O ensino das disciplinas teóricas na Academia das Belas Artes

Camila Dazzi

DAZZI, Camila. O ensino das disciplinas teóricas na Academia das Belas Artes. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI, n. 2, jul.-dez. 2016. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XI2.07

* * *

1.      Não são poucos os escritos acadêmicos que se debruçam sobre o ensino da arte na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Especial atenção foi dada aos detalhes mais práticos da formação dos artistas e às diferentes etapas de seus aprendizados, desde a á cópia de gravuras até as aulas de modelo vivo. No entanto, pouca luz foi lançada à formação teórica destes artistas: Eles estudavam história da arte? A estética fazia parte de seus currículos? O conhecimento necessário para a realização de telas de assunto literário era fornecido? Tinham eles aulas de mitologia e arqueologia?

2.      Ao longo do presente texto, procuraremos responder às perguntas acima formuladas. Além disto, abordaremos as mudanças que ocorreram na formação dos artistas no que tange às disciplinas teóricas, como a história da arte, após a Reforma de 1890, que transformou a Academia em Escola Nacional de Belas Artes e que trouxe importantes mudanças para o ensino ofertado pela instituição.

3.      A compreensção de como era a formação teórica dos artistas brasileiros no séulo XIX só é possível graças ao acervo do Museu Dom João VI, da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde se encontram documentos preciosos sobre o ensino de belas artes no Brasil oitocentista, assim como sobre a trajetória de vários artistas que por ali passaram. O acervo reúne um arquivo com extensa documentação da instituição: livros de matrículas, livros de atas da congregação, livros de correspondências, além de documentos avulsos.

4.      O recorte temporal adotado no presente artigo vai de 1855, quando ocorre a Reforma Pedreira na Academia Imperial das Belas Artes, até os primeiros anos após a Reforma de 1890, que transformou a Academia em Escola Nacional de Belas Artes. O artigo, igualmente, atribui maior destaque às formações em pintura e escultura, ofertadas pela Academia e posteriormente pela Escola, ainda que o leque de opções dos artistas fosse mais amplo, variando, de acordo com o período da história da instituição, entre pintura, escultura, arquitetura, música e gravura. O arco temporal abordado e o enfoque na formação dos pintores e escultores se devem em função do presente texto ser adaptado a partir da tese de doutoramento “Pôr em prática a reforma da antiga Academia”: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890, defendida em 2011.[1] Não nos deteremos, aqui, em elucidar o recorte temporal e as escolhas adotadas na tese, que pode ser consultada on-line.

5.      Para explicarmos como ocorriam as aulas de história da arte e outras disciplnas teóricas, na Academia e na Escola de Belas Artes, fizemos especial uso de dois documentos pertencentes ao arquivo do Museu D.João VI, que caracterizam duas fazes distintas da instituição. O primeiro documento são os Estatutos de 1855, formulados com o intuito de reformar a Academia, e vinculados ao que se tornou usual chamar de Reforma Pedreira. Trata-se da maior reforma que a instituição sofreu durante o Império, tendo como mentor o pintor Manuel Araújo Porto Alegre. As inovações introduzidas por Porto Alegre buscavam adaptar a instituição aos progressos técnicos de meados do século XIX e fazer da então corte imperial, o Rio de Janeiro, uma cidade sintonizada com a “civilização”. É com este objetivo que o pintor fez da técnica um dos temas centrais de sua administração.[2] O segundo documento são os Estatutos de 1890, formulados quando da reforma que transformou a instituição em Escola Nacional de Belas Artes. O principal nome associado à Reforma de 1890 è o de Rodolpho Bernardelli, escultor, que não somente foi um dos mentores intelectuais da reforma, mas também o reposável pela sua implemetação, atuando como diretor da instituiçao, entre dezembro de 1890 e 1915. A Reforma de 1890 foi inovadora, e dentre suas principais contribuições destacamos a importância atribuida à sistematização e seriação do ensino; a exclusão de disciplinas que direcionavam a forma de “ver” e “fazer” dos alunos; o ensino pensado de modo a desenvolver a individualidade artística dos alunos e a importância atribuída ao conhecimento teórico.

6.      No que tange aos Estatutos de 1855, sabemos que estes sofreram modificações entre o ano em que passou a vigorar e o de 1890 – ou seja, um intervalo de 35 anos. Existe, porém, certa dificuldade em rastrear essas mudanças, como bem falou o jornalista Pardal Mallet, em uma crítica sobre a Academia publicada na Gazeta de Notícias em 6 de junho de 1890[3]:

7.                                    [...] A primeira proposição enunciada afirma não só a vetustez e imprestabilidade do atual regulamento [Estatutos de 1855], mas também a conveniência de promulgar o projeto de reforma Bernardelli-Amoêdo.

8.                                    Do atual regulamento! Para adiantar matéria e mostrar desde já o que vale a administração da Academia, basta dizer que não há regulamento.

9.                                    O velho sistema legislativo do Império tinha o costume de emendar leis, superpondo decreto sobre decreto, modificando-os com mais um aviso e mais uma portaria ainda. Daí nasceu o verdadeiro caos da nossa legislação, simbolizado no celebérrimo – ficam revogadas as disposições em contrário – que nunca ao certo era possível determinar logo de primeira vista.

10.                                  Lá na Academia houve o decreto 1603 de 14 de março de 55, referendado por Couto Ferraz, houve depois o decreto 2423 de 25 de maio de 59, e houve mais ainda uma série interminável de portarias e avisos que é impossível achar em totalidade na coleção de leis do Brasil.[4]

11.    Certamente que para defender o seu ponto de vista Pardal Mallet exagerou, e usou de sarcasmo. Mas temos igualmente, nesse sentido, um trecho do Relatório de 1891, redigido por Rodolpho Bernardelli ao Ministro da Instrução Pública:

12.    A única legislação da casa eram os anachronicos estatutos de da Lei. n. 1603 de 14 de maio de 1855, assignados pelo Ministro Pedreira, era escassa em recursos; não tinham a elasticidade indispensável ás molas administrativas. Não lhe valiam pendiculos diversos que espaçadamente se lho foram acrescentando.

13.    Bem digna imagem de semelhante ruína era aquele pobre canhanho, mal asseiado e roto, metade impresso, metade rabiscado a penna e a lápis, infestado de retalhos de jornal, que foi por longuíssimos anos o raro e único exemplar completo dos estatutos acadêmicos, tristíssimo documento que o derradeiro chefe administrativo da Academia das Belas Artes teve o bom gosto de consumir.[5]

14.    A mais significativa dessas mudanças, acrescentadas aos Estatutos de 1855 à “penna e lápis”, foi aquela de 1859, estabelecida pelo Decreto No. 2424 de 25 de maio, que dividiu o ensino da instituição em dois cursos, um noturno e um diurno, sendo o noturno voltado para a formação específica de artífices.

15.    Tendo, portanto, a noção de que algumas modificações ocorreram, vejamos como passou a se estruturar a Academia em 1855, após a Reforma Pedreira. O ensino ficou dividido nas seguintes sessões: (1) Arquiteura; (2) Escultura, que incluía: escultura de ornatos gravura de medalhas estatutária; (3) Pintura, que incluía: desenho figurado, paisagem, flores e animais, pintura histórica; (4) Ciências assessórias, que incluía: matemática, anatomia e fisiologia das paixões e história da arte, estética e arqueologia, (5) Música.[6]

16.    A divisão acima, no entanto, não significava uma estrutura seriada a ser seguida pelos alunos. Na Academia, antes da reforma de 1890, não havia um currículo rigoroso (ao menos na prática), considerando-se um conjunto de estudos ordenados e hierarquizados, e poucas eram as disciplinas cujo desenvolvimento estava condicionado a uma duração prefixada. O funcionamento da Academia lembrava aquele das aulas régias, que parecem ter perdurado no Brasil Império. Cada aula régia constituía uma unidade de ensino, com um único professor, para determinada disciplina. Era autônoma e isolada, pois não se articulava com outras e nem pertencia a uma escola. O aluno se matriculava em tantas aulas quantas fossem as disciplinas que desejasse.

17.    Deste modo, a progressão dos alunos, na antiga Academia de Belas Artes, estava longe de ser sistematizada. Como podemos saber através dos Estatutos de 1855, todos os alunos eram obrigados a freqüentar a “1º série” da disciplina de desenho geométrico e industrial antes de se decidirem por um ramo artístico.[7] Essa série durava um ano, e o professor deveria ensinar desenho das figuras geométricas, três ordens gregas e teoria das sombras. Se o aluno não se mostrasse habilitado, repetiria todo esse ano. Simultaneamente o aluno era obrigado a cursar a classe de matemáticas aplicadas,[8] responsável por ensinar estereotomia, trigonometria e perspectiva, obrigando os alunos a realizarem exercícios práticos e gráficos; exercícios de levantamento de plantas e nivelamento de terrenos. Somente após os referidos estudos o aluno poderia escolher entre pintura, escultura, arquitetura e gravura.

18.    O segundo passo na formação do aluno que pretendia cursar, por exemplo, pintura histórica era frequentar a classe de desenho figurado. Conforme a Seção VIII, o desenho figurado era dividido em duas séries: a de cópia de estampas e a de cópia do natural, ou seja, do claro escuro. O professor deveria empregar todos os seus esforços para o aluno aperfeiçoar “a arte do bem contornar e do exprimir com perfeições as formas por meio da luz”.[9] O ensino dessa matéria não tinha tempo limitado, ou seja, não tinha duração específica, ficando dependente da aptidão do aluno a sua passagem para as outras aulas, que seria determinado pelo corpo acadêmico. Seus pré-requisitos: matemáticas aplicadas e desenho geométrico.

19.    Assim, para seguir para a classe de pintura histórica bastava o aluno ter sido aprovado nessas três disciplinas: desenho geométrico; matemáticas aplicadas e desenho figurado. Para seguir para a classe de pintura de paisagem o processo era ainda mais simples, bastava à aprovação na classe de matemáticas aplicadas e desenho geométrico. O aluno não se via obrigado a cursar desenho figurado para fazer essa disciplina, embora pudesse cursar as duas ao mesmo tempo, caso o desejasse.

20.    E onde entram as aulas de história da arte? Ainda que presentes no currículo da Academia desde 1855, sabemos que elas só passaram a funcionar, e de forma precária, em 1879, tendo o pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo, Bacharel em Ciências Sociais pela Sorbonne e Doutor em Ciências Naturais pela Universidade Livre de Bruxelas, como professor. Alfredo Galvão nos explica, de forma breve, em um texto de 1954,[10] que Félix-Émile Taunay, quando diretor da Academia, entre outras medidas de grande alcance, pediu ao Governo, a 14 de fevereiro de 1848, o estabelecimento do ensino da história das belas artes, para melhor preparo dos futuros pensionistas. Entretanto, só em 1854 foi criada a cadeira de história por decreto de 23 de setembro, do qual resultou a reforma dos Estatutos orientada por Manuel de Araújo Porto Alegre.

21.    A cadeira, que teve o nome de história das belas artes, estética e arqueologia, só foi provida 15 anos depois com a transferência, a pedido, de Pedro Américo da de desenho, por decreto a 15 de setembro de 1869 (posse a 18 de fevereiro de 1870). As aulas tiveram início em março. Em 1871, foi essa cadeira transposta para o curso noturno, na esperança de ter maior número de alunos. Ou seja, ela não era obrigatória e somente poderia ser cursada, segundo a Seção XIII dos Estatutos de 1855[11], pelos alunos que estivessem cursando a Academia a três anos completos - portanto, já no final do curso.

22.    Embora a compreensão de que as disciplinas teóricas eram importantes já estivesse presente na Academia, podemos verificar que ela só foi reforçada após a Reforma de 1890. Uma mudança fundamental foi a introdução da disciplina de história da arte no então criado curso geral e a sua obrigatoriedade a todos os alunos, diferentemente do que ocorria na velha Academia.

23.    Para compreendermos a maior relevância atribuida à historia da arte no novo currículo adotado em 1890, vejamos como passou a ser o ensino ministrado na instituição. Ressaltamos o significativo preparo cobrado dos alunos antes destes  terem acesso ao curso de pintura. A primeira etapa do ensino era o curso geral - obrigatório a todos os alunos, com duração de três anos e com disciplinas teóricas e práticas. Somente após a sua conclusão o aluno poderia chegar aos ateliês do cursos especiais, no qual optava entre escultura, pintura, gravura e arquitetura. Grande parte das disciplinas que foram colocadas como obrigatórias nos Estatutos de 1890, podia, na antiga Academia, simplesmente não ser cursada. Por exemplo, desenho figurado passou a ser obrigatório durante três anos consecutivos. Além disso, disciplinas que eram cursadas, na Academia, simultaneamente às classes de pintura histórica e de pintura de paisagem, passaram, na Escola, a anteceder o ensino nos ateliers de pintura e escultura.

24.    Foi somente após a Reforma de 1890 que a disciplina de história da arte passou a ser obrigatória para todos, devendo ser cursada no 3o ano do curso geral. Uma continuidade da antiga Academia? Sim, sem dúvida, mas foi também uma mudança significativa. Trata-se da afirmação de que o artista deveria não somente ter o domínio do savoir-faire, mas ser igualmente uma pessoa culta.[12]

QUADRO 1 - QUADRO COMPARATIVO ENTRE A FORMAÇÃO OBRIGATÓRIA DO PINTOR NA ACADEMIA DAS BELAS ARTES E NA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES

FONTE: Estatutos de 1855 e Estatutos de 1890. Acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

25.    É interessante destacarmos que o nome da cadeira também sofreu modificaçoes. Na antiga Academia era intitulada historia da arte, estética e arqueologia. Com a Reforma de 1890, no entanto, a estética foi abolida e a arqueologia se tornou uma cadeira independente. São com estas palavras que Rodolpho Bernardelli, em seu relatorio de 1891 justifica a ausência de uma cadeira dedica à estética:

26.    Também foi condenado o ensino especial da esthetica [presente na Academia]. O critério do bello formar-se-ha na consciência do alunno, si for um espirito capaz de synthese [...] formar-se-ha espontaneamente com a summa das doutrinas que professores habilitados lhe forem ministrando em cada matéria; nascerá como uma opinião individual da simples convivencia e pratica com o alto objecto de sua estudiosa applicação.[13]

27.    A passagem justifica a ausência do ensino da estética, apontando o critério do “que é ou não belo” como algo individual. Não deveria haver, portanto, nenhum pressuposto. Na nova Escola não existia espaço para um pensamento como aquele registrado por Ernesto Gomes Moreira Maia, Diretor da Academia antes da Reforma de 1890, que em 1888, declarou que a missão da instituição não devia ser “outra mais do que a de exclusivamente votar-se ao verdadeiro culto da pureza estética da arte clássica e da sua propagação.[14]

28.    Mas se o ensino da estética, tal como compreendido naqueles anos por Bernardelli, foi “banido” da Instituiçao, por outro lado um destaque significativo foi dado a novas cadeiras teóricas. A introdução de novas disciplinas, como mitologia e arqueologia, bem como a obrigatoriedade dos alunos em cursá-las, evidencia que a nova formação do artista exigia que os mesmos fossem eruditos e possuíssem conhecimentos amplos em domínios complementares para que executassem obras de qualidade superior: deveriam, em suma, estudar história, arqueologia, ter um conhecimento perfeito da história da arte e noções de literatura. Ou seja, a análise dos Estatutos de 1890 revela o reconhecimento, nos anos finais do século XIX, de que o aluno precisava de um significativo cabedal de conhecimentos teóricos antes de chegar de fato às aulas de escultura e pintura. Existia, portanto, uma eminente preocupação com o preparo intelectual daqueles que se destinavam à profissão artística. O artista deveria não somente adquirir o perfeito domínio técnico, mas também possuir uma cultura excepcional: “L’artiste doit être un homme cultivé”.[15]

29.    O quadro abaixo apresenta quais foram as cadeiras teóricas obrigatórias aos alunos após a Refroma de 1890, bem como os professores que nelas lecionaram.

QUADRO 2 - PROFESSORES E CADEIRAS DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES ENTRE 1891 E 1894.

FONTE: Documentos do Acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ e GALVÃO, Alfredo.  Subsídios para a História da Academia  Imperial  e da Escola Nacional  de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1954.

30.    Ao pesquisarmos os Livros de correspondência e as Atas referentes aos primeiros anos de funcionamento da Escola, foi possível verificar a dificuldade encontrada pela Escola para ter um professor de história da arte. Foram constantes as trocas: José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque foi designado para a cadeira por decreto de 30 de dezembro de 1890. Permaneceu em licença por inúmeros períodos ao longo de 1891, 1892, 1893 e 1894. Pediu exoneração em junho de 1894, sendo substituído por Urbano Duarte de Oliveira, que, logo em seguida, pediu exoneração da cadeira, a qual foi assumida por Henrique Coelho Netto. Gonzaga Duque serviu interinamente em 1891; foi exonerado a pedido em 26 de maio desse mesmo ano.

31.    Cabe aqui destacar que nenhum dos professores que assumiram a cadeira de história da arte tinha formação em arte: eram todos “homens de letras”, conhecidos, sobretudo, por suas atuações como jornalistas. As suas formações, no entanto, não impediam que os mesmos fossem conhecedores de arte. É notório, por exemplo, que Gonzaga Duque foi um dos mais significativos críticos de arte no Brasil do século XIX. Em um Relatório ao Ministro, datado de 1895, Rodolpho Bernardelli comenta com as seguintes palavras as conferências extraordinárias ministradas pelo professor de história da arte, muito possivelmente Coelho Netto.

32.    Os professores de História das artes, de História e theoria da architectura realizaram conferências extraordinárias sobre assumptos de suas cadeiras. O primeiro realizou nos dia 27 de outubro e 14 de novembro, sendo assumpto "A influência da Virgem Maria na arte" e da segunda " A arte sob o ponto de vista sociológico" [...].[18]

33.    Também escritor e jornalista foi o professor da cadeira de mitologia, Raul Pompéia, conhecido autor de O Ateneu (1888), um dos exemplos máximos do Realismo em literatura. Pompeia foi, dos professores teóricos, o mais ativo e presente na instituição ao longo da implementação dos Estatutos de 1890, nela permanecendo de 1891 até 1895.

34.    Já a cadeira de arqueologia e etnografia passava por uma dificuldade mais específica: a ausência, no Brasil, de profissionais qualificados nestas áreas. Para ocupar a cadeira foi necessária a contratação de um professor estrangeiro, o arqueólogo Charles Gustave Paille, em Paris,[19] em março de 1892. Paille foi a segunda opção do Diretor da Escola Nacional de Belas Artes, depois de o italiano Manfredo Manfredi, que por uma série de motivos relatados no Livro de correspondências, não poder aceitar o convite.[20] Isso não significa, no entanto, que Paille fosse menos capacitado: formado pela École du Louvre, ele é conhecido pelas escavações que realizou na “na necrópole de Narce, no Mazzano Romano, e na Etrúria meridional, na Itália, no território de Nepi, Castel Sant'Elia, Monterosi e Calacata a serviço da Casa Imperial do Brasil e posteriormente do Príncipe del Drago”.[21] Seu currículo assegurava ser ele possuidor dos conhecimentos necessários para ocupar a cadeira.

35.    Além de não haver profissionais aptos no Brasil para ocupar a cadeira de arqueologia, e a precariedade com que funcionava a cadeira de história da arte, havia ainda a dificuldade de alcançar os avanços tecnológicos necessários para o bom andamento destas disciplinas. Um desses avanços era a instalação de luz elétrica no antigo prédio da Academia, um pedido que partiu dos professores das disciplinas teóricas, que desejavam usar em suas aulas projetores de imagens. A instalação de luz elétrica no prédio da Escola significou um avanço para a boa realização das aulas teóricas, que ocorriam à noite justamente devido ao uso de projetores de luz.

36.    Rodolpho Amoêdo, então vice-diretor da Escola, em seu relatório sobre o ano letivo de 1893 elucidou como ocorriam as aulas noturnas:

37.                                  Attendendo à falta de capacidade no actual edifício da Escola e à necessidade absoluta de funccionarem a noite as aulas de Archeologia e Ethnographia e Historia e Theoria da Architectura, nas quaes se teriam de fazer projecções com luz electrica, necessaria ao desenvolvimento dessas materias, em solução ao officio desta directoria, n. 504 de 19 de abril [de 1893], foi autorisado, por aviso n. 372 de 29 desse mez do Ministerio a vosso cargo, o funccionamento nocturno daquellas aulas, como medida provisoria, assim como das de desenho de modelo-vivo, mythologia e historia das artes; ficando assim atendido um dos reclamos que a directoria desta Escola teve occasião de dirigir ao Governo no relatorio de 1891.

38.                                  Em maio começaram os trabalhos desses cursos. [...] os cursos theoricos na [sala] n. 3, onde se montaram os aparelhos para as alludidas projeções. Tanto esta sala, como a galeria foram illuminadas a luz electrica.

39.                                  Nos cursos de Archeologia e Ethnographia e Historia e Theoria da Architectura os respectivos professores realisaram interessantes e instructivas demonstrações com auxílio da luz electrica.[22]

40.    Mas a adequação da instituição às novas cadeiras teóricas criadas, bem como à importância a elas atribuída no currículo da Escola, significou não só mudanças físicas, como a instalação de luz elétrica, mas, igualmente, a percepção de que os alunos não estavam preparados para os conteúdos ministrados. Esta percepção levou os professores da instituição a proporem algumas mudanças na grade aprovada nos Estatutos de 1890.

41.    A principal mudança proposta foi a transferência das três cadeiras teóricas do curso geral para os cursos especiais. Ou seja, os alunos só teriam acesso às disciplinas teóricas após três anos de estudos na instituição. Tal proposta parece se explicar, em parte, pelo baixo nível de conhecimento dos novos alunos da Escola.

42.    Um dos problemas eminentes gerados pela presença das disciplinas teóricas nos primeiros anos de estudo era o necessário domínio do idioma francês, que era, inclusive, cobrado dos alunos quando se matriculavam na Escola. Ainda que seja senso comum que, no século XIX, o francês era a segunda língua dos brasileiros, devemos considerar que era a segunda língua daqueles que tinham acesso a uma boa formação - e boa formação, no Rio de Janeiro de finais do século XIX, era regalia de uma minoria.[23] No entanto, na Escola, o domínio do idioma francês era fundamental, pois havia uma boa possibilidade de o aluno vir a cursar disciplinas com professores que não falavam português, como foi o caso de Charles Gustave Paille. Além disso, o aluno deveria dar conta de uma bibliografia que incluia uma série de livros em francês.[24]

43.    A própria ordem na qual as disciplinas teóricas de história da arte, mitologia e arqueologia e etnografia deveriam ser cursadas após a transferência delas para o curso especial foi motivo de debates. Por fim, foi aprovada pelo conselho escolar a proposta do professor de arqueologia e etnografia, o francês Charles Gustave Paille, que classificava as disciplinas de arqueologia, história da arte e mitologia na ordem que se segue:

44.                                  1o A mitologia indispensável para compreender tanto obras antigas como uma grande parte das obras modernas onde domina a alegoria ou a imitação do antigo.

45.                                  2o A história das artes [...] é necessária para que os alunos tenham uma ideia geral antes de abordar as questões de detalhe que são do dominio da arqueologia.

46.                                  3o A arqueologia supõe o conhecimento da mitologia e das grandes épocas da arte; ella é mais complicada e mais difícil que as outras; as lições de costumes, dentre outras [...].[25]

47.    Nos Estatutos de 1890, no entanto, a ordem era: mitologia no primeiro ano, arqueologia e etnografia no segundo ano e história da arte no terceiro ano, todas disciplinas do curso geral.

48.    Não poderia passar desapercebida uma tentativa de valorização das cadeiras teóricas, que nessa nova proposta estariam quase no mesmo patamar de importância das disciplinas de ateliê. Elas seriam cadeiras comuns aos quatro cursos que compunham a etapa final do ensino da Escola: pintura, escultura, arquitetura e gravura.

QUADRO 3 - QUADRO COMPARATIVO DA ESTRUTURA SERIADA DOS ESTATUTOS DE 1890 COM A ESTRUTURA QUE FOI APROVADA EM 1892 PELO CONSELHO ESCOLAR DA ENBA.

FONTE: DAZZI, C. “Pôr em prática a reforma da antiga Academia”: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890, 2011, p.275.

49.    Não localizamos na documentação consultada entre 1892 e 1895 qualquer parecer positivo por parte do Ministro, o que nos leva a deduzir que as propostas não foram implementadas. De fato, era um momento de instabilidade política e, de ano para ano, o ministério mudava de condutor: em 1891, João Barbalho Uchôa Cavalcanti; em 1892, José Hygino Duarte Pereira; em 1893, Fernando Lobo; em 1894, Cassiano Castro do Nascimento. Agravando esse quadro, ocorreu a extinção do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, passando a pasta da Instrução Pública a ser alçada do Ministério da Justiça e Negócios Interiores.

50.    Ainda que essas modificações pensadas pelos professores em 1892 não tenham sido implantadas, são de grande importância para verificarmos que os primeiros anos de funcionamento da Escola ocorreram sob um clima de mudanças e reforma dos Estatutos que tinham sido aprovados há menos de dois anos.

51.    No que tange aos conteúdos ministrados nas disciplinas, só foi possível localizarmos nas Atas da Escola o “Programma para a aula de Mythologia”, que abaixo reproduzimos.

52.                                  O Symbolo. O Mytho e a Mythologia. Mythologia clássica. Os doze deuses: Jupiter, Juno, Minerva, Aapollo, Diana, Mercurio, Marte, Venus, Vulcano, Vesta, Nepturno, Ceres. As divindades dos céus; As divindades da agua; As divindades da Terra; As divindades da Morte e do Inferno; As divindades da vida. Evolução do zodíaco. Os symbolos na renascença. O symbolismo moderno.[26]

53.    A ausência dos programas nas Atas da Escola pode ser justificada, no caso da cadeira de história da arte, pala constante ausência de seu professor Medeiros e Albuquerque, ao longo dos primeiros anos de funcionamento da Escola, de 1891 até 1894, bem como a constante troca de professores que o sucedeu. Já Gustavo Paille não estava na Escola no seu primeiro ano de funcionamento, período no qual os programas das aulas foram registrados nas Atas, tendo lecionado somente em 1892 e 1893. É necessária, no entanto, uma pesquisa mais detalhada nos arquivos do Museu D. João VI com a finalidade exclusiva de localizar os programas de aula das disciplinas teóricas, que podem perfeitamente constar estre os documentos avulsos e não necessáriamente nos livros de Atas.

54.    À guisa de considerações finais, gostaríamos apenas de ressaltar que embora o texto tenha sido formulado com base na tese de doutoramento “Pôr em prática a reforma da antiga Academia”[27], a mesma não tinha como um de seus objetivos analisar como as disciplinas teóricas eram ministradas na Academia Imperial de Belas Artes e na Escola Nacional de Belas Artes.  As informações constantes no presente texto estão na tese de modo disperço, em diferentes capítulos, ao longo de mais de 300 páginas. É certamente necessário o aprofundamento da investigação sobre o ensino da teória na Academia e na Escola, em especial no que diz respeito ao conteúdo ministrado pelos difentes professores que ocuparam as cadeiras teóricas. Não obstante, acreditamos que o artigo aprasenta algumas significativas contribuições para a compreensão de como era  o ensino das disciplinas teóricas na instituição, e, mais amplamente, de como ocorria o ensino artístico como um todo, uma vez que tais disciplinas faziam parte da formação dos jovens pintores e escultores.

Referências

AMOÊDO, Rodolpho. Anexo Q. NASCIMENTO, Alexandre Cassiano do. Relatório do Ministro da Justiça e Negócios Interiores ao Vice-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Março de 1894.

BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo H. Relatório Apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. João Barbalho Uchôa Cavalcanti,  Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Maio de 1891.

BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. FERREIRA, Antonio Gonçalves. Relatório do Ministro da Justiça e Negócios Interiores ao Vice-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Abril de 1895.

BOIME, Albert. The teaching of fine arts and the avant-guarde in France during the second half of the nineteenth century. Las Academias de Arte (VII Coloquio Internacional de Gaunajuato). D.F.: Universidade Autónoma do México, 1985. 

BONNET, Alain. L’enseignement des arts au XIXe siècle. La réforme de l’École des beaux-arts de 1863 et la fin du modèle académique.  Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2006.  

CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Anexo I do Relatório Final ao CNPq. O Conceito de Modernidade e a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004.

DAZZI, Camila. “Pôr em prática a reforma da antiga Academia”: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte), UFRJ, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV, 2011. Orientadora: Sonia Gomes Pereira.

GALVÃO, Alfredo. Subsídios para a história da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1954.

MOREIRA MAIA, Ernesto Gomes. Relatório da Diretoria da AIBA apresentado ao Ministro Antônio Ferreira Vianna, em 26 de março de 1889, referente ao ano de 1888.

SANTROT, Jacques;  BLAIN, Hugues-François. Gustave Paille, un archéologue « à façon » en Basse Bretagne (1898 1905).  Annales de Bretagne et des pays de l'Ouest. Année   2000, Volume  107, Numéro   107-3.p. 101.

SEGRÉ, Monique. SEGRE, Monique. L'Art comme institution - l'École des Beaux-Arts, 19ème-20ème siècle. Paris: École Normal Sup. de Cachan, 1893.

SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista. Cad. CEDES,  Campinas ,  v. 20, n. 51, Nov.  2000.

VALLE, Arthur Gomes. A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na 1ª República (1890-1930): da formação do pintor aos “modos” estilísticos. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte), UFRJ, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV, 2007. Orientadora: Angela Âncora da Luz.

______________________________

[1] O presente artigo foi redigido a partir da Tese de Doutorado: DAZZI, Camila. “Pôr em prática a reforma da antiga Academia”: a concepção e a implementação da reforma que instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Tese (Doutorado em História e Crítica da Arte), UFRJ, Escola de Belas Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV, 2011. Orientadora: Sonia Gomes Pereira. Disponível no site: <http://www.academia.edu/Documents/in/Arte_Do_Seculo_XIX>.

[2] SQUEFF, Letícia Coelho. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do espaço social do artista. Cad. CEDES,  Campinas ,  v. 20, n. 51, Nov.  2000 .

[3] A grafia original das palavras foi mantida em todas as citações/transcrições de textos antigos presentes neste artigo.

[4] MALLET, Pardal. Academia de Belas Artes I. Gazeta de Notícias, 6 de junho de 1890, p.1 apud CAVALCANTI, Ana Maria Tavares. Anexo I do Relatório Final ao CNPq. O Conceito de Modernidade e a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2004. p.99-105.

[5] BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo H. Relatório Apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. João Barbalho Uchôa Cavalcanti, Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, em maio de 1891.p.16.

[6] Estatutos da Academia das Bellas Artes referentes ao Decreto No 1630 de 14 de maio de 1855. s/p.

[7] Estatutos da Academia das Bellas Artes referentes ao Decreto No 1630 de 14 de maio de 1855. s/p.

8] Informação retirada de: GALVÃO, Alfredo. Subsídios para a história da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro, 1954. S/p.              

[9] Estatutos da Academia das Bellas Artes referentes ao Decreto No 1630 de 14 de maio de 1855. s/p.

[10] GALVÃO, op.cit. s/p.

[11] Estatutos da Academia das Bellas Artes referentes ao Decreto No 1630 de 14 de maio de 1855. s/p.

[12] Certamente que o conceito de cultura aqui adotado é aquele de finais do século XIX, quando a cultura era pensada como uma qualidade que poderia ser adquirida. O debate sobre o conceito de cultura é bastante longo e denso. Sugerimos a leitura do livro que se segue para uma maior profundidade sobre o tema: GEERTZ, Cliford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

[13] BERNARDELLI, Rodolpho. op. cit. p. 18.

[14] MOREIRA MAIA, Ernesto Gomes. Relatório da Diretoria da AIBA apresentado ao Ministro Antônio Ferreira Vianna, em 26 de março de 1889, referente ao ano de 1888. s/p.

[15] SEGRÉ, Monique. L'Art comme institution: l'École des Beaux-Arts, 19ème-20ème siècle. Paris: Editions de l'ENS-Cachan, 1993. p.116.

[16] Em 1895, Raul Pompéia passou a ocupar o cargo de diretor da Biblioteca Nacional. Nesse mesmo ano, após proferir um discurso inflamado junto à tumba de Floriano Peixoto, foi demitido do cargo. Suicidou-se com um tiro no peito na noite de Natal de 1895, no escritório da casa onde morava com a mãe.

[17] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 13 abr. 1892. Contrato de 8 mar. 1892. p. 32A e B.

[18] BERNARDELLI, Rodolpho. Anexo P. FERREIRA, Antonio Gonçalves. Relatório do Ministro da Justiça e Negócios Interiores ao Vice-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, em abril de 1895. P. 5.

[19] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 13 abr. 1892, Contrato de 8 mar. 1892. p. 32A e B

[20] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Livro de correspondências referente a 24 dez. 1891. Rio de Janeiro. p. 24A e B, 25A e B.

[21] SANTROT, Jacques;  BLAIN, Hugues-François. Gustave Paille, un archéologue «à façon» en Basse Bretagne (1898 1905).  Annales de Bretagne et des pays de l'Ouest,  Année   2000, Volume  107, Numéro   107-3.p. 101.

[22] AMOÊDO, Rodolpho. Anexo Q. NASCIMENTO, Alexandre Cassiano do. Relatório do Ministro da Justiça e Negócios Interiores ao Vice-Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, em março de 1894. p. 5-7.

[23] DAZZI, Camila. op. cit. p. 277.

[24] Esse dado pode ser verificado no: CATÁLOGO DA BIBLIOTECA DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES – COM INDICAÇÃO DAS OBRAS RARAS OU VALIOSAS. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Belas Artes, 1957.

25] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Ata de 21 out. 1892. p. 15B.

[26] Arquivo do Museu Dom João VI/EBA/UFRJ. Ata de 08 jun. 1891. p. 5A.

[27] DAZZI, Camila. op. cit.