O uso das cópias na formação do artista na Academia Imperial de Belas Artes/Escola Nacional de Belas Artes
Viviane Viana de Souza *
SOUZA, Viviane Viana de. O uso das cópias na formação do artista na Academia Imperial de Belas Artes/Escola Nacional de Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/vvs_copias_aiba.htm>.
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O presente trabalho desenvolveu-se a partir da pesquisa realizada no decorrer da bolsa de Iniciação Artística e Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro - PIBIAC, durante o ano de 2010, parte do projeto “A formação do Artista na Academia Imperial de Belas Artes/Escola Nacional de Belas Artes”, sob a coordenação da professora Sônia Gomes Pereira, titular da Escola de Belas Artes/UFRJ. A pesquisa buscava melhor compreender a atuação dos artistas oitocentistas através do ensino oferecido pela Academia Imperial de Belas Artes, mais tarde Escola Nacional de Belas Artes, investigando a que tipo de formação tinha acesso o aspirante a artista no século XIX.
Compreender esse ensino implica ater-se à sua organização, concepção e as etapas que dele faziam parte, instauradas na Academia carioca. tendo como modelo a academia francesa, a École des Beaux-Arts. O ensino acadêmico desta instituição, pautado nos preceitos neoclássicos, foi o principal centro de formação artística do período no Brasil, desde sua criação em 1826, pelo grupo de artistas conhecido como Missão Francesa. O ensino artístico instaurado com a Academia buscava seus moldes no classicismo francês, que se volta à Antiguidade clássica como modelo a ser seguido e estudado pelos alunos, influência que se estende - com maior ou menor intensidade - até as primeiras décadas do século XX. O método acadêmico de aprendizado, meticulosamente seguido pelos alunos, era distribuído em patamares que avançavam em dificuldade e profundidade, e que deviam ser ultrapassados pelos alunos.
O desenho era o primeiro domínio a ser alcançado, primordial para o pintor, arquiteto e escultor. O treinamento de sua execução começava na cópia de desenhos dos mestres, gravuras e pranchas, que continham ilustrações de partes do corpo humano[1], analisadas separadamente - olhos, narizes, mãos, pés -, que aliavam ao desenho outro conhecimento de suma importância para o neoclássico, a anatomia humana. Seguia-se, após o domínio desse primeiro momento de formação, o desenho de moldagens e peças de gesso. Relevos, peças anatômicas e réplicas de esculturas clássicas permitiam ao aprendiz se iniciar no domínio dos volumes, luzes e sombras. Este momento mediava à chegada às aulas de modelo vivo, consideradas essenciais dentre os preceitos neoclássicos. O conhecimento anatômico dos tendões, músculos e membros atenderia à necessidade de atingir a perfeição das formas. O estudo do corpo humano, através da observação do modelo vivo em inúmeras aulas, estudos conhecidos como academias, reforçavam ainda mais a necessidade do profundo conhecimento do corpo humano.
Outra forma de aprendizado que visava estudar a composição, cor e desenho dos grandes nomes da arte, era a cópia de obras dos mestres europeus, com as quais os alunos entravam em contato quando da ocasião dos Prêmios de Viagem à Europa, premiação de concursos realizados com certa regularidade pela Academia. No Velho Continente, os artistas não só buscavam se aprimorar frequentando as renomadas academias francesas, como também recebiam os ensinamentos de pintores reconhecidos em seus ateliês e tinham acesso aos museus e coleções de arte europeia. Ao longo de sua estadia, a visita a essas coleções era aconselhada, inclusive como recomendação dos professores brasileiros que eram:
[...] escolhidas dentre as realizações mais significativas dos maiores pintores europeus. Essas peças, chamadas “envios”, eram incorporadas ao acervo e expostas na Academia com a finalidade primeira de orientar os alunos das diversas áreas e formar uma grande pinacoteca aberta aos alunos e ao público nas ocasiões festivas. (FERNANDES, 2001/2002, p. 14)
Observa-se, assim, que a o ato de copiar o modelo, o exemplo a ser seguido dentro dos padrões acadêmicos, acompanha toda a formação do artista oitocentista, até que as belas proporções e formas sejam de tal modo introjetadas que o acompanhe em suas próprias criações: “Juntamente com as regras gerais da arte, o artista deveria tentar se aproximar dos modelos que são inimitáveis dos grandes mestres, posto que sem o exemplo dos mestres, a natureza continuaria inalcançável.” (CIPINIUK, 1997, p. 48). O uso das cópias como ferramenta didática, instituído por Lebreton e defendido nas sucessivas reformas da Academia ao longo do século XIX, será de grande importância para o desenvolvimento artístico dos alunos, que posteriormente, quando de sua volta do pensionato, frequentemente se tornavam professores da mesma instituição. Não só o ato de copiar, mas a escolha mais ou menos pessoal do que copiar influenciará a formação dos artistas em sua trajetória pela Europa.
Ao nos atermos na produção realizada e enviada pelos pensionistas, seus deslocamentos e escolhas se evidenciam, assim como os direcionamentos vindos dos mestres da Academia brasileira. Desta produção, enviada para o Brasil ao longo da estadia europeia, grande parte se encontra no acervo do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes, herdeira da Academia, e hoje pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro. No acervo do Museu, encontram-se não só obras de alunos da instituição em seus diversos momentos, peças referentes ao ensino das belas-artes na Academia, mas também um importantíssimo acervo arquivístico sobre seus alunos, professores, concursos, estatutos, dentre outros, que são essenciais para os estudos sobre o ensino artístico no Brasil no século XIX e a compreensão das discussões culturais que envolvem as questões artísticas na sociedade brasileira oitocentista.
Na seção de cópias, encontramos no Museu obras de artistas como Pedro Américo, Vitor Meirelles e João Zeferino da Costa, enquanto alunos da Academia. Estas cópias, pertencentes aos artistas que encontrariam maior reputação no século XIX, estão expostas em uma seção própria do Museu, mas os quadros ali expostos não comportam o conjunto total de cópias de pinturas do seu acervo. As demais obras, alocadas em outro setor, em trainéis, possuem menor visibilidade, e não foram, até o momento, temas de estudos mais aprofundados, prejudicados pelas lacunas de informações completas e dificuldade de identificação dessas obras.
Este segundo grupo de cópias soma uma total de 40 obras, sendo somente quatro delas já identificadas como “cópia”, 24 sem autor identificado e 3 delas em processo de registro no Museu, até o momento da realização da pesquisa. Como se vê, há a falta de dados importantes sobre as obras; inclusive, observam-se também variações e generalizações em relação no título das mesmas, o que se revela como mais um empecilho na tentativa de estabelecer, através do título ou tema, a ligação com o modelo europeu no qual o artista se baseou.
Houve então a necessidade de investigar esse grupo de obras, com o objetivo de possibilitar o complemento das informações faltantes o que permitiria uma melhor aproximação com essas pinturas, assim como contribuir para a compreensão dos percursos de seus autores em território europeu.
Em relação às obras pesquisadas, procurou-se primeiramente a busca de informações sobre os pensionistas e seus envios, no próprio acervo documental do Museu D João VI. Alguns dados foram recuperados, como a fotografia da reprodução da revista Kósmos, de março de 1906[2] [Figura 1], que mostra a obra Pigmaleão e Galatéia [Figura 2], do pintor Lucílio de Albuquerque, que ganhou a Grande Medalha de Ouro, acredita-se que em um concurso interno da Escola. A referida obra, que se encontra na seção de cópias do Museu, não foi criada, no entanto, a partir da cópia de uma obra europeia, sendo uma obra em si original criada por Lucílio, que no Salão do ano anterior, foi premiado com o Prêmio de Viagem.
O mesmo acontece com a obra Batismo de Cristo, de 1871, realizada por Cândido Mondaini [Figura 3]. Apesar de também estar localizada nos trainéis identificados como cópias, após pesquisa nos documentos do Museu, verificou-se que a obra foi elaborada para participar do concurso ao Prêmio de 1ª Ordem, ou seja, ao Prêmio de Viagem ao exterior em pintura histórica (FERNANDES, 2001/2002), que teve como tema sorteado justamente Batismo de Jesus Cristo[3], se tratando, assim, de uma obra original, concebida especialmente para o concurso.
A pesquisa possibilitou também a obtenção de novas informações sobre algumas obras. É o caso da pintura identificada como Personagem do século XVII [Figura 4], um título genérico, acompanhado da observação “cópia de pintura flamenga do século XVII”. no catálogo de pintura do Museu. É provável que tanto o título tanto a observação sejam dados a posteriori, na tentativa de melhor identificar a obra de Henrique Campos Cavalleiro, de 1920. O ano de realização da obra aponta a importância da metodologia de ensino aplicada no século XIX que ainda se fazia presente nas primeiras décadas do século seguinte, mesmo após a transformação da Academia em Escola, com o advento da República.
O “personagem do século XVII” se trata de Paulus Van Beresteyn, retratado por Frans Hals, em 1620 [Figura 5]. A obra do pintor flamengo atualmente se encontra no Museu do Louvre, em Paris, desde quando foi adquirida em 1885[4]. Portanto, Cavalleiro, que ganha o Prêmio de Viagem ao Exterior em 1918, entra em contato com a obra ao visitar o importantíssimo museu francês. O pintor brasileiro escolhe, dentre a diversidade de obras do Louvre, um retrato representativo da escola flamenga. Em sua obra, baseada na do mestre Hals, apesar de ter sido fiel à composição original, Cavalleiro parece se interessar, sobretudo, nas mãos e cabeça do retratado, dando a elas uma maior atenção nos contornos e sombras, em pinceladas mais calmas e trabalhadas. As vestes, com suas dobras, detalhes e formas, tão bem definidas no quadro de Hals, se colocam na obra de Henrique Cavalleiro como grandes massas de cor, com pinceladas livres e rápidas: vemos, assim, o delicado trabalho de bordado da manga do retratado, que Frans Hals representa tão fielmente, no quadro do brasileiro se transformar em rápidas linhas amarelas.
Outra obra do grupo de pinturas do Museu objeto da pesquisa é o quadro Retrato de papa [Figura 6], que no catálogo está com a observação “cópia não identificada”. Estas são as únicas informações fornecidas, e, mesmo após a pesquisa, o nome do autor e data de sua realização não foram identificados. Contudo, seu “original” europeu foi localizado, e com isso, apesar do desconhecimento do autor brasileiro, impedindo que possamos situá-lo no seu processo de aprendizado artístico, esta obra ligada à pintura européia revela-se muito interessante. Primeiramente, a obra Retrato do papa Clemente IX [Figura 7] está localizada na Itália, no Palazzo Barberini, e não na França, destino tido como o único pelos alunos brasileiros. Este outro centro de formação artística na Europa é procurado também por outros brasileiros, e possuía tantos atrativos quanto a capital francesa:
De fato, o que se percebe é que, na Europa e nas Américas, as instituições que proporcionavam estadias no estrangeiro entendiam que a Itália, e particularmente Roma, constituía-se numa passagem obrigatória na formação de qualquer artista (ainda que muitos se dirigissem, antes ou depois, a outros centros artísticos, como Paris ou Munique). (DAZZI, 2008, p. 21)
Em segundo, a localização da obra “original” europeia e sua comparação com a obra do aluno da academia brasileira revela mais um fato de interesse nessa obra especificamente que é a certa liberdade do aluno em relação a sua produção, apesar do rígido controle exercido pelos professores brasileiros sobre os pensionistas. Na obra europeia, o papa é retratado com suas vestes vermelhas e rosto sereno, com uma mão levantada a abençoar seu fruidor. Já na obra pertencente ao Museu D João VI, apesar de o autor copiar fielmente a expressão tranquila e os volumes, dobras e brilhos do tecido da veste papal, a mão é simplesmente excluída, sendo substituída pela continuidade do braço da figura do papa.
Esta exclusão deliberada, pois não se trata de uma obra inacabada, indica que o pensionista da academia brasileira não só percorria outros caminhos que não o da academia francesa, tendo acesso assim a outras escolas europeias do passado como as diversas novas tendências de fim dos oitocentos e início do século XX, mas também fazia suas próprias escolhas, voltando sua atenção para o elemento mais significativo da obra a ser copiada e que mais contribuições teriam para seu aprendizado artístico. Este posicionamento do aluno observado nos autores das obras pesquisadas contribui cada vez mais para a revisão e reescrita do estudo da arte acadêmica século XIX, vista por alguns teóricos e artistas da primeira metade do século XX como não original e engessada.
Os exemplos expostos, escolhidos dentre as doze obras com as quais a pesquisa pode contribuir com novas informações e com a identificação das obras europeias copiadas, endossam a necessidade de rever a produção do século XIX, e comprovam a importância de melhor investigar não só este grupo de obras, mas também o acervo do Museu como um todo, a fim de compreender melhor suas obras e seus autores, evitando que equívocos e ausência de informações persistam e prejudiquem a redescoberta desse rico acervo.
Referências bibliográficas
CAVALCANTI, Ana Maria Tavares Cavalcanti. Os prêmios de Viagem da Academia e pintura. In: 185 Anos de Escola de Belas Artes. Org. Sonia Gomes Pereira. UFRJ, 2001-2002.
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D. Lucilio de Albuquerque. Kósmos, Rio de Janeiro, ano III, n. 3, mar. 1906, n/p.
DAZZI, Camila. Meirelles, Zeferino, Bernardelli e outros mais: a trajetória dos pensionistas da Academia Imperial em Roma.” In: Revista de história da arte e arqueologia. Campinas, n. 10, jul. a dez., 2008, p. 10-42.
FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino Artístico de pintura e escultura na Academia Imperial de Belas Artes. In: 185 Anos de Escola de Belas Artes. Org. Sonia Gomes Pereira. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001/2002. [Versão eletrônica: FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O Ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v.II, n. 3, jul. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aiba_ensino.htm>]
LEITE, Reginaldo Rocha Leite. Os propulsores da prática da cópia na Academia Imperial de Belas Artes: períodos de introdução e consolidação de uma metodologia artístico-pedagógica. In: Oitocentos - Arte Brasileira do Império à 1º República. Org. Ana Maria Tavares Cavalcanti, Camila Dazzi, Arthur Valle. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ/DezenoveVinte, 2008.
____. “À imagem e Semelhança”: A prática da cópia de pinturas européias na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro (1855-1890). Tese de Doutorado do PPGAV/EBA/UFRJ.
OUCHI, Cristina A. R. C. O papel da estampa didática na formação artística na Academia Imperial de Belas Artes: O acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ. PPGAV/EBA/UFRJ, 2010.
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C/Arte, 2008.
* Mestranda em História e Crítica de Arte - PPGAV/UFRJ, professora de Artes da Secretaria Municipal de Educação - RJ.
[1] Cristina Aparecida Rios de Castro Ouchi analisa mais profundamente o uso das gravuras no processo de ensino artístico da Academia. OUCHI, Cristina A. R. C. O papel da estampa didática na formação artística na Academia Imperial de Belas Artes: O acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ. PPGAV/EBA/UFRJ, 2010.
[2] A respeito dessa imagem, no acervo do Museu D João VI, consta a seguinte informação: Reprodução de Fotografia. Revista Kosmos, 1907. Fonte: Arquivo Museu D. João VI/EBA/UFRJ, seção de Fotografia 585.
[3] Arquivo do Museu D João VI, seção de Encadernado (concursos) 13/07/1871 a 17/07/1871, número de registro 5018, 5019 e 5020.
[4] Fontes: disponível em: <http://www.lib-art.com/artgallery/12079-paulus-van-beresteyn-frans-hals.html> Acessado em: 21/10/2010.