunto tradicional. Mvungu significa literalmente a voz mais grave em um coro de cantores.[79] Esse fato imediatamente lança luz sobre a ascensão das jug bands negras do sul dos Estados Unidos, onde uma jarra é usada como instrumento que, na formação inicial do jazz, desempenha o papel de baixo [Figura 26].[80] Também na cultura afro-cubana, os músicos ainda levam uma jarra d’água aos lábios [Figura 27] e a empregam à guisa de instrumento de voz grave.[81] Em certos casos, apenas uma mesma nota é tocada por cada instrumento (hoquetus), como fazem os biludi Kongo [Figura 28]. Essa prática também lembra o gesto Bakongo de levar até os lábios formas semelhantes feitas de cerâmica (ou cabaça), seja como utensílio para fumar ou como instrumento musical. Os afro-cubanos chamam de bungas seus instrumentos graves feitos de jarras, termo claramente derivado da palavra em quicongo para o mesmo tipo de instrumento.[82] No surgimento no hemisfério ocidental da música com jarras influenciada pelo Kongo, houve, sem dúvida, uma enorme influência das tradições subsaarianas culturalmente semelhantes de instrumentação, usando recipientes de cerâmica ou cabaças.[83] Assim, Robert Palmer, em seu estudo de 1981 intitulado Deep Blues, observa que “um grupo fascinante de instrumentos [centro-africanos] [...] cabaças musicais, podem ser tocadas como trompas, com os lábios vibrando [...] Os Luba do Zaire usam suas cabaças como se estivessem tocando trompetes, que contribuem assim com as partes graves propulsoras para a música de conjunto. A técnica de execução e a função musical do instrumento foram preservadas pelos sopradores de jarras nas jug bands estadunidenses negras” [Figura 29].[84]

114. Por fim, assim como a faiança e vidraria ocidentais coexistem com maboondo e mvungu em muitas sepulturas Kongo, o estilo de uma nota da tradição das jarras-baixo nos Estados Unidos coexiste com o uso de instrumentos de vidro, feito por negros.

115. O ilustre folclorista do Mississippi, William Ferris, filmou Louis Dotson, um instrumentista negro, tocando uma garrafa de Coca-Cola em um estilo que imediatamente lembra a música de grupos de pigmeus no Zaire e no Congo-Brazzaville. Dotson, que mora em Lorman, Mississippi, assim explica seu estilo: “Chamamos isso de talking the bottle. Veja, você tem que encher a garrafa de Coca um pouco além da metade, com água. Você pode soprar e uivar nela então. Se você não puser água, a garrafa consome muito ar e você não pode produzir os uivos."[85]  Desde tocar um cachimbo d’água no Kongo até usar uma garrafa de Coca-Cola cheia com água "um pouco além da metade," temos uma lógica de performance musical duradoura e consistente. No processo, outra tradição clássica Kongo retoma seu lugar na América do Norte por meio de objetos aparentemente ocidentais. Finalmente, é bem possível que a tradição branca sulista do final do século XIX de pôr jarras sobre túmulos [Figura 30][86] baseie-se em fontes insuspeitas, como maboondo [Figura 31] e outras tradições negras de lápides de cerâmica. Tal influência foi restabelecida por meio do emprego de vasos simples comprados em lojas [Figura 32] ou por traduções e empréstimos da forma maboondo, em cemitérios negros do Velho Sul Profundo. Mas está é uma questão cuja discussão devemos deixar para outra publicação.      

Gestos Kongo do mundo Atlântico negro

116. Tipos importantes de gestos simbolizados pela arte funerária Kongo sobreviveram para além das pessoas que originalmente os incorporaram. Sua reproposição nas Américas negras é óbvia e muitíssimo frequente. William Stewart, um linguista estadunidense, está preparando um dicionário definitivo da fala afro-estadunidense, para o qual já compilou mais de dez mil verbetes. Ele descobriu que muitas palavras em inglês, usadas entre afro-estadunidenses, têm seus próprios significados “negros.”[87] Como parte desta obra monumental, há um dicionário de gestos - particularmente dos Gullah [[população afro-estadunidense que vive na região costeira do sudeste do país]] - que acompanha a dimensão lexical: estes gestos são inestimáveis ​​para historiadores da arte Kongo em uma perspectiva atlântica. 

117. Comecemos pela posição sentada de pernas cruzadas (funda nkata), brilhantemente exemplificada por uma figura em madeira de uma mãe e seu filho, pertencente à coleção do Conde Baudoin de Grunne [Figura 33]. Poderia parecer que falta a este gesto cortês o poder de permanência de outras atitudes mais amplamente disseminadas pela cultura Kongo. No entanto, funda nkata aparece no início do século XIX na Congo Square de Nova Orleans: "O músico, sentado com as pernas cruzadas, segurava a [mbira] com as duas mãos e tocava as pontas das hastes com as unhas do polegar."[88] Esta cena lembra um tema comum na escultura Kongo.[89] Em outro ponto das Américas, Jacob Elder, um estudioso da vida negra em Trinidad, lembra que naquela ilha, no séc. XX, “havia um velho Kongo que raspou a cabeça e sentou-se de pernas cruzadas." Ele se sentou desta maneira, assim foi relatado, para “pensar em seus ancestrais.”[90] 

118. Tuluwa lwa luumbu, um gesto no qual os braços são cruzados sobre o peito para simbolizar o auto-cerceamento silencioso [Figura 34], mantém sua poderosa mudez em algumas comunidades negras estadunidenses. Em 1980, eu vi um homem negro no gramado da cidade de New Haven cruzar os braços diante do peito para encerrar uma conversa: com este gesto, ele sinalizou que nada mais tinha a dizer. Stewart viu o mesmo emblema da negação entre os Gullah da Carolina do Sul, sendo “usado em situações ligeiramente combativas, onde uma pessoa, cruzando os braços sobre peito, não está discutindo per se, mas quer comunicar que definitivamente não gosta do que lhe está sendo dito.”[91] O gesto luumbu sobrevive, de maneira clara e distinta, entre certas populações afro-cubanas do Caribe.[92] Lydia Cabrera viu um sacerdote Kongo (nganga) em Havana cruzar os braços, sinalizando altivez e reserva. O mesmo gesto, com significados Iorubá e Kongo contrastantes, aparece em uma dança folclórica com forte sabor Kongo, a rumba yambu [Figura 35].[93] Novamente, um aspecto da escultura Bakongo é ecoado por padrões de dança e música no Novo Mundo negro. 

119. A correlata postura em pé ou sentada, com a cabeça virada para o lado (nunsa), também está presente nas Américas negras. Como ponto de partida, consideremos uma bela representação de nunsa na escultura clássica Kongo em marfim [Figura 36]. Nela, uma mulher é retratada em um estado de nudez ritual; ela se ajoelha e coloca as mãos sobre suas coxas (fukama, ye mooko va bunda). Esta é uma antiga pose de rendição, pedindo por perdão. No entanto, a figura como que contradiz tal pedido com um sinal resoluto: com a cabeça virada, ela indica negação. Com isso, temos uma tradução vernacular da fusão de duas atitudes codificadas diferentes - uma negativa e outra positiva -, justapostas em uma única peça: “Esteja avisado, a atenção do rei favorece não apenas aqueles que sabem como fazer a autoridade ouvir suas queixas, mas também os que se fazem respeitar.”[94]

120. Há um verdadeiro florescimento do gesto Kongo da cabeça voltada para o lado no hemisfério ocidental. Ele é invisível, porém, para aqueles que não vivem ou não observam de perto os negros. Nas cerimônias afro-cubanas em que certas pessoas são possuídas pelo espírito de uma pessoa morta (mfumbi), elas dançam com as cabeças viradas para o lado. Desse modo, o espírito como que se distancia desse mundo, que ele visita de modo apenas fugaz. Isso recupera parte da altivez inerente ao gesto nunsa.[95]

121. Em 1977, vi um negro de Nova Orleans se opor a acusações que lhe eram feitas virando a cabeça para um lado, tendo os lábios cerrados.[96] Ele se tornou um ícone da negação. Existem inúmeros ecos dessa pose em terra Gullah, especialmente quando uma mãe negra repreende severamente seu filho. Sobre isto, Stewart escreve: “A criança franze os lábios, vira a cabeça para o lado e assim fica.”[97]  Um gesto correlato foi observado nos tempos coloniais por Charles William Day: “Quando os negros brigam, eles raramente se olham cara a cara.”[98] Há uma maravilhosa representação Kongo da pose de nunsa no Museu de Berlim, que registra distintamente tanto o virar da cabeça quanto o franzir determinado dos lábios, como se o sujeito estivesse com eles apontando para o fundamento de sua negação. Em um estudo importante, Dynamics of a Black audience, Annelte Powell Williams resume uma extensão desse gesto fundamental entre os negros dos Estados Unidos: “Uma indicação de rejeição total é indicada virando a cabeça, com os olhos fechados, para longe do orador.”[99]

122.  Kebuka, uma pose correlata encontrada no contexto das performances do ngoma [Figura 37], se liga logicamente aos procedimentos gestuais dos tocadores negros de tambores conga em Cuba e na América do Norte hispânica. Earl Leaf fotografou o famoso percussionista afro-cubano Chori na década de 1940 nessa pose característica [Figura 38], com a cabeça virada para o lado, concentrando-se em sua música, cancelando todas as distrações do fluxo e andamento dos ritmos que produzia. Enquanto houver tambores conga (tumbadoras) e timbales sendo tocados bem e de forma tradicional, este antigo gesto de recolhimento criativo para uma zona de concentração e reflexão viverá nas Américas.

123.  Pakalala, uma postura com as duas mãos nos quadris, é um gesto de desafio. A palavra significa em si um verbo de atitude, referindo-se a puxar a orelha de alguém, a desfraldar um guarda-chuva e a imagens de prontidão e aguçamento dos sentidos.[100] No Kongo, o homem ou mulher que coloca as mãos nos quadris se proclama como uma pessoa pronta para aceitar os desafios de uma dada situação. Esta postura é representada muitas vezes nos lusumu [[bastões]] do Museu de Tervüren. 

124. Nos Estados Unidos, ficar de pé com as duas mãos na cintura se tornou a clássica pose de desafio das mulheres negras.[101] Laguerre. A Gascon of the Black Border, obra de Ambrose E. Gonzales, apresenta duas descrições de mulheres negras em poses combativas (com as mãos nos quadris), em litígios judiciais. Quando obras como a de Gonzales foram analisadas e comparadas, talvez seja possível mostrar que tais poses constituem reproposições das poses de um mambu, recolhidas e encenadas por negros nos Estados Unidos. 

125. No Haiti, as mulheres por vezes adotam essa postura de desafio, na maior parte dos casos ao dançar com um homem. Com essa postura, elas testam ou contradizem, com graça e humor, o impulso do dançarino [Figura 39]. Este é um uso despreocupado, informal, de uma atitude que tem um sentido geralmente severo e proibitivo no mundo dos minkisi n'kondi, no próprio Kongo [Figura 40].[102]

126. A pose da encruzilhada - mão direita apontando para o céu, mão esquerda paralela à linha do horizonte - caracteriza os já referidos niombo. Curiosamente, uma representação pintada do espírito dos cemitérios haitiano, Barão Samedi, o mostra nessa mesma pose [Figura 41]. O espírito, cercado por instrumentos que remetem à morte (picareta e pá para cavar sepulturas, uma lápide), aponta com a mão direita erguida e se apoia sobre uma bengala, com a esquerda. Mas a configuração do gesto permanece intacta.[103]

127. Outra representação desse gesto no Haiti é muitíssimo presente na decoração encontrada no cume dos bastões das bandeiras vodu. No Haiti, essas bandeiras são desfraldadas para anunciar a vinda dos deuses. Frequentemente, elas desfilam ​​de maneira cosmogramática, saudando os pontos cardeais de um determinado santuário e indicando, assim, a fronteira entre os mundos. Nesse contexto, é significativo que muitas delas apresentem, no cume de seu fuste, um elemento curvado em forma de S, esculpido em madeira e pregado ou fixado ao eixo. O resultado é um gesto enigmático com a mão direita para cima e a esquerda para baixo, lembrando precisamente a leitura antropomórfica dos protetores de mão das mbele a lulendo. as espadas para execução usadas na corte do antigo Kongo. 

128. Na confecção de um cosmograma ritual (vévé), às vezes uma linha reta é cruzada por uma curva dupla, à maneira da decoração no topo da haste de bandeiras vodu  desenhadas sobre o chão, com farinha de milho. Esse arranjo de linhas se torna um pwe. Karen McCarthy Brown, especialista em simbolismo artístico haitiano, nos diz que um pwe é um lugar onde os poderes se cruzam. É um gesto traçado que sacraliza um lugar ou objeto por meio da invocação dos espíritos. 

129. O gesto aparente no cume dessas bandeiras vodu, como se elas fossem espadas vivas com panos honoríficos a ela atados, deve ser considerado uma possível reformulação crioula de uma tradição Bakongo. No Kongo, este gesto - em espadas e niombo - marcava as fronteiras entre dois mundos, e essa é precisamente a função da bandeira vodu

(a) Niombo; (b) Mbele a Lulendo; (c) Bandeira vodu

130. Talvez a incursão mais dramática de um gesto Kongo no Haiti seja a reemergente posição biika mambu. Esta é a famosa pose com a mão esquerda no quadril e a direita para frente, frequentemente chamada de telama lwimba-nganga no norte do Kongo. MacGaffey suspeita que a expressão significa “verticalidade,” em um sentido especificamente cosmogramático: "As direções Norte-Sul são as direções de nganga, pelas quais os ventos trazem tempestades especialmente violentas. Bitembo bia nganga.”

131. A origem étnica desta pose era conhecida e ela foi assim identificada, na década de 1930. Courlander escreve: "As mulheres às vezes usam uma pose Kongo, com a mão esquerda no quadril e o braço direito estendido para fora, num gesto que empresta boa dose de graça ao que de outra forma poderia ser uma estética violenta."[104] Lembremos que, no Kongo, acredita-se que colocar a mão esquerda no quadril subjuga todo o mal, enquanto a mão direita estendida age para fazer “vibrar” o futuro de maneira positiva. Mulheres importantes usavam essa postura ao amanhecer, para fazer "vibrar positivamente" o futuro dos guerreiros da cidade. Advogados usavam o poder da pose para bloquear ou encerrar um processo. 

132. Karen Brown relata que este é um gesto muito comum na dança ritual afro-haitiana. Também é adotado pelos major joncs, os balizas de banda em desfiles de rua feitos antes da Quaresma e chamados rara. A instrumentação dos rara é fortemente influenciada pela música Kongo. As famosas trombetas de bambu de uma nota só (vaccines) usadas nos rara quase certamente derivam das trombetas de bambu Kongo (disoso), como verificamos ao comparar tocadores de vaccines em uma pintura haitiana moderna [Figura 42] e um autêntico tocador de disoso em Luangu Nzmbi, na margem norte do Zaire, em foto tirada durante o verão de 1980 [Figura 43]. A ressonância da nota única - ou par de notas - do disoso é evocada de perto pelos sons das vaccines. Ambos derivam da música dos pigmeus, onde apenas uma ou duas notas são tocadas por cada músico.[105] Nessa tradição, a linha melódica emerge da fusão entrelaçada de múltiplas notas isoladas. 

133. Bandas de rara observadas nos invernos de 1975 e 1976 no oeste de Port-au-Prince incluíam um longo instrumento de metal, sugerindo uma tradução da igualmente longa flauta transversa usada no Kongo e feito de carica papaya.[106] Portanto, há um agrupamento significativo dessas influências, especialmente da técnica de execução. Presumivelmente, esta foi transladada para o Haiti dos bolsões da cultura dos pigmeus localizados ao norte dos Bakongo, conforme documentado pelas fotografias de pigmeus e seus acampamentos feitas por Manker e apresentadas em um livro sobre a cultura do Kongo setentrional. Portanto, é certo que os criadores dos rara incluíam ou foram fortemente influenciados pela música de pessoas com herança Kongo.

134.  Hoje, contudo, o rara tornou-se uma estratégia cultural haitiana, não um símbolo da etnicidade africana. O conhecimento das ligações conscientes com práticas Kongo foi apagado por improvisação e mudança completas. Ainda assim, a “pose Kongo” continua sendo parte integrante da estruturação percussiva de certos líderes que marcham ao ritmo dos rara. No Kongo, esta era uma pose ligada à autoridade. Nos rara, ela é uma prerrogativa do importante major jonc, “que faz malabarismos com uma batuta de metal” e é uma das principais figuras das bandas.[107] Quando um grupo rara encontra um grupo rival, os respectivos major joncs giram seus bastões e fazem a pose Kongo, como que tentando anular o virtuosismo de seus rivais. 

135. R. Duvivier, um pintor popular do Haiti, captou brilhantemente o espírito dos rara em uma obra que aparentemente data da década de 1970 [Figura 44].[108] O grupo é conduzido por um líder a cavalo e por um indivíduo que carrega o estandarte do grupo, onde se lê Bel Mevêil. Mulheres dançam em uma pose de desafio, com as duas mãos na cintura; vacinnes são tocadas; e tambores de derivação Kongo são percutidos. No meio dessa alegre cena, dois major joncs performam. Um se inclina para o chão enquanto gira sua batuta de metal; mas o outro, em uma jaqueta reluzente com lantejoulas, gira seu bastão com a mão direita e mantém a mão esquerda no quadril. Assim, ele abre caminho, com vitalidade e poder. 

136. Sabemos que as chamadas "shotgun shacks" [[residências domésticas retangulares e estreitas]] da Nova Orleans negra derivam, na verdade, de protótipos haitianos, trazidos por migrações negras de Sainte-Domingue para o porto de Mississipi, no início do século XIX.[109] Também há pouca dúvida de que o esplendor de contas, lantejoulas e penas dos trajes usados nas ruas pelos grupos de “índios” em Nova Orleans derivam, em conceito e nos seus pormenores, de trajes com lantejoulas e contas semelhantes encontrados nos rara afro-haitianos - o mesmo tipo de traje usado pelo personagem que faz o gesto biika mambu na pintura haitiana acima referida.[110]

137. Assim, a "pose Kongo" pode ser rastreada por meio dessas várias correntes de influência. Telama lwimba-nganga tornou-se pose Kongo no Haiti; em seguida, pose Kongo se tornou a pose drum majorette nos Estados Unidos continental. Quase todos os primeiros balizas de banda do Sul, dentro e ao redor de Nova Orleans, eram negros, ou ao menos assim afirmam os informantes em Nova Orleans.[111] Mas a qualidade dominante, estritamente cinzelada e nítida da pose, com a mão esquerda no quadril e a direita estendida, girando um bastão brilhante, era evidentemente poderosa demais para que os brancos por ela não se encantassem. Hoje, diz-se que o centro mundial a arte do baton twirling [[giro do bastão]] é o Mississippi. E acontece do Mississippi ficar a leste da Louisiana e sob influência de Nova Orleans.[112] O livro Baton twirling: the fundamentals of an art and skill, de Constance Atwater, foi gentilmente compartilhado comigo por John Szwed, que argumentava, já em 1970, que o baton twirling, hoje considerado tipicamente estadunidense, podia muito bem esconder profundas raízes africanas (Szwed, de fato, inspirou a reinvestigação das raízes desse importante fenômeno popular). Em certo trecho de seu livro, Atwater observa que o modo adequado de performar envolve colocar a mão esquerda no quadril e girar o bastão com a mão direita. Em outro trecho, ela diz: "Faça um pequeno movimento corporal atrevido, de modo que você não pareça um zumbi usando salto alto.”[113] Por uma coincidência que os tradicionalistas Bakongo diriam não ser em absoluto uma simples coincidência, esta passagem - em um livro que ensina as pessoas a fazerem poses, duas das quais na verdade podem ser de influência Kongo - usa, sem o respeito apropriado, ambos os nomes em quicongo para Deus (Nzambi) e cadáver (nzambi). 

138. Desde encorajar guerreiros à vitória no Kongo até incentivar esportistas à vitória no Missisippi, a função desse gesto mudou muito pouco. Um dos mistérios que cercam os balizas de banda nas Índias Ocidentais e em outras partes das Américas negras se refere ao fato de homens nessa função às vezes adotarem elementos de vestimenta feminina.[114] Tal anomalia talvez possa ser explicada pela relação com uma herança cultural derivada do uso do telama e que diz respeito à presença de mulheres importantes incentivando a força e o sucesso dos homens. No entanto, este é um problema muito complicado para ser resolvido nestas páginas. É quase certo que a confiança e autoridade inerentes a esta postura, com ou sem um bastão ou cetro de autoridade, mantiveram sua vitalidade em três culturas (Kongo, haitiana e negro-estadunidense), durante dois séculos de circulações pelo Atlântico. 

139. Este complicado gesto sobrevive em outro contexto, como ícone da performance negra estadunidense. Em meados dos anos 1960, as Supremes, um grupo de cantoras negras, ficaram famosas por uma música em que clamavam "Stop” in the name of love!"[115], enquanto faziam a exata pose Kongo que os anciãos costumavam usar para impedir o mau comportamento em uma dança tradicional: mão esquerda no quadril, mão ou palma direita à frente do corpo. E esta é apenas uma faceta de algo que provavelmente envolve toda a arte verbal afro-estadunidense. 

140. um estudo importante chamado Aesthetic patterning of verbal art and the performance-centered text, Elizabeth Fine examinou os meios estilísticos de um performer negro em ação, recontando a saga de Stagolee, um clássico do folclore negro. O artista era James Hutchinson, se apresentando em Austin, Texas, em maio de 1977. Fine o observou detidamente: 

141. [Hutchinson] realiza suas graciosas e fluidas mudanças de personagem por meio de um sistema de posturas extremamente econômico e altamente padronizado. A postura mais comum [de Hutchinson] envolve duas variações. Ele frequentemente fica de pé com a mão esquerda no quadril e seu peso sobre o pé esquerdo, seja com mão direita erguida na altura do ombro para enfatizar algo, ou com o braço direito sobre o peito, com a mão fechada. Essas duas posturas intimamente relacionadas ocorrem com tanta frequência que comecei a abreviá-las como pose “quadril/mão” ou pose “quadril/braço.”[116]

142. Ela apresenta esquematicamente estes gestos básicos assim:

A picture containing gate

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(a) Pose “quadril/mão”; (b) Pose “quadril/braço”

143. Ambos são ícones relacionados ao Kongo, vividos como expressão fundamental dos afro-estadunidenses. O gesto telama é imediatamente reconhecível como derivado do léxico dos antigos gestos Kongo, especialmente naqueles famosos contextos para declamação e oratória de alto nível - os tribunais de justiça. Mas o outro gesto - mão esquerda no quadril, mão direita fechada contra o coração, chamado no Kongo de futika nkome - nós ainda não encontramos em nossas discussões sobre os gestos Bakongo. No entanto, também ele carrega um significativo peso semântico: 

144. No Kongo, futika nkome ("atar o polegar") ou kanga mooko ("atar a mão"), ou seja, segurar a mão direita fechada sobre o coração, com a mão esquerda no quadril é [um gesto] muito comum. É uma forma de tentar escapar de uma situação negativa. Você pressiona o lado maligno com a mão esquerda no quadril e, com o punho sobre o coração - um sinal de poder - você comunica, sem palavras, um sentimento que tem em seu coração (ntima), alcançando o que é profundo dentro de você. Com este gesto você liga, como se fosse um motor, o seu coração e então você escapa, livre do poder opressor do mal.[117]

145. Assim, tanto os gestos relacionados a telama quanto os relacionados a futika nkome têm a ver com poder e força mediadora. O performer negro no Texas usava esses ícones - que originalmente simbolizavam conquista de poder e contenção do mal - como estratagemas culturalmente estéticos, ao invés de ferramentas aplicadas de modo estrito em um processo judicial ou em algum outro momento importante, sagrado. Mas nós constantemente voltamos ao seu poder e força recorrentes, tão ritmados que quase param o próprio fluxo do tempo, como postula Fine:

146. Essas posturas básicas também fazem parte da estrutura rítmica. Eles fornecem uma “grade rítmica” de base, para usar o termo de Harold Scheub, da qual emergem todas as outras imagens não-verbais. Uma maneira pela qual a grade não-verbal funciona esteticamente é gerando antecipação na audiência. Conforme os padrões não-verbais começam a emergir, a atenção do público é cativada pela atratividade das repetições padronizadas [...] é uma antecipação que é sentida [...] parte do poder por trás dos movimentos [de Hutchinson] de imitar Stagolee correndo ou cumprimentando seu irmão e irmã no Inferno parece derivar do seu contraste com relação a tantos outros ícones que são construídos a partir das poses “quadril/braço” e “quadril/mão.”[118]

147. A definição dessas poses como "ícones" é historicamente apropriada. Este era precisamente o impacto e a realidade delas no mundo da jurisprudência e da arte funerária Kongo. Este era certamente o impacto da pose “quadril/mão" no domínio dos minkisi n’'kondi, imagens veiculadoras de leis e moralmente intimidantes por excelência.[119]

148. A performance de Hutchinson durava cinco minutos, mas parecia durar mais: "As repetições contínuas das mesmas posturas básicas [...] parecem funcionar contra a progressão do tempo."[120] De fato, elas o fazem e um dos propósitos do mambu era exatamente esse: desacelerar o tempo, construir uma tessitura de dança, provérbio, ditado, postura e oratória para ganhar tempo a fim encontrar um compromisso honroso para todas as partes. Isso era feito para que o caso pudesse terminar em harmonia, não em ódio e dissenso permanentes. E, em outro nível, como elementos espirituais e intuitivos, telama, pose Kongo, a pose drum majorette e a pose “quadril/mão” se misturam em uma corrente de influências historicamente relacionadas que, em última análise, nos leva de volta a Mbanza Kongo, onde os grandes advogados declamavam, onde as grandes autoridades ficavam em pé com confiança e sabedoria, muitas vezes nesta pose de grandeza. 

149. Nossa discussão das claras ligações entre postura e altitude nas estátuas Kongo e nos gestos afro-estadunidenses termina com a altitude mais indelevelmente negra de todas, o gesto booka ou yangalala. Booka refere-se a elevar as duas mãos acima da cabeça, com os dedos bem separados. A palavra se refere a gritar por socorro, chorar ou proclamar. Com este gesto, a pessoa muitas vezes proclama sua alegria; portanto, também é chamado yangalala. Este é um verbo de atitude, que significa: estar em êxtase, exultante, alegre, bem.[121] 

150. Existem implicações místicas para os usos desse gesto. Erguer as mãos acima da cabeça com os dedos bem afastados (nlembo nia zibuka) é em si um sinal de alegria e plenitude de vida (sakalala). Também proclama “ser conhecido e muito ativo” (mwangana). Para alguns tradicionalistas Kongo, o motivo dos dedos amplamente separados lembra cerdas (mwekese), no sentido de irradiar forças e, portanto, expressa “sentir-se pronto para voar com espírito próprio.”[122]

151. Um detalhe do lado de um diboondo Mboma Kongo [Figura 45] captura a versão de um oleiro para esse gesto. Aqui, uma pessoa em lamentação grita, proclamando uma vitalidade desafiadora contra o vazio escuro da morte. A contraste nítido entre o vazio deliberado e as mãos levantadas, carregadas de positividade, lembra as palavras de Fu-Kiau, um Mu-Kongo: "Com este gesto, uma pessoa está enviando forças cintilantes (minienie), forças positivas, dos ancestrais para este mundo."[123] Em outras palavras, o sinal de êxtase faz da pessoa um conduíte, um vau através das águas, recebendo e compartilhando mensagens de felicidade e poder. É uma resposta, expressa no fraseado e elevação das mãos, ao desafio da encruzilhada, à presença da morte, à proximidade de Deus. 

152. Já em 1673, escrevendo sobre os negros na ilha de Barbados, Richard Ligon capturou um fragmento desse patrimônio comunicativo. Ele havia acertadamente notado a presença de cativos de “Angola” na ilha, bem como de escravizados vindos de Guiné, Bonny, Cacheu e Gâmbia. De forma perspicaz, ele escreveu sobre esse gesto entre os negros: “A maioria reconhece Deus, conforme transparece por meio de suas ações [...] [uma pessoa] olha para o céu em busca de retratação e levanta as duas mãos.”[124]

153. Em seu New and exact account of Jamaica (1740), Charles Leslie relatou o sacrifício de um porco em um enterro onde havia um homem batendo em um tambor, relembrando os sacrifícios de porcos e os tambores ngoma em funerais Kongo. Uma tigela de sopa havia sido colocada na cabeceira do túmulo e uma garrafa de rum na extremidade oposta.[125] Os detalhes da garrafa de rum e do sacrifício do porco são dignos de nota, pois Arna Bontemps - que mergulhou em narrativas de escravizados a ponto de incorporá-las em seu próprio manancial criativo -, ficou impressionado com gestos honoríficos idênticos, que caracterizavam os funerais negros tradicionais do continente. Ele os representou na forma de um enterro ficcional e hibridizado, em que descreveu cuidadosamente o gesto que contraria o vazio com vitalidade e afirmação: 

154. Para baixo, para baixo, para baixo; o velho Bundy já se foi. Ponha uma jarra de rum a seus pés [...] Asse um porco e ponha em sua sepultura [...] Eles haviam entoado uma canção sem palavras. Eles estavam ajoelhados com os rostos voltados para o sol. Suas mãos estavam no ar, os dedos separados [...] no lugar onde os dois mundos se encontram. [ênfase nossa].[126]

155. Stewart enfatiza o caráter afro-americano desse gesto: "Ele não é um aparte; é fundamental. Raramente vi brancos engajados nesse gesto, braços esticados, dedos abertos. Mas vi isso nos Estados Unidos negro, no Suriname, no Brasil e em Senegal.''[127] Isso sugere um reforço maciço. Dada a preponderância do impacto Kongo nos Estados Unidos, no entanto, é justo homenagear os detentores desta tradição com seu nome. De pessoas ajoelhadas e fazendo este sinal na fronteira entre os mundos, em Black Thunder de Bontemps, até o trabalho de outra artista, Eudora Welty, a documentação desse tesouro inestimável continua. Na década de 1930, Welty fotografou mulheres negras em uma igreja em Jackson, Mississippi. As mulheres estavam "falando em uma língua desconhecida." Muitos estavam em estado de êxtase; outros estavam ajoelhados no altar. E uma mulher, vestida de branco, fazia o familiar gesto com suas mãos [Figura 46].[128]

Dos ramos com garrafas Kongo às árvores de garrafa afro-estadunidenses

156. Do leste do Texas até a costa da Carolina do Sul, estende-se uma incrível tradição visual afro-estadunidense: as árvores de garrafa.[129] Eudora Welty as menciona em um de seus contos sobre o Mississippi: 

157. Na frente havia um pátio de terra limpa, com cada vestígio ou grama cuidadosamente arrancado e o chão marcado em espirais profundas pelos golpes da vassoura de Livvie. [...] contornando o caminho do corte profundo do Natchez Trace abaixo, havia uma fileira de árvores de murta de crepe desfolhadas, com cada um de seus galhos terminando em uma garrafa colorida, verde ou azul.[130] 

158. Terra varrida ao redor de habitações é algo comum nas Áfricas Ocidental e Central tradicionais. A árvore de garrafa em si é uma invenção crioula, derivada de fontes sutilmente misturadas. Mas voltemos à narração de Welty: 

159. Livvie [uma mulher negra] sabia que poderia haver um feitiço colocado nas árvores e ela estava familiarizada, desde que nasceu, com a forma como as árvores de garrafa impediam os espíritos malignos de entrarem em casa, atraindo-os para dentro das garrafas coloridas, de onde eles não podiam mais sair. Solomon havia feito as árvores de garrafa com suas próprias mãos ao longo dos nove anos, trabalhando cerca de um ano em cada árvore, e sem sinal de que tivesse qualquer desconforto em seu coração. Pois ele tinha tanto orgulho de suas precauções contra espíritos quanto tinha com relação à sua casa. Às vezes, quando banhadas pelo sol, as árvores de garrafa pareciam mais bonitas do que a própria casa. [ênfase nossa] [131]

160.  Árvores de garrafa do Mississippi não são apenas objetos rituais. São obras de arte cuidadosamente executadas [Figura 47]. O sol nas garrafas, visto contra o céu limpo, é, com efeito, deslumbrante. Na verdade, é tão deslumbrante que os vizinhos anglo-saxões se apropriaram desse costume e o converteram em seu próprio, misturando os galhos com garrafas de derivação Kongo com a imagem da árvore de Natal. Há, porém, diferenças nas duas tradições, sendo a versão negra mais afinada com o contorno orgânico do esqueleto da árvore, produzindo uma espécie de dança gestual das garrafas azul cobalto, verde ou de outras cores, nas pontas de seus galhos. Eudora Welty ilustra o modo negro em Simpson County, ao sul de Jackson, com um exemplo da década de 1930 [Figura 48].[132] Em contraste com essa forma, executada em murta de crepe e em outras espécies em um estilo que poderíamos designar de “garrafa-ramo,” a tradição anglo-estadunidense é um tanto diferente. James D. Martin, um morador do Mississipi que escreveu um cuidadoso estudo dessas manifestações, nos diz o porquê: "Os brancos valorizam os cedros como molduras das árvores de garrafa por causa de suas formas; eles gostam do fato do cedro ter muitos galhos ascendentes para colocar garrafas em exposição. Pelo mesmo motivo, os cedros são as árvores de Natal do Mississippi, e sua madeira é dura, durável e relativamente resistente ao apodrecimento."[133]

161. As árvores de garrafa anglo-estadunidenses no Mississippi costumam mostrar o efeito aparado e bem agrupado de um abeto natalino, enfeitado com esferas e outras bugigangas coloridas. Hubert Glenn, um anglo-estadunidense da cidade de Sarepta, localizada no norte do estado e ao sul de Oxford, misturou o brilho afro-estadunidense (os azuis, marrons e verdes brilhantes das garrafas que selecionava) com toques do Ocidente industrializado e do Cristianismo. No topo de uma de suas árvores, por exemplo, ele colocou um farol de automóvel e, sobre este, uma estrela de Belém de lata [Figura 47]. 

162. Mas, enquanto o Natal acontece apenas uma vez por ano, essa árvore dura o ano todo. Não há dúvida de que o costume de proteger quintais e residências de todo o mal com galhos enfeitados com recipientes de vidro veio do Kongo e de outros territórios culturalmente correlatos na África Central. A mimese da ideia central feita por brancos não pode esconder as origens desta tradição. O costume veio na memória dos negros do Kongo, via Nova Orleans, Charleston e Índias Ocidentais. Em algumas partes dessa última região, existem árvores de garrafa desde o final do século XVIII. 

163. L'Abbé Proyart, em sua história do Loango publicada em 1776, menciona o costume original de combinar galhos de árvores com recipientes, como ele viu na costa norte do Kongo: 

164. Todos, depois de terem cultivado seus campos, cuidam para afastar a esterilidade e os feitiços maléficos fixando na terra, de certa maneira, ramos de determinadas árvores, ornados com alguns pedaços de cerâmica quebrada. Eles fazem mais ou menos a mesma coisa na frente de suas casas, quando devem se ausentar por um tempo considerável. O mais determinado dos ladrões não ousaria cruzar a soleira dessas casas, quando as vê assim protegidas por esses misteriosos sinais.[134]

165. No Kongo, onde a cerâmica perfurada ou quebrada é praticamente um sinônimo da imagem do cemitério, e onde os especialistas em rituais são famosos por sua habilidade de fazer curas ou lançar maldições usando certos galhos e ramos, é óbvio para os iniciados o que "esses sinais misteriosos" comunicavam: a retribuição moral levada à cabo pelos mortos e espíritos, em cujo mundo a cerâmica perfurada ou quebrada é misticamente restaurada.  anos depois, o mesmo costume foi observado entre uma população afro-americana da ilha de Dominica, nas Índias Ocidentais. Em um livro publicado em 1791, Thomas Atwood ficou maravilhado com a convicção dos negros da ilha “no poder dos mortos, do sol e da lua [...] até mesmo no de varas, pedras e terra de túmulos penduradas em garrafas em seus jardins.”[135]

166. Mudanças sutis podem ser percebidas já aqui: um câmbio no uso da cerâmica - perfurada ou quebrada, a fim de liberar o domínio deste mundo sobre esses objetos e propiciar seu uso no outro mundo - para garrafas, presumivelmente ocidentais. Mas o uso apotropaico de terra do cemitério, intimamente ligada aos espíritos, para proteger os lares das pessoas e trazer boa sorte é um conceito Kongo profundamente arraigado.   

168. Entretanto, no próprio Kongo ocorreram mudanças semelhantes. Garrafas, jarras, bacias, faianças e louças importadas aparecem ou substituem as formas tradicionais de cerâmica. Um cemitério tradicional perto do que é hoje a cidade de Mbanza Ngungu, entre Kinshasa e Matadi, foi fotografado por R. P. Gérard em 1909-10 [Figura 49].[136] Sua foto mostra a exposição deliberada de garrafas e pratos perfurados ocidentais, pregados no tronco de uma árvore ou cuidadosamente fixados nas pontas de galhos propositalmente afiados. Trata-se de uma autêntica escultura de pratos em galhos semelhante a que Proyart relatou. Fu-Kiau explicou por que essas constelações de vidro e faiança, círculos e cilindros, são erguidas acima de uma sepultura: 

169. Você pode ver garrafas alçadas em postes acima de um túmulo em quase qualquer lugar nas aldeias Kongo tradicionais. Elas podem conter facas ou pregos. As garrafas erguidas (manika bwaata) são colocadas no alto, tal qual uma bandeira (tedimisa bwaata).

170. As garrafas podem conter vinho de palma, por intermédio do qual os vivos pedem ao morto [neste caso, um famoso taberneiro] que não leve consigo todas as suas habilidades para o outro mundo. Ou as garrafas podem estar cheias de óleo de palma, o que significa que um curandeiro morto está sendo solicitado a não levar todas as suas curas apaziguadoras e seus conhecimentos com ele para a sepultura, para que assim os vivos não sejam forçados a reaprender sua tradição por si próprios.[137]

171. No caso do túmulo perto de Mbanza Ngungu, o poder e a bênção do espírito da pessoa que possuía esses símbolos que foram alçados e perfurados à força são solicitados a ficar e, assim, continuar a inspirar e aumentar a fortuna dos vivos. A elevação interrompe o contato com o solo. Ela impede a partida de conhecimentos preciosos, acumulados como micropontos místicos, sobre esses pratos, garrafas e utensílios. Transladar esses gestos de elevação e de encapsulamento do cemitério para o jardim na frente de uma casa é algo realmente intimidador. 

172. James D. Martin lembra que as árvores de garrafa que viu em sua infância no Delta eram especialmente bonitas: “Lembro-me de uma estrutura azul ao lado do rio Yazoo [...] em sua maioria, senão inteiramente, azul e lançando uma sombra azul no quintal. Lembro-me da declaração de seu proprietário, firme e positiva, de que ela afastava os fantasmas do rio.”[138] Ele também foi informado por um negro que produzia árvores de garrafa perto de Oxford, na parte norte do estado, que a função principal dessas estruturas reluzentes era a captura de "assombrações." Esse último informante até revelou a Martin a fórmula para fazer árvores de garrafa: "Despeje tinta na garrafa escolhida a fim de cobrir totalmente seu interior, usando cores brilhantes para atrair os espíritos hesitantes; unte a boca da garrafa com um pouco de gordura para que eles entrem sem dificuldade; e arrume as garrafas em uma árvore em um local ensolarado para que a luz da manhã destrua os espíritos malignos nelas presos."[139] Em uma estrada para a cidade de Bruce, ao sul de Oxford, no condado de Calhoun, uma árvore de garrafa muito elaborada foi encontrada, contendo duzentas e vinte e cinco garrafas, de diferentes formas e tamanhos. Mas a maioria dessas estruturas incorpora uma quantidade bem menor de receptáculos.[140]

173. O costume está também relacionado a formas improvisadas de arte ao ar livre na América negra e nas Índias Ocidentais. Roger Abrahams revelou que, na ilha de Nevis, negros amarram placas de metal e objetos em árvores para produzir "relâmpagos."[141] Em sua própria reinterpretação dessa tradição, o falecido Henry Dorsey, um artesão afro-kentuckiano de grande talento, ergueu no ar objetos que tinham a ver com movimentos giratórios. São emblemas de movimento e de revolução, estruturas do mundo industrial que obviamente o desafiavam [Figura 50].[142] Perto de Killen, Alabama, há um notável homem negro que vive sozinho e que, por razões secretas próprias, pregou chinelos e outros objetos no tronco e nos galhos de uma árvore diante de sua casa.[143] Estas são faíscas privadas, produzidas pela colisão de uma maciça continuidade Kongo e Angola com as percepções criativas dos negros estadunidenses.

Revelações de uma quarta dimensão: túmulos Kongo-Atlânticos

Como pretensas epifanias de experiências extrassensoriais, os Readymades pressupõem a existência de um "metamundo" que Duchamp descreveu como "quadridimensional." Ele explica que, se uma sombra é uma projeção bidimensional de uma forma tridimensional, então um objeto tridimensional deve ser a projeção de uma forma quadridimensional. Assim, o objeto mais simples contém a possibilidade de uma revelação.

- William S. Rubin. Dada. Surrealism and Their Heritage. 1968

Os membros de um dos clãs podem ir ao cemitério para pedir a seus ancestrais que venham em seu auxílio e lhes comuniquem, por meio de sonhos, a solução.

- Kimpianga Mahaniah, La Mort Dans la Pensée Kongo. 1980

174. O poder dos túmulos Kongo e dos de negros estadunidenses, que herdam um conjunto de influências formais originárias do Kongo e Angola [Figura 51, Figura 52, Figura 53, Figura 54, Figura 55 e Figura 56], deriva do além, que é indicado pelos objetos que os adornam. Uma árvore mbota, plantada no túmulo de um ancião, é uma indicação perene do mundo sob suas raízes; pedaços de tubulações de ferro ou cerâmica sugerem, da maneira similar, viagens subterrâneas, através da água; uma concha branca representa o tempo e o cosmos na forma de uma requintada miniatura espacial, mas também indica “o branco,” o mundo dos ancestrais abaixo ou além do mar.

175. Assim ornamentados, os túmulos Kongo tornam-se earthworks rituais, portas conceituais para outro universo, um campo intrincado de signos mediadores. A função desses signos, às vezes materialmente simples mas conceitualmente muito ricos, antecipou alguns dos objetivos da arte moderna ocidental, especialmente aqueles expressos por Marcel Duchamp. Existem potentes analogias entre os "readymades" de Duchamp e alguns dos objetos colocados sobre os túmulos Kongo e afro-americanos - relógios parados, telefones com seus receptores fora do gancho, guidões, âncoras e muitas outras coisas. Pois, como Duchamp, os Bakongo procuram impor uma quarta dimensão à tridimensionalidade das coisas comuns. No entanto, a colocação de uma máquina de costura [Figura 57][144] ou de um guarda-chuva sobre um túmulo Kongo gera mais do que surpresa estética ou potencialidade expressiva por meio de justaposições incomuns. Quando tais objetos foram as últimas coisas usadas pelo morto, acredita-se que eles ficam impregnados com traços de seu espírito e podem ser usados ​​para persuadi-lo a franquear seus talentos, em sonhos e inspiração, para o benefício de seus descendentes, como na epígrafe citada no início desta seção.

176.  Em suma, a arte Kongo para os mortos impõe a sabedoria e o brilho do mundo do quarto momento do sol - o meio-dia dos mortos, quando é meia-noite em nosso mundo - sobre objetos iluminados pelos três primeiros momentos - o intervalo de tempo que define o arco da vida de uma pessoa. Com efeito, as decorações dos túmulos Kongo impõem múltiplas dimensões em formas e gestos aparentemente simples. Como vimos, essas dimensões no Kongo incluem medicina, direito, urbanidade, poder ideográfico de expressão e mediação.

177. Assim, fazer incisões na forma de losangos ou perfurações deliberadas do mesmo formato na lateral de uma lápide de terracota [Figura 58], por exemplo, serve para atravessar a materialidade dos objetos assim tratados. Isto os conecta aos seus duplos espirituais, onde todos os vazios são preenchidos na completude do círculo do sol, no reino dos mortos. Até mesmo ficar de pé, como um sacerdote ou uma mulher importante, na clássica pose Kongo, com a mão esquerda nos quadris e a direita estendida, girando ou brandindo um bastão, se refere, como diz MacGaffey, a ficar em pé em um sentido cosmográfico, em uma quarta dimensão. De pé dessa maneira, a pessoa incorpora o eixo norte-sul, o eixo do especialista em rituais, a linha que indica a fonte dos ventos que trazem tempestades particularmente violentas, tembo bia nganga.[145]

178. Uma vez que a persistência e a importância de uma tradição clássica são definidas em termos da riqueza dos valores associativos agrupados em torno de suas expressões mais apropriadas, fica claro como e por que a arte Kongo para os mortos sempre muda, mas ainda assim permanece a mesma. Ela pode incorporar qualquer número de novas expressões para efetivar os antigos gestos de poder e realização espiritual. Não importa que a técnica de fazer figuras niombo aparentemente tenha se perdido no trânsito Atlântico para as Américas. O mesmo tópico, o do retorno espiritual - que poderia ser resumido pintando a emblemática espiral de uma concha no peito de uma daquelas grandes figuras de pano vermelho no norte do Kongo -, é produzido de forma igualmente potente pela colocação de uma concha real nas superfícies dos túmulos em cemitérios negros no Texas, Missouri, Geórgia, Carolina do Sul, Delaware e em outras partes do Sul estadunidense. E não importa se o costume de esculpir bitumba ou mintadi se restringe a um determinado tempo e espaço no Kongo. O mesmo júbilo relativo à presença espiritual e vigilância, primorosamente miniaturizado, poderia ser invocado no Kongo [Figura 55] ou na Carolina do Sul [Figura 56] colocando, sobre o túmulo, estatuetas chinesas de porcelana associadas às pessoas falecidas.[146] Tais estatuetas tornam-se, assim, substitutas dos mintadi no mundo Kongo-Atlântico. 

179. Em termos da temporalidade Kongo, o desaparecimento da estrutura social e dos conjuntos de instituições que deram origem às elegantes lápides de terracota maboondo não é importante. No Kongo, a eterna associação dos processos judiciais com a morte podia ser simbolizada chamando os processos de bulu - perfurações feitas nas coisas. Essa mesma imagem da morte e do fim das coisas neste mundo pode ser indicada perfurando o fundo de uma caneca de porcelana ordinária, a ser depositada sobre um túmulo [Figura 59]. Símbolos idênticos de quebrar a concha da vida, reforçados por concepções, crenças e práticas semelhantes entre outras civilizações da África Ocidental e Central, deram origem à quebra ritual do fundo de copos, canecas, jarras e xícaras colocadas em cima de túmulos afro-estadunidenses [Figura 60]. E, finalmente, os gestos de cercamento (fazer luumbu) e incorporação (evocando os nkondi), que estão intimamente entrelaçados na feitura desses recintos encantados para os mortos, adquirem uma lógica de travessia criativa do tempo e do espaço. Assim, garrafas embutidas no Kongo [Figura 54] transfiguram-se em uma única peça de cerâmica embutida em um túmulo no oeste da Carolina do Sul [a peça mais distante do observador na Figura 53].[147] O luumbu de garrafas da Figura 54, a meio caminho entre as paliçadas do antigo Kongo e as paredes de concreto das tumbas do Kongo moderno, dá lugar a blocos de concreto no oeste da Carolina do Sul. Essas paredes de garrafas invertidas ainda marcavam túmulos na vizinha Geórgia até 1950. E equivalentes de decorações de túmulos Kongo como kinzu (chaleiras de ferro) e nsu mpembe (imagens de galinhas brancas) continuam a ser usados ​​na Carolina do Sul do final do século XX. 

180. Assim, a arte tumular Kongo e outras por ela influenciadas, ligadas a duradouras ideologias de mediação e legitimidade, exibe sua própria lógica de persistência, transcendendo tempo, lugar e classe. Seu notável poder de auto-abstração, compactando e remodelando acalentadas percepções, elevou-se acima dos traumas da escravidão, do imperialismo, da independência e mesmo dos desafios e alarmes que marcam nosso século.

181. Já observamos a transformação da arquitetura de concreto moderna em novas expressões de certeza atemporal nos túmulos de importantes Bakongo desde a Primeira Guerra Mundial. Agora, acrescentamos a essa evidência de resiliência a incrível difusão de influências semelhantes, dos portos escravistas originais de Annapolis, Charleston, Nova Orleans e outros lugares, para vastas porções dos Estados Unidos ao longo de rios, trilhas e ferrovias do antigo Sul Profundo. O resultado foi o surgimento de uma forma fundamental de arte estadunidense influenciada pela África. As memórias de Mbanza Kongo e dos tribunais de nobres e plebeus podem ter se perdido à medida que a etnicidade Kongo se confundia com afirmações culturais afro-estadunidenses mais genéricas. Mesmo assim, a concepção do túmulo como um amuleto animado, servindo de mediação para com os espíritos, permaneceu intacta. De modo semelhante, sobreviveu a crença de que o monte de terra sobre sepultura estava unido ao espírito dentro dela. Na delimitação de muitos túmulos afro-estadunidenses com uma fileira de conchas ou vidro, constatamos também vagos ecos do conceito de túmulo como pátio ou cercamento. O mais impressionante é a continuidade de um conjunto de signos que advertem o espírito dentro do cercamento, e abaixo da terra, com ênfase em antigas moedas.

182. As fontes para nossa avaliação preliminar da influência artística Kongo sobre os cemitérios negros do Novo Mundo necessitam ser explicitadas. As ligações entre o Kongo e a Estados Unidos são discerníveis não apenas na literatura de viagens no Sul Profundo durante o século XIX e às vezes antes, mas também na literatura correspondente referente ao Caribe - em particular ao Haiti -, aonde muitos negros chegaram do Kongo e de Angola durante o século XVIII. Os haitianos usam alguns dos mesmos símbolos que os Bakongo na decoração de seus túmulos: árvores, conchas e casas em miniatura. Além disso, às vezes eles consideram esses elementos de um modo que é exatamente congruente com os argumentos Kongo. Isso é crucial se lembrarmos dos conhecidos e bem documentados contatos entre a cultura artística dos negros haitianos e a de Nova Orleans, efetivados por meio de migrações no início do século XIX.[148]

183. Em tudo isso, o símbolo principal da consciência inclusiva diz respeito à definição do túmulo como um amuleto (nkisi) para intimidação moral e transcendência espiritual. Lembremos que a essência de um nkisi no Kongo é o aprisionamento do espírito dentro de um recipiente apropriado, em meio a terras espiritualmente impregnadas, além de elementos de admoestação que comunicam ao espírito, por meio de formas, trocadilhos e gestos, o que ele deve fazer ou não fazer para seu(s) dono(s).

184. Os túmulos Kongo e seus correlatos literalmente encerram o espírito na terra. Acredita-se que essa terra esteja impregnada de poderes místicos, o que é confirmado, nos Estados Unidos negro, por uma miríade de amuletos cujo ingrediente principal é a chamada goofer dust, a terra retirada da superfície de uma sepultura. Este nome deriva do termo quicongo para uma pessoa morta, kufwa. Assim, o túmulo funciona como um tribunal invisível de última apelação, onde uma pessoa que sofreu uma humilhação pode recorrer aos seus ancestrais e pedir-lhes que vinguem, misticamente, seus algozes. Da mesma forma, nos Estados Unidos, diz-se que uma mulher negra, se preocupada com o alcoolismo do marido, pode ir ao cemitério e marcar seu túmulo com a medida de uma de suas vestes. Em uma extremidade desse eixo, ela crava uma estaca, como se fosse a cabeceira de uma cama; na outra extremidade, ela crava outra estaca como estribo. Ao fazer isso, ela desperta o espírito na terra do cemitério, assim como a alma de um nkondi é despertada pelo martelar de pregos e lâminas [Figura 61].[149] O espírito então literalmente adquire o tamanho do cônjuge que se comporta mal e que faria bem em corrigir seus modos imediatamente. Pôr o espírito (simbolizado pela terra do cemitério) em contato com uma pessoa (por meio da medida de sua vestimenta) exemplifica o direcionamento do primeiro na confecção de um amuleto. Concentrando-nos nestes princípios organizadores - incorporação e admoestação do espírito -, podemos compreender o fluxo de outros elementos da tradição Kongo-Atlântica. 

185. Vamos nos concentrar, portanto, em oito elementos de admoestação do espírito nas sepulturas Kongo: (1) a árvore plantada, com usos correlatos como a instalação de troncos ou árvores como “faróis” ou “vaus” para o outro mundo; (2) tubulações, de todos os tipos, que reafirmam a metáfora da viagem canalizada através dos mundos: (3) o conceito de cercamento (luumbu): (4) conchas, que espacializam o tempo e indicam a jornada em espiral ao mundo do além, bem como estabelecem trocadilhos com a ideia de persistência: (5) espelhos, vidro, fogueiras e lâmpadas; (6) captura do espírito nos últimos objetos usados por uma pessoa ​​(kanga mfunya); (7) o tema da galinha branca (nsusu mpembe); e (8) emblemas modernos de mediação.

(1) O emblema da árvore plantada

186. No Kongo e nos Estados Unidos negro, árvores são plantadas diretamente sobre túmulos para expressar ideias de imortalidade e durabilidade. Há, de fato, toda uma coleção de árvores no Congo, cada uma com sua nuance simbólica especial, que emerge dramaticamente em contextos funerários. Assim, por exemplo, a árvore mbota, famosa por sua madeira extremamente dura, sugere a robustez dos espíritos dos ancestrais e resistência às forças do tempo. Tais associações podem ter reforçado o uso correlato do cedro nos Estados Unidos negro como madeira preferida para estacas e cabeceiras de camas. Árvores mfuma são plantadas sobre túmulos da realeza no Kongo, se valendo de trocadilhos verbais para ordenar ao rei (mfumu) que busque a energia (fuma) primordial, segundo o ditado que diz: “Aquele que está em contato com a origem permanece vivo” (mu kala kintwadiya tubu i mu zinga).[150]

187. No caso de pessoas comuns, uma árvore pode ser plantada para orientar o espírito a seguir suas raízes, que indicam a direção do reino dos mortos: “Esta árvore é um sinal do espírito a caminho da terra dos antepassados” (nti wau sinsu kya mooyo ku mpemba).[151]

188. Consideremos o túmulo de um chefe Kongo do século XIX, fotografado perto da estação missionária de Mukimbungu, cerca de trinta quilômetros a sudoeste da importante cidade de Luozi, no rio Kongo [Figura 62]. A fotografia revela três túmulos, um no primeiro plano e dois no segundo. Todos são ancorados misticamente e emanam um sentido de eixo cosmográfico por conta das árvores sobre eles plantadas, que indicam a consciência ancestral das analogias que ligam árvores a pessoas. O túmulo em primeiro plano é cercado por um círculo de bacias brancas, furadas e postas de cabeça para baixo. Elas são furadas justamente para indicar sua união com a concha quebrada do corpo do morto; elas estão de cabeça para baixo para comunicar o poder desagregador da morte; e elas formam um círculo para encerrar o espírito do chefe dentro de um luumbu. Um rico depósito de canecas e garrafas dentro do cercamento profere mensagens de preocupação e amor: que o chefe, seguindo as raízes das árvores, possa ir a Mpemba em felicidade e contentamento, e assim trazer sorte e fortuna aos seus descendentes. Logo, os objetos reunidos focam sobre o ponto de entrada de suas mensagens para dentro do outro mundo, por meio dos poderes mediadores das árvores.

189.  A persistência dessa concepção nos Estados Unidos negro foi observada no século XIX. Em suas Letters of a traveller (1850), William Cullen Bryant registrou o fato de que um cemitério de brancos na Carolina do Sul era localizado perto da cidade, enquanto os negros enterravam seus parentes “perto de uma floresta [...] [onde] algumas árvores, cobertas com longo musgo, erguem-se acima de centenas de sepulturas sem nome.'”[152] Até hoje, os túmulos mais espetacularmente tradicionais na Geórgia e na Carolina do Sul negras costumam ser localizados perto de - e, em alguns casos, até mesmo escondidos por - bosques ou aglomerados de floresta. Eugene Aubin ilustrou a dramática presença de uma árvore mapou sobre um túmulo na planície de Leogane, no sul do Haiti, no início deste século. Na península sul do Haiti, onde as influências Kongo são fortes, existem cemitérios do século XIX ou do início do século XX, onde túmulos aparecem sob imponentes árvores [Figura 63], alguns deliberadamente aninhados em suas raízes. Nesses cemitérios, diz-se que as árvores honram e fornecem sombra aos mortos. De modo ainda mais importante, elas representam, como no Kongo, a persistência do espírito: “As árvores em sepulturas no Haiti lembram o fato de que elas sobrevivem para além de nós, de que a morte não é o fim."[153]

190. Uma fascinante pintura de Rigaud Benoit, intitulada The Recall of the Dead, datada de 3 de junho de 1973 [Figura 64], é um poderoso documento sobre o papel das árvores com relação aos mortos no Haiti. Em seu catálogo de pintura haitiana, Pierre Apraxine explica alguns dos significados desse ritual, que é mostrado se desenrolando perto das raízes de uma árvore junto às águas - que, na consciência haitiana, dividem nosso mundo do além:

191. As almas, respondendo à invocação do hougan [sacerdote] e usando as águas como porta de entrada, passam do abismo para os govis, ou vasos de barro, dentro dos quais serão mantidas e adoradas no altar da família.[154]

192. Sacerdotisas desenrolam as bandeiras que portam, como sinais de mediação espiritual e de respeito pela chegada dos mortos. A agitação do tecido na fronteira entre os mundos lembra fortemente o costume Kongo de nikusa minpa, “balançar ou agitar pedaços de tecido,” a fim de abrir a porta dos mortos com um sinal de saudação e respeito.[155]

193. Mas o protagonista desta pintura é a árvore. Ela indica “o ponto,” a porta entre os mundos. Suas raízes, literalmente embebidas em poder espiritual e sobrenatural, ecoam nas formas de seus ramos desfolhados, que buscam o céu. A árvore é uma pessoa. Ela é também uma concha, abrindo-se para um vazio estígio no centro de sua verticalidade. Uma parte de seu tronco parece assumir as características humanas de um rosto, que é, na verdade, um crânio, de cujas cavidades oculares emergem raízes ou ramos. A majestade do olhar artístico de Benoit permitiu-lhe, como praticamente a nenhum outro pintor do Haiti, discernir as qualidades que identificam, na imaginação haitiana, uma árvore como um sentinela, uma pessoa e um caminho para os mortos. Tal qual um diboondo sobre um túmulo, a árvore é, na verdade, uma concha quebrada, cujas formas rimam com a da cruz e das duas casas com paredes partidas mais ao fundo, que de fato agem como túmulos ou cercamentos simbólicos para o espírito invisível.

194. Embutida na estrutura da árvore está uma inteligência cosmográfica que continua a ser enfatizada no paisagismo ritual de alguns cemitérios afro-estadunidenses. Além disso, em contraste com empregos meramente decorativos, o uso ritual de árvores em comunidades negras dos Estados Unidos foi por vezes explicitamente explicado ou fundamentado. Notemos este exemplo oriundo de Hazelhurst, no Mississippi: "No funeral, os pregadores têm a oportunidade de proferir seus sermões cuidadosamente compostos. É então que uma árvore de folhas perenes é plantada sobre a sepultura. Tais árvores são identificadas com os que partiram e se florescem, isso indica que tudo está bem com as almas."[156]

195. Existem inúmeros exemplos de tais arranjos nos Estados Unidos. Em um cemitério perto da costa da Carolina do Sul, o túmulo de Lenard Johnson (1836-1923) é presidido por um pinheiro, torcido pelo vento, que há muito rompeu o pote de metal em que foi plantado e hoje se eleva, com ímpeto, do meio do túmulo. No mesmo cemitério, há um pinheiro plantado na cabeceira de uma sepultura em novembro de 1975. Tais tradições se difundiram por toda a parte leste no sul dos Estados Unidos e se estenderam até o Texas e outros estados do sudoeste. Assim, em Dallas - onde os primeiros escravizados teriam chegado em 1847, com a família Miller do Tennessee -, o L. Butler Nelson Memorial Park, um cemitério negro, tem várias árvores plantadas a poucos centímetros das lápides [Figura 65].[157] Neste cemitério, não há como deixar de perceber a correlação entre árvores e espíritos imortais, pois são muito frequentes as lápides acompanhadas por tais imponentes presenças vivas.

196. Chegamos agora às estruturas semelhantes a andaimes, feitas de toras, que no século XIX eram usadas como "faróis" erigidos em colinas, para guiar os carregadores no que hoje é o Baixo Zaire. Estruturas semelhantes, algumas sendo autênticas carruagens [Figura 66], são encontradas sobre túmulos, possuindo conotações claras de apontar o caminho para o outro mundo.

197.  Esse tipo de estrutura se eleva sobre dois túmulos afro-estadunidenses em um desenho publicado em A zig-zag journey in the sunny South, de Hezekiah Butterworth, datado de 1887 [Figura 67]. O sítio representado, no norte da Flórida, data provavelmente da primeira metade do século XIX e revela uma extraordinária riqueza de influências Kongo e Angola. Segundo informantes Bakongo, a estrutura em andaime desenvolve o tema da "chama" como emblema da mediação espiritual. Além disso, alguns informantes insistem em uma interpretação ligada à mumificação, o que conecta essa estrutura afro-floridiana à prática de certos povos Bantu que “por vezes colocam o corpo em uma plataforma em uma árvore para que seque, em uma espécie de mumificação, cujo propósito é assegurar a imortalidade do corpo para uso no outro mundo."[158] Mas não há como provar, a partir desse único desenho, se tal prática realmente existia entre os negros dos rios do nordeste da Flórida durante o século XIX, mesmo em assentamentos de escravizados fugitivos nos pântanos isolados.

198. Por outro lado, uma riqueza de outras influências surge neste desenho: depósito de bens pessoais quebrados; alimentos postos em um recipiente, para uso no primeiro dia no outro mundo; e, o mais impressionante de tudo, um exemplo da tradição ntadi no Novo Mundo negro: uma imagem sentada em uma pose de luto, com as mãos nos joelhos. Além disso, o hasteamento da pele de uma raposa, como uma espécie de bandeira, pode ser diretamente comparado com o hasteamento de bandeiras feitas com a pele de gatos selvagens nos túmulos Kongo. Isso é também comparável com o hasteamento da tanga honorífica feita de pele de gato (mbati), à qual sinos (dibu) normalmente eram fixados e que serviu como indumentária da nobreza Kongo durante séculos, como mostrado em ilustrações nos volumes de Olfert Dapper, de 1668 [Figura 68] e de Degrandpré, de 1786-1787 [Figura 69].

199. Diz-se que pendurar uma pele ou um tecido em uma haste acima de um túmulo originalmente indicava a contenção do mal. Esse costume está relacionado à colocação de garrafas em galhos no Kongo e em árvores no Velho Sul estadunidense, pois o espírito do morto era assim conduzido a perseguir o mal, como um gato selvagem movendo-se durante a noite, ou como um cão de caça, identificado por seu sino dibu. Era uma imagem de fusão, mesclando nobre, Ieopardo, gato selvagem, cão e sino.[159] Aqui, a perseguição mística do mal é expressa pela metáfora de uma raposa que se move atrás de sua presa durante a noite. Um bico ou garra suspensos no andaime pode representar uma versão crioula do amuleto nkisi a kibinda, que, com a ponta de uma garra ou de um bico (koto), flagela os inimigos com doenças.[160] Trata-se, portanto, de um gesto de proteção.

200.  No Kongo, o costume de pendurar peles de gatos selvagens sobre túmulos evidentemente desapareceu, mas a mesma admoestação aos nobres mortos, para que mediem entre mundos e, como um leopardo, cacem todo o mal a ser destruído, permanece em vigor por uma transferência sutil no sistema de codificação. Hoje, essa advertência espiritual continua a ser feita pontilhando paredes com manchas de leopardo, atrás de figuras humanas em pé, ou outros tipos de decoração, que acrescentam assim o poder e a graça da mediação feita por felinos à aura de transferência e retorno. Nosso exemplo, na Figura 70 foi fotografado cerca de trinta e cinco quilômetros a leste de Tshela, em território Yombe, na primavera de 1976. 

(2) Tubulações

201. Os túmulos de alguns chefes Kongo eram encimados por uma tora que sinalizava uma ponte entre os mundos, suspensa em um monte de pedras [Figura 71]. A "ponte"-tora era chamada de mwinga, uma palavra que se refere a um talo que sobrevive em pé em uma pradaria após um incêndio, simbolizando, portanto, resiliência.[161] Mwinga também se relaciona com mukookolo, “uma ponte formada quando uma árvore cai sobre a água ou um riacho.”

202. Por extensão lógica - talvez reforçada por um trocadilho ligando a palavra para ponte (mukookoo) à palavra para tubo (nkoka) -, a haste oca de um instrumento para fumar também passou a conotar o contato entre dois mundos: "O tuyau (mpimpa) é algo por meio do qual os mortos projetam seu espírito e mensagens do mundo de baixo chegam ao mundo superior."[162] Finalmente, existe também a imagem do rei fumando seu cachimbo e misticamente registrando, ou absorvendo, pensamentos ancestrais por meio da fumaça.

203.  Há uma reconstituição notável desses traços nos Estados Unidos negro: "Se um espelho refletir um cadáver, ele reterá o espírito do morto e o impedirá de sair da casa; o mesmo acontecerá com a fumaça de um cachimbo ou do fogo que arde na chaminé."[163] A imaginária do espírito passando como fumaça canalizada ou água por tubulações nos prepara para as inúmeras sepulturas de negros nos Estados Unidos decoradas com pedaços de tubo de ferro ou cerâmica ou, às vezes, acessórios completos de encanamento. A frequência com que encontramos decorações desse tipo no Velho Sul não nos permite supor que tais tubulações tenham sido deixados nas sepulturas de modo acidental. O fenômeno é muito difundido, de Staten lsland, em Nova York [Figura 72], passando por Delaware, no Missouri [Figura 73], e Virgínia, até as Carolinas, onde um túmulo [Figura 74] exibe vasos de flores de cabeça para baixo, comunicando o ponto de vista do mundo subterrâneo, e um pedaço de encanamento, indicando resiliência e o fluxo da água. Em Dallas, no Texas, a imagem da resistência ao tempo é expressa de três maneiras: por meio de uma sólida pedra, de uma árvore plantada e de seções eretas de encanamentos. Durante seu trabalho de campo na Virgínia durante o verão de 1980, Gregory Stringfellow encontrou um notável túmulo em Norfolk, feito de acessórios para encanamento [Figura 75] que, nesses ambientes sagrados, libertem-se do discurso utilitarista. Eles estão ancorados em dimensões onde o fluxo do espírito e o contato entre os mundos se tornam uma possibilidade, através da passagem da água, tal qual uma concretização em miniatura do mítico rio Jordão.

(3) O conceito do Luumbu

204. O conceito de cercamento [Figura 76 e Figura 77], que sempre foi uma metáfora forte no Kongo, conceitualmente protege o morto de forças externas e os vivos das emanações de poder do morto.

205. Na construção de santuários especiais para os ancestrais (minzo a bakuu), no século XIX e no início do século XX, os troncos das árvores senga eram cortados em segmentos longitudinais para construir uma paliçada em miniatura. Deleval documentou tal solução na terra Yombe e a fotografou em 1908 [Figura 78]. Ela é feita de pedaços de senga, sendo que o nome do material compõe um trocadilho com a noção de reflexão séria (senga, "deitar de costas" e pensar sobre o que se deseja dizer aqui, diante desta casa) e de desafio peremptório para o visitante. O impacto de tal paliçada é claro e forte na imaginação tradicional. As imagens neste cercamento representam os antepassados, senhores do luumbu, em seu espaço privilegiado, “porque nem todos têm o direito de falar com o rei.”[164]

206. Aproximadamente do mesmo período e na mesma área, existe outro santuário ancestral [Figura 79] que ilustra claramente uma dupla formulação do motivo do luumbu, primeiro como uma parede externa tradicional de senga, depois como um cercamento interno de garrafas de vinho europeias.

207. A posterior miniaturização da ideia de um muro de proteção chegou às Américas, onde se espalhou como uma manifestação de proteção espiritual, em que o cercamento do jardim era tão importante quanto o túmulo. Da autobiografia de James Weldon Johnn vem esta vívida lembrança:

208. Lembro que flores cresciam no jardim da frente e que, ao redor de cada canteiro de flores, havia uma cerca de garrafas de vidro de várias cores, enfiadas no chão com o gargalo para baixo. Lembro-me que uma vez, enquanto brincava na areia, fiquei curioso para saber se as garrafas cresciam ou não como as flores, e comecei a desenterrá-las para descobrir. Tal investigação me rendeu uma surra terrível, que fixou indelevelmente o incidente em minha mente.[165]

209. Assim, um gesto com intenção exteriormente decorativa aparentemente também ocultava uma proteção contra o mal. Outras evidências para tal interpretação vêm do Texas: “Quando usado em túmulos, o vidro mantém os 'espíritos malignos afastados’ ou 'afasta o espírito do morto’.”[166] Este comentário lembra a dupla função do luumbu acima referida.

210. Há um magnífico exemplo de um túmulo cercado por conchas na costa nordeste da Carolina do Sul [Figura 80]. Fixado como uma embarcação transparente através da qual a grama desta área alagadiça penetra, o cercamento de conchas envolve um eixo interrompido, composto por outras conchas e flores. Este eixo interno é cravejado de sinais de amor (as flores), ao mesmo tempo em que traça uma linha que guia o espírito, com respeito e honra, para o outro mundo.

(4) Conchas

211. A cobertura de conchas neste túmulo da Carolina do Sul nos conduz à discussão de um dos temas primordiais da metafísica Kongo. No Haiti, onde as mesmas influências filosóficas estão presentes, encontram-se belas e impressionantes conchas sendo usadas para adornar as superfícies de túmulos e sepulturas [Figura 81]. André Pierre, um sacerdote da religião popular do Haiti e um dos pintores mais ilustres de seu país, comentou sobre o significado deste elemento: “Conchas simbolizam a existência do espírito no mar; o corpo está agora morto, mas o espírito continua seu caminho. A concha engloba elementos de água, terra e vento. É um mundo em miniatura. Ela simboliza a animação das gerações seguintes pelo espírito dos ancestrais. Aponta para a ilha no mar para a qual todos iremos viajar.''[167]

212. Ao investigar os significados dos túmulos negros em White Bluff, Geórgia, no verão de 1950, Simon Ottenberg descobriu que, para um informante, moldar o monte de terra sobre uma sepultura era um ato de comunicação com os mortos: “Algumas pessoas acumularam pilhas de sujeira em cima das sepulturas novamente. Ele não achava que isso era certo. Não era respeitoso. Era como tocar os mortos.”[168] Mas, no túmulo da Carolina do Sul que acabamos de observar, e em muitos outros como este, tal “regra” foi quebrada. Restabelecer o monte de terra e sobre ele colocar uma cerca de conchas admoesta o espírito com uma mensagem complexa de preocupação, proteção, reclusão e imortalidade.

213. No Kongo, as conchas implicam a imortalidade por meio de um trocadilho fundamental, ligando zinga ("concha em forma de espiral '') com zinga ("viver muito"), e dão origem aos seguintes conceitos, que tem uma oração a eles associada:

214. Mbamba é uma grande concha do mar. Encontrando muitas dessas conchas. as pessoas antigamente as consagravam [aos] seus bisimbi. Elas escondiam suas almas nas conchas e as enterravam na floresta, com apenas as pontas aparecendo acima do solo, e as tratavam da seguinte forma: “Tão forte quanto essa sua morada, você preservará minha vida para mim. Quando você partir para o mar, leve-me junto, para que eu possa viver para sempre com você.”[169]

215. Comparemos isso com uma recapitulação afro-estadunidense da essência desses padrões de crença, no seguinte exemplo oriundo de St. Simons Island, na Geórgia:

216. As conchas representam o mar. O mar nos trouxe, o mar nos levará de volta. Portanto, as conchas sobre nossos túmulos representam a água, os caminhos da Glória e a terra da morte.[170]

(5) Espelhos, vidro, fogueiras e lâmpadas

217. Os especialistas em rituais Bakongo costumavam incorporar a brilhante e iridescente carapaça de um tipo específico de besouro[171] em seus amuletos, como “algo cheio de luz, como água, através da qual se pode olhar o outro mundo.''[172] Mais tarde, quando os espelhos ocidentais importados (tala-tala) replicaram exatamente esse efeito poderoso, o conceito se aprofundou em extensão e tradução materiais. Todavia, nos amuletos originais com carapaças de besouro, a ideia do brilho do espírito fundiu-se com a noção de segunda visão, por meio de um voo simbólico, nitidamente miniaturizado através da inserção das asas do inseto. O significado do voo era "expandir a visão do além" (vila mu bangula bweno a ku mpemba).[173]

218. Intimações da Glória em objetos cintilantes e a incorporação do espírito neles se tornaram um fundamento espiritual na feitura dos amuletos afro-estadunidenses. Uma miríade de "mãos" ou "Tobys" envolve um núcleo de pó branco; cajados encantados[174] incluem strass ou algum outro tipo de material brilhante. Observemos este exemplo do Missouri negro: "Uma ‘luck ball’ mais complicada foi feita para Charley Leland [...] dentro dela foi colocado papel alumínio (representando o brilho do pequeno espírito que estaria na bola)."[175] Além disso, Julia Peterkin apontou que: “Espelhos atraem raios e lançam feitiços sobre aqueles que contemplam suas próprias imagens. Se um espelho refletir um cadáver, ele reterá o espírito do morto e impedirá que ele saia da casa."[176] Assim, na costa da Geórgia (como no Kongo moderno), espelhos ou vidro são retirados da casa do morto e embutidos em seu túmulo ou, às vezes, em sua lápide [Figura 82]. Isso mantém o espírito a uma distância segura dos vivos. Notáveis ​​equivalentes de espelhos também surgiram, como os faróis de automóveis colocados dentro de uma lápide no condado de Oldham, Kentucky, ou na Geórgia [Figura 83]. Este último monumento, como as asas encantadas de um besouro inseridas em um amuleto Kongo, imediatamente prende o espírito com sua luz e seus indícios de movimento rumo ao outro mundo.

219. Crenças semelhantes animam o embelezamento de túmulos com tinta de alumínio brilhante, na Virgínia, e provavelmente explicam uma prática testemunhada em muitos túmulos negros do Sul. Em um relatório sobre a Igreja Metodista Mt. Sion em Jacksonville, Flórida, podemos ler: "Em todos os túmulos novos, o envoltório dos vasos de flores - uma folha verde - tinha sido virado para o lado reverso, que era de um branco prateado brilhante. As folhas faiscavam brilhantemente e chamavam a atenção para os túmulos."[177]

220. A ideia da proximidade espiritual no brilho e na iluminação deu origem a outro costume Kongo: acender fogueiras em certos túmulos para conduzir as almas para o outro mundo. Comparemos isso com o costume negro-crioulo, no Sul Profundo, de colocar chaminés de lamparinas sobre os túmulos. Os negros do Texas dizem que "isso conduz o falecido à Glória." Um negro do Alabama afirma que chaminés de lamparinas são postas nas sepulturas porque "fornecem luz na hora da morte." Mary Jackson, uma mulher negra de Dallas, diz que lamparinas identificam especificamente os túmulos de pessoas que morreram à noite: "Nunca vi uma inteira sobre um túmulo, pois apenas o espírito de luz, simbolizado por um fragmento de lamparinas, é importante para o fantasma [ênfase nossa].”[178]

221.  Na plenitude dessa tradição, surgiram túmulos impressionantes, com chaminés de lamparina fragmentadas exalando brilho espiritual, como em um exemplo do oeste da Carolina do Sul onde uma lamparina é colocada junto com vasos de flores envoltos em papel de alumínio brilhante [Figura 84].

(6) Captura do espírito nos últimos objetos usados ​​pelo morto (kanga mfunya)

222. Alguns dos objetos que decoram um túmulo - uma xícara, um chapéu castigado pelo tempo, uma tesoura enferrujada - carecem do fulgor que incorpora o espírito. Frequentemente, esses são objetos que prendem o ser da pessoa que partiu de outras maneiras. Por causa de sua relação íntima com o falecido, as últimas coisas usadas por ele tornam-se especialmente importantes: "A última força de uma pessoa morta está presente naquele tipo de objeto."[179] Tocá-los significa receber, misticamente, mensagens poderosas dos mortos, comunicadas por meio de sonhos: ''Ao tocar esses objetos, automaticamente eu compreendo o mambu que minha mãe desejava me transmitir." [180] Colocar esses objetos sobre o túmulo ancora com segurança sua incrível potencialidade e evita que os mortos retornem à casa para reivindicá-los. Isso é chamado de “prender as emanações de uma pessoa" (kanga mfunya). A frase também significa "amarrar eflúvios" e, por um trocadilho, "amarrar a raiva dos mortos."

223.  Kanga mfunya chegou intacto aos Estados Unidos negro. Vejamos esse comentário datado de entre 1845 a 1865, oriundo da Colerain Plantation, perto de Savannah: "Os túmulos de negros sempre eram decorados com o último objeto usado pelo falecido."[181] Comparemos isso com as crenças dos residentes de St. Helena Island, na Geórgia, em 1919,[182] segundo as quais as últimas gotas de remédio usado por uma pessoa doente devem ser drenadas pela terra do túmulo. Isso garante a cura do falecido no outro mundo e, novamente, evita que seu espírito deambule. Por fim, consideremos a seguinte evidência oriunda do condado de Hunt, Texas, localizado em Greenville, a nordeste de Dallas:

224. No cemitério East Mont, se encontra o túmulo de uma negra de 15 ou 20 anos. Seu marido ergueu sobre o túmulo um barracão ou casa. Ali ele colocou o último par de sapatos de sua esposa, sua última fotografia e seu lenço, suspenso no teto por um cordão.[183]

225. O marido tinha, com efeito, ancorado elementos poderosos do legado material de sua mulher morta e os honrou dentro de uma cuidadosa moldura arquitetônica. O marido também incluiu ali uma imagem da vaca que havia chutado e matado sua esposa.

(7) O tema da galinha branca (nsusu mpembe)

226. Em 1887, R. E. Dennett relatou o sepultamento de um chefe Kongo em um grande caixão de oito rodas, cujo topo era ornamentado por um leopardo empalhado, um guarda-chuva aberto, vários vasos e duas caixas de madeira, uma delas esculpida na forma de pato, a outra na de uma galinha. Quando a grande estrutura com rodas - uma espécie de niombo quadrado, sem a figuração de corpo inteiro que marca os exemplos vistos da cidade de Kingoyi - finalmente foi enterrada, a galinha e os outros ornamentos foram colocados sobre a superfície do túmulo.[184] Em partes do Kongo, imagens de galinhas pintadas de branco são colocadas sobre sepulturas até hoje. Essas imagens de nsusu mpembe ("galinha branca") simbolizam, em primeiro lugar, ''os ancestrais, o morto.”[185]

227. Além disso, elas simbolizam a mediação poderosa, muitas vezes curativa, dos mortos:

228. Então ela pegou uma galinha branca, ergueu-a em direção aos céus e dirigiu-se a Deus. “Se esta criança morrer, será ‘a galinha branca’," pedindo então ajuda para salvar a vida dela [...] A iniciação liberou os poderes do “branco” além das águas. Esses poderes eram mediados por uma galinha branca e duas plantas, dotando Nzoamambu de pureza e visão.[186]

229. O mais tardar em 1816, encontramos este costume no Caribe negro de língua inglesa: "A caiação de túmulos é repetida cuidadosamente todas as manhãs de Natal e antigamente era costume matar, nessas ocasiões, um galo branco e borrifar seu sangue sobre os túmulos da família.”[187] A invocação do poder de cura do além por meio de uma ave branca aparece no Mississippi negro no primeiro quartel deste século: "A cura mais estranha da qual ouvi falar no Mississippi diz respeito a Overlea, o sétimo filho de sua família, nascido vidente, que soltou cinco pombos brancos, que nunca conheceram a liberdade, para curar uma criança doente. Quando os pombos cruzaram sobre água, a criança foi curada."[188] Peter Alston, um velho trabalhador negro da área leste de Charleston, afirmou, no outono de 1975, que se lembrava de “muitas galinhas de porcelana chinesa” sobre os túmulos de sua região no primeiro quartel do séc. XX.[189] Correspondentemente, um informante de Sapelo lsland, ao sul da Geórgia, afirmou explicitamente em 1939: “Eles matam uma galinha branca quando desejam manter os espíritos afastados.”[190]

230. Consideremos o túmulo de um menino negro que morreu em 1967 no oeste da Carolina do Sul [Figura 85]. Um enorme galo branco guarda o túmulo, que brilha com sua caprichada cobertura de cascalho branco e é animado com outros elementos de conotação amorosa: um par de sapatos de metal em miniatura e pequenas lamparinas, para iluminação mística, como a luz posta à noite no quarto da criança. Ela acordará na Glória e caminhará para Deus, calçando seus sapatos prateados e esmagando sob eles o cascalho branco brilhante.

(8) Emblemas modernos de mediação

231. Quando os meios modernos de transporte chegaram ao Kongo, eles foram reunidos em tudo o que nos interessou até aqui: a concentração em um ponto sagrado de mediação espiritual. Wyatt MacGatffey fotografou, em Ndemba, em 1965, um túmulo Kongo moderno situado dentro de uma área isolada [Figura 86]. O túmulo ergue-se em quatro níveis, simbolizando que “esta pessoa viveu positivamente em relação ao seu povo, que agora espera que ela volte.” Seus descendentes puseram em cima da estrutura a imagem de um avião (ndeke), "para chamá-lo rapidamente (nswalu) de volta"[191] da região que fica além das quatro portas (mweel) do cosmos, indicada no túmulo por representações de quatro garrafas (binzu) nos pontos cardeais.

232. Analogamente, consideremos uma tumba perto de Lombe, em território Ingembe, que foi fotografada por L. Cahen por volta de 1949 [Figura 87]. Trata-se da representação escultural em concreto de um automóvel (tombalilu), antes de mais nada uma estrutura relacionada com a visão ancestral de retorno e apenas secundariamente com o caráter da modernidade. Ou seja, ver este túmulo meramente como um emblema de “aculturação" significa forçosamente perder a rica reformulação nele implícita de antigas expressões de transcendência.

233. É dito que: (1) este tipo de túmulo indica um homem que era um notável motorista; (2) que tais túmulos às vezes homenageiam pessoas que morreram em acidentes automobilísticos; e (3) tenha ou não morrido em um acidente violento, espiritualmente o morto deixou este mundo de carro. Pois uma pessoa do Kongo que, nos anos 1930 ou 1940, dissesse "Eu sou um motorista," transmitia aos mais velhos uma mensagem muito poderosa de estranheza e potencialidade.[192] Portanto, há potência na configuração deste veículo-túmulo, que adiciona força à prece comunitária para que a pessoa que partiu continue a trabalhar em nome de seus descendentes naquele modo de transporte moderno.

234. Como os heroicos maboondo em cerâmica, o carro é fortemente vazado, com entradas deliberadamente sem portas e outras fendas, sugerindo aberturas arquitetônicas. Ancorado na terra, mas viajando magicamente através de tempo e espaço vastos, com seus faróis brilhando invisivelmente, o carro-fantasma se move com uma assonância de quadridimensionalidade.

235. Nos cemitérios tradicionais dos Estados Unidos negro, veículos modernos foram transformados de maneira semelhante. Em Newport News, há uma lápide gravada com o contorno de um navio; um guidão, tirado de uma bicicleta, indica um túmulo na Geórgia; e, no túmulo de um menino no oeste da Carolina do Sul, um avião a jato de brinquedo enferrujava ao sol, em uma tarde de novembro de 1975 [Figura 88]. A colocação deste último elemento foi explicada pelo falecido xerife McTeer de Beaufort, Carolina do Sul - ele próprio um autor famoso na localidade por seus numerosos trabalhos sobre artesanato feito com raízes e outros aspectos da religião afro-estadunidense tradicional - como um meio de “chegar rapidamente ao céu.”[193]

Envoi

236. Este texto procurou fornecer um sentido provisório do fundamento sobre o qual repousa uma tradição clássica. Os cosmogramas primordiais, ligando Deus e os ancestrais às mulheres e aos homens, surgem no início e nunca desapareceram do horizonte. Por trás da cruz de Jesus, se encontram simultaneamente a cruz de Deus, os ancestrais e a linha Kalunga. A concha no peito de um niombo, que comunica renascimento e retorno, torna-se, por assim dizer, a concha no túmulo de uma pessoa negra em Algiers, na Louisiana, na margem do rio oposta a Nova Orleans, bem como a concha em uma sepultura em St. Louis, ambas comunicando o mesmo sentido. Os artistas Kongo grafaram em pedra os gestos-chave de sua terra no corpus de mintadi. Alguns desses gestos chegaram às Américas, onde são vividos até hoje por negros que viram a cabeça para o lado, em sinal de forte negação, ou que ficam em pé, elegante e poderosamente, com a mão esquerda na cintura e mão direita estendida para frente. Os maboondo exaltam suas aberturas estilizadas ao sol. Seu perfurações estão relacionadas, em última análise, com o costume Teke de abrir um buraco na parede da câmara de um chefe moribundo, “para que seu último suspiro encontre um ponto de saída.”[194] Isso têm afinidade espiritual com a perfuração e a quebra dos bens de uma pessoa morta na Georgia," de modo que a corrente [que liga os vivos aos mortos] seja quebrada.”[195] O pano amarrado em torno dos braços de um certo niombo, que codifica mensagens de despedida, está relacionado aos costumes em Harris Neck, na Georgia, onde tambores eram percutidos, a maneira ngoma, para acompanhar o corpo do morto até seu túmulo e onde "se fala com a pessoa e lhe transmite uma última mensagem." De maneira semelhante, isso se relaciona com um cartão de Dia das Mães, carinhosamente escrito por todos os seus filhos, deixado no túmulo de uma mulher negra em Hilton Head, em 1955.[196]

237. Aspectos dessa grande tradição contribuíram para o surgimento das músicas populares internacionais deste século - rumba, mambo, samba e jazz -, algumas das quais portam nomes quicongo crioulizados. O signo dos quatro momentos do sol anima, em fusões crioulas com muitos novos padrões e desenhos, o surgimento dos pontos riscados no Rio de Janeiro, dos véve em Port-au-Prince e do “signo dos quatro ventos” em Havana e Memphis.

238. Tocar tambores pela manhã e dançar vividamente, para que um rei morto não parta em fúria para a floresta, levando outros com ele, fornece uma racionalização duradoura para a fusão Kongo de arte, música, poesia e dança no clímax da vida de uma pessoa - i. e., o seu funeral. Isso explica a poderosa música Kongo para os mortos, vista na consideração dada aos enormes trompetes biludi. Isso deitou raízes em Nova Orleans, onde o jazz floresce em toda a sua glória marchante, enquanto os biludi se transformam em clarinete e trompete, ngoma em baixo e bateria de caixa, ngongi em címbalo. Enquanto isso, nikua minpa, o costume de agitar tecidos para abrir, de maneira honrosa, a porta para o outro mundo, se transforma no costume de dançar e girar guarda-chuvas brilhantes na marcha de jazz que volta de um enterro. Tais traços seriam impensáveis, exceto se considerarmos o impacto da história que procuramos contar. Vejamos um último e vívido exemplo, uma cena de funeral na Nova Orlens negra: “De repente, guarda-chuvas abertos, de todos os tamanhos, cores e formatos, aparecem, alguns fantasticamente adornados com sinos, penas, flores e fitas. A alegria é exuberante e geral. Músicos e espectadores querem dar ao falecido uma ótima despedida.'”[197] Essa preocupação perene, no amor e na arte, com a Glória - o reino do quarto momento do sol - sustenta a todos nós com uma visão que flui entre dois mundos.  

Tradução do inglês por Arthur Valle

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*  Nota do Tradutor - Originalmente publicado como: THOMPSON, Robert Farris. The Structure of Recollection: The Kongo New World Visual Tradition. In: THOMPSON, Robert Farris; CORNET, Joseph. The Four Moments of the Sun: Kongo Art in Two Worlds. Washington, DC: National Gallery of Art, 1981, p. 141-210. As interpolações com colchetes duplos - [[ ]] - foram usadas para inserir traduções e/ou explicações de expressões cujas grafias, no texto original, foram mantidas. Vale notar, que no original de Proust, a passagem que corresponde ao título do artigo (“the structure of recollection”) é a seguinte: “[...] seules, plus frêles mais plus vivaces, plus immatérielles, plus persistantes, plus fidèles, l’odeur et la saveur restent encore longtemps, comme des âmes, à se rappeler, à attendre, à espérer, sur la ruine de tout le reste, à porter sans fléchir, sur leur gouttelette presque impalpable, l’édifice immense du souvenir.” Na tradução de Mario Quintana, temos: “[...] sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.”

** N. do T. - Robert Farris Thompson é “Colonel John Trumbull Professor” de história da arte e professor de estudos afro-americanos na Yale University. “[...] começando com um artigo sobre dança e música afro-cubanas publicado em 1958, ele dedicou sua vida ao estudo da história da arte do mundo afro-atlântico. Seu primeiro livro, Black Gods and Kings, era uma minuciosa leitura iconográfica da história da arte dos quarenta milhões de Iorubás do sudoeste da Nigéria. Publicou textos sobre a estrutura e o significado de danças africanas, African Art in Motion, e um reader sobre a história da arte das Américas negras, Flash of the Spirit, que permaneceu sendo reeditado desde sua primeira publicação, em 1983. Thompson publicou dois livros sobre a arte de tecido feito de casca de árvore pelos pigmeus da Floresta Ituri, além do primeiro estudo internacional sobre altares do mundo Atlântico Negro, Face of the Gods, e mais recentemente Tango: The Art History of Love. Além disso, ele publicou uma introdução aos diários de Keith Haring, estudou a arte de José Bedia e Guillermo Kuitca, e foi antologizado quinze vezes. Algumas de suas obras foram traduzidas para o francês, alemão, flamengo e português.” Tradução de texto disponível em: https://arthistory.yale.edu/people/robert-thompson

[1] Informante: Gweta Lema, da região das Cataratas, Baixo Zaire. Entrevistado em Kinshasa, 23 ago. 1979

[2] Comunicação pessoal, outono de 1980. Paralelamente à transformação dos túmulos de pedra ou argila em túmulos de concreto, MacGaffey indica a transformação, ocorrida no século XX, de pilares de pedra simples encontrados sobre túmulos Kongo (tadi dya n'senzebele ou tadi dya n'seenzele, lápide de pedra - cf. LAMAN, Karl E.. Dictionnaire Kikongo-Français. Farnborough: Gregg international Publishers, 1964, v. II, p. 764) em declarações mais elaboradas. Em 1924, lápides simples estavam sendo substituídas por lápides com símbolos complexos. Assim, um exemplo transicional apresenta a seguinte série de símbolos: no topo, um pequeno entrecruzamento dentro de um círculo, significando "ele morreu;" em seguida, um círculo embrasonado com uma inscrição em quicongo, "wafwa 1924;" por fim, uma estrela (significando "sua alma") acima de um semicírculo, unido a uma seta apontando para baixo ("foi para baixo").

[3] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. 93179

[4] JANZEN, John. Elemental categories, symbols, and ideas of association in Kongo-Manianga society. Tese (Doutorado). Chicago: University of Chicago, 1967, p. 307-308.

[5] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. E.PH. 3522.

[6] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. E.PH. 3535.

[7] Fu-Kiau, entrevista, 25 out. 1980. Os padrões florais (bifulu) lembram flores colocadas em sepulturas modernas, para embelezá-las. Notar que as paredes internas deste nzo a nkisi estão manchadas. Os precedentes para isso são antigos. Assim, no cahier 372 de Laman, Ngoma, falando dos artistas Kongo tradicionais na virada do século, diz: "Eles esfregam cores nas portas ou sobre um nkisi ou tumba (sobre uma imagem) quando o colocam em um túmulo. Eles usam carvão e giz (peso) e sândalo vermelho para fazer as manchas (vanga masona masona).” Tais manchas são adequadas em um contexto funerário, seja como símbolos das manchas do leopardo - caso em que elas louvam a pessoa ali enterrada como um chefe ou cabeça de uma linhagem - ou, como manchas da pele de um gato selvagem, da qual eram feitas as bandeiras que se costumava colocar sobre os túmulos Kongo, como emblemas clássicos da encruzilhada e que simbolizam a mediação de poder entre os mundos.

[8] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. E.PH. 3561.

[9] Fu-Kiau, entrevista, 25 out. 1980. Todas as declarações entre aspas nesse parágrafo são dele.

[10] Ibid.

[11] Arquivos do Museu de Tervüren, 55.45.11.

[12] Fu-Kiau. entrevista, 6 dez. 1979. Ele descreveu a máquina de costura de pedra como uma "carta para o morto."

[13] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. E.PH. 3513.

[14] LAMAN, op. cit., v. I, p. diiza, p. 126.

[15] Fu·Kiau, entrevista, 12 abr. 1980.

[16] lbid. Além disso, MacGaffey relata que mbambi a nkakala, o lagarto varano (varanus niloticus), é "uma das bestas ferozes cuja pele era simbolicamente apropriada para sobre ela um chefe ser entronizado." O emparelhamento dessas feras poderia então gerar um significado adicional: "Entronizado neste mundo, entronizado no mundo vindouro," ou "Realeza entre os vivos e os mortos".

[17] Fu-Kiau, entrevista, 12 abr. 1980. Van Wing apresenta o texto da canção de uma esposa em luto pelo chefe de seu clã. Os seguintes trechos são pertinentes: “Ndinga nzonzi […] | Ndinga ngunga [Voz do advogado | Sua voz era um sino].” Cfr. VAN WING, J.. Etudes Bakongo: sociologie, religion et magie. Brussels: Desclée de Brouwer, p. 265-6.

[18] Eu discuto essas etimologias em um livro próximo, Flash of the spirit, a ser publicado por Random House em 1982. N. do T. - Tradução portuguesa: THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit. Arte e Filosofia Africana e Afro-americana. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.

[19] CURTIN, Philip. The Atlantic slave trade: a census. Madison: University of Wisconsin Press, 1969, p. 188.

[20] lbid., p. 241

[21] Degrandpré afirma que aquilo que se costumava entender pela designação genérica de "costa de Angola" era "toda a área situada entre o Cabo López e Benguela". A sua menção da escravatura em Cabinda, Malembe e Loango encontra-se em: DEGRANDPRÉ, L.. Voyage a la côte occidentale d'Afrique fait dans les années 1786 et 1787. Paris: Dentu. 1801, v. 1, p. xxiii.

[22] COURLANDER, Harold. Haiti singing. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1939, p. 3.

[23] PRICE-MARS, Jean. Les survivances africaines dans la communauté haitienne. Etudes Dahomeennes, Porto Novo, Institut Français d'Afrique Noire, VI, 1951, p. 7.

[24] CABLE, George W. The dance in Place Congo. Carrollton: Faruk van Turk, 1972, p. 1-2, p. 6. O excelente livro de Dena Epstein, Sinful tunes and spirituals (Chicago: University of Chicago Press, 1977) inclui muitas referências que sugerem a contínua presença de danças Kongo na Nova Orleans do início do século XIX. (p. 95): "Três dos negros do grupo mais próximo a nós eram ex-reis ou ex-chefes no Kongo" (1817); (p. 96): "Em 1819, uma carta vinda de Nova Orleans relatou que 'no sábado à noite os escravizados africanos se encontravam no gramado, perto do pântano, e faziam a cidade tremer com suas danças Kongo’”; (p. 132): "1821 [...] a dança Kongo "; (p. 133): "1823 [...] a grande dança Kongo é performada."

[25] TINKER, Edward Larocque. Toucoutou. New York: Dodd, Mead & Co., 1930, p. 93. Raquette era jogado com duas pequenas raquetes em vez de uma, como no lacrosse moderno.

[26] GOFFIN, Robert. Jazz: from Congo to swing. London: Musicians Press Ltd., 1946, p. 25.

[27] Cfr. SÕDERBERG, Bertil. Les instruments de musique au Bas-Congo et dans les régions avoisinantes. Stockholm: Statens Etnografiska Museum, 1956, prancha XIX, 1, homem tocando tambor ndungu, vila de Kimpongi, território Bembe.

[28] WOOD, Peter. Black Majority. New York: Knopf, 1972, p. 335.

[29] Testemunhado pelo autor no Zaire, em março e junho de 1973. Cf. LAMAN, op. cit., v. II, p. 888. Sembuka literalmente se refere a pular sobre uma perna só.

[30] ORTIZ, Fernando. Los instrumentos de la música afrocubana. Havana: Ministerio de Educación, 1952, v. III, p. 390.

[31] KUBIK, Gerhard. Angolan traits in Black music, games and dances of Brazil. Lisboa: Junta De lnvestigações Científicas do Ultramar, 1979, p. 10.

[32] BAUMANN, H.. Schöpfung und Urzeit des Menschen im Mythus der Afrikanischen Võlker. Berlin, 1936, p. 89.

[33] BASTIDE, Roger. The african religions of Brazil. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1978, p. 347.

[34] VASS, Winifred Kellersberger. The Bantu speaking heritage of the United States. Los Angeles: Center for Afro-American Studies, UCLA, 1979, p. 3.

[35] Fu-Kiau, entrevista, 1 fev. 1981.

[36] EDWARDS, Harry Stillwell. The two runaways and other stories. New York: Century, 1889, p. 202-203, p. 205.

[37] Informante: Balu Dalila, cidade de Muanda (Bawoyo), Collectivité de la Mer. Entrevistado em Kinshasa, 26 jun. 1980.

[38] VAN DE VELDE, Liévin. La région de Bas-Congo. Bulletin Societé Royal Belge de Geographie, 10, p. 383. Ver também Van Wing (op. cit., p. 463), que ilustra uma trincheira cruciforme, mvulu-mvulu.

[39] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. 117556: iniciação Kiwila (para mulheres), povo Pende, região de Kandale, cidade de Kinzunda. Agradeço a Marie Louise Bastin por chamar minha atenção para esta fotografia. Ela também compartilhou comigo uma cópia do Cahier XV, dos manuscritos não publicados de L. de Sousberghe, nos quais ele ilustra uma versão Pende do cosmograma: kata ya mungangi.

[40] TURNER, Victor. Chihamba the white spirit. Manchester: Manchester University Press, 2. ed., 1969, prancha. 8b: "Imagem de Kavula.”

[41] SANTOS, Eduardo dos. Sobre a religião dos Quicos. Lisboa: Junta de lnvestigações do Ultramar, 1962, fig. I: "O ideograma chamado Kalunga.”

[42] Igor Kopytoff, comunicação pessoal, mar. 1968.

[43] DUBOIS, W. E.. The religion of the American Negro. New World, dez. 1900, IXX, p. 618. Citado em BLASSINGAME, John W.. The Slave Community. New York: Oxford University Press, 1972, p. 33: "A principal instituição remanescente era o sacerdote [expert em rituais] Ele logo apareceu na plantation e encontrou sua função como curador dos enfermos, intérprete do desconhecido, consolador do sofrimento, vingador sobrenatural do mal. […]”

[44] HYATT, Harry Middleton. Hoodoo-Conjuration-Witchcraft-Rootwork. Hannibal: Western Publishing, Inc., 1970, v. II p. 1173. Eu padronizei a ortografia "pitoresca" de Hyatt.

[45] Ibid, p. 1266

[46] PUCKETT, Newbell Niles. Folk beliefs of the Southern Negro. New York: Dover reprint, 1969, p. 319. Com relação ao Brasil, comparar com: LANGGUTH, A. J.. Macumba. New York: Harper & Row, 1975, p. 136: "Signos usados quando se deseja alcançar os espíritos dos mortos. Ambos são muito antigos. [...] A cruz sugere o cristianismo.” Mas Vatter afirma que "Este signo é muito mais antigo do que isso. [...] É um dos mais antigos signos africanos." A antiga cruz de derivação Kongo está de fato presente, como veremos, no Rio de Janeiro. Fragmentos de conhecimentos cosmográficos semelhantes ainda aparecem entre os negros no sul dos Estados Unidos. Assim, em uma comunicação pessoal em 30 ago. 1977, Charles L. Perdue, do Departamento de Antropologia da Universidade da Virgínia, relatou que uma mulher negra de Mariella, na Geórgia, “sempre pegava uma peça de prata e desenhava um círculo no chão e uma cruz dentro círculo, colocava a batedeira sobre o círculo-cruz e então batia a manteiga. [...] ela fazia isso porque havia um menino ruivo na família, evidentemente para proteger o leite dos poderes especiais que se acredita que os ruivos têm." Finalmente, ainda no final do século XVII (1654-1667), os europeus sabiam que a cruz Kongo coexistia com a cruz dos cristãos. Isso é apresentado pelo padre Giovanni Antonio Cavazzi (Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965, v. I. par. 198), que se refere a pessoas Bakongo desenhando o sinal da Santa Cruz, "mascarando, com esses signos da verdadeira religião, convicções ocultas" de sua própria religião clássica. É interessante que, quase trezentos anos depois, a mesma queixa foi dirigida contra o uso (de influência Kongo) do sinal da cruz para simbolizar a encruzilhada e um espírito de cemitério, no Haiti. (Ver: BIRD, M. B.. The Black Man or Haytian Independence. N.Y.: American News Co., 1869, p. 322: "A forma do cristianismo há muito foi apresentada aos haitianos, mas uma cruz de madeira não é Cristo").

[47] PUCKETT, op cit, p. 319.

[48] Robert Johnson: King of The Delta Blues Singers. Columbia LPCL1654, lado 1, faixa 1, gravado em 27 nov. 1936

[49] ORTIZ, op. cit. 168-9, fig. 168

[50] CABRERA, Lydia. Reglas de Congo: Palo Monte, Palo Mayombe. Miami: Peninsular Printing, Inc., 1979, p. 146.

[51] Sou grato ao professor Janzen por me permitir ler e citar a partir deste seu trabalho.

[52] Roger Bastide, comunicação pessoal, 8 mai. 1968.

[53] FIGUEIREDO, Napoleão. Os Caminhos de Exu. In: 7 brasileiros e seu universo. Brasília: Departamento de Documentação e Divulgação, 1974), p.89, estampa V, Ponto de Exu Vira-Mundo, e p. 86, estampa Ill, C. Ponto de Pomba-Gira da Kalunga.

[54] Informantes entrevistados em Duque de Caxias e São João de Meriti, no Rio de Janeiro, ago. 1968. No verão de 1973, Elsbeth Selver fotografou pontos cruciformes simples, feitos a giz, sobre os quais copos cheios de água - destinados a sacerdotes e sacerdotisas incorporando entidades espitrituais -, cada um marcado com seu próprio ponto, tinham sido centralizados. Tais pontos assemelhavam-se a algumas das formas putativas dos primeiros pontos do Rio. Uma seriação completa dessas formas fascinantes é necessária com urgência.

[55] John Janzen, comunicação pessoal, verão de 1979.

[56] Roger Bastide, comunicação pessoal, 8 mai. 1968.

[57] Pontos cantados e riscados da Umbanda. - 9. Ed. - Rio de Janeiro: Editora Espiritualista Ltda., 1951.

[58] 3000 pontos riscados e cantados na Umbanda e Candomblé. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1975.

[59] Wesley R. Hurt, comunicações pessoais, inverno de 1975 e primavera de 1981.

[60] BROWN, Karen McCarthy The vèvè Of Haitian Vodou: a structural analysis of visual imagery. Ann Arbor: University Microfilms, 1975, p. 165: "No braço direito [do vévé para Simbi] aparece o signe Masonique, o símbolo dos maçons. Os maçons no Haiti são um grupo muito importante, principalmente nos círculos do vodu. O movimento é fortemente matizado pelo arcano e se tornou, no Haiti, uma espécie de magia cristã."

[61] JANZEN, John. Lemba. Manuscrito em xerox, capítulo Vlll, "Lemba in the New World."

[62] BROWN, op. cit., p. 159.

[63] Gráfico de Nancy Gaylord Thompson que registra a realização, por André Pierre, do vévé para marassa, 28 mai. 1978.

[64] Entrevista com André Pierre, 28 mai. 1978.

[65] Wyatt MacGaffey, comunicação pessoal, mar. 1981. Sou grato ao Professor MacGaffey pela permissão para reproduzir sua fotografia de campo da rotatória mística de Mayeko.

[66] Comunicação pessoal, John Burrison, outono de 1975.

[67] BARBER, Ewin Atlee. The pottery and porcelain of the United States. New York: Feingold and Lewis, 1976, p. 4.

[68] Os dois exemplos mostrados são aqui publicados pela primeira vez. Eles foram coletados, por volta de 1940, nas cabanas de afro-estadunidenses que moravam entre Aiken e Langley, na Carolina do Sul. Quem os coletou foi o falecido Joseph Sevier Eve, neto do Coronel Davies (entrevista com o Sr. William R. Eve, mãe de J. S. Eve, 1 jan. 1969). As duas obras estavam em uma caixa com o rótulo "Propriedade de J. S. Eve. ‘Monkey Jugs’, agosto de 1940," que foi redescoberta no verão de 1968. Elas estão agora em uma coleção particular.   

[69] PUCKETT, op cit, p. 233.

[70] A jarra d’água Lwena (mulondo) foi coletada por Baumann em 1930 e agora está no Museu de Berlim (Ill C 37489 a, b). Ver KRIEGER, Kurt. Westafrikanische Plastik, Ill. Berlim: Museum für Võlkerkunde, 1969, prancha 337 e p. 93; jarra d’água Lunda/Tu-Chokwe de Cambomba de Moriengo, Angola, publicado em: lnquerito - l Artesanato. Angola: Edição da Junta Provincial de Povoamento, 1966, sem paginação; Estribo para jarra d’água Kongo de Mayivangwa Therèse, 1965-70, em Janet MacGaffey. Two Kongo Pottery. African Arts, IX, 1 (out. 1975), p. 3.

[71] VLACH, John. The Afro-American tradition in decorative arts. Cleveland: Cleveland Museum of Art, 1978, p. 81-90.

[72] BURRISON, John. Afro-American Folk Pottery in the South. Southern Folklore Quarterly, 42, 2/3 (1978), p. 196.

[73] Comunicação pessoal, fev. 1981.

[74] Fu-Kiau, entrevista, 8 nov. 1980.

[75] VLACH, op. cit, p. 8: "Dizem que uma pequena jarra com face era usada por pais negros como uma espécie de figura de bicho-papão para assustar seus filhos pequenos e fazê-los se comportar." Franklin Fenenga, comunicação pessoal a Vlach, jan. 1977. Quanto às ligações entre o artesanato do distrito de Edgefield e Misissippi, onde os crânios de “Son” Thomas emergiram na década de 1960, é importante mencionar que a falecida Sra. William R. Eve, descendente do Coronel Davies, em cuja olaria várias famosas jarras monkey feitos por escravizados foram achadas, disse-me, em 1 jan. 1969, que o coronel Davies "levou seus escravos para o Mississippi e libertou alguns deles lá".

[76] FERRIS, William. Vision in Afro-American Folk Art: The Sculpture of James Thomas. Journal of American Folklore, LXXXVIII (1975), p. 125. Citado em: VLACH, op. cit, p. 9.

[77] KIA BUNSEKI, Fu-Kiau. N'Kongo Ye Nza Yakun'zungidila: Nza Kongo. Kinshasa: Office National de la Recherche et de Developpement, 1969, tendwa no.54, onde a concavidade está associada tanto com a cor branca quanto com objetos postos de cabeça para baixo - ambas são qualidades que simbolizam a morte e o outro mundo na iconografia Kongo. O branco também simboliza exoneração.

[78] LAMAN, op. cit., v. II, p. 614; munkoka, "cachimbo de cabaça;" munkoki, "cachimbo.”

[79] lbid., p. 639.

[80] CHARTERS, Samuel. The Jug Bands. RBF Records Album no. RF 6,1963: "O som característico das jug bands era o da jarra, baixo e rouco, mais grave do que o tom mais agudo do violino, da gaita ou mesmo do clarinete e saxofone."  Ver também, Heroes of the Blues: a set of 36 cards. New York: Yazoo Records,1980, que inclui três cards colecionáveis ​​mostrando jug bands, desenhados por Robert Crumb. John Szwed chamou minha atenção para esta encantadora referência. 

[81] ORTIZ, op. cit., v. V, p. 336.

[82] Ibid, p. 340; LAMAN, op. cit., v. II, p. 639.

[83] As jarras d’água são usadas como instrumentos musicais ​​por certas civilizações da Baía de Biafra, que também figuraram com destaque na escravidão dos Estados Unidos. 

[84] PALMER, Robert. Deep Blues. New York: Viking, 1981, p. 29. Fu-Kiau, em entrevista de 12 abr. 1980, diz que, quando jarras d’água são usadas ​​como instrumentos musicais no Kongo, acredita-se que elas ressoam com “força invisível atuante [...] a jarra está vazia, é uma cavidade, e nela acredita-se que soam forças invisíveis. Você não ouve uma voz comum; você ouve um som sagrado, uma voz sagrada. Isso simboliza, portanto, que não há realmente uma divisão total entre a comunidade dos vivos e a dos mortos, mas que entre os dois mundos existe um meio de comunicação, o ato de fazer soar a jarra (sika vudinga)." 

[85] Cfr. FERRIS, William. Bottle up and go. Center for Southern Folklore, Memphis, Tennessee. Filme. A declaração da Dotson foi extraída da transcrição xerocada de uma entrevista de William Ferris: Louis Dotson: one-string guitar maker, Loran, Misisippi, Bom 1917, p. 4. Sou grato a William Ferris por disponibilizar uma cópia desta entrevista para mim.

[86] Ver WADSWORTH, Anna. Missing pieces. Georgia Folk Art, 1770-1976. Atlanta: Georgia Council for the Arts and Humanities,1976, p. 78 e especialmente p. 25, onde John Burrison aponta: "O pote tumular parece ser um fenômeno sulista [...] e não tem precedentes claros no Velho Mundo." 

[87] William Stewart, comunicação pessoal, dez. 1980.

[88] CABLE, op. cit., p. 3. Também reimpresso em: CABLE, George W.. Creoles and Cajuns. Garden City: Doubleday Anchor, 1959, p. 370.

[89] ROBBINS, Warren. African Art ln American Collections. New York: Praeger, 1966, prancha 247: Músico sentado [de pernas cruzadas] tocando marimba, Sundi, Smithsonian Institution, Ward Collection, Wahington D.C.

[90] Jacob Elder, comunicação pessoal,18 out. 1970

[91] William Stewart, comunicação pessoal, dez. 1980.

[92] Lydia Cabrera, comunicação pessoal, jan. 1981.

[93] RODRÍGUEZ, Raul Martínez; GONZALES, Pedro de la Hoz. De la Columbia aI Guaguancó. Bohemia, 68, 23 (4 jun. 1976), p. 13. O gesto de braços cruzados sobre o peito traz a seguinte legenda: “Salomé Femández no gesto de saudação do yambú.” Observe os significados contrastantes já referidos - altivez e saudação - que, provisoriamente, parecem refletir diferentes nuances Kongo e Iorubá do gesto. No Haiti, de acordo com André Pierre (entrevista, 22 mar. 1981), o mesmo gesto tem aproximadamente os mesmos dois significados: "Fraternidade" e "Não posso mais falar".

[94] Fu-Kiau, entrevista,15 dez. 1980.

[95] Lydia Cabrera, comunicação pessoal, nov. 1980.

[96] Este gesto relacionado a nunsa foi mantido durante a maior parte da discussão

[97] William Stewart, comunicação pessoal, out. 1980.

[98] DAY, Charles William. Five years’ residence in the West Indies. London: Colburn,1852, v. II, p. 61-64. É cognato, mas não idêntico: "[Eles] geralmente ficam de costas um para o outro."

[99] WILLIAMS, Annette Powell. Dynamics of a Black audience. In: KOCHMAN, Thomas (ed.). Rappin’ and Stylin' Out: Communication in Urban Black America. Urbana: University of lllinois Press, 1972, p. 103. Para um excelente exemplo do motivo nunsa na escultura figurativa Kongo, cfr. prancha 195 em KRIEGER, Kurt. Westafrikanische Plastik, I. Berlim: Museum für Võlkerkunde, 1965.

[100] LAMAN, op. cit., v. II, p. 842.

[101] GONZALES, Ambrose E. Laguerre: a Gascon of the Black Border. Columbia, S.C.: The State Company, 1924, p. 79: "Alice colocou as mãos nos quadris e olhou-o com desprezo, como alguém que, sob o mandato da Corte, usurparia seu precioso privilégio de falar!"; p. 265: "Daphne, com os braços na cintura, tensa como uma mola de aço em espiral, estava convidativamente diante dele, e o convite a pressionava, pois ela estava determinada a incitá-lo a bater." Evelyn Neal, da cidade de Nova York, me disse que, crescendo como uma jovem negra, a pose estava tão fortemente relacionada à discussão que assumi-la descuidadamente levava imediatamente a ser desafiada: "Por que você está de pé, com as mãos na cintura!" O gesto também é anglo-estadunidense. Cfr. STEINBECK, John. The Red Pony. New York: Bantam, 1978, p. 99: "Uma das vizinhas o chamou e o xingou com tanta violência que ele ficou sem graça e não deu ouvidos. Ela colocou as mãos nos quadris e olhou para ele com desprezo."

[102] No contexto n'kondi, como no magnífico exemplo de Detroit ilustrado neste artigo [Figura 40], o gesto pakalala simboliza a prontidão para assumir as dificuldades e responsabilidades de um processo. André Pierre afirma (entrevista, 22 mar. 1981) que a razão pela qual o gesto das mãos nos quadris está associado à uma divindade, a Rainha do Kongo (Reine Kongo), no vodu, é porque o gesto de deu men son coté "demonstra que ela é rainha da terra, da direita e da esquerda. E o pacquet dela também é assim, fica de pé para representar a força divina em quatro partes, alto, baixo, esquerda e direita.” Em outras palavras, Pierre claramente lê o gesto em termos cosmográficos.

[103] Mas no Haiti o gesto está impregnado de interpretações cristãs: "A ressurreição de Jesus," o "Triunfo do poder de Deus sobre a morte" - representado pelo gesto apontando para cima, com a mão direita.

[104] COURLANDER, Harold. Haiti singing. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1939, p. 131. A referência está inserida no contexto de rituais Petro no Haiti, sobre os quais Courlander comenta: "Há fortes evidências de que o serviço religioso Petro se baseou fortemente em antigos ritos Kongo. Mas eles não são de forma alguma considerados a mesma coisa hoje."

[105] BASCOM, William; HERSKOVITS, Melville J.. Continuity and change ln African cultures. Chicago: University of Chicago Press, 1959, "African Music," Alan P. Merriam, p. 77: "A música dos pigmeus é caracterizada principalmente pela técnica do hoquetus ou durch-brokene Arbeit, na qual cada indivíduo em um grupo de cantores contribui, em um tempo preciso, com uma, duas ou três notas para uma linha melódica mais longa." Agradeço ao padre Cornet e aos membros da equipe do Institut des Musées Nationaux du Zaïre por facilitarem minha estada na aldeia de Luangu Nzambi, onde pude fotografar e gravar música do disoso (trompete de bambu) em junho de 1980.

[106] SÕDERBERG, op. cit., prancha XXIII, p. 6: “Tocador de flauta transversa feita de carica papaya, Bembe, Mouyondzi,” fotografia: Sõderberg, 1950.

[107] COURLANDER, Harold. The drum and the hoe. Berkeley: University of California Press, 1960, p. 107-108. Cfr.: GILLIS, Vema. Rara in Haiti, Gaga in the Dominican Republic. New York: Folkways Records Album no. FE 4531, 1978, panfleto anexo, p. 4: "Existem dois tipos principais de danças rara: uma é considerada uma dança de amor e consiste basicamente em um movimento giratório do ventre, executado sozinho, em casal ou em grupo; a outra é a dança solo especial, específica em seus passos e muito graciosa e hábil, que é executada pelo major jonk. Uma banda rara normalmente inclui pelo menos dois major jonks. São homens que executam suas próprias danças enquanto giram bastões de uma maneira muito talentosa. Alguns major jonks importantes frequentam escolas especiais para treinar para essa função; o treinamento às vezes começa na infância.” O movimento giratório do ventre corresponde a um padrão básico da dança Kongo, que filmei em Luangu Nzambi em 29 jun. 1980 e que observei em outras danças no Baixo-Zaire em 1976. Isso evidencia outro forte elemento Kongo no mundo da dança e da instrumentação rara.

[108] Haiti: Premiere Republique Noire du Nouveau Monde. Port-au-Prince: Haiti Visite, n.d., p. 59: pintura, Performers de rara a noite [título fornecido] por R. Duvivier. Para uma série interessante de fotografias do giro de bastão dos majors joncs, ver: HONORAT, Michel Lamentiniere. Les Danses Folkloriques Haitiennes. Port·au-Prince: lmprimerie de L'Etat, 1955, p. 132-3. Observe também o desafiador comentário de Honorat sobre a religiosidade inerente à performance do rara, incluindo o giro do bastão (p. 131):" Rara merece ser objeto de uma monografia. Seu aspecto mágico-religioso deve ser estudado, assim como seu caráter como divertimento por ocasião da ressurreição de Cristo [...] aqui, a elegância e a majestade do major jonc desafiam todas as descrições." André Pierre aprofunda, de forma independente, a dimensão mística da pose telama no rara haitiano, quando diz, a respeito dos balizas de grupos rara que se confrontam com esta pose: "Com a ‘pose jouer jean’ eles mostram, um para o outro, que é o espírito que lhes confere sua força. A mão no quadril ancora a força, a mão direita representa o triunfo do Senhor; ela representa a ascensão de Cristo " (22 mar. 1981).

[109] VLACH, John. Sources of the shotgun house: African and Caribbean antecedents for Afro-American architecture. Ann Arbor: University Microfilms, 1975, v. 1, p. 69-73.

[110] Comparar o Auto-retrato em fantasia de carnaval (1958) de Wilson Bigaud (em: STEBICH, Ute. Haitian Art. New York: Abrams, 1978, p. 95) com ilustrações dos trajes do grupo Wild Magnolias. Cfr. as túnicas de contas e lantejoulas amplamente semelhantes e os cocares de penas destes últimos. Os mascarados de Nova Orleans são ilustrados por fotografia, em detalhe, em: Polydor LP PD 6026 (1974): The Wild Magnolias. Para um documento visual interessante de grupos de drum majorettes com bastões, completamente formados por negros, ver: WICKISER, Ralph; DURIEUX, Caroline; MCCRADY, John. Mardi Gras Day. New York: Henry Holt and Company. 1948, p. 16: "Mascarados negros: cinco negros, liderados por uma mulher mascarada, vão ver o desfile Zulu mesmo que não façam parte nele."

[111] WICKISER et al., op. cit, p. 16. Além disso, embora as cheerleaders [[líderes de torcida]] que giram bastão sejam mais ou menos restritas a jogos de football nos Estados Unidos em geral, baton twirling e cheerleading acompanham, no Sul negro, jogos de basquete, beisebol, de qualquer espécie de esporte. Na verdade, essa arte fenomenalmente popular está enraizada ampla e firmemente entre os negros do Sul: sua origem - ou, pelo menos, seu desenvolvimento mais intenso - parece ter ocorrido nesse contexto. Isso encontra paralelo e é reforçado pela ascensão do costume de girar o bastão com a mão esquerda no quadril no Caribe negro, notavelmente no Haiti, onde as influências Kongo são palpáveis ​​e fortes.

[112] A história definitiva do baton twirling nos Estados Unidos ainda está por ser escrita. A obra de Constance Atwater, Baton twirling: the fundamentals of an art and skill, é útil sobretudo para conhecer as dimensões anglo-estadunidenses dessa arte. Estamos em um estágio comparável aos dias em que Benny Goodman, Gene Krupa, Bix Biederbecke e Dave Brubeck representavam, para o público estadunidense em geral, o mundo do jazz, em vez dos verdadeiros criadores, Armstrong, Lester Young, Bird, e outros - ou seja, um estágio quando a mimese branca da moda negra obscureceu as questões de origem, desenvolvimento e realização.

Percorrendo as evidências disponíveis, tenho a impressão de que, conforme as cerimônias do intervalo de jogos surgiram na cultura estadunidense, após a ascensão do football na década de 1890, a pose principal do giro de bastão, com a mão esquerda no quadril, foi incorporada a partir de fontes originalmente negras do Sul. Em 1939, observou-se que "algumas das líderes de torcida mais versáteis [estão] em faculdades do Sul (notadamente no Alabama e Tennessee)". Ver: AII-America. Time, 34, 24, 11 dez. 1939, p. 42. Uma série de influências europeias e afro-estadunidenses se misturaram, se fundiram ou foram performadas de forma independente, como no seguinte relato, datado de 1940: "Milhares de gritos roucos sempre saúdam as bandeiras suíças de Wisconsin e Oklahoma ou as emocionantes bandas de swing do Texas Christian e Southern Methodist. A banda Scotch Kiltie de Iowa é uma das favoritas dos Big Ten. Os fãs de Louisiana apreciam mais esquetes de comédia musical e sapateadores" - Football Floorshow. The American Magazine, CXXX, 5, nov. 1940, p. 88-89. Nesse processo, passos de jazz e rotinas de strutting reforçaram o componente negro. Cfr.: Life, 11, 19, 10 nov. 1941, p. 58-60. Em meio a essa dinâmica e criatividade, a pose telama manteve-se intacta (e.g.: American Magazines, nov. 1940 e mai. 1941, onde as fotografias, sem legendas, registram a sua continuidade). Em meio a isso, o giro de bandeira suíço tornou-se um rival importante e um elemento de reforço, de origem europeia, levando pelo menos um estudioso a apontar a Suíça como o berço do baton twirling estadunidense. (Para evidências fotográficas do giro de bandeira suíço, consultar: Life, 9, 16, 14 out. 1940, p. 50. No entanto, assim como para os blues estadunidenses, jarras monkey, couve e quiabo, os centros significativos de difusão do baton twirling permaneceram no Sul Profundo, como fica implícito em Newsweek, XLVI, 10, 5 set. 1955: "Os jovens do Sul levam particularmente a sério o [baton twirling].” Com efeito, o Dixie National Baton Twirling Institute fica localizado em Oxford, Mississippi. Provavelmente, só com o artigo de Terry Southern sobre o baton twirling (Esquire, UX, 2, feb. 1963) o véu da imitação branca começou a se romper e os criadores e continuadores mais elegantes da prática começaram a fazer sentir sua presença (p. 103): "O melhor strutting é performado nas escolas negras do Sul, e destas, a maior de todas é o Alabama State Teachers College." Contra um caleidoscópio cultural brilhante - o som e o brilho de tambores e kilts escoceses, o agitar e girar de bandeiras no ar à la suisse, marchas de precisão europeia - a pose telama lwimbanganga emergiu como um elemento indestrutível, fundamental e contribuinte para a formação de um rico aspecto da cultura popular dos Estados Unidos. As rotinas de lindy, conga, mambo e rock vêm e vão, com o fluxo e refluxo das modas musicais, mas a figura na frente ou nas laterais da banda, com bastão na mão e mão no quadril, continua presente e importante. Para um documento recente, muito fugaz, da pose em filme, ver: Beauty knows no pain, um documentário sobre as Kilgore College Rangerettes, de 1971-2. Para documentação do século XIX de negros girando bastões, com a mão esquerda no quadril, ver: HARRIS, Middleton. The Black Book. N. Y.: Random House, 1974, p. 42-43 e p. 45.

[113] SZWED, John. Introduction. In: FAUSET, Arthur Huff. Black Gods of the Metropolis. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971, vii: "A maioria dos comentaristas sobre possessão espiritual na América do Norte notou, no passado, que alguns euro-estadunidenses, especialmente no Sul, também a experimentam em seus serviços religiosos e argumentaram, portanto, que a possessão espiritual deve ter se difundido dos brancos para os negros. A mesma lógica arrogante presumivelmente atribuiria contribuições afro-estadunidenses à cultura dos Estados Unidos - como jazz, baton twirling, dialetos negros e culinária negra - à Europa, simplesmente porque um grande número de brancos também as pratica."

[114] John Szwed chamou minha atenção para esse problema.

[115] Stop! ln the name of love (Motown HLB-113303, 1965). A pose preserva sua dupla face através do Atlântico: aqui, ela aprofunda o arrebatamento em função amor; lá - no Kongo, em depoimento coletado por Cornet -, ela é feita para sinalizar o desejo de uma mulher de pôr fim ao casamento.

[116] FINE, Elizabeth. Aesthetic patteming of verbal art and the performance-centered text. Working Papers in Sociolinguistics, Austin, Texas: Southwest Educational Development Laboratory, nov. 1980, 74-80, p. 31.

[117] Fu-Kiau, entrevista, 26 nov. 1980.

[118] FINE, op. cit., p. 32.

[119] Por exemplo, entre os exemplares da coleção de minkisi n'kondi do Museu Tervüren: 19845, 22480, 22433, 59.48.1, 22436, e assim por diante.

[120] FINE, op. cit., p. 33.

[121] Fu-Kiau, entrevista, 21 jan. 1981.

[122] Ibid.

[123] Fu-Kiau diz que a pose também simboliza, em contextos fúnebres, "alegria" e "a continuidade da vida.”

[124] LIGON, Richard. A true and exact history of the Island of Barbados. London, 1657.

[125] LESLIE, Charles. A new and exact account of Jamaica. Edinburgh, 1740, p. 325-326.

[126] BONTEMPS, Arna. Black Thunder. Boston: Beacon Press, 1968, p. 52-53.

[127] William Stewart, comunicação pessoal, dez. 1980.

[128] WELTY, Eudora. One Time, One Place. New York: Random House, 1972, p. 85, legenda: "Falando em língua desconhecida, Holiness Church/Jackson."

[129] A distribuição de árvores de garrafa ao longo do Sul é impressionante, mas uma discussão completa não pode ser feita aqui. Algumas das concentrações mais importantes incluem East Texas (Mrs. C. E. Hilton, San Augustine Library, comunicação pessoal, 8 dez. 1978); o sudeste de Arkansas (James D. Martin, comunicação pessoal, out. 1980); e o sul do Alabama (James Poteet, comunicação pessoal, outono de1979). Além disso, eu estudei e fotografei árvores de garrafa no norte do Mississippi, em março de 1980; e em Sheldon, na Carolina do Sul, em dezembro de 1976. Em uma publicação futura, após estudos de campo adicionais, abordarei a questão da geografia artística e da história dessa forma nos Estados Unidos.

[130] WELTY, Eudora. The wide net and other stories. New York: Harcourt, Brace, Jovanovich.1971, p. 156.

[131] Ibid. O trecho é interessante, não só pela estimativa do tempo gasto por um artesão negro em suas árvores (nove anos, cerca de uma árvore por ano), mas também pela observação implícita sobre o cuidado dedicado a essas estruturas espirituais, que iguala ou até supera aquele dedicado à própria casa. É uma observação comparável ao comentário de Anita Jacobson-Widding sobre as estruturas kiimbi ou muzidi em terra Bwende: "Em quase todos os pátios [...] há [...] uma casa-túmulo. Esta casa extra é geralmente de melhor qualidade do que a casa em que os vivos habitam."

[132] WELTY, One Time…, p. 41.

[133] James D. Martin, comunicação pessoal, jan. 1981.

[134] L'Abbé Proyart. Histoire de Loango, Kakongo et autres royaumes d'Afriques. Paris: Berton and Crapart, 1776, p. 192-3

[135] ATWOOD, Thomas. The history of the Island of Dominica. London: J. Johnson, 1791, p. 265.

[136] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren, no. 21124. A maior parte das louças suspensas e pregadas são brancas e por isso brilham com a cor do outro mundo.

[137] Fu-Kiau, comunicação pessoal, nov. 1978. Em entrevista de 8 nov. 1980, Fu-Kiau acrescenta: "Suspender pratos em árvores simboliza 'isso não o fim.' 'A morte não acabará com nossa luta.' Pratos deixados, não no chão, mas no ar, significam 'ainda não terminamos.’ Isso é consistente com outra ideia, a da continuidade dos talentos do morto."

[138] ANÔNIMO. Mississippi Bottle Trees ward off “Evil Spirits." Vicksburg Evening Post, Vicksburg, Mississippi, 20 fev. 1974, p. 22. Agradeço a William Ferris por chamar minha atenção para este artigo e a James Martin por muitas conversas úteis.

[139] Ibid.

[140] Ibid. Em adição: James Martin, comunicação pessoal, fev. 1981.

[141] Reportado ao autor por Roger Abrahams, no verão de 1972.

[142] Sou grato a Guy Dorsey, irmão do falecido Henry Dorsey, por me guiar, no condado de Oklham, em Kentucky, até esta escultura em particular, em fevereiro de 1975.

[143] Willy Ruff, comunicação pessoal, set. 1979.

[144] Arquivo de fotos do Museu de Tervüren. E. PH. 3487. Fotografia de L. Cahen, 29 out. 1948. Um rifle (nkele) e a representação de um elefante (nzau) adicionam outras imagens de poder a este túmulo.

[145] Wyatt MacGaffey, comunicação pessoal, mar. 1981.

[146] Arquivos da Svenska Missionsforbundet, Estocolomo. no. A 897.

[147] Fotografia de R. F. Thompson. oeste da Carolina do Sul, 29 dez. 1976.

[148] VLACH, Sources..., v. I, p. 69: "Em 1810, Nova Orleans tinha 12.225 habitantes: 4.507 brancos, 4.386 escravizados e 3.332 negros livres. Os 7.718 negros eram quase o dobro do número de brancos. O influxo de imigrantes haitianos fez de Nova Orleans uma cidade verdadeiramente negra;" p. 70: "Foi provavelmente essa grande comunidade de negros livres a responsável pela construção das shotgun houses;" p. 72: "Em 1839, François Ducoing solicitou que Laurent Cordier construísse uma maison basse. Este termo é usado no Haiti para edifícios do tipo shotgun;" p. 73: "As shotgun houses parecem se desenvolver em Nova Orleans quase ao mesmo tempo em que há uma entrada maciça de negros livres do Haiti na cidade. Esta circunstância sugere que elas tem um passado fora dos Estados Unidos [...] na ilha do Haiti." Comparar com: REED, Ishmael. "I Hear You, Doc." Shrovetide ln Old New Orleans. Garden City: Doubleday & Company, 1978, p. 281: "Durante o carnaval, os haitianos observam as tradições Arawak e se vestem como índios, um costume que foi transportado para Nova Orleans." Para fontes sobre a influência Kongo nas Índias Ocidentais durante a época colonial, é inestimável o livro: SZWED, John F.; ABRAHAMS, Roger D.. Afro-American folk cuture: an annotated bibliography. Philadelphia: lnstitute for the Study of Human lssues. 1978.

[149] HYATT, op. cit., v. III (1973), p. 1959: "Ele não vai beber mais uísque; se o fizer, será um homem morto.” O informante de Hyatt era um curandeiro negro de Waycross, capital do condado de Ware, sudeste da Geórgia.

[150] Fu-Kiau, entrevista, 17 abr. 1981.

[151] Fu-Kiau, entrevista, 9 out. 1977.

[152] Túmulo mukimbungu, citado acima, dos Arquivos da Svenska Missionsforbundet, Estocolmo, no. A 1070. 1953. Agradeço a Ragnar Widman por disponibilizar cópias das fotografias dos arquivos. Sobre a referência a árvores e sepulturas negras na Carolina do Sul do século XIX, ver: BRYANT, William Cullen. Letters of a traveler: or notes of things seen in Europe and America. New York: Putnam, 1850, p. 94.

[153] AUBIN, Eugene. En Haiti. Paris: Librairie Armand Colin, 1910, p. 212, prancha XXIII: "Túmulo sob um 'mapou,' na planície de Léogane." Agradeço a Tom Steinberg, de San Francisco, por compartilhar suas fotos de túmulos na área de Jacmel, no sul da península do Haiti. Em 21 mar. 1981, fotografei o cemitério ilustrado na Figura 63, perto de Les Cayes. Entrevista com André Pierre, 22 mar. 1981.

[154] APRAXINE, Pierre. Haitian Painting. New York: The American Federation of Arts, 1973, p. 27.

[155] Fu-Kiau, entrevista, 22 abr. 1981.

[156] BASS, Ruth. The Little Man, reimpressão de Scribner’s Magazine, 97 (1935), p. 120-23, in: DUNDES, Alan. Mother Wit from the Laughing Barrel. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973, p. 395.

[157] EISENCRAFT, Barbara. Grave traditions in Africa and America. New Haven, Connecticut, 11 abr. 1977, estudo datilografado não publicado, p. 8, citando materiais sobre o Millermore Estate, da Dallas Historical Society. Sou grato a Barbara Eisencraft pela cópia de suas fotografias de campo.

[158] BUTTERWORTH, Hezekiah. A zigzag journey in the sunny South. Boston; Estes and Lauriat, 1887, p. 229. A legenda dessa ilustração diz: "Antigos cemitérios de negros." Cfr. Mort, funerailles, deuil et culte des ancêtres. Bandundu: Publications du Centre d'Etudes Ethnologiques, 1969, p.15: "No entanto, a exposição de cadáveres no mato ou em árvores nem sempre é praticada com a intenção de recusar o sepultamento."

[159] Fu-Kiau, entrevista, 17 abr. 1981.

[160] lbid.

[161] lbid.

[162] Fu-Kiau, entrevista, 22 abril de 1981.

[163] PETERKIN, Julia, Roll, Jordan, Roll. New York: Robert O. Bailou, 1933, p. 146.

[164] Fu-Kiau, entrevista, 12 abr. 1980.

[165] JOHNSON, James Weldon. The autobiography of an Ex-Colored Man. New York: Hill and Wang, 1960, p. 4.

[166] MICHAEL, Dorothy Jean. Grave Decoration. Publications of the Texas Folklore Society, 18 (1943), p. 130: "O vidro é usado muito profusamente em cemitérios negros."

[167] André Pierre, entrevista, 22 mar. 1981.

[168] OTTENBERG, Simon. Notes on burials and graveyards ln the community of White Bluff. Georgia, segmento datilografado não-publicado de um caderno de campo, verão de 1950, p. 3. Sobre a própria comunidade, Ottenberg observa (comunicação pessoal, 14 fev. 1981): “Muitas coisas sobre a liderança dos vivos me parecem muito africanas (sua natureza conciliatória, o controle exercido por algumas poucas famílias, a presença de grupos associativos, os líderes religiosos sendo também líderes seculares, etc.). " Para mais detalhes, ver: OTTENBERG, Simon. Leadership and change in a Coastal Georgia Negro Community. Phylon, XX, 1, primavera 1959, p. 2-18.

[169] LAMAN, Karl E.. The Kongo. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia, 1962, v. III, p. 37.

[170] Bessie Jones, entrevista, outono de 1975. Ela cita as tradições dos negros de St. Simons Island, na Georgia.

[171] Mbungu amputu (Diplognatha gagates), um besouro semelhante ao escaravelho, com uma carapaça de brilho metálico brilhante. Cfr: LAMAN, Dictionnaire…, v. II, p. 542. Ver também: LAMAN, Kongo…, v. III, p. 74: "Os cernes medicinais das imagens contêm um inseto vivo ou um objeto oriundo de uma sepultura, que está possuído por um nkuyu e que pode ser incorporado à imagem e ao nkisi. Antigamente, as imagens continham besouros ou outros animais com brilho metálico, destinados a assustar os bandoki com seu brilho e fulgor, mas estes são agora substituídos por pedacinhos de espelho ou vidro comum."

[172] Fu-Kiau, entrevista, 22 abr. 1981. Observe os variados significados atribuídos ao uso de carapaças brilhantes ou espelhos, no centro de um amuleto, para capturar, atrair ou repelir um espírito, bem como sugerir as águas faiscantes através das quais alguém espia o outro mundo, na busca pelo poder legitimador dos mortos.

[173] Ibid.

[174] Cfr., por exemplo, o bastão da família Patton, c. 1916, em Cherry Valley, no Arkansas. Este é um bastão de fabricação afro-estadunidense, decorado com a figura de um homem no topo, uma serpente implícita e o brilho de strass embutido. John Szwed relata a inserção de folhas de alumínio atrás de vidros, em lápides perto de Midway, na Georgia; tinta prateada é usada para conferir brilho a abóbadas e túmulos em cemitérios negros em Norfolk, Virgínia e Geórgia; conchas brancas, ao contrário de outras variedades, são usados ​​para forrar ou decorar sepulturas em todo o Sul: e, finalmente, em Tallahassee, como exemplo último e único, há uma lápide triangular fascinante, datada de 28 de junho de 1974, que é adornada com uma cabeça de boneca embutida e trinta e uma gudes de vidro reluzentes.

[175] PUCKETT, op. cit., p. 233.

[176] PETERKIN, op. cit., p. 146.

[177] BENTLEY, Jeremiah. Kongo influence on an old Black cemetery: Mt. Zion Methodist Church, Jacksonville, Florida. Artigo não publicado, mai. 1977, p. 3.

[178] Ver Fu-Kiau, entrevista, outono de 1977, sobre fogueiras acesas em túmulos importantes no Kongo como um precedente para os fragmentos de lamparinas em túmulos afro-estadunidenses. Ver também: MICHAEL, op. cit., p. 133: "Uma crença dos negros é que [lamparinas] 'iluminam' ou 'conduzem o falecido para a Glória'. Um negro do Alabama diz que elas são usadas ​​porque 'fornecem luz na hora da morte' [...] lamparinas são empregadas em cemitérios mais amplamente do que globos de luz, mas a nova moda está substituindo a antiga, mesmo em cemitérios." James Agee, em Let us now praise famous men (New York: Ballantine Books, 1966), publicou uma fotografia assombrosa desta última tradição entre os brancos pobres do Alabama.

[179] Fu-Kiau, entrevista, 30 set. 1980.

[180] Ibid.

[181] TORIAN, Sarah Hodgson. Notes and documents: Ante-bellum and war memories of Mrs. Telfair Hodgson. Georgia Historical Quarterly, 27, 4, dez. 1943, p. 352: "Os túmulos de negros eram sempre decorados com o último objeto usado pelos falecidos, e jarros quebrados e cacos de vidro colorido eram considerados ainda mais apropriados do que as conchas brancas da praia próxima. Às vezes, eles esculpiam rudes figuras de madeira, como imagens de ídolos, e às vezes uma colcha de retalhos era colocada sobre o túmulo.” É interessante que esse estilo das plantations seja semelhante ao que ainda é encontrado hoje em muitos túmulos tradicionais, sem as colchas, e com exceção das figuras guardiãs, semelhantes a mintadi, que agora são vistas apenas esporadicamente ou referidas implicitamente, por meio da presença de figuras de porcelana e outras imagens compradas em lojas.

[182] PARSONS, Elsie Clews. Folk-Lore of the Sea lslands, South Carolina. Memoirs of the American Folk-Lore Society, Cambridge, The American Folklore Society, 16, p. 1923, p. 214. Comparar com: Drums and shadows. Athens: University of Georgia Press, 1940, p. 58: "[Em Brownsville, Geórgia] Eles costumavam colocar na sepultura as últimas coisas usadas pelo falecido. Isso deveria satisfazer o espírito e evitar que ele os seguisse de volta para a casa" [Ênfase e padronização da ortografia "pitoresca" nossas].

[183] MICHAEL, op. cit., p. 135.

[184] DENNETT, R. E.. Seven years among the Fjort. Londres: Sampson Low et al, 1887, p. 177-179, ilustração em frente a p. 104.

[185] Fu-Kiau, entrevista, 25 out. 1980.

[186] JANZEN, John M.. The quest for therapy in Lower Zaire. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 162-3.

[187] BARCLAY, Alexander. A practical view of the present state of slavery. London, 1828, p. 131-33.

[188] BASS, Ruth. Mojo.  In: DUNDES, Alan (ed.). Mother Wit from The Laughing Barrell. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973, p. 382.

[189] Sou grato a Judith Wragg Chase por me apresentar o Sr. Alston.

[190] Drums and shadows, op. cit., 167. See also VLACH, The Afro·American tradition, p. 144: "Em 1924, Homer Eaton Keyes encontrou um cemitério negro em Camden, Carolina do Sul, que ‘estava repleto de galinhas de vidro.’ Suas fotos registram galinhas de vidro prensado em meio a conchas de ostras em frente a uma lápide datada de 1912.”

[191] Fu-Kiau, entrevista, 18 abr. 1981.

[192] Ibid.

[193] Xerife J. E. McTeer de Beaufort, Carolina do Sul, entrevista, 13 nov. 1975.

[194] Mort, funerailles , op. cit., p. 34.

[195] Drums and shadows, op. cit., p. 130.

[196] COHEN, Hennig. Burial of the drowned among the Gullah Negroes. Southern Folklore Quarterly, XXII, 2, jun. 1958, p. 95. Ver também: Drums and shadows, op. cit., 130. Para uma manifestação informal da tradição das últimas palavras ditas aos mortos, no mundo do jazz: MEZZROW, Mezz; WOLFE, Bernard. Really the Blues. Garden City: Anchor Books, 1972, p. 256, onde um homem negro faz piada com um cadáver: "Que cara era o Buck! Ele não ficou feliz com a morte de Tommy, entenda: apenas tirou proveito disso, tentando continuar e me dar coragem."

[197] CHASE, Kathleen. Syncopated Dirges, Ragtime Parades. Americas, 16, 3, mar. 1964, p. 20.