Entre o riso e o desprezo: Modesto Brocos como crítico na “Terra do Cruzeiro”

Heloisa Selma Fernandes Capel [1]

CAPEL, Heloisa Selma Fernandes. Entre o riso e o desprezo: Modesto Brocos como crítico na “Terra do Cruzeiro”. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI, n. 1, jan./jun. 2016. https://doi.org/10.52913/19e20.XI1.08

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1.      Talvez a manifestação mais explícita das críticas à sociedade brasileira do artista espanhol Modesto Brocos y Gomes (1852-1936) [Figura 1] esteja expressa em seu livro “A Questão do Ensino de Bellas Artes”, publicado em 1915[2].

2.      O livro é um manifesto contra o ensino da Escola Nacional de Belas Artes e seu diretor, antigo amigo de Brocos, Rodolfo Bernardelli, avaliado no livro como homem, profissional e artista. Após uma viagem realizada à Europa no final do século XIX, Brocos voltou à “Terra do Cruzeiro” nos inícios da República e escreveu de forma implacável sobre as condições profissionais e artísticas que encontrou. No livro de 1915, sob a epígrafe em latim “facit indignatio versum” (a indignação faz o verso)[3], Brocos bradou contra a escravidão brasileira, para ele “um resto de barbárie” e após tecer inúmeras críticas ao ensino de arte, centrou sua análise sobre Bernardelli, apresentado como um homem dissimulado, artista medíocre e sedento de poder[4]. Bernardelli não havia se convencido de sua insuficiência e da orientação errada que havia dado à Escola nos vinte e quatro anos em que ocupou a direção, afirmava o artista[5].

3.      Brocos tinha motivos para estar descontente com a Escola de Belas Artes. Por ter sido nomeado como interino por Bernardelli, precisou deixar o cargo para se dirigir à Europa no final do século XIX, quando voltou ao Brasil, em 1900, sua antiga ocupação já não estava garantida. Quando desembarcou no Brasil[6], depois de uma empreitada não tão bem sucedida na Europa, estavam à sua espera esposa e o filho pequeno, família que deveria manter com seus recursos de artista imigrante desempregado. Ele considerou: “tive que lançar mão de todos os meus meios para sobreviver durante onze anos de vida incerta, podendo parodiar as palavras de Cezar em Munda: ‘Até ali tinha lutado pela glória, depois lutei pela vida!’”. Brocos vai conseguir se reinserir na Escola, não sem o custo de muitos desgastes na relação com Bernardelli em suas tentativas de se recolocar como artista.

4.      Logo que chegou da Europa, Brocos retomou a participação nas Exposições Gerias de Belas Artes. Para o Salão de 1902 realizou pinturas de paisagem de Teresópolis[7], o retrato do Sr. Dr. Duran[8], Benfeitor da Sociedade Espanhola de Beneficência, e algumas águas fortes sem maiores repercussões, a não ser por seu apuro técnico[9].  Para o Salão de 1904, pintou o quadro Cena Doméstica[10], que Gonzaga Duque interpretou como obra “fria, desajeitada e banal”, comparando-o a Almeida Junior que, segundo o crítico, havia se tornado, com o tempo “um pintor pastoso, amaneirado e duro”. Gonzaga Duque, entretanto, atribuiu à obra de Brocos certa importância, devido ao fato dos pintores terem “associado cenas de costumes à tentativa de fundamentar uma arte nacional”, mas considerou que o exemplo poderia ser “atenuado pelo apuro educativo de novos artistas”[11]. Ou seja, era mais um quadro de gênero um pouco fora de moda, na interpretação do crítico. Frei Frapesto também considerou a falta de atualidade do quadro e argumentou que, por apresentar um tema rural em tempos que “evoluíam a passos acelerados”, era um “brado hostil e rancoroso de reacionarismo, que apresentava em processos antiquados de refinação do açúcar, uma mulher acocorada numa cozinha lôbrega que mexia e remexia um caldeirão colocado sobre um braseiro”[12].

5.      Brocos continuou expondo paisagens e retratos nos Salões de 1905[13] e 1907 e, neste último, Bueno Amador diz que seu retrato de Olavo Bilac era de “ingrata fatura e colorido fantasiado” e sua vista do Bico do Papagaio “uma paisagem seca em que se sente falta de ar e luz”[14] - eram telas que, segundo Amador, Brocos havia pintado com “má vontade”. Em 1909, Brocos apresentou o que expressaria sua nova aposta: um busto e a maquete do frontão da Biblioteca Nacional, referidos no Jornal do Commercio como arte em que as figuras alegóricas formavam um conjunto “airoso e delicado”[15].

6.      Em síntese, ao voltar aos trópicos, Brocos se deparou com uma nova conjuntura político-artística e suas velhas estratégias precisaram ser repensadas. Ao lado das dificuldades próprias das exposições e do complexo lugar estratégico ocupado pela Escola nos inícios da República, Brocos procurou manter a subsistência de sua família com um tipo de arte mais vendável e encontrou dificuldades em recolocar-se nos novos contornos institucionais arquitetados por Rodolfo Bernardelli. O crítico Gonçalo Alves deu o tom a que a pintura de Brocos tomaria nesse novo momento: Nas Notas do “Salon” de 1912, Gonçalo Alves refere-se a Brocos como um “medalhão enferrujado”[16]

7.      Brocos tentou retornar à ENBA por ocasião do falecimento do professor de Desenho Figurado Daniel Berard (1846-1906)[17], mas Rodolfo Bernardelli, velho amigo da antiga Academia negou-lhe a solicitação, dizendo que Belmiro de Almeida já lhe havia feito o mesmo pedido e que a vaga estava “reservada para os moços, pois os velhos ele já conhecia”. Brocos respondeu-lhe que “os moços poderiam esperar”; deixou o recinto magoado, relembrando que foi a pedido dele e sob suas promessas que deixou seu cargo de professor de xilografia nas Escolas de Segundo Grau em 1891 para assumir a cadeira de modelo vivo na recém-criada Escola Nacional de Belas Artes[18]. A despeito do incidente, segundo Brocos, em função das articulações do político que se tornaria Ministro da Fazenda, Dr. Rivadavia[19], Bernardelli não teve outra opção a não ser propor a Brocos um novo cargo interino, o que foi confirmado pela Reforma da Escola de 1911.

8.      Eram muitos os motivos de descontentamento de Brocos quando escreveu o livro sobre Bernardelli. Todavia, a crítica à Escola e a Bernardelli não foi completamente escrita com discurso direto e palavras ásperas. Brocos articulou a apreciação crítica de maneira engenhosa, marcando seu texto com argumentações fundamentadas em estatutos e leis de ensino desde o Império e trechos de relatos marcados entre tons (auto)biográficos e narrativas ficcionais. Para falar do pouco talento de Bernardelli, por exemplo, Brocos inventou uma história imaginativa de como na Academia de S. Fernando, em Madrid, o pintor espanhol e diretor do Museu do Prado Francisco Pradilla[20] havia defendido Bernardelli como correspondente brasileiro, contra os argumentos dos artistas espanhóis que consideravam Bernardelli um escultor que “não sabia fazer vibrar a musculatura de suas estátuas equestres”, nem representar Cristo [Figura 2], que em suas mãos parecia um “mouro de Tânger”[21].  Ao final da história imaginada, Pradilla implorava aos seus interlocutores para aprovarem Bernardelli, que, afinal, poderia ajudá-los a vender quadros espanhóis no Rio de Janeiro, pois o diretor ocupava um cargo que lhe permitia o controle alfandegário exercendo poder de avaliação do que seria considerado como “boa arte”.

9.      Brocos completou a crítica a Bernardelli postando-se como um europeu experiente que acreditava que a causa dos males da falta de desenvolvimento das artes no Brasil estaria ligada, primeiro, à falta de fortuna (e a instabilidade dos poucos que a possuíam) além da falta de gosto e discernimento da população, pouco formada no assunto. Brocos defendia o ensino das chamadas “artes de ofício” para instruir o povo nas questões de arte e ainda arrematava que a crítica no país era feita por repórteres, jornalistas sem formação - homens que por algum dinheiro faziam elogios encomiásticos[22] em termos empolados. E para reforçar a ideia, contava outra história: conheceu repórteres metidos a críticos que tinham tanta consciência do que iam escrever que nas vésperas da abertura da Exposição Geral faziam a ele a singular pergunta: “Diga-me, depois do seu trabalho, qual o que acha melhor?”[23]

10.    Tal forma de apresentar a crítica parece ter sido um traço da pena e do pincel de Brocos. Interpretado, talvez equivocadamente, como um defensor do projeto de embranquecimento no Brasil, Brocos se expressa com sutil humor, traço marcado em nuances entre o riso e o desprezo. Para apresentar os indícios dessa característica, utilizemos como lente auxiliar as argumentações sobre o poder do riso como tema humanista nas análises do historiador britânico Quentin Skinner, além das caracterizações do riso como ironia no livro Anatomia da crítica de Northop Frye e, em função da obra utópica de Brocos, Viaje a Marte, as discussões sobre o humor em temas utópicos.

11.    Segundo Skinner, um dos aspectos do discurso persuasivo que foi herdado da cultura retórica da antiguidade pelo humanismo foi a ideia que o riso poderia ser usado como arma em debates legais e políticos. O autor diz que Thomas Hobbes (1588-1679) se baseou nas argumentações do professor de retórica Quintiliano (35 d.C. - 100 d.C.) para afirmar o seguinte princípio: podemos ser bem sucedidos se fizermos que nossos adversários pareçam ridículos, provocando o riso contra eles. Hobbes teria utilizado de sátira sobre os estudos escolásticos e a teologia católica por meio de piadas e sarcasmos; isso teria dado a ele uma consciência clara de que é possível falar e escrever em tom zombeteiro, em uma perspectiva que aproxima o riso do desprezo. Em conferência realizada na Sorbonne em 2001,[24] Skinner complementa dizendo que a emoção expressa pelo riso é sempre uma mistura de alegria e escárnio, aspecto que se tornou proeminente no primeiro período da filosofia moderna[25].

12.    Baseado na tradição aristotélica, Hobbes admite que a alegria induzida pela zombaria poderia ser considerada uma expressão de desprezo, pois para Aristóteles (385 a.C - 322 a.C), em sua Retórica, entre as origens do prazer estariam “as ações, os ditos e as pessoas ridículas”. Na Poética aristotélica, por sua vez, o filósofo também assinala que na mimese da comédia haveria o tratamento do que é risível, sendo o risível um aspecto do vergonhoso, do feio, do baixo: rimos de outras pessoas, explica-nos, porque elas exibem alguma falta ou marca constrangedora que, enquanto não dolorosas, as torna ridículas. Importante observar a medida: marca constrangedora com alguma parcimônia na dor, pois há uma medida para o que é risível e passível de escárnio. Dessa forma, interpreta Skinner, para Aristóteles são especialmente risíveis os inferiores, sobretudo os moralmente inferiores, embora os não completamente depravados. A associação do riso com desprezo em Aristóteles foi interpretada pela linha de pensamento médico e pelos retóricos.

13.    Skinner cita a carta de Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.) sobre Demócrito (460 a.C. - 370 a.C) que narra a seguinte história, importante para nos dar pistas sobre o riso em Modesto Brocos: Demócrito, já idoso, é visitado por um cidadão que diante dele derrama muitas lágrimas, chora como uma mãe que perdeu um filho.  Diante da cena, Demócrito permanece impassível e apenas sorri. Desta reação aparentemente insensível, Demócrito teria explicado: “estou apenas rindo da humanidade, cheia de loucura e vazia de quaisquer boas ações, e de um mundo em que os homens se consomem com coisas ridículas”, o que é interpretado como um ato de suprema sabedoria por Hipócrates. Skinner identifica que por meio de Cícero (106 a.C. - 46 a.C.) e de Quintiliano (35 d.C. - 100 d.C.) os retóricos também associaram o riso ao desprezo, ao que é moralmente indigno, em suma, associaram o riso à derrisão.[26] Na teoria clássica do riso, segundo Skinner, rimos não só para expressar alegria, mas para “transmitir uma sensação de superioridade escarnecedora e desdenhosa”[27].

14.    Mas o que isso tem a ver com nosso artista “crítico” Modesto Brocos? Fiquemos com o riso como arma para tratar com desdém os inferiores, os moralmente indignos, o riso como desprezo e indicador de uma “superioridade escarnecedora e desdenhosa”. Brocos não era propriamente um humanista, mas era um europeu que tomou contato com a retórica clássica, vide seu livro Retórica dos Pintores (1933), escrito com a proposta de associar à pintura os passos da retórica textual (invenção, disposição, elocução, pronunciação e fundo)[28]. Brocos é claro ao defender o tratamento das cores e gestos em um quadro[29], elementos que deveriam ser usados nos temas em que o tom patético seria enfatizado: além de gestos veementes, realizar o quadro em tons agrios, ácidos, acres. [30] Foi exatamente o que fez Brocos em Redenção de (1895) [Figura 3]. 

15.    Embora tenha sido apropriado como defensor do embranquecimento nessa obra, o tema é tratado com uma estrutura jocosa desde o início. Noé bêbado teria amaldiçoado Cã por tê-lo visto nu, mas Brocos o “redime” apresentando-o sob a estrutura da “sagrada família”, em gestos veementes, superlativos, e tons ácidos. Jesus, o dono do mundo nos ícones religiosos, na obra segura uma laranja. O olhar do pai, interpretado por alguns como “orgulhoso”, parece ser mais um olhar de incredulidade sobre o projeto narrativo que envolve as três figuras a seu lado. Um olhar de superioridade que se completa nos gestos e atos contínuos que culminam no agradecimento da personagem mais inferior do quadro: a negra de origem africana que estende os braços aos céus. Os dedos em gesto trinitário da criança se movimentam em linha fluida com o da indicação dos dedos da mãe, epítome da Virgem Santa, e com as mãos abertas da negra que agradece. É um gesto dinâmico e contínuo da qual a figura europeia (e branca) do quadro não participa. Três gerações contínuas observadas pelo olhar incrédulo do homem à direita, o que fecha suas mãos sobre os joelhos.

16.    Brocos não inventou a temática: ela lhe foi sugerida nas aulas realizadas com seu antigo mestre Victor Meirelles quando tinha apenas 24 anos. O tema bíblico sugerido era “Noé bêbado”[31], história do mito de Cam que justificou a escravidão nos período das conquistas ultramarinas ao fim do medievo[32]. Brocos veio de família republicana e isso fez dele um herdeiro de críticas à religião e à manutenção da escravidão[33]. Um dos críticos da Redenção de em 1895 chegou a dizer que a tela tratava de um tema tabu no final dos Oitocentos[34]. Era um tema vergonhoso, por tal motivo, sujeito ao riso.

17.    Em entrevista ao curador de arte Paulo Herkenhoff, a neta de Brocos, Ariclés,  disse que ele nunca foi defensor do projeto de embranquecimento[35]. Aqui, Brocos ri dos escravos que querem ser brancos, dos europeus que julgam o projeto impossível e dos grupos que defendem o processo de miscigenação. Negros eram moralmente indignos e inferiores, portanto risíveis. Como apresentar o assunto, todavia, sem ferir suscetibilidades no período? Com toques sutis de cor apropriada para os temas do riso, com o riso análogo ao de Demócrito que ri, mas ri de forma sutil. Brocos também trata o tema com sutileza e incorpora personagens e símbolos religiosos de maneira aparentemente séria, pois o riso que a obra provoca é um riso contido, em que ficamos em dúvida se devemos mesmo rir. Essa dúvida, justa medida do riso transportada para a tela com inspiração na tradição clássica, é que o crítico Northop Frye define como o riso do ciclo do inverno, o riso irônico. Como afirma Frye:

18.                                  A principal distinção entre a ironia e a sátira é que a sátira é a ironia militante: suas normas morais são relativamente claras, e aceitam critérios de acordo com que são medidos o grotesco e o absurdo. A invectiva abrupta ou xingamento é sátira em que há relativamente pouca ironia: por outro lado, sempre que um leitor não esteja certo de qual seja a atitude do autor ou de qual suponha ser a sua, temos ironia com relativamente pouca sátira.[36]

19.    Por fim, para completar sua crítica, a ironia de Brocos vai tomar formas mais radicais no livro em que se lança abertamente à ficção, seu Viaje a Marte, publicado em 1930. Aqui, Brocos mais uma vez lida com o tema racial, mas com estratégias radicais de miscigenação e práticas eugênicas. A relação crítica com a religião está presente mais uma vez. No livro de Brocos, vamos encontrar ideias como a esterilização de pessoas com males incuráveis ou mesmo a separação por município de crianças nascidas com algum tipo de defeito físico para afogamento em uma piscina. Na ficção, Brocos considera que as mulheres mais saudáveis e belas deveriam ser escolhidas para procriar, esterilizando-se as demais.

20.    Embora Modesto Brocos y Gomez tenha enfatizado sua intenção de construir uma ficção que poderia se realizar no futuro, seu texto tem um traço de humor, o mesmo que encontramos em A Redenção de Cã - neste caso, um sutil traço anedótico.

21.    As anedotas, em seu modo satírico, são comuns nos textos utópicos. Segundo Ribeiro,[37] o modo satírico pode ser identificado em obras que não pertencem ao gênero da sátira, mas que a utilizam de algum modo. As sátiras mais antigas, denominadas Menipéias[38], por exemplo, possuíam hibridismo formal e a presença de certa ambiguidade, o que faria com que aquele que a lesse ficasse em dúvida se era uma obra “séria” ou “cômica”.

22.    O hibridismo formal das utopias seria, então, uma questão comum, havendo mistura dos gêneros histórico, ficcional, retórico e mesmo filosófico. No jogo de desejo de perfeição da utopia, há muita inverossimilhança, traço que acentua o fato que a utopia é, fundamentalmente, um discurso crítico de sua época. Para Ribeiro[39], é justamente esse jogo entre verossimilhança versus inverossimilhança que torna o texto irônico e ambíguo.

23.    A ideia da unificação das raças está presente em Viaje a Marte; nela, algumas especificidades se constituem no jogo da inverossimilhança, acentuado desde as utopias renascentistas. O autor quer que suas ideias sejam praticadas, mas, ao mesmo tempo, dedica um significativo espaço para conjecturar acerca de instituições, como as religiosas, que, em seu texto tomam força como ideias absurdas para enfatizar os estranhamentos próprios em textos com modo anedótico. Como exemplo, examinemos sua defesa de uma ordem religiosa, a das “Hermanas Humanitárias”.

24.    A “Hermandad de Las Hermanas Humanitárias” seria uma estratégia de grande destaque na cultura marciana. Por meio dela, muitos aspectos da sociedade poderiam ser corrigidos: da ordenação dos impulsos sexuais de conservação da espécie às práticas assistencialistas que envolviam trabalhos em asilos, internatos e hospitais. As “Hermanas Humanitárias” são apresentadas formalmente como irmãs de caridade, mas, na prática, agem como prostitutas: suas funções sexuais são claras, como atender às “necessidades masculinas” zelando pela saúde, moralidade, práticas de higiene e prevenção de doenças. As “Hermanas”, inclusive, eram recrutadas em grupos para atender ao exército.

25.    No capítulo em que o ilustrado personagem Feijoó explica sobre as “Hermanas”, fica claro que a instituição se originou pelo fechamento de conventos nos “tempos bárbaros na Terra”. Os conventos haviam sido retiros de pessoas “ociosas”, que viviam uma “vida egoísta e folgazã”[40]. Com as reformas, houve substituição dos conventos pelas casas das “Hermanas”, advindas das casas de prostituição, que “na Terra nunca foram devidamente valorizadas”[41]. Na ficção de Brocos, as reformas em Marte deram outro status às prostitutas (embora o autor não use explicitamente esse nome), conferindo a elas uma posição de respeito e consideração das autoridades. As “Hermanas” possuíam espaços reservados nos teatros e igrejas e fora de seu ministério eram tratadas como virgens[42].

26.    O recrutamento de tais mulheres ocorria por indicação das comunidades locais de higiene e elas eram escolhidas entre “as que não estavam aptas ao matrimônio, principalmente as histéricas, as de temperamento ardente e as voluntárias”[43]. Logo em seguida, o autor escreve que elas eram de todas as camadas sociais e que entrariam na irmandade a fim de serem “esposas da humanidade”, em uma “orgulhosa, saudável e benéfica missão”[44]. Os homens que visitavam as “Hermanas” contribuíam com uma “limosna”[45], que servia para as despesas do convento[46].

27.    A obra Viaje a Marte, bem como o quadro Redenção de Cã, mostram a visão do pintor-escritor espanhol sobre a questão racial no Brasil. O que hoje vemos como racismo é a forma como se apresentava o debate sobre miscigenação, as ideias utópicas de equilíbrio entre as raças. Na obra de Brocos, a sátira e o modo anedótico estão presentes, de forma que se cria certa ambiguidade, também uma característica das utopias. O tom crítico, irônico e principalmente anedótico[47] na obra de Brocos seria, nessa perspectiva, uma forma de acentuar o estranhamento em relação ao seu mundo conhecido, a “Terra do Cruzeiro”. Terra de pouca formação artística e com inúmeros desafios sociais e políticos.

Referências bibliográficas

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SKINNER, Quentin. Hobbes e a Teoria do Riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004.

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[1] GEHIM/ CNPq - Programa de Pós-Graduação em História/ UFG

[2] BROCOS, Modesto. A Questão do Ensino de Bellas Artes. Seguido da Crítica Sobre a Direção de Bernardelli e Justificação do Autor. Rio de Janeiro: 1915.

[3] Frase do poeta e retórico romano Juvenal (c. 55 - c.127) que dizia “a ira serve, às vezes, para inspirar os poetas”.

[4]BROCOS, idem, p.95-113.

[5] Idem.

[6] Brocos viaja para a Europa em 1896. No ano de 1900 retorna ao Brasil.

[7]“Do Sr. Modesto Brocos há duas vistas de Teresópolis, tiradas de pontos vizinhos do local denominado Barreira, na estrada que conduz aquela pitoresca e aprazível cidade. São feitas na hora melancólica e nostálgica do crepúsculo, e despertam certa sensação de tristeza e de saudade, principalmente de quem tiver trazido recordações de dias felizes passados naquele delicioso recanto”. Notas de Arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 12 set. 1902, p.3. Da inauguração do evento há uma nota na Gazeta de Notícias dizendo que o Dr. Campos Salles, Presidente da República, havia se demorado em frente de alguns retratos de Modesto Brocos. Ver Exposição Geral de Belas Artes. A Inauguração. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 2 set. 1902, p.2. Disponível em 19 & 20.

[8] Possivelmente D. Daniel Duran, Vice-Presidente da Sociedade Española de Beneficência. No Ofício de 12 de janeiro de 1907 faz-se constar haverá inauguração do retrato de D. Daniel Duran com pompa. Ofício ao Sr. D. Manuel Castro Gonzalez. Estatuto de La Sociedad Española de Beneficencia (1866). Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1907. Copiador de Ofícios, p.266. Disponível em: www.hospitalespanholrj.com.br/download/transcricoes/ Acesso em 06/05/2015.

[9] Salão de 1902. Vernissage. A Notícia, Rio de Janeiro, 30-31 ago. 1902, p.3. Disponível em 19 & 20.

[10] Trata-se de um quadro que representa o interior de uma modesta habitação rural.

[11] DUQUE, Gonzaga. O Salão de 1904. Kósmos, Rio de Janeiro, set. 1904, n/p. Disponível em 19 & 20.

[12] FREI FRAPRESTO. IMPRESSÕES DO "SALÃO". A Noticia, Rio de Janeiro, 13-14 set. 1904, p. 2..

[13] “Modesto Brocos concorre com brilho ao nosso anual certame artístico”. V. V. O Salão. O Paiz, Rio de Janeiro, 9 de set. 1905, p. 2. Em 1910, Brocos expõe o quadro do Sr. Azeredo Coutinho; cfr.: Notas de Arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1910, p. 6

[14] “[...] Tais telas revelam que o artista não as pintou bem disposto ou com muita boa vontade, pois quem conhece M. Brocos sabe que ele é capaz de coisa melhor do que as telas atualmente expostas”. AMADOR, Bueno. Belas-Artes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 set. 1908.

[15] Notas de Arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 9 set. 1909, p. 3

[16] Ao elogiar um retrato de Angelina Agostini, Gonçalo Alves considera: “Esse retrato, do modo por que está executado, põe numa bagagem de algumas milhas a obra de fancaria dos medalhões enferrujados como Aurélio de Figueiredo e Modesto Brocos”. ALVES, Gonçalo. Notas do “Salon” - Angelina Agostini. A Noite, Rio de Janeiro, 6 set. 1912, p. 1. A Noite era um jornal vespertino que circulou no RJ entre 18 de junho de 1911 e 27 de dezembro de 1957, quando foi extinto.

[17] François-Marie Daniel Bérard (Rio de Janeiro RJ 1846 - Maceió AL 1910). Pintor, professor e desenhista. Obtém bolsa de estudo da Academia Imperial de Belas Artes para estudar na Europa. Na França, freqüenta o ateliê do pintor Pill, e cursa a Escola de Belas Artes de Paris, tendo aulas com Henri Lehmann e Gustave Jacques. De volta ao Brasil, integra um grupo de artistas pernambucanos e instala ateliê permanente no Liceu de Artes e Ofícios de Recife. Em 1894, fixa residência no Ceará. 

[18] BROCOS, 1915, p. 104

[19] Rivadávia da Cunha Correia (1866-1920). Ministro da Fazenda no Governo Hermes da Fonseca (09/05 a 11/08/ 1913 como interino) e como efetivo de 11/08 a 15/11/1914. Prefeito do Rio de Janeiro de 1914 a 1916.

[20] Francisco Pradilla y Ortiz  (1848-1921) foi um pintor espanhol, diretor da Real Academia de Espanha em Roma e do Museu del Prado em Madrid.

[21] BROCOS, Idem, p. 86

[22] Relativo a encômio; que louva ou contém louvor.

[23] BROCOS, Ibidem, p. 56

[24] Sobre A Filosofia e o Riso no ano de 2001.

[25] SKINNER, Quentin. Hobbes e a Teoria do Riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004, p. 10-14

[26] No livro De Oratore, ao discursar sobre o risível, o personagem César afirma que o riso está restrito a temas indignos ou deformados. E Quintiliano completa em seu Instituto Oratoria que “o riso tem sua origem em coisas que são de algum modo deformadas ou indignas” (Ibidem, p. 20-21). 

[27] Ibidem, p. 63

[28] Assim como todo homem pode fazer a descrição do que viu na escritura, por que não poderia descrever a mesma cena na pintura?  Brocos (1933).

[29] Etapa da elocução retórica para Brocos: “Elocução refere-se à boa execução do quadro, que na plástica, a habilidade do pincel e o colorido vai de acordo com o assunto” (BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933, p. 10).

[30] BROCOS, Modesto. Viaje a Marte. Valencia: Ed. Arte y Letras, 1930, p. 99

[31] BROCOS, Modesto. A Questão do Ensino de Bellas Artes, Seguido da Crítica sobre a Direção Bernardelli e Justificação do Autor. Rio de Janeiro, 1915, p. 9.

[32] A esse respeito ver MACEDO, José Rivair. Os Filhos de Cam: a África e o Saber Enciclopédico Medieval. Signum: Revista da ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001.

[33] Ver, a esse respeito, a biografia de Isidoro Brocos (1841-1914), pai de Modesto Brocos. Disponível em: http://coleccion.abanca.com/gl/Coleccion-de-arte/Artistas/ci.Isidoro-Brocos.formato7.html Acesso em maio, 2015.

[34] Ao comentar sobre o quadro após a exposição na Escola Nacional de Belas Artes em 1895, um crítico de arte do Jornal do Commercio datado de 7 de setembro de 1895 chega a dizer que “o tema é delicado para o trato público: [...] o assunto em si é pouco delicado para ser assim publicamente tratado: envolve fatos sociais que realmente se dão, mas que não são aceitos na ordem geral das coisas. Fere preconceitos ainda arraigados em muitos espíritos e, para ser compreendido, demanda explicações demasiadamente delicadas para serem franca e claramente expostas.” NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 set.1895, p. 2.

[35] Segundo Paulo Herkenhoff, curador de arte e diretor do Museu Nacional de Belas Artes (2003-2006) o depoimento de Aricles, neta de Modesto Brocos, contradiz que o pintor comungava com a ideia de embranquecimento. HERKENHOFF, Paulo. Corpo, Arte e Filosofia no Brasil. Disponível em: www.seminariosmv.org.br/2007/textos/txt_paulo.pdf  Acesso em 14/10/2012.

[36] FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 19571957, p. 219

[37] RIBEIRO, 2009, p.140

[38] Sátiras que encontram sua formalização literária em Menipo de Gadara (séc. IV e III a.C.) e que podemos ler em Diógenes Laércio (200 - 250d.C.).

[39] RIBEIRO, Ana Cláudia Romano. A Utopia e a Sátira. Revista Morus - Utopia e Renascimento. Campinas - SP: UNICAMP - IEL - Setor de Publicações, n. 6, 2009, p. 139-147.

[40] BROCOS, Viaje a Marte, p. 224

[41] Ibidem, p. 229-230.

[42] Embora enfatize a valorização social das “Hermanas”, Brocos acaba por deixar à mostra os paradoxos da função quando explica como são recrutadas, ou mesmo, ao detalhar algumas das tarefas a que estavam submetidas essas mulheres. As “Hermanas” limpavam o convento e, dentre elas, havia jovens enviadas para lá como castigo por algum juiz.

[43] BROCOS, Viaje a Marte, p. 226.

[44] Idem.

[45] Dinheiro que, tradicionalmente, definido nos Evangelhos e no Cristianismo Primitivo, se oferece, em troca de nada, aos pobres e necessitados, à conservação de templos ou para o clero.

[46] As “Hermanas” faziam voto de pobreza, portanto, não poderiam receber presentes ou pecúnias que as levassem a algum tipo de enriquecimento.

[47] A anedota é aqui compreendida como um modo satírico que se utiliza de narrativas. Destaque-se que o pintor escritor possuía afinidades com o gênero, como comprovam suas xilogravuras publicadas no jornal satírico republicano O Mequetrefe (1875). Na obra de Brocos y Gomez, portanto, encontraremos traços críticos, usados com recursos de estranhamento pelo inverossímil, estratégias que se expressariam, muitas vezes de modo irônico. Sua relação com a conjuntura histórica ocorre em perspectiva performática e contingencial, com tons anedóticos.