Um breve percurso pela história do Modelo Vivo no Século XIX - Princípios do método, a importância de Viollet Le Duc e o uso da fotografia [1]

Elaine Dias [2]

DIAS, Elaine. Um breve percurso pela história do Modelo Vivo no Século XIX - Princípios do método, a importância de Viollet Le Duc e o uso da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 4, out 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ed_mv.htm>.

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Ao longo de sua trajetória no século XIX, o curso de modelo vivo adquiriu valores elevados e diferenciados nas principais academias européias. Na academia francesa, notamos que o estudo do nu a partir do modelo, inteiramente baseado nos princípios da Antigüidade Clássica, mantém, em termos gerais, uma consolidada doutrina desde sua implantação, ainda nos tempos de Colbert, até a primeira metade do século XIX. Estes princípios da academia francesa, entre os quais a imitação e estudo das anatomias perfeitas, o aperfeiçoamento do desenho e a recuperação das poses anteriormente provenientes das estátuas, serão repassados às academias européias e adaptados às academias americanas, seguidoras, por sua vez, do modelo francês de ensino.

No Brasil, veremos que a prática do modelo vivo será igualmente um elemento essencial ao aprendizado artístico, à imitação da natureza, a exemplo da academia francesa. Sua implantação, contudo, será realizada com grandes dificuldades. Félix-Émile Taunay, diretor da Academia Imperial de Belas Artes entre 1834 e 1851, iniciará o penoso processo de aperfeiçoamento do curso de modelo vivo[3]. Aprovada ainda em outubro de 1833, Taunay empregará os primeiros modelos, de fato, alguns anos depois da aprovação, a partir de um esquema didático baseado nos princípios clássicos e adaptados, de certo modo, às dificuldades encontradas no Brasil.

Em primeiro lugar, há a ausência da profissão propriamente dita. Estamos no Brasil da década de 1830 e não há profissionais de modelo vivo no Rio Janeiro. Isso se deve, em princípio, pela inexistência de escolas de arte nem de academias na cidade. Sabemos somente da Aula Régia de Desenho e Figura do Rio de Janeiro, criada em 1800 e dirigida por Manuel Dias de Oliveira, o Brasiliense ou Romano, onde, segundo a historiografia e algumas criticas do período, empregava-se o modelo vivo. Há a curiosa anedota do jornal carioca que relata que os alunos de Romano trocavam o magro modelo em pose por uma figura idealizada no papel. Partindo do princípio de que a nota é verdadeira, nota-se, em primeiro lugar, a ineficácia do modelo e, conseqüentemente, a ausência de modelos adequados que possam realizar o exercício. Tentativas foram feitas até mesmo no sentido de empregar escravos negros ou libertos, em razão de suas “formas artísticas”:

O senhor director recommendou novamente aos senhores professores não se descuidassem de procurar algum homem  que queira servir como modelo vivo, ainda que fosse hum preto, visto haver entre estes, individuos dotados de formas artísticas. (Ata de 1/3/1837)

Tratou-se novamente da necessidade de abrir quanto antes a classe de modelo vivo; e não há nisto pouca difficuldade: pois hum preto que já estava ajustado deixa actualmente de comparecer. (Ata de 6/3/1837)

Nenhum escravo negro, no entanto, apareceu para a sessão providenciada por Taunay. Ainda que aparecessem para ocupar o cargo, certamente Taunay se depararia com a inexperiência na composição das poses clássicas, fundamentais ao aprendizado. Era, em vão, a busca por um escravo negro, ainda que suas belas formas artísticas o autorizassem a tal exercício. Ao mesmo tempo, supondo que fosse contratados, a sociedade certamente seria contrária à atitude de Taunay, gerando uma crise de cunho moralista contra o estudo do nu a partir de um homem negro.

Félix-Émile tentou, desde a aprovação da medida, empregar modelos adequados. Passava-se, durante anos, do modelo “magro”, “estragado”, “idoso” ou de “formas moles”, para um professor de ginástica, um arqueiro do Paço, o jovem de “belo desenvolvimento de músculos” ou finalmente, uma nova procura por um modelo adequado, visto que os mesmos, quando eficientes, não permaneciam muito tempo no cargo. Estamos já em 1843 e continuava-se a procura por modelos que correspondessem ao clássico exercício, que tinha, convém dizer, reduzidos incentivos do governo imperial. Ao final dos dezessete anos de sua trajetória, alguns modelos passaram pela Academia, dentro destas características acima descritas. Félix-Émile Taunay colocará o curso em prática, mesmo que longe do ideal de beleza e perfeição pretendidas. Sabemos, contudo, que a profissão no Brasil se desenvolverá, ainda que tardiamente, na segunda metade do século XIX, em franco atraso, portanto, com a matriz européia. De qualquer modo, vale a pena retomarmos aqui uma parcela desta história passada nas academias da Europa, concentrando-nos mais demoradamente na academia francesa, berço para as demais. O desenvolvimento do curso modelo vivo, ao longo do século XIX, também foi feito de altos e baixos no ambiente europeu, como bem nos revelam seus principais fatos, dos quais tentamos, timidamente, nos aproximar.

Este artigo recupera, ainda que de forma breve, o curso de modelo vivo na França e sua difusão nas academias européias, apresentando os “princípios do método”, passando depois às transformações impetradas seja por Viollet-le-Duc ou pela apropriação de suas idéias e, finalmente, uma curta aproximação ao uso da fotografia como recurso ao estudo do nu.

O modelo vivo na Academia francesa e sua difusão

O curso de modelo vivo inicia-se na academia francesa nos tempos de sua fundação, já em 1648. Em termos gerais, podemos dizer que este era o principal diferencial da antiga Maîtrise, legitimando o surgimento da academia na França. A école du modèle, como era chamada na Académie Royale de Peinture et Sculpture, apresentava exercícios diárias. A pose era definida pelo professor que, a cada intervalo, verificava os desenhos realizados e fazia suas considerações. Ao modelo eram oferecidas algumas condições especiais, por exemplo sua nomeação como petit fonctionnaire do governo, o qual lhe rendia alguns privilégios e tentava livrá-lo, de certo modo, dos obstáculos morais comuns à profissão. A ele, dentro desta condição, também era permitido o porte da espada.

O curso de modelo vivo, normalmente vinculo à école du modèle dentro da Academia, vai ganhando, no entanto, uma certa autonomia, fazendo também parte dos exercícios cotidianos no ateliê do próprio artista. No século XVIII, sabemos, por exemplo, que Joseph Marie-Vien, mestre de Jacques-Louis David, alugava os serviços do modelo em seu ateliê, incentivando a prática que, segundo ele, era mais proveitosa que dentro da própria escola, em razão da liberdade do pintor na composição das poses necessárias e muitas vezes devido à disposição da luz e do lugar dentro do ateliê.

A partir da direção tomada por Vien, das descobertas arqueológicas e da formação de uma teoria voltada à imitação do mundo antigo, principalmente através dos estudos de Winckelmann, será na pintura, com Jacques-Louis David, que se levará a efeito esta nova estética fundada na beleza ideal e na perfeição da natureza a partir do modelo grego. O estudo do nu, questão central ao debate estilístico do período, constitui elemento fiel e indissociável do estudo do antigo. Noção central do neoclassicismo, encontrará em David seu principal articulador que defenderá, além do estudo do modelo na fase preparatório e do desenho, igualmente na fase intermediária e final, já na pintura.

A Academia francesa manterá, ao menos até a primeira metade do século XIX, os princípios tradicionais no curso de modelo vivo, isto é, suas poses cotidianas em horários restritos, e notadamente, o uso do modelo nu masculino. Ao lado do modelo vivo, a cópia da estatuária antiga, modelo perfeito para a representação do corpo humano, será igualmente defendida pelos acadêmicos franceses durante boa parte daquele século.

Será a partir do Salão de 1824, no entanto, que aparecem os primeiros indícios das futuras mudanças no sistema artístico baseado no estudo do nu a partir dos princípios clássicos, marcando, sobretudo, a valorização da cor pelas obras de Eugène Delacroix e de John Constable. Inicia-se um certo questionamento à perfeição do método baseado no estudo do corpo humano a partir do modelo da estatuária antiga e do modelo vivo posado à sua maneira. Será sintomática, nesse sentido, a crítica de Stendhal neste mesmo Salão de 1824, onde relata o cansaço do público em relação ao gênero acadêmico e às cópias de estátuas, público este que preferia apreciar os cadáveres inacabados do Massacre de Scios de Delacroix.[4] A crítica de Stendhal revela o caráter urgencial de mudanças no processo de aprendizado da academia francesa, fortemente voltado à questão da Antigüidade Clássica.

Uma série de mudanças começa a ser reivindicada pelos alunos da academia francesa, como uma certa independência do estudo do antigo. Com a proposta de um novo rumo para as artes através dos pincéis coloridos de Delacroix, vinha também a necessidade de mudança dos parâmetros neoclássicos da École des Beaux-Arts. Embora tenha havido uma comissão encarregada da análise das mudanças necessárias para a reforma da École, autorizada pelo Ministro do Interior, o Conde Montalivet, o relatório entregue em 1832 não apontava mudanças necessárias e nada se alterava na estrutura da instituição[5]. As mudanças em torno da base da école, isto é, o desenho a partir da estatuária antiga e das gravuras, além do modelo vivo nu e masculino, só viria encontrar algum efeito a partir da década de 1860, pelas mãos de Viollet le Duc.

Se a base acadêmica francesa não se modificava na década de 1830, com exceção de algumas mudanças administrativas em sua estrutura e da implantação de outras tendências classicizantes, as outras academias européias seguiam quase o mesmo ritmo. Na Espanha, a Academia de Bellas Artes de San Fernando, criada em 1752 a partir do modelo francês, passara, em 1820 e 1823, por novos planos de estudos. Estes indicavam apenas pequenas modificações no sistema administrativo e didático, como o estudo do colorido e a adoção de alguns tratados anatômicos[6] sem, contudo, se desvencilhar dos modelos clássicos, caros a qualquer instituição acadêmica de artes, com uma certa ressalva. A esse respeito, destaca Pevsner:

Em todos os países, o recurso aos modelos masculinos parecia indispensável a uma formação completa e a Academia Real da Espanha parece ter sido a única a temer o pecado implicado pela nudez ao ponto de excluir estes modelos de seu ensino [7].

Segundo Pevsner, o modelo vivo, nu e masculino, que só fora aprovado como método de aprendizado na academia espanhola trinta anos depois de sua fundação, seguia seu difícil caminho, embora na mesma trajetória da academia francesa. A academia de Córdoba, na Argentina, fundada a partir do modelo europeu um século mais tarde, também sofre algumas restrições ao aprendizado do modelo vivo, a exemplo de academia espanhola. Como bem destaca Tomas Bondone[8], o estudo do nu em Córdoba, já no século XX, sofrera proibições por parte das esferas religiosa, política e social, tornando-se um desafio ao artista cordobês, sobretudo ao diretor Gomez Clara, que finalmente vence o moralismo e instala as aulas do nu em 1922.

Na Itália, o classicismo da Accademia di San Luca seguia o mesmo ritmo das outras academias no século XIX[9], isto é, o estudo das proporções, a cópia da estatuária antiga, destacando-se sempre as estátuas de Antinous, do Discóbolo e do Laocoonte, além dos gessos contemporâneos inspirados nos modelos gregos dos professores Antonio Canova e Thorvaldsen, que passavam a fazer parte do estudo dos alunos. Havia, no entanto, algumas inovações.

Nas aulas de anatomia da academia italiana, havia, no entanto, uma certa modificação. Os trabalhos do médico cirurgião Giuseppe Del Médico associavam o estudo do cadáver, ossos e músculos, ao modelo vivo mostrado em aula, identificando todos os estudos do corpo ao movimento:

Devendo o artista representar a figura viva, em movimento, com características particulares, o estudo teórico não seria completo, se não lhes mostrasse qual é o estado dos músculos, quando estão em repouso, quando agem, e em segundo lugar, no momento de força que exercitam; por isso, depois de ter feito conhecer a situação, os ataques, e os usos dos músculos, de uma parte da figura, o Professor manda vir o modelo da Academia, e demonstra a verdade na teoria estabelecida.[10]

Del Médico, que se tornava titular da recém-criada cátedra de anatomia da Accademia di San Luca em 1812, por influência da academia francesa em Roma, publica no ano anterior sua Anatomia per uso dei pittori e scultori, obra dedicada à academia italiana que trazia em seu conteúdo os modelos da Antigüidade e a teoria de Winckelmann. Também utilizava o tratado anatômico do francês Lavater, Élements anatomiques d’osteologie et de myologie à l’usage des peintres et sculpteurs, de 1797, embora o tratado de Del Medico fosse o mais estudado junto a seu mestre, autor da obra, que também criava o prêmio de encorajamento aos alunos da classe da anatomia nos anos de 1813 e 1814, incentivando o estudo do corpo humano.[11]

Juntamente aos estudos anatômicos, a classe de modelo vivo, chamada Scuola Del Nudo, aparecia na academia italiana, a exemplo da academia francesa, com grande valor, mas numa ordem um pouco diversa. Tommaso Minardi, professor de desenho da Accademia di San Luca em 1823 e futuro professor de Vitor Meirelles em Roma, evoca não somente a recuperação das esculturas do Quattrocento, mas igualmente, em razão da importância do estudo do nu, a extensão dos estudos do natural em detrimento da idealização proposta pelo antigo, que ainda neste período era colocado em primeiro grau na academia francesa. Lorenzo Bartolini, professor de escultura na Accademia di Firenze em 1839, que a exemplo de Minardi pregava o uso dos gessos do Quattrocento italiano, também evocava a importância do estudo do natural apresentando, em 1840, um modelo deformado aos alunos, criando grande polêmica no meio acadêmico, em contraposição às belas estátuas do Colosso di Montecavallo ou de Laocoonte, normalmente utilizadas nas classes.

Embora a academia italiana tenha implantado algumas mudanças em relação ao sólido método difundido pela academia francesa, veremos que na França, berço do sistema, as transformações concretas em relação à didática acadêmica só começaram a acontecer, efetivamente, após as reformas iniciadas por Viollet-le-Duc, na década de 1860. Já em 1861, Ludovic Vitet, que naquele ano publicava sua obra sobre a Académie Royale de Peinture et Sculpture, relatava que o curso de modelo vivo era um mau serviço, pois dava ao aluno um leque restrito de possibilidades. Segundo Vitet, o aluno fixava aquela pose na memória e tratava de repeti-la, com alguma variação, nos seus personagens, tratando o modelo vivo como uma espécie de “manequim de carne humana”, vestido diferentemente a cada cena representada[12].

O modelo vivo masculino constituía, desde a época da Academia real, a base do ensino na instituição e nos ateliês privados e, principalmente, dos concursos trimestrais, semestrais e anuais. O modelo nu feminino passará a ser admitido nos ateliês da escola na década de 1880 e só será admitido nos concursos anuais a partir de 1939. Neste período, diante do modelo nu masculino, havia aulas separadas entre artistas homens e artistas mulheres. Para as aulas de modelo nu feminino, consideravam que homens e mulheres poderiam freqüentar conjuntamente. Vejamos como se deram os passos para as modificações destas aulas.

Viollet-le-Duc e a Reforma do Ensino

Viollet-le-Duc apresentava, em 1863, um plano de reforma contra a teoria do desenho segundo a tradição clássica, vale dizer as cópias realizadas a partir do antigo e classe sistematizada do modelo vivo[13]. Seu plano atacava diretamente esta prática, as ditas academias, onde os modelos pagos por hora posavam em salas fechadas, cansados e repetitivos. Os alunos passavam desta prática às cópias das telas no Museu do Louvre, dando continuidade à metodologia de ensino. Viollet le Duc defendia a livre observação da natureza e o desenho de memória como o melhor aprendizado do verdadeiro. Retoma, desta maneira, a idéia de Lecoq de Boisbaudran, que defendia o aprendizado do aluno através de escolhas feitas diretamente na natureza. Lecoq de Boisbaudran, professor de desenho da École Imperial et Spéciale du Dessin, dita Pétite École, desde 1841, ensinava a disciplina através do método de “gradação das dificuldades nos exercícios”, isto é, por meio do desenho de memória, colocando o modelo em movimento. Seu método ficou conhecido em Paris principalmente através da publicação de sua obra, Éducation de la mémoire pittoresque, editada em 1862, onde discute seu método inovador:

Quelques modèles étant été engagés pour l’expédition; ils devaient marcher, s’asseoir, ocurrir, se livrer enfin librement et spontanément à divers mouvements; tantôt nus comme des faunes antiques, tantôt vêtus de draperies de différents styles et de diverses couleurs...Nos pauvres mercenaires de la pose, livrés à eux-mêmes dans ce milieu vivifiant et splendide, semblaient vraiment se transfigurer. [14]

O desenho, para Lecoq de Boisbaudran, seria a tradução do pensamento a partir da observação direta do natural, rompendo com o nu acadêmico estático de um modelo pago por hora, na fechada sala mal iluminada do atelier, livrando os alunos do método mecânico e levando-os ao método intelectual. Apresenta o método aos professores da École des Beaux-Arts, mas não consegue modificá-lo diretamente. Contudo, influencia Viollet le Duc em sua proposta de reforma de Ensino[15]. Assim como Lecoq de Boisbaudran, Viollet alertava ainda para a cópia de modelos no Louvre. O aluno não deveria aprender a ver a natureza a partir do olhar dos mestres. Só o exercício do natural libertaria o aluno “das paredes da Escola ou do ateliê:

Le véritable dessinateur n’est pas un photographe reproduisant un modèle posant devant lui, mais un observateur étudiant ce modèle, de façon à en connaître si bien la forme, la raison d’être, de se mouvoir, les diverses apparences suivant les circonstances extérieures, qu’il pourra en fermant les yeux, se le représenter sous un aspect quelconque, non vaguement, mais nettement, avec ses plans, le jeu des ombres, les effets de la coloration, le mouvement que lui imprime un sentiment, un besoin ou une passion. [16]

Entrava com todo o vigor na polêmica em torno da metodologia que ganhava força nos domínios do ensino artístico desde os anos de 1840.[17] Entretanto, suas propostas só começam a se concretizar em 1871, em alguns aspectos. Não se modificam ainda no que se refere ao modelo vivo e muito menos à proposta baseada na experiência de Lecoq de Boisbaudran, mas são efetivamente criados, segundo sua proposta, os ateliês internos à École, antes privados, e o exercício de desenho cotidiano é suprimido. Quando ao modelo vivo, o curso seguia o rumo que fora tomado séculos antes, não deixando de revelar, contudo, e cada vez mais, o lado já saturado da profissão e as constantes humilhações sofridas pelos modelos. As modificações surgem principalmente na década de 1880, com a inclusão do modelo feminino. No entanto, junto às mudanças surgem outras questões.

Em 1867, Jules e Edmond de Goncourt, conhecidos como os Irmãos Goncourt, publicam o romance Manette Salomon, relatando a vida dos artistas na École des Beaux-arts, dando especial ênfase à questão do modelo vivo, suas atribuições e seu tratamento. Revela uma vida repleta de maus tratos, humilhações, julgamentos físicos e raciais, encarados cotidianamente com naturalidade[18]. Na década de 1880, a mesma cena era repetida todas as segundas-feiras na porta da École des Beaux-Arts na busca do emprego de modelo para aquela semana: “poucos parisienses, muitos italianos, alguns negros. As mulheres, que passavam a ser aceitas nos ateliês presentes dentro da école no início da década de 1880, eram de belos tipos, louras parisienses, jovens moças de Nápoles. Segundo o jornal Le Figaro, em seção de 28 de agosto de 1889, no relato sobre aqueles que buscavam a profissão, há a informação de que os italianos chegavam quase sempre em família, os franceses chegavam sozinhos, “como se estivessem ali por acidente[19]. Todos eram colocados nus e escolhidos. Os que tinham sorte, ganhavam por quatro jornadas das 8 ao meio dia, com alguns intervalos. Normalmente eram escolhidos os profissionais, pois os amadores acabavam por revelar a ignorância das poses e a semelhança aos manequins, embora sempre com grandes críticas. Os mais experientes, como o grande modelo Gélon, dito Aquiles[20], ou Charles Dubosc, profissional de modelo vivo dos 7 aos 62 anos, que acumulou fortuna na profissão, mostravam o conhecimento histórico na correta definição das poses, além do conhecimento das poses da estatuária antiga para sua maior perfeição. Ao mesmo tempo, alguns modelos apresentavam alguma inquietação quanto à forma representada e a atitude do artista. Em Manette Salomon, e mesmo em L’Oeuvre, de Émile Zola, ao abordarem esta profissão, tema constante da literatura do século XIX, há passagens em que o modelo vivo sente ciúmes da própria imagem representada na tela, amada pelo artista, que vê o modelo com indiferença ao lado do resultado final. A anedota parece, assim, perfeitamente verossímil ao final do século XIX. A fotografia aparecerá, no entanto, como um aliado e um vilão nessa história, como notaremos adiante.

O Estudo do Nu e a Fotografia

A reivindicação de Viollet le Duc em torno do modelo, com a busca pela permissão do nu feminino, a mudança das poses, o movimento, a substituição do modelo pago por hora de trabalho, cansado das poses cotidianas, encontrava um outro recurso em meados do século XIX, embora com algumas restrições. Inicia-se o uso da fotografia do modelo. As coleções presentes na Bibliothèque Nationale de France, no Musée d’Orsay e na École Nationale des Beaux-Arts, entre outros, oferece-nos instrumentos interessantes para o entendimento desta questão[21]. Ali, foram expostas diversas fotografias e discutidas algumas das novas noções que adentravam o mundo acadêmico e renovavam, de certo modo, o clássico curso do modelo vivo.

O novo recurso indicava não só a mudança em relação ao próprio método, mas igualmente da representação da imagem, gerando polêmicas diversas. Se, por um lado, ampliava o recurso do artista e evitava as poses longas do modelo, não resolviam a questão proposta por Viollet le Duc já levada adiante por Lecoq de Boisbaudran, isto é, a questão do movimento. Ao contrário, a fotografia viria mostrar a pose duradoura e eternizada do modelo, agora também representado em meio ao processo de produção do artista. Ao mesmo tempo, era questionado em seus próprios termos - modelo vivo -, ao ser trocado pela impressão fotográfica depois de sua primeira pose. Poderia causar, conseqüentemente, o declínio de sua profissão. Charles Blanc, em sua Grammaire des arts du Dessin [22], publicada em 1867, questiona o uso da fotografia no estudo do desenho. Para ele, ela transmite o real e não o verdadeiro, pois há a ausência de expressão e de “alma”, levantando toda uma polêmica que conduzirá o mundo da fotografia e das artes nos séculos XIX e XX. Mas os pintores avançam cada vez mais e continuam a manipulá-la enquanto método para o estudo do nu.

Em seu Journal [23], Delacroix declara o uso e a admiração pela fotografia como recurso ao artista. Em comparação às gravuras das estátuas antigas, também extremamente utilizadas como método, a fotografia do modelo, a partir da apropriação de luz e sombras perfeitas, acaba revelando as imperfeições dos cânones clássicos, admirados por Delacroix. No caso de Delacroix, o daguerreótipo era comumente usado pelo artista, então em grande moda entre 1850 a 1860. Jules Ziegles e Eugène Durieu eram os fotógrafos que vendiam a ele os daguerreótipos, em sua maioria, de modelos nus femininos[24]. Ao contrário das poses masculinas realizadas na Academia, os nus representados nos daguerreótipos eram normalmente femininos, bem apresentados, compostos na cena fotográfica de maneira semelhante ao quadro terminado, com panejamento e acortinado adequados à cena [25]. Os nus femininos dos daguerreótipos, no entanto, vão adquirindo conotações eróticas, sofrendo proibições e provocando até mesmo a prisão de modelos e fotógrafos em 1851. Vale ressaltar que artistas como Ingres, totalmente oposto à pintura e às técnicas utilizadas por Delacroix em 1862, também se coloca contra o uso da fotografia nas artes, assim como seus alunos.

Embora rejeitada por alguns artistas, veremos que até o final do século XIX e início do século XX, a fotografia do modelo nu se desenvolve cada vez mais. Revistas especializadas de fotografias dos modelos surgem nesse período, como se fossem catálogos de estudos de nus, com poses diversas, masculino e feminino, gordos e magros, à escolha do artista. Entre 1901 e 1907, destacam-se três revistas que vão cumprir suas exigências.[26] Le Nu Académique apresenta edições entre 1905 e 1906. Surge por uso exclusivo dos artistas, mas seus modelos aparecem sempre escondendo o sexo ou cobrindo-o com uma folha de parreira. Mesmo sendo uma revista voltada inteiramente aos artistas, é, desta forma, a menos artística das revistas que surgem nesse período, colocando ainda os modelos nus femininos cobertos com acessórios.  Ao contrário, a revista Le Nu Esthétique, editada entre 1902 e 1907, é uma das poucas a apresentar nus femininos inteiramente despidos. Émile Bayard, seu editor, apresenta nus fragmentados e inteiros de homens, mulheres e crianças, assim como modelos com poses de estátuas antigas, à maneira clássica do profissional de modelo vivo nas academias de arte, fotografias de modelos com poses diversas refletidas em espelho e ainda modelos fotografados propositadamente com as marcas do espartilho, algo incomum na profissão que será imensamente explorado por pintores realistas como Courbet que, de resto, também usará o recurso fotográfico para a realização de suas obras. Também a revista Mes Modèles apresentava nus masculinos e femininos aos pintores e escultores, mas igualmente modelos vestidos, semivestidos, com grande variedade de poses e explicações sobre as vestimentas, incluindo aí também as descrições físicas. Uma inovação oferecida pela revista é a possibilidade de compra da fotografia isolada pelo artista, funcionando como uma espécie de catálogo de venda de poses, sempre de acordo com a vontade do artista.

A fotografia do modelo nu constituir-se-á ainda um recurso fortemente utilizado pelos médicos anatomistas que trabalhavam como professores nas escolas de arte ao final do século XIX, como Mathias Duval e Paul Richer. Do cânone idealizado e antigo, passava-se à simples observação do natural, ajudada pelo recurso fotográfico. Paul Richer, por exemplo, torna-se, ele próprio, fotógrafo. Cria uma espécie de catálogo anatômico com modelos nus e fichas descritivas, apresentando informações sobre o sexo, idade, medidas do corpo e suas proporções, criando tipologias. Publica em 1921 a obra Nouvelle Anatomie Artistique e prepara ainda a obra Atlas Physiologique, trabalho composto por três volumes (movimento, locomoção e exercícios variados), que resta inédito. Professor da École des Beaux-Arts desde 1903, Paul Richer preferia ensinar anatomia com o modelo vivo, assim como Giuseppe del Medico, além do cadáver e do estudo isolado dos ossos e músculos, embora usasse com grande eficiência as suas próprias fotografias anotadas, abrindo, desta maneira, o caminho para a morfologia em razão de seus estudos sobre os corpos vivos e não mortos: “Le nu n´est dès lors plus simplement le modèle vivant de l’atelier, mais bien l’incarnation d’une vérité naturaliste”.[27] Nesse sentido, vemos ainda o quanto Paul Richer se aproxima de Lecoq de Boisbaudran e Viollet le Duc, na tentativa de levar adiante o estudo do natural, reestruturando o modelo vivo. Utiliza, para tanto, o modelo em movimento, desvencilhando-se do aprendizado clássico, associado ao recurso fotográfico, inovação daquele século.

Analisamos, ainda que brevemente, como o estudo a partir do modelo vivo se desenvolve, sobretudo, no século XIX francês. A clássica metodologia acadêmica, embora extremamente forte e valorizada em alguns momentos da história, sofre suas alterações na segunda metade daquele século. Incorporará métodos diversos e, sobretudo, vinculados a uma certa modernidade, como o uso da fotografia. Do modelo clássico à sua modernização, o aprendizado através do modelo vivo foi e continuará sendo, porém e indiscutivelmente, o tradicional estudo de nu...

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[2] Doutora em História pela UNICAMP (2005), pós-doutoranda FAU-USP, Fapesp.

[3] DIAS, Elaine. Félix-Émile Taunay: Cidade e Natureza no Brasil. Tese de Doutorado, IFCH, UNICAMP, Campinas, 2005.

[4] STENDHAL, 31 aôut 1824 in Stendhal. Salons. Paris : Le Promeneur, Éditions Gallimard, 2002. p.62

[5] LAURENT, Jeanne. A propos de l’École des Beaux-Arts. París, ENSBA, 1987.

[6] NAVARRETE MARTINEZ, Esperanza. La Academia de Bellas Artes de San Fernando y la pintura en la primera mitad del siglo XIX. Madrid, Fundación Universitaria Española, 1999.

[7] PEVSNER, Nikolaus. Academias de arte: Pasado y presente. Madrid: Ediciones Cátedra, 1982, p.152 (Tradução da autora).

[8] Catalogo El Desnudo en la Academia. Exposición de la Escuela de Bellas Artes Figueroa Alcorta, Córdoba, Argentina, 2006.

[9] PICARD, Paola; RACIOPPI, Pier Paolo. Le Scuole Mute e le Scuole Parlanti. Studi e documenti sull’Academia di San Luca nell’Ottocento. Roma, De Luca Editori d’Arte, 2002.

[10] Idem, ibidem, p. 201.

[11] Idem, ibidem, p. 36.

[12] VITET, L. A propos de l’enseignement des arts du dessin. Paris: ENSBA, 1984.

[13] FOUCART, Bruno.Préface. In: A Propos de l’Enseignement des Arts du Dessin. Paris, ENSBA, 1984, p.17

[14] Horace Lecoq de Boisbaudran, «L’Éducation de la mémoire pittoresque et la formation de l’artiste », Paris, Laurens, 1913. Apud FOUCART, op.cit.,  p. 19.

[15] Será também referência fundamental aos artistas realistas e principalmente a Couture, que prega o mesmo método no aprendizado de seus alunos. Idem.

[16] Reponse a M. Vitet a propos de L’Enseignement des Arts du Dessin par Viollet-le-Duc architecte. IN: VITET, Louis ; VIOLLET-LE-DUC, Eugène. A Propos de l’Enseignement des Arts du Dessin. Paris, ENSBA, 1984. p.100; fac-simile disponível no site da Gallica:http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k104824z.notice

[17] Idem, ibidem.

[18] JACQUES, Anne. Les Beaux-Arts, de l´Académie aux Quat’z’arts. Anthologie historique et littéraire. Paris, ENSBA, 2001, p.191.

[19] Idem, ibidem.

[20] Gélon era lutador. Chamado de Aquiles por suas formas atléticas, lutava em Paris e atraía os estudantes, que freqüentavam as lutas como se ali existisse uma academia viva, que mostrava o modelo em movimento.

[21] A exposição L’Art du Nu au XIXe siècle, le photographe et son modèle, realizada na Bibliothèque Nationale de France François-Mitterand, entre 17 de outubro de 1997 e 18 de janeiro de 1998, apresentou ao público estes estudos. Ver, para tanto, o catálogo de mesmo nome, na Bibliografia.

[22] BLANC, Charles. Grammaire des Arts du Dessin. Paris, Vve J. Renouard, 1867; ou ainda a edição : BLANC, Charles. Grammaire des Arts du Dessin. Paris : École Nationale des Beaux-Arts, org. Charles Blancintrod ; Claire Barbillon, 2000.

[23] DELACROIX, Eugène. Journal 1822 - 1863. Paris, Plon, 1996.

[24] L’Art du Nu au XIXe siècle, le photographe et son modèle. Paris, Hazan/BNF, 1996, P. 58

[25] Ver, sobretudo, o artigo de Sylvie Aubenas, L’Art du Nu au XIXe siècle, le photographe et son modèle. Paris, Hazan/BNF, 1996.

[26] L’Art du Nu au XIXe siècle, le photographe et son modèle. Paris, Hazan/BNF, 1996, p.32

[27] Idem, ibidem,, p. 68.