Reflexões sobre a ideia de semelhança, de artista e de autor nas artes - Exemplos do século XIX *

Jorge Coli

COLI, Jorge. Reflexões sobre a ideia de semelhança, de artista e de autor nas artes - Exemplos do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 3, jul. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ha/coli.htm>.

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                     1.            Começo por um trecho, lido há décadas, no tempo de minha graduação em história da arte. É extraído de um artigo escrito por Jean-Philippe Chimot sobre Delacroix, e publicado na revista Information de l’Histoire de l’art, de 1964[1], intitulado “Delacroix e a sociedade de seu tempo”. Ele diz: “Aqui, a noção de linguagem é central. Trata-se de ultrapassar seu sentido exclusivo de 'retórica', do estilo discursivo herdado do classicismo (ou antes, do academismo) para se abrir ao sentido mais largo de 'pensamento', supondo que pode existir um pensamento musical e um pensamento plástico com seus elementos constitutivos de uma natureza diferente das palavras e das frases”.

                     2.            Esta passagem, escrita em 1964, era então de grande originalidade: arte concebida não como forma, ou como objeto, mas como pensamento[2]. Partindo dela, somos levados a deduzir que uma obra de arte condensa um pensamento, e que esse pensamento não é o pensamento do artista: é o pensamento da obra. O artista, o criador, é um indivíduo que pensa como cada um de nós, por meio de palavras e de frases. Ora, não é com palavras e frases que ele se torna artista (a menos que seja um poeta ou ficcionista, mas aqui as palavras adquirem uma opacidade suplementar, que as faz “pensar” como arte, não como definições ou conceitos). O artista precisa das palavras e das frases para viver, para se comunicar, para pedir um café ou dizer bom dia. Quando produz uma obra, emprega elementos que constituem um pensamento objetivado e material.

                     3.            Um quadro, uma escultura desencadeiam, graças à materialidade de que são feitos, “pensamentos” sobre o mundo, sobre as coisas, sobre os homens. Esses “pensamentos”, incapazes de serem formulados com conceitos e frases pela própria obra, provocam comentários, análises, discussões, que se alteram, ao infinito, conforme seja o analista, o universo cultural ao qual pertence, a geração da qual faz parte. O artista, ele próprio, pode propor uma análise de sua criação. Ele será, porém, rigorosamente, apenas mais um analista, como os outros o foram.

                     4.            A obra de arte, como pensamento material e objetivado, deixa de ser objeto e se torna sujeito, sujeito pensante, como o é um tratado filosófico, apenas com uma diferença fundamental de meios. O artista, portanto, introduz um ser pensante no mundo, ser autônomo em relação a seu próprio criador.

                     5.            No entanto, se reunimos obras feitas pelo mesmo artista, constatamos constantes, não apenas estilísticas ou formais, mas de pensamento. Ou seja, o conjunto da produção de um mesmo artista, pertence a um pensamento genérico do qual participa cada obra. Cada obra se torna uma parte orgânica desse todo que a ultrapassa. Seria esse pensamento genérico o pensamento do artista?

                     6.            A resposta é não. O artista não exprime esse pensamento geral por palavras: é o conjunto de sua obra que o exprime. Temos portanto duas unidades diferentes: a genética, que preside à criação, e que pertence ao artista, e uma outra, a posteriori, que é extraída das obras.

                     7.            Os especialistas da arte medieval (mas isso é verdadeiro também para alguns outros períodos) encontram, com certa frequência, obras que se assemelham em seu estilo, mas também em seu espírito. Muitas vezes, esses conjuntos são anônimos. Eles podem concluir que foi uma única mão que os fez, embora não se conheça o artista. Então, inventam um nome: “Mestre dos Cravos”, “Mestre da Anunciação de Aix”, “Mestre da Vela”.

                     8.            Não seria rigoroso, porém, considerarmos esses “mestres” como artistas; ou pelo menos não como consideramos Delacroix. De Delacroix conhecemos sua vida, suas viagens, os locais onde morou. Temos um diário que ele escreveu. Temos seus comentários sobre outros artistas. Do Mestre dos Cravos não sabemos nada do que precede a obra. Nada que esteja ligado à sua pessoa, nada que se vincule a uma personalidade, a uma história pessoal. Tudo o que temos dele, ao contrário, provém de suas obras.

                     9.            O grupo da revista Les cahiers du cinéma criou, nos anos de 1950, uma noção muito interessante para se compreender o cinema: a ideia de auteur. Seus inventores foram André Bazin, e depois François Truffaut, que forjou a expressão “política dos autores”. Sem entrar numa discussão mais aprofundada sobre essa noção, há uma consequência sua que quero assinalar aqui. Esses teóricos designavam como autores os cineastas que imprimem características originais de criação em seus filmes. A partir dessas características, é possível distinguir um diretor autor, de um não-autor. Talvez, mais rigorosamente e melhor, poderíamos empregar esse princípio de maneira levemente diversa, dizendo que todos os cineastas são autores: apenas, uns são bons, outros são ruins.

                  10.            Mas não é este ponto que me interessa aqui. Quero chamar a atenção para efeito desse princípio na crítica cinematográfica. Os críticos marcados pelo princípio da política dos autores, consideram os filmes em relação à filmografia do realizador, buscando as recorrências e temas desenvolvidos nos diferentes filmes de um cineasta. Essa posição permitiu aos Cahier du Cinéma revelar grandes realizadores norte-americanos, considerando-os autores, como Hitchcock, Hawks ou Huston, realizadores esses que, eles próprios, não se consideravam autores. Pensavam estar apenas produzindo produtos de divertimento destinados ao sucesso e com objetivos do melhor lucro possível. Suas obras foram, contudo, capazes de constituir uma entidade artística: o auteur.

                  11.            Desse modo temos uma distinção entre o artista (aquele que está na gênese da obra) e o autor (a unidade que reúne as constantes do pensamento artístico embutido nas obras}.

                  12.            Creio que, se separarmos com clareza o artista do autor, teremos duas categorias que permitem compreender melhor o fenômeno artístico, com consequências importantes, algumas de natureza social, outras de natureza concreta.

                  13.            Primeiro, essa cisão permite esvaziar a autoridade do artista. Ele é o criador da obra, está em sua gênese como um demiurgo. Mas o mundo que ele instaurou passa a viver por si só. Nossa concepção do criador nas artes foi muito marcada pelo romantismo. Imaginamos que o autor “exprime” sua alma, seus sentimentos em sua criação. Imaginamos que ele tem uma autoridade natural sobre seus quadros, suas esculturas, suas gravuras.

                  14.            Ora, se considerarmos que o artista é um médium para o autor, que se encontra nele mas que não se identifica com ele, devemos concluir que ele não exprime nada, mas que fabrica coisas carregadas de expressão. É interessante ter certos dados biográficos do criador, por exemplo, para compreendermos a gênese da obra. Mas, passado esse ponto, a obra começa a falar por si. Ela pode mesmo negar o dado genético, ou então confirmá-lo. Mas agora isso deixa de importar, porque a obra está dizendo outra coisa, falando por si mesma.

                  15.            Desse modo, deveríamos por em questão, por princípio teórico, e sempre que fosse possível, na prática, o poder que o artista possui em alterar sua própria obra. Quantos escritores e poetas, na velhice, reviram e reescreveram suas obras de juventude, modificando-as segundo uma concepção tardia, que eles acreditaram melhor, decretando-as como definitivas? Quantos compositores? Stravinsky, nesse aspecto, é um exemplo clássico. Na verdade, dessas modificações resultam duas obras diferentes, a mais antiga e a mais nova, que incorporam modos diversos da criação segundo os diferentes momentos. No caso das artes plásticas, a questão concreta se impõe, já que a obra alterada esconde ou desfigura o primeiro original.

                  16.            Para sermos rigorosos, teríamos que admitir o fato de nenhum artista ter, portanto, o direito de destruir qualquer uma de suas obras. Está claro que, humanamente e, suponho, legalmente, o artista tem o poder de anular o que criou. Mas o princípio teórico é importante. Trago aqui um exemplo concreto. Há algumas décadas, fiz parte do Condephaat, o Conselho que discute e decide dos bens a serem tombados no Estado de São Paulo. Chegou um dossiê reclamando a proteção legal para a Fábrica de Biscoitos Duchen, no município de Guarulhos. Ela havia sido construída por Oscar Niemeyer em 1950; era, sem dúvida, um marco na história da arquitetura industrial do Brasil, e um novo proprietário tinha a intenção de pô-la abaixo. Um membro do conselho levantou, porém, um ponto. Ele afirmava que Niemeyer não tinha essa sua obra em alta conta. A decisão tomada pelo conselho seguiu o princípio de autoridade do artista: consultar o arquiteto. Que se mostrou indiferente à destruição. O conselho, assim, recusou o tombamento e a fábrica foi destruída.

                  17.            Temos aqui um evidente exemplo do conflito entre o artista e o autor. O artista, ser concreto, de carne e osso, pensante e raciocinante, confere a si mesmo o direito de desfalcar o autor, de modificar suas características pela supressão de uma obra.

                  18.            Para o historiador, o princípio de método, porém, só pode ser o da consciência desse pensamento objetivado numa obra, que se une às outras para constituir um pensamento mais amplo e complexo. É essa separação entre o autor e o artista que nos garante o rigor.

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                  19.            Um outro ponto é o da natureza imaterial, própria à obra de arte. Essa noção - obra de arte - traz, de modo imediato, a referência a uma “coisa”, um objeto palpável, que os museus e coleções têm, por obrigação, de conservar, lutando contra o tempo que passa e que altera inevitavelmente a matéria de que são feitas. Seria possível desenvolver, neste ponto, uma discussão sobre as questões imateriais ligadas ao ato, muito concreto e físico, de conservação e restauração.

                  20.            Prefiro, porém, avançar por um outro caminho. Esse objeto material, ao qual chamamos “obra de arte”, necessita desse princípio obsessivo de conservação por um claro motivo. A obra é um unicum, algo que não pode ser feito novamente. Sabemos, nas práticas reflexivas, nas práticas do gosto e mesmo nas práticas do mercado, as diferenças hierárquicas que existem entre um original e uma cópia. Mais ainda, sabemos que a reprodução fotográfica de uma obra não é a obra, mas uma espécie de sucedâneo, de mero aide-mémoire. Conhecemos todos um texto arqui-célebre, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, cujas origens fortemente românticas recobrem a obra por uma aura de um misticismo fetichista. Condena os processos de banalização trazido pelos meios mecânicos de reprodução. A imagem fotográfica de um quadro não é o quadro; não apenas é menos que o original, mas pode ser mesmo sua negação, porque expõe, em grande escala, uma aparência que não possui a imanência sagrada da obra.

                  21.            Os historiadores da arte sabem, no entanto, que existe uma ligação forte entre coisas que se assemelham. A história da arte moderna afirmou-se com a fotografia, ou seja, com algo que reproduz um original. São as fotos de quadros, de estátuas, de edifícios, que permitem aos historiadores os estudos comparativos. Eles trabalham com imagens de imagens. Os grandes centros internacionais de estudos em história das artes possuem grandes mesas. Grandes mesas são necessárias e indispensáveis: sobre elas podem-se dispor várias fotografias e comparar. Comparar é uma forma de compreensão silenciosa da relação entre as imagens.

                  22.            As palavras não conseguem apreender as obras: podem ser, no máximo, indicativas de intuições mudas. Num estudo de história da arte, as imagens nunca são secundárias, ilustrações destinadas a embelezar um texto. Elas são nucleares, porque carregam em si o próprio processo de raciocínio. Quando Roberto Longhi quer demonstrar que Piero di Cosimo viu a pintura dos mestres setentrionais, não perde tempo em expor argumentos: dispõe, numa página, detalhes de quadros que mostram a semelhança entre obras realizadas na Itália e na Alemanha no século XV. Basta isso. Para evocar outro nome essencial na história da arte, Aby Warburg e o célebre Atlas de Imagens Mnemosyne, cujo princípio comparativo criava relações intuitivas e expressivas apenas pela relação mantida entre as obras, graças à sua proximidade e disposição sobre uma prancha. É o sonho de uma história da arte por imagens, sem palavras

                  23.            Por esse meio, é possível estabelecer filiações, contatos, reconstituir a cultura visual de um pintor do passado. Essa prática demonstra, por sinal, que não existe tabula rasa em artes. Por trás de um quadro ou de uma estátua, existe outro e mais outro. Os historiadores da arte costumam dizer que é preciso treinar o olho. Isto significa incorporar um saber, sempre silencioso, sempre intuitivo, capaz de captar o que há de comum entre as formas. Mas que lugar é esse que a preposição “entre” indica? Não há apenas dois lugares, o lugar de uma imagem e de outra imagem, o lugar de uma aparência e de outra aparência. Há um terceiro lugar, uma terceira margem do rio, onde, invisíveis, imateriais, o semelhante se funde no semelhante, onde a analogia se metamorfoseia em fusão.

                  24.            O pintor Jean-Dominique Ingres (1780-1867) acreditava que a perfeição do todo se originava na perfeição das partes. Trabalhava sobre os elementos das imagens que deviam compor uma pintura de maneira obsessiva, fazendo e refazendo cada um. Com eles, montava a figura repetidamente, até chegar à convicção de que ela se tornara perfeita. A forma obtida então, viajava de quadro em quadro, reaparecendo nas telas sucessivas que pintava. O caso mais evidente é o dos nus femininos, que constituem uma longa sequência em sua obra. O desfile termina na apoteose do Banho turco [Figura 1], quadro que reúne nus numerosos, concebidos e retomados anteriormente, ao longo de sua carreira. Formou-se, deste modo, uma galeria constituída por eclosões que manifestam o princípio de uma imagem acima das imagens, obtida pelo pintor e fortalecida a cada nova aparição. Esta palavra, aqui, não é casual. Ela nos remete ao princípio da imagem como fantasma, cara a Aby Warburg. A Banhista de Valpinçon [Figura 2] “reaparece” na Pequena Banhista [Figura 3] e, enfim, em O banho turco. Ou seja, ela nasce numa tela, viaja para o invisível, volta em outra, e ainda em outra, ao mesmo tempo como a mesma e como nova.

                  25.            O processo singular, próprio ao artista, se reitera no conjunto coletivo das produções artísticas. Um dos grandes prazeres dos historiadores das artes é descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, tomando novos sentidos, ressuscitando o mesmo para se transformarem em outro.

                  26.            A exploração mais sutil dessa terceira margem do rio foi feita não por um teórico, nem por um historiador, mas por um romancista: Marcel Proust em sua obra literária. Proust era fascinado pelas artes e pela ressurreição das imagens.

                  27.            Walter Benjamin assinalou, numa passagem breve, a importância da noção de semelhança no universo de Proust.

                  28.                                                  Toda interpretação sintética de Proust deve partir necessariamente do sonho. Portas imperceptíveis a ele conduzem. É nele que se enraíza o culto frenético de Proust, seu culto apaixonado da semelhança. Os verdadeiros signos em que se descobre, de modo sempre desconcertante e inesperado, nas obras, nas fisionomias, nas maneiras de falar. A semelhança entre dois seres, a que estamos habituados e com que nos confrontamos em estado de vigília, é apenas um reflexo impreciso da semelhança mais profunda que reina no mundo dos sonhos, em que os acontecimentos nunca são idênticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes entre si.[3]

                  29.            Porém, Walter Benjamin pressupõe À la recherce du temps perdu como uma obra autobiográfica[4], que seria o sonho lembrado de um vivido pessoal. Esta relação direta entre autor e narrador foi sempre feita pela grande maioria dos especialistas de Proust, o que confere uma percepção mesclada de seus processos genéticos entre autor e ficção. No entanto, é legítimo - e eu seria tentado a dizer, é a única legitimidade possível - tomar À la recherce du temps perdu pelo que ela de fato é: uma obra de ficção, da qual o narrador não é o autor. Os exegetas de Proust deveriam se lembrar da máxima de Nietzche: “Uma coisa sou eu, outra são os meus escritos...” Assim, aquilo que é chamado por Benjamin de “mundo dos sonhos”, considerado a partir de uma vigília “real” é, na verdade, o lugar de experiências imaginárias (pouco importa se inspiradas ou não da realidade vivida) onde, como veremos, se situa a obra-de-arte.

                  30.            Proust frequentou o Louvre na sua juventude e fez viagens a Veneza, Pádua, Holanda e Bélgica. Essas atividades são testemunhos de um contato intenso com as obras reais que descobria, mas não significam uma presença insistente diante dessas mesmas obras. O essencial de sua familiaridade com a arte vinha de um outro modo: vinha por meio de reproduções fotográficas. O que importa ao narrador de À la recherche é tecer as relações entre essas réplicas, a obra, e o lugar delas, a terceira margem do rio.

                  31.            Proust assinala: esta relação entre as obras e suas reproduções não são simples, nem mecânicas. Nem as reproduções são apenas veículos que transmitem, como podem, de maneira subalterna, a essência do original.

                  32.            Numa passagem, o narrador de Proust evoca a estátua de uma virgem medieval da qual ele vira com paixão numerosas fotografias e mesmo sua reprodução em gesso no antigo Museu dos Monumentos Franceses de Paris. Agora, ia para a cidade fictícia de Balbec, onde a escultura real se encontrava. Eis a passagem:

                  33.                                                  Dizia para mim mesmo: É aqui, é a igreja de Balbec. Essa praça que parece saber sua glória, é o único lugar no mundo que possui a igreja de Balbec. O que vi, até agora, eram fotografias dessa igreja e, desses Apóstolos, dessa Virgem do pórtico, tão célebres, apenas as moldagens. Agora, é a própria igreja, é a própria estátua, elas, as únicas: é muito mais.

                  34.                                                  Era menos, também, talvez. [...] meu espírito, que tinha elevado a Virgem do Pórtico fora das reproduções que eu tivera sob os olhos, inaccessível às vicissitudes que poderiam ameaçá-las, intactas, se fossem destruídas, ideal, tendo um valor universal, espantava-se por ver a estátua, que ele havia esculpido mil vezes, reduzida agora à sua própria aparência de pedra, ocupando, em relação ao alcance de meu braço, um lugar onde tinha por rivais um cartaz eleitoral e a ponta de minha bengala, prisioneira da Praça, inseparável do desembocar da rua principal, não podendo escapar aos olhares do Café e do escritório de ônibus, recebendo em seu rosto a metade do sol poente - e logo, dentro de algumas horas, a claridade do lampião - do qual o escritório do Banco de Descontos recebia a outra metade; banhada, ao mesmo tempo que essa Sucursal de um Estabelecimento de Crédito, pelo ranço da cozinha da doceria; submetida à tirania do Particular a tal ponto que, se eu quisesse traçar minha assinatura sobre essa pedra, é ela, a Virgem ilustre que até então eu tinha dotado de uma existência geral e de uma intangível beleza, a Virgem de Balbec, a única (o que, por infelicidade, queria dizer a única), que, sobre seu corpo encardido pela mesma fuligem que as casas vizinhas, teria, sem poder apagá-lo, o traço de meu pedaço de giz e as letras de meu nome, e era ela enfim, a obra de arte imortal e tão longamente desejada, que eu encontrava metamorfoseada, assim como a própria pequena igreja, numa velhinha de pedra que eu podia medir a altura e contar as rugas.[5]

                  35.            Neste trecho crucial, Proust pressupõe um lugar para as obras “de significado eterno”, como diz, que deve se encontrar não apenas fora do quotidiano, mas fora daquilo que seria o “real”. Lembremos: em meio a tantas citações de obras existentes que percorrem À la recherche, a estátua da virgem encontra-se na igreja de uma cidade que não existe (Balbec), mas, que não deixa de ser o “real” paradigmático. A obra não existe nesse real, nesse concreto, concreto e real que podem, graças à expectativa de um certo fetichismo do original, agentes destrutores de alguma essência própria atribuída às virtudes aparentemente irredutíveis do concreto. “Elas, as únicas: é muito mais” cria uma expectativa provocada pelo privilégio absoluto do singular. Mas logo depois, a sequência, desencantada, demonstra como o real se encontra aquém da obra.

                  36.            A estátua real é menos verdadeira que a estátua construída pelo espírito. Inserida na banalidade do quotidiano, é a escultura autêntica, a obra de arte única, que perde a sua aura. Esse quotidiano significa uma imersão no “real”.

                  37.            Encontramo-nos portanto em oposição diametral à concepção da aura pensada por Walter Benjamin. O ponto muito original de Proust, inteiramente anti-romântico e avesso ao fetichismo, é a ideia de que a obra de arte não se reduz à sua materialidade. Essa materialidade tornou-se uma espécie de lastro que pode ser substituído, com certas vantagens, pelas representações materiais - a fotografia, a moldagem - e pelas representações do espírito, pela memória.

                  38.            A pedra, ou qualquer outra matéria, captou as intuições criadoras do artista; o espectador proustiano termina por intuir essas intuições, que brotam na matéria, mas existem fora dela. Na verdade, a obra encontra-se nesses “espaços interiores”, onde se constrói uma verdade superior à da experiência, embora seja alimentada por ela:

                  39.            Não se trata de um “mundo das ideias”, perfeito e pré-existente, nem a memória de Proust compara-se à reminiscência platônica. Trata-se de um lugar de encontros, onde a obra, e a sua visão, e as suas imagens, se unem para além da materialidade. Isto nos traz imediatamente um ensinamento: a obra nunca existe num em si definido pela materialidade. Ela encontra-se, portanto, aquém e além da visão: aquém, na sua autonomia de objeto; além, na sua existência que se situa paralela ao mundo da experiência.

                  40.            A fotografia traz a semelhança da obra; não é a obra, mas faz parte dela. Proust nos leva para um caminho reflexivo diverso do que Walter Benjamin toma em seu conhecido texto - antes, na primeira versão de seu conhecido texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”[6]. O conflito entre valor de culto e valor de exposição, que interessa Benjamin, é dissolvido por Proust numa síntese que, primeiro, não se importa com a ideia de exposição enquanto “exposição às massas”, e que, em seguida, trata o objeto artístico em sua substância de cultura, que encarna uma espécie de “essência real”.

                  41.            No caso de Proust não existe aura perdida pela reprodução técnica da fotografia, nem culto do original, nem cuidado com o que seria uma divulgação em ampla escala da imagem. Num certo sentido, a reprodução se torna única, pois foi ela (neste ela incorporando-se um “aquela” específico, “aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha mesa, ou em minha parede”). Não existe condenação alguma das reproduções mecânicas, mas a constituição de uma verdade surgida da obra, capaz de fecundar as experiências (incluindo aqui a experiência fotográfica), que terminam por conduzir à verdade da obra.

                  42.            Aquilo que para o colecionador, para o amador esclarecido, é o núcleo - ou seja, o que poderíamos chamar de o fetichismo do original - não o é de modo algum para Proust, para quem o núcleo se acha fora do material, formado por jogos de fusão.

                  43.            Nesse campo de fusões, uma prática frequente que se encontra na obra de Proust é a relação de semelhança entre os seres existentes e as obras de arte. De todas, muito conhecida, é a da semelhança que Swann estabelece entre Odette de Crécy e uma figura de Botticelli, Séfora, a filha de Jetro, no afresco da capela Sistina. Proust, ele próprio, conhecia essa imagem não por tê-la visto de fato, pois nunca estivera em Roma, mas por uma reprodução de uma cópia que dela fizera Ruskin.

                  44.            Swann, vendo Odette, em peignoir, debruçada sobre uma gravura, percebe o quanto ela é parecida com a figura de Boticelli. O narrador nos explica que Swann gostava de descobrir semelhanças entre pessoas e personagens pintados pelos grandes artistas.

                  45.            Odette e a figura de Botticelli se superpõem, e “essa semelhança conferia a ela também uma beleza, tornava-a mais preciosa. Swann se acusou de ter desconhecido o valor de um ser que teria parecido adorável ao grande Sandro, e felicitou-se pelo fato de que o prazer que ele tinha ao ver Odette encontrasse uma justificação na sua própria cultura estética. [...] A palavra de 'obra florentina' trouxe um grande serviço a Swann. Permitiu-lhe, como um título, fazer adentrar a imagem de Odette num mundo de sonhos onde, até então, ela não tinha acesso, e onde ela se impregnou de nobreza”.[7]

                  46.            Swann põe, sobre sua mesa de trabalho, “como uma fotografia de Odette, uma reprodução da filha de Jetro.

                  47.            Tal semelhança enobrecia Odette. No romance, ela é uma espécie de prostituta de luxo, que, se descobre à leitura da obra, esteve na cama de um grande número de personagens de À la recherche, e entre os mais imprevistos. Essa semelhança previne também, como diz o narrador, os desgastes possíveis dos afetos. Odette incorporara-se à eternidade de uma obra de arte.

                  48.            O amálgama entre a arte e a vida demonstra que o princípio de semelhança opera como fulcro da percepção mas, ainda, a erige como processo primeiro da compreensão. No universo proustiano não há essências platônicas, estáveis, inteiramente fora do mundo, mas um contaminar-se contínuo dentro do qual assemelhar é conhecer e reconhecer. São processos que escapam da solidez “real” do mundo para alcançar uma intensidade etérea.

                  49.            Semelhanças e analogias criam uma substância artística maior do que seus limites materiais. As obras são únicas, sem dúvida, mas como pontos num tecido amplo de outras obras, ou, como no caso de Proust, da “realidade”, por meio de uma percepção que a transforma em arte. Essas obras não são feitas apenas de um original. Dela fazem parte, como elemento constitutivo profundo, e não como sucedâneos desprovidos de alma, a reprodução, a marca deixada na memória, todas as formas de representação, ou antes, de re-apresentação, todas as formas de associações presididas pela semelhança. Material e imaterial, a obra é tudo isso, é feita de tudo isso.

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* O presente artigo, sem as ilustrações, foi originalmente publicado em CAVALCANTI, Ana Maria Tavares; DAZZI, Camila; VALLE, Arthur (org.). Oitocentos: Arte Brasileira do Império à Primeira República. 1. ed. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ; DezenoveVinte, 2008, p. 19-25.

[1] CHIMOT, Jean-Philippe. Delacroix et la société de son temps. In: Information de l’histoire de l’art, nº 2, 1964. p. 74-76.

[2] A retomada atual do pensamento de Aby Warburg, as reflexões de Didi-Huberman tem evidentes afinidades com esse modo de conceber a obra de arte.

[3] BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Obras escolhidas - magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 39.

[4] Idem, ibidem, p. 36.

[5] Traduzido de PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleur. Paris: Gallimard, Livre de Poche, 1971. p. 245-246.

[6] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica - primeira versão. Op. cit. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Esta primeira versão data de 1935/1936. Os editores da seleção explicam: “O ensaio traduzido em português por José Lino Grünnewald e publicado em A ideia de cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, e na coleção Os pensadores, da Abril Cultural é a segunda versão alemã, que Benjamin começou a escrever em 1936 e só foi publicada em 1955.” Na segunda versão, a ideia que me interessa aqui é exposta de maneira menos densa e mais desenvolvida.

[7] Traduzido de PROUST, Marcel. Op. cit., p. 268