O ensino de desenho no século XIX: Rui Barbosa e a tradução cultural de Joaquim de Vasconcelos

Felipe Freitas de Souza

SOUZA, Felipe Freitas de. O ensino de desenho no século XIX: Rui Barbosa e a tradução cultural de Joaquim de Vasconcelos. 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_desenhorbjv.htm>.

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1.      Introdução

O século XIX, principalmente sua segunda metade, é marcado pela discussão e redefinição das políticas públicas educacionais em praticamente todo o Ocidente. Os países europeus e os Estados Unidos serviram como modelos para o desenvolvimento dos demais países ao difundirem suas conquistas no âmbito educacional, por diferentes formas, como a massificação da escola primária graduada. A escola primária foi pensada como instituição a ser difundida, universalizada e, enfim, democratizada segundo os modelos oferecidos pelos países tidos como desenvolvidos. Em relação a essa instituição, a organização, os currículos e as modalidades de ensino foram debatidos por intelectuais do período, marcando um intenso debate e circulação de ideias (SOUZA, 2000).  “Em toda parte difundiu-se a crença no poder da escola como fator de progresso, modernização e mudança social.” (SOUZA, 2000, p.11) A influência dessas ideias em difusão é perceptível no caso brasileiro, originando obras e iniciativas de particulares e do governo imperial.

Com os debates sobre a escola primária, suas funções, objetivos e currículos, propagaram-se também os debates sobre a educação profissional e sua necessária implantação como modo de incluir as classes populares nos processos produtivos. Pensar a educação profissional massificada através da escola primária relaciona-se às alterações significativas que os processos produtivos e de inclusão no mundo do trabalho sofreram ao longo da segunda metade do XIX no Brasil: o progressivo declínio do trabalho escravo; o consequente branqueamento da força de trabalho mobilizada nas atividades ocupadas tradicionalmente pelos escravos; portanto, a presença, cada vez mais constante, antes da Abolição, de homens livres ao lado de escravos nas manufaturas e demais empreendimentos produtivos; a difusão da ideologia do industrialismo; a escolarização dos ofícios como estratégia de formação da mão-de-obra[1] (CUNHA, 2005). Ao atentarmos à escolarização dos ofícios no Brasil, indicamos que este processo foi realizado em instituições de diversas características: militares; entidades filantrópicas (como as Casas de Educandos Artífices[2] e asilos de meninos desvalidos); entidades financiadas por sociedades mantenedoras (como os Liceus de Artes e Ofícios[3]); bem como outras experiências localizadas (CUNHA, 2005). A formação para o trabalho passava, gradualmente, a ser ministrada nesse espaço escolarizado, significativamente distinto do espaço da oficina.

As iniciativas de escolarização dos ofícios no período indicado constavam, recorrentemente, com a proposição do ensino de desenho para seus educandos[4]. Acreditamos que a transição do espaço da oficina para o espaço escolar como locus da formação profissional incorreu em um conjunto de transformações, como a construção de instituições de educação profissional nas cidades, uma outra identidade para essas instituições, uma mudança nos métodos de ensino, da própria temporalidade do trabalho e da educação, bem como mudanças curriculares que incluíram o ensino do desenho, sendo este ensino justificado de diferentes modos. Na profusão de discursos referentes à educação profissional brasileiro ao longo do XIX, temos as proposições de José Bonifácio, Hipólito da Costa, Ignacio Alvares Pinto de Almeida, Gonçalves Dias, Liberato Barroso, Martin Francisco, João Barbalho Uchoa Cavalcanti e João Alfredo Corrêa de Oliveira; mas somente em Leôncio de Carvalho, Félix Ferreira e em Rui Barbosa encontraremos a associação entre o ensino de desenho e a formação profissional (CUNHA, 2005).

Uma vez que pretendemos investigar o ensino de desenho em suas interfaces com conteúdos provindos de outras culturas, visando situar a “modernização educacional no país em relação ao contexto internacional” (SOUZA, 2000, p.10), referenciamo-nos à Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública (1883) de Rui Barbosa como documento essencial para pensar a propagação do ensino de desenho e as influências internacionais para esta disciplina. Uma vez que “Esse documento constitui uma das primeiras obras, e a mais completa delas, sobre a organização pedagógica da escola primária e sobre política de educação popular produzida no Brasil no século XIX.” (SOUZA, 2000, p.10), sua análise permite avaliar a circulação de ideias educacionais no período devido ao seu caráter de compilação das medidas educacionais a serem realizadas para que o Brasil fosse alçado ao status de nação moderna: a circulação de ideias através da Reforma do ensino primário de Rui Barbosa é evidenciada exatamente por seu esforço de documentá-la e fundamentá-la em amplo material bibliográfico de origem estrangeira tomado como referência[5].

Essa extensa documentação permite, pois, apreender as representações educacionais em voga na época, seja no âmbito nacional ou internacional. Possibilita, ainda, explicitar o processo de construção do currículo da escola primária no Brasil, tendo em vista os determinantes sociais e políticos que orientaram a seleção cultural para esse nível de ensino, os interesses subjacentes e as forças sociais que influenciaram a inclusão de alguns saberes e disciplinas no programa escolar. (SOUZA, 2000, p.10)

No Tomo II da Reforma do ensino primário, encontramos referências ao autor Joaquim de Vasconcelos[6] no capítulo dedicado à disciplina Desenho (BARBOSA, 1947, t. II, p.10-197). Rui Barbosa serve-se da síntese elaborada por Joaquim de Vasconcelos na obra Reforma do ensino do desenho[7] (1879) que versa sobre a educação profissional realizada na Inglaterra e na Áustria; o modo como se ministrava o ensino do desenho na Áustria e Inglaterra são referenciadas, principalmente, pelo relato de Joaquim de Vasconcelos no texto ruibarbosiano. Portanto, ambos os autores prestavam atenção nos processos educacionais estrangeiros, pensando em incorporar atitudes e reforçar práticas já consolidadas através da prática estrangeira como legitimadora das práticas escolares tomadas ou a serem tomadas em seus respectivos países.

Evidenciamos, portanto,

[...] que o que estava ocorrendo na segunda metade do século XIX era uma circulação internacional de um conjunto de saberes e práticas educacionais considerados modernos e inovadores. [...] Nesse sentido, circulando em vários lugares, não é possível precisar um único lugar de origem de sua produção, mas, sim, apropriações sócio-históricas ou leituras singulares desses saberes e práticas. (CHAMON, 2008, p.32)

Teremos na Reforma do ensino primário um ponto de conjunção de diferentes representações e modelos educacionais então em circulação e uma obra organizadora de pensamentos educacionais em circulação em diferentes âmbitos e instituições, nacional e internacionalmente, através da seleção de conteúdos culturais tidos como relevantes por seu autor. Em nossa leitura, Rui Barbosa é o tradutor cultural entre as culturas estrangeiras e a cultura nacional, atuando como intérprete das ideias pedagógicas em circulação e como intermediário da circulação destas no Brasil. Na elaboração de sua obra, Rui Barbosa serve-se da interpretação de Joaquim de Vasconcelos sobre outras culturas, evidenciando que inclusive as traduções culturais circulavam entre outros tradutores como “metodologia” de tradução.

2.      Referencial teórico e metodologia

Peter Burke (2008, 2009a e 2009b) e Maria Lúcia Pallares-Burke (1996 e 2009) evidenciam a proficuidade da ideia de tradução cultural para estudos em história cultural, pois este conceito possibilita aos pesquisadores apreenderem as relações de circulação de conteúdos culturais sem deixar de indicar as diferenças entre estas culturas em suas incompletudes e mútuas inter-relações. A tradução cultural é um conceito originário dos estudos em antropologia social que partem do pressuposto de que a cultura é como um texto, precisando ser lida e decifrada pelo antropólogo:

Sendo tarefa da antropologia tornar uma cultura inteligível para outra, considerou-se que ao papel do antropólogo e de seu campo se poderia aplicar a metáfora da tradução, já que envolvia um grau de criatividade e de interpretação tão alto quanto o de traduções propriamente ditas. [...] A recepção de uma cultura por outra exige, pois, que ela seja “traduzida” por um intermediário, um intérprete que se esforça conscientemente em tornar seus caracteres e linguagem compreensíveis a ”leitores” habituados a outros “textos”. (PALLARES-BURKE, 1996, p.13-14)

O ato de traduzir culturalmente é tomando como ato de adaptar um texto a novos contextos (PALLARES-BURKE, 2009), possibilitando outros textos ou variações no texto receptor ao oferecer outros elementos para elaboração “textual”. A leitura realizada por Rui Barbosa destas obras estrangeiras visava, portanto, fornecer elementos para pensar a realidade educacional brasileira em seus objetivos e coerência com os ideais de modernidade e inovação. Uma vez que uma obra determinada era “[...] digna de tradução porque podia ser relevante para outros leitores além dos originalmente tencionados.” (PALLARES-BURKE, 2009, p.170), Rui Barbosa atua como intermediário, divulgando os ideários e realizações estrangeiros tidos como necessários ao caso brasileiro na e pela Reforma do ensino primário. Entretanto, é necessário evidenciarmos que, na Reforma do ensino primário, Rui Barbosa não apresenta nenhuma tradução na íntegra das obras consultadas[8]; realiza a citação, mas nem sempre a tradução, de trechos, longos e curtos, visando justificar seus argumentos, descontextualizando e recontextualizando conteúdos de outros textos / culturas.

Descontextualizar e recontextualizar são processos que o tradutor cultural incorre no esforço de tornar uma cultura inteligível para e por outra (BURKE, 2009a). Essa descontextualização e recontextualização evidenciam que, para Rui Barbosa, existiam conteúdos nas culturas estrangeiras que ora complementavam suas interpretações, confirmando suas ideias, ora suprimiam lacunas; enfim, não havia a necessidade de se traduzir completamente uma obra, mas havia a necessidade de utilizar trechos destas obras para justificar sua argumentação bem como, acreditamos, a necessidade de se fornecer bases para futuras reflexões a serem efetuadas pelos demais agentes sociais do campo educacional.

Ao longo da Reforma, uma das críticas mais veementes de Rui Barbosa se destina ao ensino verborrágico, pautado na memorização, e em uma redução do ensino do desenho à convenções e procedimentos mecânicos; Joaquim de Vasconcelos critica o mesmo estado de coisas em Portugal:

O ensino elementar [...] reduz-se a pouco, ou nada. O chamado desenho linear geométrico das nossas escolas é condenavel, em princípio, como inovação na ciência do desenho; é um a b c tão absurdo no ensino artístico, como a soletração é um a b c absurdo no ensino linguístico. Entregar logo à criança a régua e o compasso, é tirar-lhe toda a vontade de aprender, toda a iniciativa; é paralisar-lhe o orgão mais precioso - a vista; é fomentar a preguiça, a inércia, a incapacidade. (VASCONCELOS, 1879, apud. BARBOSA, 1947, t.II, p.141 - grifos do autor)

Rui Barbosa afirma “Subscrevemos sem restrição, aplicando-o ao Brasil, a que rigorosamente quadra, este juizo do eminente escritor”, acrescentando em relação à autoridade que se refere “o homem que, em Portugal, já escreveu melhor sobre a ciência e a pedagogia da arte, o que mais exata concepção revela das condições essenciais à verdadeira reforma.” (BARBOSA, 1947, t. II, p.141) Enfim, Rui Barbosa apoiar-se-ia na obra de Joaquim de Vasconcelos em seus argumentos sobre as necessidades a serem supridas no ensino brasileiro.

Os sujeitos que podem suprir essas necessidades são perceptíveis, por exemplo, em sua argumentação sobre os grupos economicamente ativos que deveriam se interessar pelo ensino do desenho:

Se carecêssemos de mostrar, por um indício especial, mas decisivo, a que ponto incrivel o estado mental dos homens que nos governam se acha alheio às grandes correntes morais que dominam, e caracterizam a civilização contemporânea, bastaria apontar a ignorância, em que jazem as nossas notabilidades econômicas e financeiras, assim como as autoridades diretoras do ensino entre nós, - estas quanto à relevância capital deste ramo de instrução entre as matérias fundamentais do programa da escola elementar, - aquelas quanto ao papel supremo desses estudos, universalizados pela aula de primeiras letras, e desenvolvidos pelas classes de desenho [...] como fonte de riqueza, como elemento essencial à prosperidade do trabalho. (BARBOSA, 1947, t.II, p.105-106 - grifos do autor)

As notabilidades econômicas e autoridades do ensino deveriam atentar para a vantagem econômica de se investir na educação pública; estes são alguns dos interlocutores previstos pelo texto de Rui Barbosa, interlocutores que deveriam perceber os rumos gerais da civilização e encaminhar as medidas educacionais nesses rumos, o que nos leva a perceber a Reforma do ensino primário como um exercício de tornar as iniciativas de outras culturas (civilizadas, modernas) inteligíveis à nossa própria cultura. As “grandes correntes morais” dominaram, como podemos apreender da leitura da Reforma do ensino primário, pela força de sua difusão. Em relação às possibilidades de contribuição dos países estrangeiros, Rui Barbosa afirma peremptoriamente:

Sacudamos de nós o falso pudor de recorrer ao estrangeiro, quando só o estrangeiro nos possa ministrar os meios de desenvolvimento que nos falecem. [...] Não é digno do nome de patriotismo o sentimento mesquinho, invejoso, ininteligente, que, por amor de estultos melindres nacionais, refuga os elementos de progresso que a fraternidade universal da civilização contemporânea nos está oferecendo, e condena o país a servir-se eternamente com a falsa prata da casa. Os povos mais adiantados, as nacionalidades mais opulentas em inteligência e saber procederam, e procedem como desejamos que se proceda aquí. (BARBOSA, 1947, t.II, p.184-185 - grifos nossos)

Os meios de desenvolvimento que nos falecem são precisamente o ensino do desenho, sua divulgação pelas escolas primárias, uma vez que

[...] o valor do desenho como instrumento educativo, como princípio fecundante do trabalho não tem cessado de crescer, assumindo as proporções, que hoje a civilização lhe reconhece, de uma das bases primordiais da cultura escolar e de um dos propulsores mais essenciais ao desenvolvimento econômico dos Estados. (BARBOSA, 1947, t.II, p.108 - grifos nossos)

Assim, entendendo que a “Tradução [cultural] tem a vantagem de enfatizar o trabalho que deve ser feito por indivíduos e grupos para domesticar o estrangeiro, assim como as estratégias e as táticas empregadas.” (BURKE, 2008, p.156), Rui Barbosa e Joaquim de Vasconcelos se empenharam em enaltecer os feitos estrangeiros, traduzindo culturalmente os elementos necessários para as mudanças urgentes no sistema de ensino do século XIX. Tal “elogio ao estrangeiro” indica quais conteúdos culturais são relevantes, quais modelos devem ser seguidos, indicando, enfim, quais ideias encontravam-se em circulação como modelos para as culturas escolares brasileira e portuguesa.

Peter Burke afirma que “O que faz as pessoas de uma cultura sentirem-se atraídas por outra é, muitas vezes, a ideia de uma prática análoga à sua própria e, assim, familiar e estranha ao mesmo tempo. Seguindo essa atração, as ideias ou práticas das duas culturas passam a se parecer mais umas com as outras.” (BURKE, 2008, p.56) No período, certamente a educação brasileira não se aproximava do modelo educacional dos países desenvolvidos: comentando as estatísticas educacionais brasileiras elaboradas para a segunda metade do século XIX em comparação às estatísticas educacionais da França, Áustria, Inglaterra, Estados Unidos, dentre outros, Rui Barbosa afirma que “Bem próprios para humilhar o amor próprio à metrópole brasileira são esses algarismos.” (BARBOSA, 1947, t. I, p.23) Se a analogia entre culturas propicia a aproximação, a diferença entre as culturas também propicia uma aproximação entre estas como modelos a serem seguidos.

A tradução cultural implica não só na imagem do intérprete / tradutor, mas do leitor / receptor. Pensar Rui Barbosa como intelectual implica pensar também em suas redes de relações que o constituíram enquanto tal:

Flagrar o intelectual na meada de relações que o constitui, atentarmos para os modos de filiação e os lugares de sociabilidade, institucionalizados ou não, onde ocorriam os debates entre eles, auxilia-nos na percepção dos conflitos ou afinidades entre os vários intelectuais de uma determinada época. Permite-nos também compreender as condições sociais de produção do sujeito como intelectual, bem como as condições de produção e recepção de sua obra e de seus projetos, as possibilidades das leituras, dos diagnósticos e prognósticos elaborados por eles. Esclarecimento e baliza, o estudo das redes de relações dos intelectuais nos convida a tomar como problema os lugares por onde eles circularam, onde estudaram ou trabalharam, as pessoas com as quais conviveram, seus interlocutores fundamentais. Isso, por sua vez, impede-nos de tomá-los como parteiros de si mesmos, instigando-nos a remetê-los às condições sociais que os constrangem e a perceber que esses constrangimentos se impõem aos indivíduos por meio de grupos específicos. (FARIA FILHO, CHAMON, INÁCIO, 2009, p.10)

Estes grupos específicos não constrangem, apenas, o indivíduo, mas também apresenta-os diferentes horizontes de possíveis através das afinidades estabelecidas. Este é o caso de Rui Barbosa: além das relações estabelecidas com outros indivíduos pela leitura de seus livros, Rui apresenta-se como sócio signatário do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Assim, evidenciamos esta instituição como um dos possíveis espaços, se não o significativamente mais relevante, de inculcação da necessidade de educação profissional e de formação pelo ensino do desenho no pensamento ruibarbosiano, bem como de espaço que lhe apresentaria as ideias em circulação sobre este ramo do ensino. A ligação entre Rui Barbosa e o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro é evidenciada em seu discurso O desenho e a Arte Industrial, de 1882, no qual realiza a defesa do ensino de “arte aplicada”, ensino este exercido neste liceu praticamente desde sua fundação em 1856[9] (MURASSE, 2001). Afirmando que “O dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer parte obrigatória do plano de estudos na vida do ensino nacional, datará o começo da história da indústria e da arte no Brasil.” (BARBOSA, 2004, p.20), a falta da difusão do ensino do desenho é uma problemática que

[...] não tem solução possível, a não ser a que lhe dá o Liceu de Artes e Ofícios [do Rio de Janeiro]. Criar a indústria é organizar a sua educação. Favorecer a indústria é preparar a inteligência, o sentimento e a mão do industrial para emular, na superioridade do trabalho, com a produção similar dos outros Estados. (BARBOSA, 2004, p.20)

O ensino de desenho não seria somente uma ideia vinda do estrangeiro, mas uma ideia levada a cabo por agentes sociais nacionais. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro congregou, durante sua existência, alguns destes agentes: Félix Ferreira, que também defendia com veemência o ensino do desenho, e Béthencourt da Silva, fundador deste Liceu e entusiasta da educação profissional (MURASSE, 2001). Certamente estes indivíduos agiram como interlocutores de Rui Barbosa, o que nos permite indicar este Liceu como uma das redes de sociabilidade que difundiram, interna e externamente em relação ao grupo, as ideias relativas à educação profissional. Assim, a Reforma do ensino primário não se apresenta somente como uma obra do gênio ruibarbosiano, tampouco como a mera difusão de ideias estrangeiras, mas também como produto de uma rede de indivíduos interconectados institucionalmente e no âmbito das ideias, por uma circulação de ideias exercida nos e através dos países Ocidentais. Através da Reforma do ensino do desenho, Joaquim de Vasconcelos apresenta a Rui Barbosa a educação inglesa e austríaca; Rui Barbosa apresenta para o Brasil a tradução cultural portuguesa em proveito de seu projeto educacional.

3.      Desenvolvimento

O progresso das diferentes nações encontrava-se em constante propaganda ao longo do século XIX através das Exposições Internacionais[10]. Estas exposições iniciaram-se em 1851, em Londres, e propagaram-se ao longo do Velho Continente e do Novo Continente: ocorreram Exposições Internacionais em Paris (1855, 1867, 1878), novamente em Londres (1862), em Viena (1873), na Filadélfia (1876), em Buenos Aires (1882). Os países que sediavam as exposições realizavam apresentações de sua produção industrial e progressos tecnológicos, principalmente, e de suas instituições escolares, seus trabalhadores, seus recursos naturais. Organizavam tendas que eram ocupadas pelas diferentes comissões, que expunham suas “conquistas” de civilização[11] (KUHLMANN JÚNIOR, 2001). Mesmo o espaço no qual ocorriam estas Exposições eram odes ao progresso e à modernidade:

Se a Europa ainda vivesse na era dos príncipes barrocos, teria sido inundada por máscaras espetaculares, procissões e óperas distribuindo representações alegóricas do triunfo econômico e progresso industrial aos pés de seus governantes. De fato, o mundo triunfante do capitalismo teve seu equivalente. A era dessa vitória global foi iniciada e pontilhada pelos gigantescos novos rituais de autocongratulação, as Grandes Exposições Internacionais, cada uma delas encaixada num principesco monumento à riqueza e ao progresso técnico - o Palácio de Cristal em Londres (1851), a Rotunda (“maior que São Pedro de Roma”) em Viena, cada qual exibindo o número crescente e variado de manufaturas, cada uma delas atraindo turistas nacionais e estrangeiros em quantidades astronômicas. Catorze mil firmas exibiram em Londres em 1851 (a moda tinha sido condignamente inaugurada no lar do capitalismo); 24 mil em Paris, em 1855; 29 mil em Londres, em 1862; 50 mil em Paris em 1867. Justiça seja feita, a maior delas foi a Feira do Centenário de Filadélfia, em 1876, nos Estados Unidos, aberta pelo presidente e com a presença do imperador e da imperatriz do Brasil - as cabeças coroadas da época agora se curvavam diante dos produtos da indústria - e de 130 mil cidadãos entusiastas. Eles eram os primeiros dos 10 milhões que naquela ocasião pagaram tributo ao “progresso da época”. (HOBSBAWN, 2009, p.64-65)

Como parte do público que as frequentava, nas Exposições também constavam comissões de relatores de diversos países, que elaboravam relatórios para seus países de origem. Nestes relatórios, constavam sínteses e avaliações da comissão de um país sobre os próprios feitos e sobre os feitos dos demais países, constando indicativos a serem contemplados e informações sobre a produção. Estes relatórios, escritos por uma comissão de redatores em sua maioria, raramente redigidos por um único indivíduo, eram lidos e tomados como referências para outros sujeitos, em outros países (KUHLMANN JÚNIOR, 2001). Rui Barbosa tomou esses eventos, através da documentação produzida por essas comissões, para refletir sobre a educação e sobre o ensino do desenho, sintetizando as concepções destas comissões, referenciando estes relatórios e obras citadas nestes como embasamentos de sua argumentação. A obra de Joaquim de Vasconcelos foi produzida neste mesmo espírito: observar outra realidade, documentá-la e apresentá-la para outro público leitor.

Essa documentação citada por Rui Barbosa evidencia os esforços empreendidos pelos países europeus e pelos Estados Unidos em implantar o ensino de desenho[12]; por exemplo, temos os textos de:

·        Charles B. Stetson, autor do American preface à Modern Art Education: its pratical and æsthetic character educationally considered (1875) de Joseph Langl. Obra originalmente austríaca, citada em sua tradução para o inglês realizada por S. R. Koehler;

·        Joseph Langl, autor do Austrian Official Report of the Vienna World´s Fair of 1873 (1873);

·        Félix Regamey, indicado como uma das “penas” europeias de maior competência, autor de L'enseignement du dessin aux États-Unis (1881) onde difunde, em francês, as conquistas estadunidenses em relação ao ensino de desenho;

·        Walter Smith, autor de Art education (1873), tratava-se de um inglês convidado pelo governo estadunidense para organizar o ensino profissional neste país.

O autor Joaquim de Vasconcelos, com o texto Reforma do ensino de desenho (1880), sintetiza os métodos de ensino e medidas empreendidas na Inglaterra e na Áustria relativamente à educação profissional. Originalmente, Joaquim de Vasconcelos dirige-se ao público português. Constituindo-se como a principal referência de Rui Barbosa para o ensino de desenho nos países citados, indicamos que o empenho em traduzir culturalmente medidas estrangeiras não se limita ao caso brasileiro, bem como as traduções culturais empreendidas restringem-se a circularem em seus países de “origem” - inclusive, encontrar as origens de um determinado pensamento torna-se uma tarefa complexa na medida em que há uma circulação e apropriação de ideias.

No texto da Reforma do ensino primário encontramos apenas indicativos sobre os autores[13] - além de elogios que visavam legitimá-los como pensadores da educação - mas podemos apreender a circulação de ideias efetuada: as nações procuravam, umas nas outras, as referências para exercer o ensino de desenho, exercendo o processo de tradução cultural que caracteriza a difusão do ensino desta disciplina.

Outra característica da tradução cultural de Rui Barbosa é sua opção sobre a organização das classes. Perguntando-se “Qual o objeto, os limites e os métodos do desenho nas escolas desta classe?”, em relação às classes da escola primária, afirma[14]:

A resposta depende absolutamente do conhecimento da situação, que ligeiramente exporemos, deste problema nos três Estados, onde ele tem recebido até hoje a solução mais sistemática, mais cabal, mais notavel, pela excelência dos resultados: a Inglaterra, os Estados Unidos, a Áustria. (BARBOSA, 1947, t.II, p.145)

Nas páginas subsequentes, Rui Barbosa cita longamente Joaquim de Vasconcelos em sua síntese (seu “habil resumo”) sobre a Inglaterra (BARBOSA, 1947, t. II, p.147-149); o professor Grandeur de Viena, autor de Elementar-Zeichenschule, e Joaquim de Vasconcelos sobre o ensino ministrado na Áustria (BARBOSA, 1947, t. II, p.149-159); e Walter Smith[15] em sua elaboração sobre os Estados Unidos (BARBOSA, 1947, t.I I, p.159-170). Os programas de ensino destes países deveriam ser sintetizados para originar o currículo do desenho a ser ministrado nas escolas brasileiras; inclusive, Rui afirmava que deveriam ser contratados professores da Áustria ou da Inglaterra para fundarem a Escola Nacional de Arte Aplicada, uma vez que o ensino ministrado nos Estados Unidos nada mais era do que uma variação da educação profissional exercida na Inglaterra - o que nos leva a evidenciar mais uma vez a relevância da obra de Joaquim de Vasconcelos no pensamento de Rui Barbosa (BARBOSA, 1947, t. II).

A necessidade de se incluir o desenho na escola primária pensada por Rui Barbosa se dá por seu entendimento de que se deve preparar o trabalhador através da educação profissional; esta seria exercida através do ensino do desenho, matéria essencial para o progresso econômico:

Que agente é esse, capaz de operar no mundo, sem a perda de uma gota de sangue, essas transformações incalculáveis, prosperar ou empobrecer os Estados, vestir ou despir aos povos o manto da opulência comercial? O desenho, senhores, unicamente, essa modesta e amável disciplina, pacificadora, comunicativa e afetuosa entre todas, o desenho professado às crianças e aos adultos, desde o jardim de infância até à universidade, como base obrigatória da educação de todas as camadas sociais. [...] Bem ides vendo, senhores: não é possível estar dentro da civilização e fora da arte. (BARBOSA, 2004, p.9 - grifo do autor) 

Estar dentro da civilização: participar das Exposições Internacionais com produtos industriais e não somente com matérias primas ou com elementos exóticos, expor a nação por aquilo que ela tem de moderno e progressivo e não de tradicional e sedimentado (KUHLMANN JÚNIOR, 2001). Essa é a necessidade da indústria: “Criar a indústria é organizar a sua educação. Favorecer a indústria é preparar a inteligência, o sentimento e a mão do industrial para emular, na superioridade do trabalho, com a produção similar de outros Estados.” (BARBOSA, 2004, p.20) Equiparar a nação brasileira aos demais Estados perpassa a questão da formação para o novo modo de trabalhar: como as civilizações adiantadas demonstravam nas Exposições Internacionais e em seus programas de ensino, importava agora o modo de produção industrial.

Essa escola que prepararia para o trabalho haveria de ser obrigatória e pública, um dever do Estado, pois deveria ser o “serviço de combate à ignorância” ao qual nenhuma nação moderna deixava de dispensar esforços; a escola também deveria ser laica, pois não é função específica do clero educar em uma era onde a religiosidade passa a ser elemento de foro íntimo; deveria ser atualizada segundo os métodos de ensino[16] mais modernos, pois deveria ter a preparação para a vida como meta e não a verborragia como meio e fim. Não é a toa que as iniciativas educacionais estrangeiras são apresentadas antes destas conclusões de Rui Barbosa no tomo I: vários são os países que laicizaram o ensino, tornaram-no obrigatório e público e propagaram o método intuitivo (BARBOSA, 1947, t. I). Vários também são os países que garantiram seu espaço no coro das nações modernas pelo ensino do desenho, que reabilitaram sua produção industrial por intermédio dessa disciplina (BARBOSA, 1947, t. II).

4.      Conclusões

Rui Barbosa de modo algum se constituiu como uma voz solitária a propagar a educação profissional mediada pelo ensino do desenho; como percebemos, Joaquim de Vasconcelos empenha-se em propagar essas ideias no contexto português. Através dos processos de tradução cultural, os agentes sociais da segunda metade do século XIX difundiram tanto a escola primária graduada quanto a escola primária profissionalizante, tanto no Brasil quanto no mundo. Os diferentes sujeitos proponentes da educação profissional concordavam nesse ponto em específico: o ensino do desenho é essencial para formar o trabalhador, o que nos permite compreender a história do ensino desta disciplina como chave de leitura da história da educação profissional.

5.      Referências

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FARIA FILHO, Luciano Mendes de; CHAMON, Carla Simone; INÁCIO, Marcilaine Soares. Apresentação. In.: FARIA FIHO, Luciano Mendes de e INÁCIO, Marcilaine Soares (Orgs.). Políticos, literatos, professoras, intelectuais: o debate público sobre educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009. p.7-20.

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MURASSE, Celina Midori. A educação para a ordem e o progresso do Brasil: o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro (1856-1888). 2001. 183 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. São Paulo: Editora Hucitec, 1996.

_____. The Spectator, ou as metamorfoses do periódico: um estudo em tradução cultural. In.: BURKE, Peter e HSIA, R. Po-chia (Orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa Moderna. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p.163-181.

SOUZA, Rosa Fátima de. Inovação educacional no século XIX: a construção do currículo da escola primária no Brasil. Cadernos do CEDES (Unicamp), Campinas, nº51, p.33-40, Nov. 2000.

VALDEMARIN, Vera Teresa. O método intuitivo: os sentidos como janelas e portas que se abrem para um mundo interpretado. In.: SAVIANI, Dermeval et al. O legado educacional do século XIX. Campinas: Autores Associados, 2006. p.85-132.

VASCONCELOS, Joaquim. Reforma do ensino do desenho. Porto, 1879.[17]


[1] Não objetivamos discutir as relações entre o fim do trabalho escravo e a educação profissional, mas devemos evidenciar que algumas medidas significativas visando à educação profissional foram levadas a cabo no período escravocrata.

[2] Foram fundadas Casas de Educandos Artífices em várias Províncias ao longo do século XIX (CUNHA, 2005, p.113)

[3] Foram fundados Liceus de Artes e Ofícios em: Rio de Janeiro (1858), Salvador (1872), Recife (1880), São Paulo (1882), Maceió (1884) e Ouro Preto (1886), sendo estes Liceus mantidos por suas respectivas entidades mantenedoras (CUNHA, 2005, p.122).

[4] Luiz Antônio Cunha (CUNHA, 2005) refere-se a algumas instituições de educação profissional no Brasil que incluíram o desenho no currículo, bem como Carmen S. V. Moraes (MORAES, 2003).

[5] Lourenço Filho indica que nesta Reforma do ensino primário constavam 365 trabalhos: 179 obras em francês, 129 em inglês, 26 em português, 5 em alemão, 5 em espanhol e 4 em italiano, em sua profusão publicadas entre 1880 e 1882 (SOUZA, 2000, p.10)

[6] Joaquim de Vasconcelos (1849-1936) “[...] foi uma figura capital para a emergência desta nova área de interesse [a aplicação do desenho e da arte às indústrias populares] no campo artístico, através de uma acção multifacetada de investigador, conferencista, coleccionador e organizador.” (LEAL, 2002, p.255). Indicamos o trabalho de João Leal (2002) para maiores discussões sobre a importância de Joaquim de Vasconcelos, uma vez que este autor elaborou diferentes obras sobre o ensino de desenho e artes - ao contrário de Rui Barbosa.

[7] Na página 127 do tomo II, existe a referência à obra como Reforma do ensino de desenho; já na página 234 do tomo IV, sob o título “Obras gerais, monografias e memórias” (a partir da página 221), temo a obra como Reforma do ensino do desenho.

[8] A única obra integralmente traduzida por Rui Barbosa foi a obra Primeiras lições de coisas de Norman Calkins, que sofreu diversas adaptações para o público brasileiro (consultar o texto de FARIA FILHO, 2000).

[9] O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro é criado em 1856, mas somente a partir de 1858 que efetivamente passa a exercer suas atividades (MURASSE, 2001).

[10] Rui Barbosa afirmara que as exposições internacionais são “Os maiores fatos da vida intelectual e econômica das nações neste século [...].” (BARBOSA, 1947, t.II, p.106)

[11] Por exemplo, a Planta da Exposição de 1904 contava com os pavilhões de: Minas e Metalurgia, Artes Liberais, Manufaturas, Educação e Economia Social, Indústrias Variadas, Eletricidade e Maquinaria, etc., modelo este instituído na primeira exposição de 1851 e que sofria alterações conforme o progresso tecnológico-industrial - como, por exemplo, um pavilhão de eletricidade (KUHLMANN JÚNIOR, 2001, p.82).

[12] As obras citadas abaixo constam no capítulo sobre Desenho, presente no Tomo II da Reforma do ensino primário (1947, p.105-197).

[13] Algumas vezes cita-se a nacionalidade dos diferentes autores; entretanto, muitos destes autores realizavam o mesmo trabalho de tradução cultural de Rui Barbosa, o que torna complexa a tentativa de rastrear as nacionalidades, países aos quais se destinam suas obras, etc.

[14] Na citação abaixo, percebe-se a importância da leitura de Rui Barbosa sobre a obra de Joaquim de Vasconcelos, uma vez que os países tidos como modelos para o ensino de desenho são, justamente, os países descritos por Joaquim de Vasconcelos: é a partir deste autor que Rui elaborará algumas concepções sobre quais modelos devem ser seguidos, abrangendo qual a idade que deve-se iniciar o ensino de desenho até quais materiais devem ser utilizados (VASCONCELOS, 1879, apud. BARBOSA, 1947, t. II).

[15] “À sua propaganda, as seus tratados, aos seus manuais, aos seus relatórios, portanto, é que cumpre ir buscar a teoria e a realidade orgânica do ensino popular da arte nos Estados-Unidos.” (BARBOSA, 1947, t. II, p.159)

[16] Rui Barbosa realiza a defesa do método intuitivo, ou lições de coisas, em sua obra. Esse método seria difundido no Brasil pelo próprio Rui Barbosa através da tradução da obra Lições de coisas de Calkins e no texto da Reforma do ensino primário. “Em síntese, com a adoção do método intuitivo, pretende-se educar a criança a partir de novos padrões intelectuais, que se fundamentam numa nova concepção sobre o conhecimento, que postula a origem das ideias nos sentidos humanos e que, aplicada ao ensino, pretende formar indivíduos que usem menos a memória e mais a razão e que valorizem a observação e o julgamento próprios como meios de construção do conhecimento e da implementação das atividades produtivas.” (VALDEMARIN, 2006, p.104) O desenho teria um papel extremamente relevante no método intuitivo (como indicado por Valdemarin, 2006, p.95-96), mas foge ao escopo deste trabalho essa análise; limitamo-nos a indicar mais um caso da circulação de ideias referentes ao ensino do desenho.

[17] Referência de Rui Barbosa - cf. nota vii.