Arte e Indústria: Justificativas do Ensino de Desenho nos Pareceres de Rui Barbosa
Felipe Freitas de Souza
SOUZA, Felipe Freitas de. Arte e Indústria: Justificativas do Ensino de Desenho nos Pareceres de Rui Barbosa. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ruibarbosa.htm>.
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A sintonia fina que Rui apresenta naqueles “pareceres” com as situações educacionais do mundo sinaliza que o que ali se passa é o que deveremos passar. São etapas de progresso que precisamos atingir.
Marlos Mendes Bessa da Rocha, Matrizes da Modernidade Republicana
Refletir sobre a Reforma do Ensino Primário de Rui Barbosa implica a procura pelo entendimento do projeto escolar engendrado por diferentes agentes sociais, inseridos em um campo político determinado, e que não se restringem somente ao âmbito nacional. O diálogo e a relação estabelecida pelos intelectuais brasileiros com “o estrangeiro”, principalmente os países Europeus e os Estados Unidos da América, para refletir a educação, a sociedade e a política, foram de cunho modelar para nossa intelectualidade.
Os Pareceres[1] encerram um projeto escolar, um exercício de proposições e respostas ao Decreto 7.247 de 19 de Abril de 1879 - a chamada Reforma Leôncio de Carvalho[2]. Devido ao momento político então estabelecido, marcado pelos debates entre os membros do campo de poder (ou campo político) relativamente à abolição, à república, à organização do poder e aos embates entre liberais, conservadores, monarquistas e republicanos, buscava-se o estabelecimento de um projeto de nação embasado no povo[3] (CARVALHO, 1990). Em ROCHA (2004, p.22-23), encontramos que
o advento da República não traz apenas um ideal de maior universalidade da cidadania, ele explode, no plano ideal, com qualquer concepção de representação da nação para além de sua expressão cidadã. É nesse novo contexto de cultura política que surge a idéia de incorporação do povo à nação. Essa é uma exigência para um projeto de nação a ser constituída, já que nada mais há, além do povo, para ser colocado em seu lugar. [...] (ROCHA, 2004, p.22-23 - grifos do autor)
Aliada à incorporação do povo à nação está a questão da insuficiência do povo para exercício de mudanças reais ao novo modelo político-social então gestado com a queda do Imperador. Este ideal de cidadania republicana (ROCHA, 2004, p.23), embasado na insuficiência e na incorporação do povo, não se manifesta somente a partir da República: estas concepções manifestam-se no pensamento liberal gestado no Brasil no período Imperial. A educação passa a ser de preocupação dos liberais brasileiros devido à difusão dos valores escolares e dos valores civilizatórios da instituição escolar - seja em sua vertente americanista (CHAMON, 2008 - relativamente à atuação dos protestantes estadunidenses no Brasil) ou em sua vertente francesa (ORTIZ, 1991 - relativamente ao ideal de modernidade, urbanidade, cultura, fruição[4], etc.). Relativamente a Rui Barbosa,
Não lhe faltava a observação do movimento da vida internacional e, ainda aí, não lhe escapava também a importância que o desenvolvimento da instrução pública vinha assumindo nos países da Europa e da América. A época era a da afirmação dos estados de base nacional, como o século precedente fora o de estados de base dinástica. (LOURENÇO FILHO, 1966, p.50)
A Lei Saraiva de 1881, realizando uma reforma eleitoral excludente da população analfabeta, mobiliza Rui Barbosa a formular bases para um processo de participação política democrática. Ao propor a gratuidade da escola primária e sua expansão pelo viés da preparação para o trabalho, tem em mente também a preparação do povo para o exercício do voto, uma vez que a porcentagem de analfabetos era esmagadoramente maior do que a de indivíduos letrados. Rui Barbosa perceberia um país de analfabetos não preparados para o trabalho, curso muito diferente do realizado nos países de inspiração para suas reflexões e comparações.
Os Pareceres são carregados de comparações com outros países: Rui Barbosa chega a elaborar tabelas e comparações com o Brasil que indicam o atraso brasileiro relativo às potências econômicas. Valdemarin realiza a crítica das comparações a estes países e da procura de assimilação de seus fazeres por Rui Barbosa, indicando a não-percepção de suas propostas enquanto “descompassadas” para a realidade nacional:
Há um descompasso temporal, uma vez que na Europa e EUA essas normalizações já se constituem em práticas efetivadas, de onde provém, inclusive, nossa consciência do atraso. Há também um descompasso lógico, na medida em que, apesar da liberdade ser considerada um bem em si ela deve ser imposta pela lei e, portanto, regulada. Há ainda, um descompasso histórico: a realidade do país aponta para a necessidade de mudanças sociais, mas o agente histórico capaz de realizar estas mudanças, ainda não se faz presente, por força da mesma dependência que impõe uma política centralizadora e excludente. (2000, p.82)
Apesar desses descompassos, existe a percepção da necessidade de uma reforma educacional visando uma reforma social e do trabalho[5].
A ser certo, com efeito, a ser irrefragável, como todos os fatos o evidenciam, que (servindo-nos das palavras de Horácio Greeley) “o trabalho do homem é tanto mais produtivo, quanto mais cultivada a sua inteligência”; que “o proprietário tem o máximo interesse em que a instrução pública se difunda”; que “não há uma chácara, um banco, uma fábrica, uma loja (salvo a taverna), cuja renda não cresça, em sendo moralizada e instruída a população da localidade”; se, dentre todos os dados que a história e a ciência econômica teem apurado na sucessão dos século, e especialmente na idade contemporânea, nenhum há mais inelutável, mais profundo, mais fatal do que esse nexo vivo entre educação e riqueza, - não há impostos contra os quais menos assista à propriedade o direito de queixar-se, do que os consagrados à escola. Eles não constituem uma finta à propriedade, mas uma economia, que se capitaliza a juro compostos, um empréstimo que lhe será restituído no cêntuplo. (BARBOSA, 1947, t.3, p.243)
Neste pensamento do nexo entre educação e riqueza, Rui Barbosa não pretende somente educar o trabalhador brasileiro, mas também pensar na educação das elites dirigentes (daí seus Pareceres serem precedidos de Pareceres sobre o ensino secundário e superior):
Ao redirecionar os estudos para a prática produtiva, por meio do ensino da ciência[6], ele projeta o sonho de um país moderno, vale dizer, capitalista. Criar-se-ia uma burguesia nos moldes europeus e assim desvenda-se seu propósito de educar não apenas a classe trabalhadora, mas também uma elite esclarecida, ligada às atividades industriais e não apenas à lavoura, sempre dependente do mercado externo. (VALDEMARIN, 2000, p.173)
Educar a população para o trabalho seria uma medida de direcionar os diferentes agentes sociais então colocados em cena no Brasil contemporâneo: os imigrantes, os ex-escravos e o elemento nacional (KOWARICK, 1994). Estes estariam submetidos a um “aviltamento do trabalho manual”, ou seja, uma interpretação do trabalho manual como algo não-digno de exercício; o interesse de Rui Barbosa é positivar este trabalho manual (e fabril) para o desenvolvimento econômico da nação. Este aviltamento do trabalho manual proviria principalmente da posição agrário-exportadora assumida pelo Brasil, bem como da continuidade do trabalho escravo por longo período - base deste sistema agrário.
Que estamos destinados a ser, por muito tempo, uma nação especialmente agrícola, é uma verdade óbvia, que ainda ninguém controverteu. Mas que devemos ser um país exclusivamente agrícola, é suposição que não tem sequer senso comum. Entretanto, para ela insensivelmente pende de fato, o exclusivismo dos que esquecem a necessidade do trabalho industrial, como elemento imprescindível de civilização e riqueza, ainda entre os povos lavradores. (BARBOSA, 1947, t.2, p.178)
Rui Barbosa encontra-se sob a égide de “ilustração brasileira”, expressão cunhada por Roque Spencer Maciel de Barros (ROCHA, 2004, p.65). Esta geração, marcada pelos posicionamentos liberal, cientificista e católico, encontra em Rui Barbosa a expressão de uma proposição liberal-cientificista. Rui Barbosa, provavelmente, identificara que, durante o Império, os “Investimentos sociais menos diretamente vinculados aos interesses agrários, como a educação, permaneceram em níveis baixos, apesar da retórica oficial que apontava sua importância para o desenvolvimento do país.” (CARVALHO, 2003, p.283) A distância que Rui Barbosa identificava o Império do Brasil das nações mais adiantadas poderia ser indicada principalmente pela falta de uma indústria nacional - na acepção moderna do termo. Rui Barbosa afirma que
Urge criar a indústria nacional. O embrião que existe entre nós, não tem vitalidade, por falta de elementos que, em todos os países, constituem a base suprema da prosperidade industrial: a educação do homem, a inspiração do gosto, o ensino da arte. A proteção que consista em cerrar ou dificultar o acesso do nosso mercado aos produtos estrangeiros, mediante tarefas diferenciais e direitos mais ou menos proibitivos, é estéril e odiosa. Toda a sua influência reduz-se a constranger o consumidor, pela agravação arbitrária do preço dos artigos adventícios, ao uso de produtos inferiores, como fatalmente há de ser os do país, enquanto a indústria brasileira não puder emular em habilidades com as nações adiantadas.
Educar a indústria: eis a fórmula racional da única proteção eficaz à produção industrial do país. (BARBOSA, 1947, t.2, p.176-177 - grifos do autor)
Valdemarin afirma que:
Segundo Rui, o cultivo do desenho é fonte de riqueza, constituindo-se em elemento essencial à prosperidade do trabalho [...]. É elemento essencial à observação, invenção, assimilação e retenção mental, além de impulsionar o trabalho e a riqueza das nações, o que justificaria amplamente sua inclusão nos programas escolares. (2000, p.147)
“Ora, o desenho é a base de toda a instrução industrial.” (BARBOSA, 1947, p179) Neste pensamento, inserir o Desenho nas escolas primárias, difundindo-o e difundindo-a, seria uma forma de enriquecer a nação, de prepará-la para o novo cenário internacional que se delineava. Anderson (2008) indica que a consolidação dos estados nacionais[7] embasou-se: em um capitalismo editorial (acúmulo e difusão de obras literárias), na elaboração de censos, na criação de museus, na execução de mapas, na difusão de uma língua específica e na unificação territorial que um regime de base dinástica não favoreceria (dada a “porosidade” das fronteiras de Estados deste tipo). Falta, em sua abordagem, a percepção da formação das elites dirigentes nos espaços de formação intra-nacional (como na relação Brasil e Portugal - vide CARVALHO, 2003) e do trabalhador nacional (KOWARICK, 1994) através do sistema educacional e das instituições escolares[8]. Para a gestação da República brasileira, do pensamento liberal que viria a influenciá-la, não faltou esta percepção e formulação. A educação popular adquiria a formulação acima indicada, não só no Brasil, mas nos demais países (observados por Rui Barbosa):
A educação popular para o trabalho era a finalidade precípua, e as recomendações metodológicas se dirigiam à necessidade de desenvolver conhecimentos técnicos de desenho acessíveis a todos os indivíduos, para que estes, libertados de sua ignorância, fossem capazes de invenção própria. Educar o “instinto de execução” para que este não fosse empecilho à objetivação da invenção era o princípio básico que repercutiu profundamente na metodologia do ensino da Arte no século XX. (BARBOSA, 2006, p.60)
Ainda sobre o nexo entre educação e economia, Rui Barbosa afirma relativamente ao ensino de desenho que:
Se carecêssemos de mostrar, por um indício especial, mas decisivo, a que ponto incrível o estado mental dos homens que nos governam se acha alheio às grandes correntes morais que dominam, e caracterizam a civilização contemporânea, bastaria apontar a ignorância, em que jazem as nossas notabilidades econômicas e financeiras, assim como as autoridades diretoras do ensino entre nós, - estas quanto à relevância capital deste ramo de instrução entre as matérias fundamentais do programa da escola elementar, - aquelas quanto ao papel supremo desses estudos, universalizados pela aula de primeiras letras, e desenvolvidos pelas classes de desenho até as escolas superiores de arte aplicada, como fonte de riqueza, como elemento essencial à prosperidade do trabalho. (BARBOSA, 1947, t.2, p.105-106 - grifos do autor)
Para uma indústria ainda inexistente, o desenho seria a “mola propulsora”; para uma população excluída dos processos decisórios, sua contribuição para a coletividade se daria pelo trabalho e pela educação. Rui Barbosa expressa como necessidade o trabalho industrial e a educação das classes populares enquanto quesitos para o desenvolvimento da nação brasileira, economicamente e moralmente.
À construção de uma nação economicamente liberal e rica estaria diretamente vinculado o pensamento educacional e, principalmente, da consolidação do ensino de desenho. Rui Barbosa pudera observar o desenvolvimento econômico e industrial destes países enquanto elementos anexados ao aprendizado do desenho pelas classes trabalhadoras.
Deste modo, contextualizar o ensino de desenho nos Pareceres de Rui Barbosa implica em contextualizá-lo não somente em uma reforma educacional, mas, como procuramos demonstrar, contextualizá-lo também em uma reforma política e em uma reforma eleitoral. A reforma do trabalho e do Estado proviria do ensino; este seria guiado, em seu espírito, pela arte.
Referências Bibliograficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2006.
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino secundário e superior. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942. Obras Completas, v.9, t.1. (Edição Comemorativa do 1º Centenário dos Pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882).
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. Obras Completas, v.10, t.1-4. (Edição Comemorativa do 1º Centenário dos Pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882).
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_____. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
_____. A construção da ordem: a elite política imperial.
_____. Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CHAMON, Carla Simone. Escolas em reforma, saberes em trânsito: a trajetória de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1869-1913). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
LOURENÇO FILHO, Manuel Bergström. A pedagogia de Rui Barbosa. São Paulo: Melhoramentos, 1966.
ORTIZ, Renato. Cultura e modernidade: a França no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1991.
ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas: Autores Associados; Brasília: Editora Plano, 2004.
SAVIANI, Dermeval, ALMEIDA, Jane Soares, SOUZA, Rosa Fátima de e VALDEMARIN, Vera Teresa. O legado educacional do século XIX. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
SOUZA, Rosa Fátima de. Inovação educacional no século XIX: a construção do currículo da escola primária no Brasil. Cadernos CEDES, Campinas, v. 20, n. 51, Nov. 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622000000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13 jun. 2009.
VALDEMARIN, Vera Teresa. O liberalismo demiurgo: estudo sobre a reforma educacional projetada nos Pareceres de Rui Barbosa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2000.
[1] Referir-nos-emos aos quatro tomos, simultaneamente da Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública, como Pareceres. Quando nos referirmos à Reforma do Ensino Secundário e Superior, faremo-lo explicitamente.
[2] Em anexo em BARBOSA, 1942, p.274-305.
[3] Devido a este “clima intelectual”, os Pareceres foram relegados a segundo plano na esfera da reflexão política, mas foram tomados enquanto referências para o pensamento educacional
[4] Por fruição entendemos as práticas de consumo cultural engendradas por um grupo, segmento social ou mesmo por toda uma sociedade.
[5] É importante ressaltar que a Reforma Leôncio de Carvalho propunha somente Elementos de Desenho Linear na Escola Primária (Art. 4º) e que a disciplina Desenho não se encontrava na preparação do professorado no currículo da Escola Normal proposto para os Estados (parágrafo primeiro do Art. 9º). Aí está uma das características dos Pareceres de Rui: propor uma reforma educacional em âmbito nacional, mudando os funcionamento da escola, a formação dos mestres e as finalidades da educação.
[6] E do desenho, como procuramos demonstrar.
[7] Cf. a citação de Lourenço Filho, acima. Lembremos que para ANDERSON (2008), estado nacional é diferente de nação - o que, no contexto brasileiro, ocasionará uma problemática teórica à qual o autor não indica resolução, principalmente devido à peculiaridade brasileira de contar com a família real em seu território.
[8] Ainda que, em sua abordagem, ANDERSON (2008) cite os sistemas educacionais e a criação de escolas primárias relativamente à formação das classes dominantes nos países analisados (Hungria, Japão, Sião...), não reflete sobre a formação do trabalhador nacional.