Manoel de Araujo Porto-Alegre: Três cartas a Victor  Meirelles, 1854, 1855, 1856

Contribuição de Arthur Valle

Em 1854, Manoel de Araujo Porto-Alegre, na condição de diretor récem-nomeado da AIBA, enviou ao seu antigo díscipulo, Victor Meirelles, que se encontrava em Roma, a primeira de uma série de três cartas. A segunda dessas missivas é especialmente interessante, pois nela, ao se deter na análise da Degolação de S. João Batista, um dos envios de pensionista de Meirelles, Porto-Alegre explicita muito do seu próprio credo artístico. As transcrições aqui apresentadas seguem, com algumas alterações, a versão de Alfredo Galvão,  publicada originalmente na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, 1959, pp.84-89.  Texto disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/

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Academia das Belas Artes, 16 de Maio de 1854.

Ilmo. Sr. Victor:

Acabo de ser nomeado Diretor desta Academia, e como tal tomo a liberdade de preveni-lo que doravante tenha a bondade de me escrever o mais amiudadamente possível sobre os seus estudos e os seus projetos, para que eu possa informar à Aca­demia e ao Governo de seus progressos.

Diga ao Sr. Mota [Agostinho José da Motta] que me escreva, e que não é corrente nem tolerável o ele deixar de escrever, pois ele agora tem um velho amigo aqui; e pode abrir-se comigo como quiser.

Nada escrevo ao Sr. Pallière [Jean Leon Pallière], por saber que ele aí já não está.

Mande falar de arte, e dos seus projetos, e do que intenta fazer, porque são estes os nossos negócios.

De V. Mce. etc.;

Manuel de Araujo Porto-Alegre.

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Academia das Belas Artes, 6 de agosto de 1855

Ilmo. Sr. Victor:

Os seus últimos painéis nos encheram de grande satisfação, por que neles vimos um saliente progresso, tanto na parte técnica como na teórica.

Pela maneira que procedeu a Academia, verá V. S. a atenção prestada aos seus esforços, e o como se encaram seria­mente as produções daqueles que deverão, um dia, vir dar um novo lustre a esta Academia.

Obedecendo ao preceito de uma de suas cartas, passo a referir-lhe o que sinto a respeito das suas novas obras, e expor-lhe, com franqueza paternal as minhas ideias a respeito destes tão esperançosos trabalhos.

As suas novas cópias têm vigor e menos timidez que as primeiras que nos mandou: há firmeza na execução, correção no desenho e percepção nas fisionomias, mormente na cabeça calva que nos parece ser uma cópia de Van Dyck.

A outra, que já não sei se é Pilatos, alcançou muita luz, e o mesmo vigor na execução. Por estes dois basta. Vamos ao essencial, que é o seu quadro [Degolação de S. João Batista]. O aspecto geral é agradável, harmônico, e sem confusão nas linhas e na luz; porém, há aquilo que se observa em todos os moços; o algoz está em po­sição acadêmica, e a filha do rei, a inimiga do Batista, não exprime a sua alegria em se ver livre do homem, cuja cabeça ela pedira, a fim de poder estar mais alegre e melhor dançar.

A figura do algoz tem uma boa cabeça; o pescoço, o tórax e o abdômen estão sofrivelmente modelados e melhor coloridos, porque não tem tons sujos, porém, parece-me que há uma falhazinha miológica na região intercostal. O braço direito, no que toca ao antebraço não está mau, porém, não está acentuado com energia, nem tem clareza na musculação: o deltóide deveria ser mais fibroso, assim como mais marcado o tríceps braquial; quanto ao antebraço, punho e mão, esses não foram estudados com tanto amor como o tórax e o abdômen. O panejamento está bem lançado, bem dobrado, e de um bonito tom, porém, o esbatimento, ou a sombra que lhe projeta o braço não está muito exato: devia seguir as curvas das pregas e não apre­sentar uma linha reta, como a que figura em sua generalidade. As pernas me parecem curtas, e um tanto incertas no modo de acentuar a musculação: o que está perfeitamente modelado é a parte externa da região poplitéia, e sobretudo a inserção posterior do tríceps da coxa. O seu pé está bom, mas o do escuro um tanto confuso. O corpo troncado do Evangelista foi pouco estudado. É necessário grande atenção nos escorços! Esta é a parte mais fraca de seu painel, e sobretudo a perna que está dobrada, porque a sua musculação está toda incorreta: o colo­rido, pelo contrário, é suave e bem degradado em suas mesclas.

O “pálio grego” da sua moça foi feito, pelo que me parece, parte de natural, parte de cor, porque não há a mesma verdade e morbidez nas pregas; esta diferença é notável entre as que cobrem o seio, e as que caem pelas costas e por baixo do braço. O braço iluminado tem coisas muito bonitas, e um tom mais frio na sombra para melhor se destacar da roupagem quente, ou capa da velha.

Há estudo, há gosto, há inteligência e aquela fineza, que denota uma alma predestinada para a percepção do belo.

Antes de compor, veja a ação em geral, veja, depois, cada uma das suas personagens; estude-as moral e fisiologicamente para que elas possam, cada uma de per si, compor um todo harmônico e verdadeiro.

Eis o que, ao correr da pena lhe pode particularmente dizer com todo o amor e franqueza o homem que concorreu também para sua viagem, e o que deseja que esta casa seja, um dia, um templo das Artes.

Em Paris V. S. há de ganhar muito; é hoje aquela cidade um manancial fecundo para o espírito e tem uma escola onde tudo se encontra para facilitar o estudo. A escola francesa sempre se distinguiu pelo seu espírito filosófico, pela correção do desenho, e pela maneira grandiosa na composição. As gale­rias de Paris lhe hão de fazer tudo, porque já viu Roma e Florença.

Estude bem a teoria da sombra e a perspectiva, porque sem estas bases muito terá que lutar: a elas deverá o perfeito conhecimento das modificações da luz, dos planos, dos relevos; copie desenhos cenográficos, porque nesse estudo está o dos fundos dos painéis, etc., etc.

Estenderia-me com indizível prazer sobre este ponto se me sobrasse o tempo; estou à espera da reunião do Corpo Acadê­mico para ver o que a Comissão de Pintura e Desenho pensa acerca dos seus trabalhos. Este novo processo da casa, que é todo de família, só são participantes dele o Governo Federal e a Academia.

A meu pedido lhe será prolongado o tempo na Europa por mais três anos ainda, o que lhe fará bem.

Se for para a França, como espero, mande-nos logo uma cópia de uma batalha de Salvador Rosa, que estava à esquerda no fundo da galeria do Louvre, na Escola Italiana: é um quadro retangular e de pequena dimensão.

Estude o nu, estude anatomia, estude bem o desenho, e veja se toma Mr. Delaroche por mestre, que é hoje o pintor o mais filosófico e o mais estético que eu conheço. Estude cavalos, porque as nossas batalhas exigem este estudo; e lá achará belíssimos modelos, já como pintura, nas obras de meu mestre, o Barão Gros, já nas de Mr. H. Vernet, que conhece as raças e o animal melhor do que ninguém, faça cópias de cabeças de cavalos em ponto grande, e vá mandando todos os seus estudos, porque serão logo vistos por Sua Majestade.

Anatomia e perspectiva, e muito desenho porque nossa escola está muito fraca no desenho, muito e muito fraca, e V. S. há de chegar a tempo de tomar conta dela e dar-lhe o impulsa desejado; a sua missão é bela porque os tempos lhe são favoráveis.

Adeus, estude, creia na afeição de seu patrício muito brasileiro.

Porto-Alegre.

Escreva-me sempre, mesmo sem ser como Diretor, porque estimarei isto muito.

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Academia Imperial das Belas Artes, Rio de Janeiro, 12-4-1856.

Ilmo. Sr. Victor:

Tenho a honra de remeter a V. S. as recomendações do Corpo Acadêmico, e rogo-lhe o favor de as aceitar como um documento da nossa estima, e da confiança que temos nos seus belos, talentos.

A Academia, além das ponderações que V. S. lhe mandou, viu o retrato do Rv. Miranda, e concebeu à vista desta obra as mais altas esperanças do seu amor ao estudo.

Colocado na nova Atenas, poderá V. S. aí estudar ampla­mente o desenho, pois que em Paris se acham todos os meios possíveis para facilmente se chegar a uma grande perfeição nesta parte da arte.

Como homem prático, e como particular, recomendo-lhe muito, o estudo do retrato, porque é dele que há de tirar o maior fruto de sua vida: a nossa pátria ainda  não está para á grande pintura.  O artista aqui deve ser uma dualidade: pintar para si, para tua glória, e retratista para o homem que precisa de meios.

Escreva-me sempre, porque sempre nos dará prazer, e na sua correspondência diga sempre o que pretende fazer, e o que pensa porque por minha parte farei tudo o que puder para seu bem.

Aceite os respeitos do de V. S. amigo e obrigado

Pôrto-alegre