As técnicas de pintura das Academias Francesa e Brasileira no século XIX: O caso do Museu D. João VI
Monique da Silva de Queiroz
QUEIROZ, Monique da Silva de. As técnicas de pintura das Academias Francesa e Brasileira no século XIX: O caso do Museu D. João VI. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/pintura_tecnicas.htm>.
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Ao examinar as forças políticas que motivaram os produtores e receptores de arte e ao revelar os mecanismos ocultos da produção visual, eu verdadeiramente acreditava que estava contribuindo para a emancipação do pensamento, pelo menos em uma parcela pequena das mentes dos meus alunos e leitores. Assim, a história da arte se tornou minha razão de ser, um veículo para melhorar as vidas de meus companheiros, cidadãos e ao mesmo tempo trazer uma pequena mudança em relação à justiça social na sociedade.
Albert Boime *
Introdução
Este artigo refere-se a um projeto de pesquisa realizado no Museu D. João VI, da Escola de Belas Artes com bolsa de Iniciação Científica e Artística, sob a orientação da Prof.ª Sonia Gomes Pereira. O objetivo do projeto é entender e estabelecer um paralelo entre as práticas fundamentais de ensino de pintura das Academias Francesa e Brasileira no século XIX.
Como Metodologia, investigamos o acervo de pintura do Museu D. João VI com a finalidade de apreciar a técnica pictórica desempenhada nas obras e assim relacioná-las aos escritos do capítulo II do livro de Albert Boime, The Academy and French Painting in the Nineteenth Century, London: Yale University Press, PP. 22 a 47, 1986.
Não existem muitos escritos de pintores, principalmente no Brasil, sobre os métodos empregados por eles na construção de seus trabalhos. Devido a esta falta, o artigo propõe esclarecer e registrar tais procedimentos, para informar de que maneira o artista do século XIX, neste caso, procedia diante de seu ofício. Em Boime, encontramos certa orientação em relação à prática de pintura acadêmica nos estúdios franceses e assim podemos, em contrapartida, enxergar a ação praticada na Academia Brasileira. Isidore Pils, um membro eleito da Academia Francesa, se preocupou em descrever detalhes sobre os procedimentos técnicos acadêmicos, porém como afirma Albert Boime:
Ele permanece uma exceção. Poucos escritores e artistas desse período consideraram estas práticas merecedoras da posteridade, convencidos de sua banalidade. Como resultado, a preocupação de Pils passou despercebida, somos tão ignorantes sobre as práticas das oficinas do século XIX, como também daquelas nos períodos anteriores.[1]
Deste modo, nossa pesquisa torna-se fundamental, visto que compreender a técnica implica em desvelar a teoria, o que leva a uma maior clareza e aprofundamento da história da arte como um todo.
Imagens selecionadas para apreciação e compreensão técnica
Procuramos, aqui, apresentar imagens que sirvam de exemplo claro para relatar o que Boime descreve no livro, sendo assim recorremos, principalmente, a trabalhos inacabados, cuja técnica está mais pronunciada. Quando observamos uma pintura acabada, é difícil entender como ela foi construída; em compensação, ao examinarmos obras inacabadas, que expõem sua construção, notamos existir um processo que foi paulatinamente se formando pelas mãos habilidosas e treinadas do artista, como veremos neste artigo, por meio de fotos em detalhes das peças, que totalizam dez trabalhos do Museu D. João VI e uma imagem de um estudo do mestre acadêmico Chales Gleyre.
Academia
Começaremos a pesquisa pela obra, Nu masculino de pé [Figura 1], do pintor Eliseu Visconti do ano de 1892, a qual lhe rendeu a medalha de ouro e o prêmio de viagem ao estrangeiro, constituindo um ótimo exemplo do que se chama academia, já que na instituição acadêmica, fazer uma academia significava o exercício de desenhar a partir de um modelo vivo[2]. Para fazermos uma comparação, as práticas dos ateliês franceses eram orientadas em torno do concurso Prix de Rome, patrocinado pela Academia, e na escola brasileira o objetivo do estudante de arte era concorrer ao prêmio de viagem ao estrangeiro.
Passando da parte histórica para a técnica, façamos uma análise das cores aplicadas na tela, notamos que a paleta é a típica empregada pelos acadêmicos franceses, mencionada por Boime, constituída pelas cores: branco de prata, amarelo de Nápoles, amarelo ocre, ocre escuro (terra de siena natural), ocre vermelho (terra de siena queimada), cinábrio, preto de marfim e azul da Prússia.[3] Desse modo, trabalhando com uma gama limitada de cores, se tornava mais fácil para o neófito fazer a passagem do desenho à pintura. Abaixo temos a cartela de cores, com a amostra destas:
Cartela de cores. Fonte: http://www.underpaintings.blogspot.com
Após breve análise da parte cromática, percebemos em um pormenor [Figura 1, detalhe 1] o uso de hachuras, construídas pelo ritmo das pinceladas. Segundo Albert Boime, os alunos que iam estudar no ateliê de um mestre acadêmico, recebiam, como uma de suas primeiras incumbências, trabalhar por meio de hachuras, tanto em cópias de gravuras, como em cópias de moldes de gesso. Nos ateliês da chamada Monarquia de Julho [4], a técnica de hachura era a forma convencional de modelagem. Ela constituía uma necessidade prática para o uso na obtenção de efeitos de luz e sombra inacessível ao único traço fino de lápis ou pincel. Já que os alunos eram treinados com esse processo de representação, mesmo quando confrontavam com um modelo vivo ou paisagem, tendiam a executar o desenho dessa maneira[5]. Observando o detalhe, fica evidente que o pintor recebeu o mesmo tipo de instrução na Escola Brasileira, embora não possamos afirmar se o grau de ensino tenha sido com a mesma intensidade que nos ateliês franceses.
Outro ponto importante de destaque é a área de sombra: apesar de ela receber uma carga de tinta menos densa que a de luz, não é muito transparente como a técnica mais comumente utilizada pelos acadêmicos citada por Boime. Aqui, o artista empregou a técnica do esmalte, em que sobre a área de sombra opaca, o pintor trabalha com uma camada de tinta transparente, geralmente um tom amarronzado, criando uma maior profundidade. Segundo Boime, alguns preferiam trabalhar com um pincel carregado de tinta e depois usar esmaltes para produzir suas sombras e transparências, outros utilizavam tons transparentes e evitavam cores opacas para as áreas escuras de seus esboços[6]. Para se entender o conceito de esmalte ou veladuras, podemos fazer uma analogia com a sobreposição de tecidos coloridos, e muito finos, que quando colocados uns sobre os outros, combinam suas cores, formando uma terceira cor. Mais a frente, mostraremos uma obra de Rodolfo Amoedo que denota a técnica de colocar as sombras transparentes evitando cores opacas para essas áreas.
Em outro detalhe [Figura 1, detalhe 2], notamos o uso do pincel com cerdas grossas e curtas, já que percebemos as marcas deixadas por elas. Também Boime comenta esta técnica: o scumbling normalmente era realizado com um pincel de cerdas curtas, que deixava marcas no pigmento aplicado[7]. Nota-se ainda, neste ponto, que o pintor não se preocupa com pequenos detalhes, trabalha apenas as massas, as grandes áreas, a forma geral, construindo o volume da figura.
Embora tenha se valido da técnica da hachura, certamente o artista começou a trabalhar a partir das grandes áreas com pinceladas mais largas e sobrepostas, combinando as duas técnicas. Os mestres acadêmicos eram bastante enfáticos quanto a essa maneira de construção plástica, afirmavam que os alunos deviam estar acostumados a ter em mente a massa antes de serem autorizados a finalizar os detalhes[8].
Outra questão que vale destacar é que, embora seja uma obra considerada “acadêmica”, o pintor trabalhou de modo espontâneo, com pinceladas soltas e aparentes, mesmo se tratando de um trabalho finalizado.
O Ébauche
Agora tomemos outra obra do artista Eliseu Visconti [Figura 2], realizada em sua estada em Paris. Nela compreendemos todo o processo de pintura, e este corresponde basicamente ao descrito por Boime na confecção do ébauche.
A palavra ébauche, do francês rascunho, na terminologia acadêmica significa a fase inicial da pintura, a qual era prestada maior atenção, e continuamente enfatizada durante a formação de um artista no ateliê.[9] No ébauche a composição é delineada rapidamente sobre o suporte. É qualquer rascunho, esboço ou plano de uma composição, também significa a pré-pintura ou primeira definição de linhas, amplas massas de luz e sombra e os semitons, que servem de base para a pintura definitiva. Denota todas as qualidades de uma expressão imediata e direta.
O ébauche era deixado secar por completo e depois raspado antes de se começar o processo final de acabamento.
Segundo Albert Boime, ao longo do século, a importância do ébauche ou pré-pintura, que era permitido deixar aparente na obra acabada, aumentou, e acabou culminando em obras impressionistas, em que o mais expressivo ébauche tornou-se um dos objetivos finais das pinturas.
Etapas do ébauche
1. Preparação da paleta, com as cores mencionadas na análise da obra anterior. A paleta consistia em três divisões: área de luz, de sombra e as meias-tintas[10]. As cores eram misturadas na paleta caracterizando uma série de tons e semitons de acordo com as luzes, meios tons e sombras observadas no modelo.
2. Marcação a carvão [Figura 2, detalhe 1]. Quando o estudante ia pintar o modelo vivo, desenhava a lápis ou carvão diretamente sobre a tela[11]. Após a marcação, retirava-se o excesso de carvão batendo sobre a tela com a mão ou um pano, esse esboço preliminar deixava pequenas partículas que poderiam se misturar com as primeiras marcações de tinta e assim causar um efeito de pó de carvão misturado à tinta a óleo.
Antes de iniciar a marcação, a tela primeiramente era submetida a um preparo, que naquela época poderia ser preparação a óleo ou cola animal, porém Boime não cita as preparações de suporte.
3. Execução da pintura de maneira livre e espontânea [Figura 2, detalhe 1]. Na construção do ébauche o pintor começava de maneira bastante “solta” (tosca, grosseira), tanto nas áreas de luz e sombra, assim como no movimento geral da composição[12].
4. Marcação com o sauce [Figura 2, detalhe 2]. Após a marcação a carvão, o aluno pintava a sombra com uma cor terra diluída para obter o efeito geral. Essa solução é conhecida como sauce, uma mistura transparente de marrom avermelhado diluído com terebintina. Dessa maneira, o pintor tinha uma base referencial de luzes e sombras, facilitando-o ao invés de trabalhar direto na tela em branco[13].
No segundo detalhe, na parte inferior da imagem, nota-se uma camada de tinta em tom avermelhado mais fina que nas outras partes, o que exemplifica o sauce, porém levantamos a hipótese de que o artista, não tenha começado a pintar com esta solução, podendo ter trabalhado diretamente com as cores locais sem ter se valido de uma camada de base, ou ainda ter iniciado a pintura com uma solução em tom diferente do sauce em terra vermelho, já que a cor, nessa área, também apresenta um tom rosado.
5. Empastamento das luzes deixando as sombras mais diluídas [Figura 2, detalhe 3]. A fórmula do estúdio para a pintura do ébauche era o empâtez les clairs; peignez légèrement les ombres, ou seja, pintar as áreas claras em empasto e opaco, e as áreas de sombra em um tom diluído e transparente. Usando o mesmo tom que servia para o esboço, o artista era encarregado de estabelecer “a principal massa escura, sem entrar em muitos detalhes”. As áreas de sombra não deviam ser cuidadosamente unidas na fase preparatória, apenas serviam para orientar a colocação das luzes e os tons médios[14].
O aluno começava a pintar por aglomeração nas sombras com a cor de terra diluída para obter o efeito geral. Primeiro colocava-se as sombras para estabelecer oposições, áreas de comparação e de referência, permitindo que o artista pudesse julgar os meios-tons e luzes, cujo valor seria muito difícil avaliar, se eles estivessem sozinhos no meio da tela em branco[15].
Visconti não costumava deixar as sombras tão dissolvidas, como observamos no detalhe da nuca da mulher [Figura 2, detalhe 3], todavia os estudantes da Academia Francesa também empregavam esse outro processo em que, tanto as sombras quanto as luzes, são construídas com o pincel carregado de tinta com a mesma consistência.
Após destacar a sombra principal, pintavam-se as partes mais brilhantes, misturando o pigmento branco abundantemente para uso em ricos empastes[16]. O mestre acadêmico Thomas Couture recomendava que seus alunos marcassem o que costumava chamar de “dominantes” de luz e sombra, ele afirmava:
Você deve estabelecer o que chamo de ‘dominantes’ de efeitos de luz e sombra. Observe cuidadosamente seu modelo, decida qual é a sua luz mais brilhante, e situe a luz de seu desenho no lugar que ocupa na vida real. Tendo feito esta posição dominante, você naturalmente se certifica que todas as outras luzes estão subordinadas a esta.
O mesmo se aplica à sombra: encontrar o seu preto mais profundo e mais forte, e usá-lo como um guia ou um diapasão para estabelecer os valores de suas sombras e outros meios-tons.[17]
Essa era uma maneira de orientar os alunos para que eles pensassem na composição geral em termos de valores claros e escuros, sem que se perdessem em pequenos detalhes, que naquele momento da pintura eram secundários.
Percebemos muito claramente, no detalhe referido [Figura 2, detalhe 3], as pastas aplicadas com vigor na região de maior luminosidade, utilizando-se um tom mais claro que os demais, no qual, a partir dele sucedem-se uma série de semitons. O pintor trabalhou com um pincel de cerdas grossas que deixa suas marcas e utilizou a tinta bastante espessa, principalmente nessa área.
Apontamos a importância do estudo de desenho na elaboração da pintura [Figura 2, detalhe 4]: o movimento do pincel acompanha o dos músculos construindo o volume das costas, do mesmo modo como se procede quando se está desenhando com outro instrumento. A todo o momento o pintor está com os olhos atentos, observando o modelo.
Neste último detalhe referido, também ressaltamos, mais uma vez, o modo como o artista trabalha as massas, o volume. Da mesma maneira que no trabalho da Figura 1, fica evidente que o pintor começou a execução do ébauche sem se preocupar com pequenos detalhes, acrescentando tinta, deixando a figura surgir naturalmente. Este procedimento era recomendado, pois quanto mais tempo se trabalhasse o ébauche, sem se preocupar com o acabamento, o estudante não seria prejudicado e confundido com pequenos detalhes errados que pudessem ter sido colocados antecipadamente, aliás, ele teria a oportunidade de corrigir certos erros desenhando com um lápis branco e continuar a pintar na segunda etapa de trabalho[18].
6. Desenvolvimento das meias-tintas [Figura 2, detalhe 4]. As meias-tintas fazem a ligação da área de luz à de sombra. Para os acadêmicos, a passagem da luz a sombra deveria ser feita de maneira sutil e era muitas vezes difícil para o neófito enxergar tais sutilezas, em que o estudo de moldes de gesso desempenhava um papel preliminar. Primeiro se destacava a luz e a sombra principais e depois se desenvolviam as meias-tintas. Boime aponta:
Uma vez que o local de destaque era prestado, ou seja, as principais áreas de luz e sombra, o aluno começava a aplicar uma série graduada de demi-teintes (meias-tintas), iniciando com um tom quase imperceptível menos luminoso do que as áreas de luz. Estes primeiros meios tons não deviam ser misturados com preto, utilizava-se uma cor com um tom aproximado das sombras mais profundas. Pelo menos seis tons médios eram aplicados para ligar as luzes com as obscuridades. Os tons finais eram os da sombra mais profunda, permitindo trabalhar sobre a camada fina pintada de marrom.[19]
7. Construção da pintura como um mosaico [Figura 2, detalhe 5]. Boime diz que:
Nessa fase do desenvolvimento do ébauche o aluno era advertido a não permitir que os tons individuais se misturassem na tela, devendo justapô-los com cuidado, para isso, não era certo misturar e fundir os diversos tons: isto deveria ser feito por meio de justaposição de um para o outro nos quase imperceptíveis tons de gradação, e quando todos os tons estivessem no lugar, e a certa distância a figura emergisse claramente, o estudante poderia continuar a misturá-los.[20]
Assim, o aprendiz ia trabalhando o volume por justaposição, em que a certa distância as partes individuais se fundiam transmitindo a aparência de volume, não se preocupando com nenhum detalhe. Boime aponta o fato de ser comum pensarmos que esse método de pintura somente foi adotado por artistas independentes, todavia este procedimento era trivial nos ateliês e academias daquele período. O autor afirma:
Do ponto de vista das tendências adotadas mais tardiamente, esse método pode nos parecer surpreendente. A ideia de compor um ébauche sob a forma de mosaico, isto é, através da justaposição de tons em vez de misturá-los, e levando-se em conta a distância do espectador transmitindo volume e o efeito geral é um conceito avançado raramente associado a esse período. Embora fosse verdade que este mosaico representasse apenas uma fase preliminar da produção artística, e não o trabalho final, esse conceito foi formulado, no entanto, nos procedimentos de pintura acadêmica, e manteve-se por artistas independentes para fazer novas experiências dentro do mesmo sistema.[21]
Indicamos, neste pormenor [Figura 2, detalhe 5] que até mesmo o acessório da orelha foi construído por pequenos traços de cor.
Apesar de aparente em todos os trabalhos estudados, o mosaico fica mais evidente em um detalhe de uma pintura de Lucílio de Albuquerque, que veremos mais a diante.
8. Empastamento das luzes [Figura 2, detalhe 3]. Depois que a tela estivesse totalmente coberta, retornava-se ao centro das áreas de luz e destacava-as com um tom ainda mais brilhante, para que assim esses toques finais produzissem um volume adicional de modelagem mais firme que em outras partes da imagem.[22]
9. Fundo transparente com pinceladas soltas [Figura 2, detalhe 6]. Os fundos eram cruamente esfregados com pinceladas rápidas e largas, e eram geralmente transparentes, como as sombras eram para o método convencional. Em ambos os casos, era permitido mostrar os grãos da tela através das pinceladas. A mesma técnica era empregada com vantagem na pintura de paisagem, em que era admiravelmente adequada para cobrir grandes áreas, como o terreno e o céu. Na verdade a técnica se assemelhava ao scumbling, especialmente nos traços individuais, embora diferissem quanto à função. Como o fundo de uma cabeça ou de uma figura nunca era terminado, ele sempre exibia a aparência de “esfregado”.[23]
A técnica de frottis ou scumbling, mencionada na citação acima, era um procedimento praticado no acabamento do ébauche que consiste em trabalhar com ricos empastamentos sobrepondo as partes da pintura com cores opacas. Sua aparência assemelha-se a técnica de “pincel seco”, associado com a aquarela[24].
Somente após esta etapa de conclusão do ébauche, é que se começava a ligar as meias-tintas, acabando com o efeito de mosaico, tornando a pintura mais uniforme, Boime conta:
O aluno era orientado a ligar os tons separados, “para dissimular o efeito de patchwork”. Isto era obtido através do emprego de um pincel individual para cada demi-teinte, com um leve toque de cor em sua ponta, ligando os tons separados em seu ponto de conjuntura. Quando este procedimento era finalizado, a passagem de um tom para o outro se tornava imperceptível, mesmo a curta distância. Tudo o que era agora necessário para o aluno terminar os ébauches eram as “pinceladas inspiradas”, aplicadas em ambas as áreas claras e escuras para animar a superfície e manter o conceito original da imediação. Uma maior liberdade era permitida na execução destes últimos retoques.[25]
No exemplo de Visconti, não notamos a execução desse último estágio, já que encontramos todas as marcas das pinceladas que constitui o mosaico do ébauche. Todavia, trabalhos inacabados eram comuns nas academias, já que segundo Albert Boime, a fase de preparação tinha maior importância que os acabamentos. Outra razão para enfatizar o ébauche nos ateliês era a quantidade de tempo necessário para um trabalho acabado. Como o modelo mudava de pose a cada semana, o ensaio de um pintor raramente ultrapassava o estágio ébauche[26].
As camadas de base eram muito importantes nesses exercícios de ateliê e o trabalho finalizado, o fini, não tinha tanta importância quanto à elaboração, diferente dos trabalhos realizados para as competições como o Prix de Rome. Os alunos eram ensinados que trabalhando por camadas, desde a profundidade até a cor, os pigmentos seriam preservados por um longo período de tempo. Também trabalhando o ébauche, considerava-se que o estudante poderia harmonizar as relações cromáticas e de valores ao invés de contrastá-las com a claridade da tela branca[27].
Assim, o trabalho finalizado assumia uma importância muito menor no currículo do ateliê que a pré-pintura, especialmente tendo em vista o fato de que o processo envolvido na construção do ébauche, didaticamente, aproximava os trabalhos dos alunos. As distinções essenciais eram os tons mais luminosos da camada de acabamento e o extremo cuidado na ligação do mosaico demi-teinte.[28]
Outros trabalhos
Durante a pesquisa foram consultadas outras pinturas, a fim de nos aprofundarmos na técnica estudada. Entre os trabalhos observados, destacamos as pinturas Cabeça de menino [Figura 3] e Nu masculino sentado [Figura 4], ambos de Eliseu Visconti, que expõem praticamente o mesmo processo estudado anteriormente no trabalho Nu feminino de costas [Figura 2].
Em um detalhe da Figura 3, destacamos o sauce, que está bem presente.
Já em Nu masculino sentado, a utilização dos empastamentos é mais notável, há uma técnica de pintura mais direta, em que logo após uma breve marcação a carvão, algumas áreas já são resolvidas diretamente com as cores locais, não notamos o sauce [Figura 4, detalhe]. A pintura direta passou a ser muito utilizada pelos impressionistas, que realizavam seus trabalhos com golpes rápidos a pincel, a fim de captar rapidamente a luz refletida nos lugares, pessoas, objetos...
Na Figura 5 e Figura 6, imagens de pinturas também de Eliseu Visconti, destacamos o tratamento da pincelada no fundo das pinturas [Figura 5, detalhe 1 e Figura 6, detalhe]: tanto este quanto as figuras do mesmo foram rapidamente esboçados, com pinceladas justapostas e “soltas”, sem minúcia, uma amostra evidente da construção do ébauche. Estamos evidenciando bastante esta questão, porque se costuma relacionar trabalhos acadêmicos com uma técnica de pintura mais uniforme, já que essas obras em seu estado final exibem um acabamento mais aprimorado, sem muitas vezes não notarmos até mesmo as pinceladas. Entretanto como ressaltamos, os estudantes das academias eram aconselhados num primeiro momento a terem uma visão simplificada da natureza. Um manual da Monarquia de Julho adverte:
Você não deve prestar nenhuma atenção aos meios-tons e detalhes até que tenha trabalhado as massas principais. Se logo após, de desenhado o contorno da figura, estiver por terminar o trabalho rapidamente, colocando os detalhes e os meios-tons em torno da zona de luz, você poderá cair no erro característico de fazer com que os detalhes apareçam em tons carregados e duros, ao passo que deviam ser brilhantes e envoltos em reflexos luminosos.[29]
Agora, chamando a atenção para o detalhe da cabeça na Figura 5, assinalamos que o olho da mulher foi construído por apenas rápidos toques a pincel, isto porque estando o olho da figura mergulhado em uma área de sombra, o artista não necessitou defini-lo. Indicamos ainda que um leve toque de tinta mais claro e luminoso do que a área ao seu redor, já insinua a orelha. Demonstramos que o pintor define algumas áreas e insinua outras, criando interesse e mistério nas partes que compõe a pintura.
Na pintura Nu masculino [Figura 6], percebemos que as sombras não são dissolvidas, a figura aparece contra a luz, quase que totalmente na sombra, e esta é empastada. A figura em primeiro plano se distancia bastante do fundo dissolvido e esboçado [Figura 6, detalhe].
Boime cita o trabalho Estudo para a dança das bacantes, de Charles Gleyre [Figura 7] como exemplo da técnica em que sombras e luzes têm a mesma textura. Ele alega que os pintores também podiam executar o ébauche com o pincel grosso carregado de tinta fazendo assim com que as luzes e sombras tivessem a mesma consistência[30].
Havia, portanto duas técnicas distintas: a transparência das sombras e o empasto das luzes, e as sombras e luzes com a mesma consistência.
Dentre os trabalhos pesquisados no Museu D. João VI, o que melhor exemplifica a técnica de transparência das sombras é uma cópia feita pelo pintor Rodolfo Amoedo [Figura 8]. Notamos no detalhe do pescoço [Figura 8, detalhe] que a sombra é transparente como o tom que o artista começou a trabalhar. Já que a primeira camada de pintura é transparente como uma aquarela, a luz incide sobre o fundo branco que a reflete, produzindo assim um efeito de sombra luminosa. Boime menciona que essa era a técnica mais popular nos ateliês franceses[31], porém no acervo do Museu D. João VI, a maioria dos estudos de modelo vivo demonstra sombras e luzes com a mesma densidade.
A seguir, temos a pintura Busto feminino de Lucílio de Albuquerque [Figura 9]. Embora, seja bastante provável que esta obra tenha sido realizada no período em que viveu na França, entre 1906 e 1911, depois de ganhar o Prêmio de Viagem ao estrangeiro, cabe aqui, ressaltá-la devido ao seu caráter didático e também para comprovamos que no começo do século XX alguns procedimentos de pintura ainda foram mantidos na Academia. Notamos uma pincelada justaposta a outra, se unificando pela proximidade de valor e não por uma passagem homogênea de cor. Neste caso, destacamos até mesmo a textura da tela “respirando” por entre as pinceladas [Figura 9, detalhe]. Em uma pequena área, há uma grande variação de cor. Cabe enfatizar que apesar dessa variação, os valores tonais são aproximados de modo a obter unidade, construindo a figura.
Observemos agora o trabalho Nu feminino de Oscar Pereira da Silva [Figura 10], no qual vemos uma pintura que não expõe o ébauche. O processo de construção é basicamente o mesmo dos anteriores, contudo o autor trabalhou mais o acabamento. As marcas de pincel são mais sutis, as passagens de um tom ao outro também, como os trabalhos dos acadêmicos mencionados no livro de Albert Boime, no que se refere à sutileza empregada. A diferença está apenas no tratamento da pincelada. Aqui o autor trabalhou de maneira mais sutil, com uma grande gradação de meios-tons (demi-teintes). As pinceladas são mais contidas, e o modelado é bem “macio”.
Com uma visão mais aproximada, no detalhe da cabeça [Figura 10, detalhe], ressaltamos muitas cores colocadas próximas umas das outras: violetas, rosas, laranjas... O mesmo que ocorre no detalhe da Figura 9, porém com maior delicadeza. As pinceladas foram aplicadas buscando o movimento dos músculos construindo o volume; no olho esquerdo percebemos algumas linhas finas em tons terrosos que foram aplicadas ao final do processo, com a tinta mais aguada. Notamos camadas de tinta umas sobrepostas às outras.
Por fim, encontramos uma pintura inacabada de Rodolfo Amoedo [Figura 11], em que é possível entender o método de construção da obra. Nela, o pintor aplicou apenas tons terrosos e o branco. Este processo se assemelha a etapa inicial do tradicional grisaille, técnica não mencionada no capítulo II do livro de Boime, porém muito empregada no século XIX e em épocas anteriores, como no Renascimento. Nesta técnica, o pintor começa a trabalhar com um esboço em um tom de terra ou ocre escuro e em seguida, utiliza tons de cinza, construindo uma pintura monocromática com a vibração dos tons quentes e frios. O grisaille, ou grisalha, era também empregado como pré-pintura ou na confecção de esboços. Na Renascença era usada em pinturas que imitavam efeitos esculturais.
Notamos que o artista marcou duas diagonais que se cruzam num ponto abaixo do olho esquerdo da figura, e um círculo, no qual ela se encontra. Essa construção geométrica era feita para auxiliar na organização da composição. Depois de esboçadas as linhas principais, o pintor começou a trabalhar com “aguadas” em tons de terra, conseguindo uma cor vibrante, por meio da mistura do tom frio do fundo (branco ou, neste caso, cinza claro) com a transparência quente (tons terrosos). Em seguida, dividiu as áreas de luz e sombra, estruturando o trabalho e reforçou as áreas de luz com uma tinta mais opaca, intensificando-a até os empastamentos. Trabalhando desse modo, as sombras se mantêm transparentes e as luzes se destacam por meio da opacidade em contraste com a transparência. Percebemos uma estrutura de planos bem definidos obtidos por meio do desenho das luzes e sombras.
Temos observado em diferentes trabalhos do pintor Rodolfo Amoedo que a marcação é feita com um lápis fino e gorduroso, como um lápis grafite. Normalmente, esta primeira etapa era feita com carvão já que este material é seco, não se dissolvendo com o óleo. Assim, não podemos afirmar que material específico foi usado na marcação, necessitando de um estudo mais aprofundado por meio de análise de escritos e documentos da época ou análise cientifica para comprovar tal hipótese.
Certificamos que alguns procedimentos se repetem, como a utilização do tom mais quente em camadas mais diluídas deixadas para as áreas de sombra e os tons frios aplicados com a tinta mais consistente nas áreas de luz.
Considerações Finais
Concluímos que toda essa abordagem técnica tinha início no aprendizado de desenho, que era um estágio anterior ao de pintura. Um estudante de arte nunca começava a pintar sem antes ter uma intensa prática em desenho. Sobre este ponto, Boime assinala:
A pintura era ensinada somente após o aluno demonstrar um profundo conhecimento no estilo de desenho acadêmico. Couture, que enfatizou seu método de pintura, sempre insistiu que um aluno deveria desenhar habilmente antes de tocar num pincel. Amaury Duval nos conta que muito tempo depois, em que ele e seus colegas de estudos tornaram-se proficientes em desenhar do natural, preocupavam-se, pois Ingres ainda não tinha mencionado nenhum assunto sobre pintura. Mas Ingres não era excepcional, todos os mestres não falavam sobre pintura até que o aluno dominasse o desenho.[32]
Já que o neófito passava por um período intenso de estudo de desenho (cópias de gravuras, estudos a partir de moldes de gesso, estudos de modelo vivo...) ele aprendia a trabalhar os valores de luz e sombra, as passagens de um tom ao outro e a construção da figura no espaço. E tudo isto evidentemente era levado para a pintura. Esses exercícios eram fundamentais para aguçar a percepção visual do estudante de arte, como Boime aponta neste trecho:
Embora possamos criticar essa formação, pelo menos teve o mérito de incutir no aluno uma inabalável confiança em sua habilidade de desenho, e permitiu-lhe abordar os objetos mais complicados com facilidade. A referência que Cézanne faz a Bouguereau como um artista que realizou na tela, sua visão pictórica, está evidentemente relacionada com a confiança acadêmica de execução.[33]
Boime coloca que a importância do programa de desenho do natural no currículo acadêmico, também era vista como sendo a base para o sucesso em todos os gêneros artísticos. Ele ainda destaca que muitos jovens impressionistas estudaram com o mestre acadêmico Charles Gleyre, porque sentiram que o conhecimento da figura humana os ajudaria a desenhar paisagens. Os precursores dos ateliês acadêmicos tinham como verdade que isso era a base para todas as especialidades, Boime refere:
O estudo da natureza é a melhor maneira de aperfeiçoar-se no desenho. Temos de aprender com a própria natureza, com os vários movimentos que ela produz nos membros por meio dos músculos. Este estudo é feito com a ajuda de um homem nu, conhecido como “modelo”, podendo ser colocado em qualquer posição desejada. (PERROT, A. M. Manuel du dessinateur. Paris, 1832 p. 105) [34]
Constatamos que existia um processo básico de construção da imagem pictórica no século XIX, comum em ambas as academias. Esse conhecimento era a base para se tornar um pintor acadêmico e o desenho da figura humana era primado naquele tempo.
Consideramos essencial para estudiosos e especialistas em prática e teoria da arte as questões levantadas neste artigo, visto que desse modo, investigando a técnica, teremos uma compreensão mais radicada dos trabalhos artísticos. Assim como, o estudo da composição nos trás o entendimento de muitos movimentos ocorridos na história da arte, também a análise dos processos de pintura nos permite entender tanto as intenções formais de um artista quanto às de todo um grupo.
Termos técnicos empregados na Academia Francesa
Chiaroscuro - claro-escuro.
Concours dês places - concurso de admissão da École des Beaux-Arts.
Demi-figure peinte - pintura do torso.
Demi-teinte - meias-tintas, ou seja, valor intermediário entre a luz e a sombra.
Dessin au trait - desenho de contorno, desenho linear.
Ébauche - estágio inicial de uma pintura, no qual a composição é delineada toscamente sobre o suporte. Qualquer rascunho, esboço ou plano de uma composição. Significa a pré-pintura ou primeira definição de linhas, amplas massas de luz e sombra e os semitons, que serve de base para a pintura definitiva. O ébauche era deixado secar por completo e depois raspado antes de se começar o processo final de acabamento. Normalmente, o ébauche acadêmico se executava em tons de terra, sombrios, que iam desde marrons escuros aos cremes claros. Os primeiros eram transparentes e os últimos sempre opacos. Os artistas progressistas independentes, como os impressionistas, evitaram o ébauche escuro, começando as sombras com cores brilhantes, relacionadas com a cor local de seus temas.
École des Beaxs-Arts - Escola de Belas Artes.
Esquisse peinte - esboço pintado.
Estompe - esfuminho.
Fini - trabalho finalizado.
Frottis - se refere à aplicação de uma fina camada de tinta com um pincel muito seco. Às vezes é descrito como um efeito esmalte, mas em vez de os pigmentos serem dispersos em um meio transparente, o scumbling cria uma malha fina de pigmento opaco.
Mise en place - posto no lugar.
Ombre dessin - desenho de sombra.
Plein air - ao ar livre
Pleine patê - empasto.
Prix de Rome - Prêmio de Roma.
Rapin - estudante de arte iniciante.
Sauce - mistura transparente de marrom avermelhado diluído com terebintina e um óleo secante cozido como o óleo de linhaça.
Séances de correction - seções de correção.
Tout ensemble - tudo junto, reunido, conjunto.
Referências Bibliográficas
BOIME, Albert. Cap.II The curriculum of the private ateliers: Practice. In: ____. The Academy and French painting in the Nineteenth Century. London: Yale University Press, 1986, p.22-47.
ALBERT BOIME.COM. Disponível em: <http://www.albertboime.com>. Acessado em: 21 de agosto de 2011
INNISART. Disponível em: <http://www.underpaintings.blogspot.com>. Acessado em: 13 de março de 2011
XAXOR.COM. Disponível em: <http://xaxor.com/oil-paintings/626-charles-gleyre-1808-1874.html>. Acessado em: 15 de julho de 2011
* Declaração em: http://www.albertboime.com, tradução nossa.
[1] BOIME, 1986, p.22, tradução nossa.
[2] Ibid., p.24, tradução nossa.
[3] Ibid., p.37, tradução nossa.
[4] Monarquia de Julho (Monarchie de Juillet) é o período histórico compreendido entre os anos de 1830 a 1848, na França, durante o reinado de Luís Felipe I, representando a implantação de um novo regime de aberta inspiração liberal que acabou com as formas mais anacrônicas da monarquia absoluta, influenciando até mesmo a Academia.
[5] BOIME, op. cit., p.25, tradução nossa.
[6] Ibid., p.40, tradução nossa.
[7] Ibid., p.40, tradução nossa.
[8] Ibid., p.33, tradução nossa.
[9] Ibid., p.37, tradução nossa.
[10] Ibid., p.37, tradução nossa.
[11] Ibid., p.40, tradução nossa.
[12] Ibid., p.37, tradução nossa.
[13] Ibid., p.40, tradução nossa.
[14] Ibid., p.37, tradução nossa.
[15]Ibid., p.40, tradução nossa.
[16] Ibid., p.37, tradução nossa.
[17] Ibid., p.28-29, tradução nossa.
[18] Ibid., p.39, tradução nossa.
[19] Ibid., p.38, tradução nossa.
[20] Ibid., p.38, tradução nossa.
[21]Ibid., p.38, tradução nossa.
[22] Ibid., p.38, tradução nossa.
[23] Ibid., p.40- 41, tradução nossa.
[24] Ibid., p.40, tradução nossa.
[25] Ibid., p.38-39, tradução nossa.
[26] Ibid., p.39, tradução nossa.
[27] Ibid., p.39, tradução nossa.
[28] Ibid., p.40, tradução nossa.
[29] Ibid., p.28, tradução nossa.
[30] Ibid., p.40, tradução nossa.
[31] Ibid., p.41, tradução nossa.
[32] Ibid., p.36, tradução nossa.
[33] Ibid., p.25, tradução nossa.
[34] Apud BOIME, op. cit., p.33, tradução nossa.