Entre o riso e o desprezo:
Modesto Brocos como crítico na “Terra do Cruzeiro”
Heloisa Selma Fernandes Capel [1]
CAPEL, Heloisa Selma Fernandes. Entre o
riso e o desprezo: Modesto Brocos como crítico na “Terra do Cruzeiro”. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI,
n. 1, jan./jun. 2016. https://doi.org/10.52913/19e20.XI1.08
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1. Talvez
a manifestação mais explícita das críticas à sociedade brasileira do artista
espanhol Modesto
Brocos y Gomes (1852-1936) [Figura 1] esteja expressa em seu livro “A Questão do
Ensino de Bellas Artes”, publicado em 1915[2].
2. O
livro é um manifesto contra o ensino da Escola Nacional de Belas Artes e seu
diretor, antigo amigo de Brocos, Rodolfo
Bernardelli, avaliado no livro como homem, profissional e artista. Após uma
viagem realizada à Europa no final do século XIX, Brocos
voltou à “Terra do Cruzeiro” nos inícios da República e escreveu de forma
implacável sobre as condições profissionais e artísticas que encontrou. No
livro de 1915, sob a epígrafe em latim “facit indignatio versum” (a indignação
faz o verso)[3], Brocos bradou contra a escravidão
brasileira, para ele “um resto de barbárie” e após tecer inúmeras críticas ao
ensino de arte, centrou sua análise sobre Bernardelli, apresentado como um
homem dissimulado, artista medíocre e sedento de poder[4].
Bernardelli não havia se convencido de sua insuficiência e da orientação errada
que havia dado à Escola nos vinte e quatro anos em que ocupou a direção,
afirmava o artista[5].
3. Brocos
tinha motivos para estar descontente com a Escola de Belas Artes. Por ter sido
nomeado como interino por Bernardelli, precisou deixar o cargo para se dirigir
à Europa no final do século XIX, quando voltou ao Brasil, em 1900, sua antiga
ocupação já não estava garantida. Quando desembarcou no Brasil[6],
depois de uma empreitada não tão bem sucedida na
Europa, estavam à sua espera esposa e o filho pequeno, família que deveria
manter com seus recursos de artista imigrante desempregado. Ele considerou:
“tive que lançar mão de todos os meus meios para sobreviver durante onze anos
de vida incerta, podendo parodiar as palavras de Cezar em Munda: ‘Até ali tinha
lutado pela glória, depois lutei pela vida!’”. Brocos vai conseguir se
reinserir na Escola, não sem o custo de muitos desgastes na relação com
Bernardelli em suas tentativas de se recolocar como artista.
4. Logo
que chegou da Europa, Brocos retomou a participação nas Exposições Gerias de Belas
Artes. Para o Salão de 1902 realizou pinturas de paisagem de Teresópolis[7],
o retrato do Sr. Dr. Duran[8], Benfeitor da Sociedade Espanhola de
Beneficência, e algumas águas fortes sem maiores repercussões, a não ser por
seu apuro técnico[9]. Para o Salão de 1904, pintou o
quadro Cena Doméstica[10], que Gonzaga
Duque interpretou como obra “fria, desajeitada e banal”, comparando-o a Almeida
Junior que, segundo o crítico, havia se tornado, com o tempo “um pintor
pastoso, amaneirado e duro”. Gonzaga Duque, entretanto, atribuiu à obra de Brocos certa importância, devido ao fato dos pintores terem
“associado cenas de costumes à tentativa de fundamentar uma arte nacional”, mas
considerou que o exemplo poderia ser “atenuado pelo apuro educativo de novos artistas”[11].
Ou seja, era mais um quadro de gênero um pouco fora de moda, na interpretação
do crítico. Frei Frapesto também considerou a falta de atualidade do
quadro e argumentou que, por apresentar um tema rural em tempos que “evoluíam a
passos acelerados”, era um “brado hostil e rancoroso de reacionarismo, que
apresentava em processos antiquados de refinação do açúcar, uma mulher acocorada
numa cozinha lôbrega que mexia e remexia um caldeirão
colocado sobre um braseiro”[12].
5. Brocos
continuou expondo paisagens e retratos nos Salões de 1905[13]
e 1907 e, neste último, Bueno Amador diz que seu retrato de Olavo Bilac era de
“ingrata fatura e colorido fantasiado” e sua vista do Bico do Papagaio “uma
paisagem seca em que se sente falta de ar e luz”[14]
- eram telas que, segundo Amador, Brocos havia pintado com “má vontade”. Em
1909, Brocos apresentou o que expressaria sua nova
aposta: um busto e a maquete do frontão da Biblioteca Nacional, referidos no Jornal do Commercio como arte em que as
figuras alegóricas formavam um conjunto “airoso e delicado”[15].
6. Em
síntese, ao voltar aos trópicos, Brocos se deparou com
uma nova conjuntura político-artística e suas velhas estratégias precisaram ser
repensadas. Ao lado das dificuldades próprias das exposições e do complexo
lugar estratégico ocupado pela Escola nos inícios da República, Brocos procurou manter a subsistência de sua família com um
tipo de arte mais vendável e encontrou dificuldades em recolocar-se nos novos
contornos institucionais arquitetados por Rodolfo Bernardelli. O crítico Gonçalo Alves deu o tom a que a pintura de Brocos tomaria
nesse novo momento: Nas Notas do “Salon” de 1912, Gonçalo Alves refere-se a
Brocos como um “medalhão enferrujado”[16].
7. Brocos
tentou retornar à ENBA por ocasião do falecimento do professor de Desenho
Figurado Daniel
Berard (1846-1906)[17], mas Rodolfo Bernardelli, velho amigo da
antiga Academia negou-lhe a solicitação, dizendo que Belmiro de
Almeida já lhe havia feito o mesmo pedido e que a vaga estava “reservada
para os moços, pois os velhos ele já conhecia”. Brocos respondeu-lhe que “os
moços poderiam esperar”; deixou o recinto magoado, relembrando que foi a pedido
dele e sob suas promessas que deixou seu cargo de professor de xilografia nas
Escolas de Segundo Grau em 1891 para assumir a cadeira de modelo vivo na
recém-criada Escola Nacional de Belas Artes[18].
A despeito do incidente, segundo Brocos, em função das articulações do político
que se tornaria Ministro da Fazenda, Dr. Rivadavia[19],
Bernardelli não teve outra opção a não ser propor a Brocos um novo cargo
interino, o que foi confirmado pela Reforma da Escola de 1911.
8. Eram
muitos os motivos de descontentamento de Brocos quando
escreveu o livro sobre Bernardelli. Todavia, a crítica à Escola e a Bernardelli
não foi completamente escrita com discurso direto e palavras ásperas. Brocos
articulou a apreciação crítica de maneira engenhosa, marcando seu texto com
argumentações fundamentadas em estatutos e leis de ensino desde o Império e
trechos de relatos marcados entre tons (auto)biográficos e narrativas
ficcionais. Para falar do pouco talento de Bernardelli, por exemplo, Brocos
inventou uma história imaginativa de como na Academia de S. Fernando, em
Madrid, o pintor espanhol e diretor do Museu do Prado Francisco Pradilla[20]
havia defendido Bernardelli como correspondente brasileiro, contra os
argumentos dos artistas espanhóis que consideravam Bernardelli um escultor que
“não sabia fazer vibrar a musculatura de suas estátuas equestres”, nem
representar Cristo [Figura 2], que em suas mãos parecia um
“mouro de Tânger”[21]. Ao final
da história imaginada, Pradilla implorava aos seus interlocutores para
aprovarem Bernardelli, que, afinal, poderia ajudá-los a vender quadros
espanhóis no Rio de Janeiro, pois o diretor ocupava um cargo que lhe permitia o
controle alfandegário exercendo poder de avaliação do que seria considerado
como “boa arte”.
9. Brocos
completou a crítica a Bernardelli postando-se como um europeu experiente que
acreditava que a causa dos males da falta de desenvolvimento das artes no
Brasil estaria ligada, primeiro, à falta de fortuna (e a instabilidade dos
poucos que a possuíam) além da falta de gosto e discernimento da população,
pouco formada no assunto. Brocos defendia o ensino das chamadas “artes de
ofício” para instruir o povo nas questões de arte e ainda arrematava que a
crítica no país era feita por repórteres, jornalistas sem formação - homens que
por algum dinheiro faziam elogios encomiásticos[22]
em termos empolados. E para reforçar a ideia, contava outra história: conheceu
repórteres metidos a críticos que tinham tanta consciência do que iam escrever
que nas vésperas da abertura da Exposição Geral faziam a ele a singular
pergunta: “Diga-me, depois do seu trabalho, qual o que acha melhor?”[23]
10. Tal
forma de apresentar a crítica parece ter sido um traço da pena e do pincel de Brocos. Interpretado, talvez equivocadamente, como um
defensor do projeto de embranquecimento no Brasil, Brocos
se expressa com sutil humor, traço marcado em nuances entre o riso e o desprezo. Para apresentar os
indícios dessa característica, utilizemos como lente auxiliar as argumentações
sobre o poder do riso como tema humanista nas análises do historiador britânico
Quentin Skinner, além das caracterizações do riso como ironia no livro Anatomia
da crítica de Northop Frye e, em função da obra utópica de Brocos, Viaje
a Marte, as discussões sobre o humor em temas utópicos.
11. Segundo
Skinner, um dos aspectos do discurso persuasivo que foi herdado da cultura
retórica da antiguidade pelo humanismo foi a ideia que o riso poderia ser usado
como arma em debates legais e políticos. O autor diz que Thomas Hobbes
(1588-1679) se baseou nas argumentações do professor de retórica Quintiliano
(35 d.C. - 100 d.C.) para afirmar o seguinte princípio: podemos ser bem sucedidos se fizermos que nossos adversários pareçam
ridículos, provocando o riso contra eles. Hobbes teria utilizado de sátira
sobre os estudos escolásticos e a teologia católica por meio de piadas e
sarcasmos; isso teria dado a ele uma consciência clara de que é possível falar
e escrever em tom zombeteiro, em uma perspectiva que aproxima o riso do
desprezo. Em conferência realizada na Sorbonne em 2001,[24]
Skinner complementa dizendo que a emoção expressa pelo riso é sempre uma
mistura de alegria e escárnio, aspecto que se tornou proeminente no primeiro período da filosofia moderna[25].
12. Baseado
na tradição aristotélica, Hobbes admite que a alegria induzida pela zombaria
poderia ser considerada uma expressão de desprezo, pois para Aristóteles (385 a.C
- 322 a.C), em sua Retórica, entre as origens do prazer estariam “as ações, os
ditos e as pessoas ridículas”. Na Poética
aristotélica, por sua vez, o filósofo também assinala que na mimese da comédia
haveria o tratamento do que é risível, sendo o risível um aspecto do
vergonhoso, do feio, do baixo: rimos de outras pessoas, explica-nos, porque
elas exibem alguma falta ou marca constrangedora que, enquanto não dolorosas,
as torna ridículas. Importante observar a medida: marca constrangedora com
alguma parcimônia na dor, pois há uma medida para o que é risível e passível de
escárnio. Dessa forma, interpreta Skinner, para Aristóteles são especialmente
risíveis os inferiores, sobretudo os moralmente inferiores, embora os não
completamente depravados. A associação do riso com desprezo em Aristóteles foi
interpretada pela linha de pensamento médico e pelos retóricos.
13. Skinner
cita a carta de Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.) sobre Demócrito (460 a.C. -
370 a.C) que narra a seguinte história, importante para nos dar pistas sobre o
riso em Modesto Brocos: Demócrito, já idoso, é visitado por um cidadão que
diante dele derrama muitas lágrimas, chora como uma mãe que perdeu um
filho. Diante da cena, Demócrito permanece impassível e apenas sorri.
Desta reação aparentemente insensível, Demócrito teria explicado: “estou apenas
rindo da humanidade, cheia de loucura e vazia de quaisquer boas ações, e de um
mundo em que os homens se consomem com coisas ridículas”, o que é interpretado
como um ato de suprema sabedoria por Hipócrates. Skinner identifica que por
meio de Cícero (106 a.C. - 46 a.C.) e de Quintiliano (35 d.C. - 100 d.C.) os
retóricos também associaram o riso ao desprezo, ao que é moralmente indigno, em
suma, associaram o riso à derrisão.[26] Na teoria clássica do riso, segundo
Skinner, rimos não só para expressar alegria, mas para “transmitir uma sensação
de superioridade escarnecedora e desdenhosa”[27].
14. Mas o
que isso tem a ver com nosso artista “crítico” Modesto Brocos? Fiquemos com o
riso como arma para tratar com desdém os inferiores, os moralmente indignos, o
riso como desprezo e indicador de uma “superioridade escarnecedora e
desdenhosa”. Brocos não era propriamente um humanista, mas era um europeu que tomou
contato com a retórica clássica, vide seu livro Retórica dos Pintores (1933), escrito com a proposta de associar à
pintura os passos da retórica textual (invenção, disposição, elocução,
pronunciação e fundo)[28]. Brocos é claro ao defender o tratamento
das cores e gestos em um quadro[29], elementos que deveriam ser usados nos
temas em que o tom patético seria enfatizado: além de gestos veementes,
realizar o quadro em tons agrios, ácidos, acres. [30]
Foi exatamente o que fez Brocos em Redenção
de Cã (1895) [Figura 3].
15. Embora
tenha sido apropriado como defensor do embranquecimento nessa obra, o tema é
tratado com uma estrutura jocosa desde o início. Noé bêbado teria amaldiçoado
Cã por tê-lo visto nu, mas Brocos o “redime” apresentando-o sob a estrutura da
“sagrada família”, em gestos veementes, superlativos, e tons ácidos. Jesus, o
dono do mundo nos ícones religiosos, na obra segura uma laranja. O olhar do
pai, interpretado por alguns como “orgulhoso”, parece ser mais um olhar de
incredulidade sobre o projeto narrativo que envolve as três figuras a seu lado.
Um olhar de superioridade que se completa nos gestos e atos contínuos que
culminam no agradecimento da personagem mais inferior do quadro: a negra de
origem africana que estende os braços aos céus. Os dedos em gesto trinitário da
criança se movimentam em linha fluida com o da indicação dos dedos da mãe,
epítome da Virgem Santa, e com as mãos abertas da negra que agradece. É um
gesto dinâmico e contínuo da qual a figura europeia (e branca) do quadro não
participa. Três gerações contínuas observadas pelo olhar incrédulo do homem à
direita, o que fecha suas mãos sobre os joelhos.
16. Brocos
não inventou a temática: ela lhe foi sugerida nas aulas realizadas com seu
antigo mestre Victor Meirelles quando tinha apenas 24 anos. O tema
bíblico sugerido era “Noé bêbado”[31], história do mito de Cam que justificou
a escravidão nos período das conquistas ultramarinas
ao fim do medievo[32]. Brocos veio de família republicana e
isso fez dele um herdeiro de críticas à religião e à manutenção da escravidão[33].
Um dos críticos da Redenção de Cã em 1895 chegou a dizer que a tela tratava de um
tema tabu no final dos Oitocentos[34]. Era um tema vergonhoso, por tal motivo,
sujeito ao riso.
17. Em
entrevista ao curador de arte Paulo Herkenhoff, a neta de Brocos, Ariclés, disse que ele nunca foi defensor do projeto
de embranquecimento[35]. Aqui, Brocos
ri dos escravos que querem ser brancos, dos europeus que julgam o projeto
impossível e dos grupos que defendem o processo de miscigenação. Negros eram
moralmente indignos e inferiores, portanto risíveis.
Como apresentar o assunto, todavia, sem ferir suscetibilidades no período? Com
toques sutis de cor apropriada para os temas do riso, com o riso análogo ao de
Demócrito que ri, mas ri de forma sutil. Brocos também trata o tema com
sutileza e incorpora personagens e símbolos religiosos de maneira aparentemente
séria, pois o riso que a obra provoca é um riso contido, em que ficamos em
dúvida se devemos mesmo rir. Essa dúvida, justa medida do riso transportada
para a tela com inspiração na tradição clássica, é que o crítico Northop Frye
define como o riso do ciclo do inverno, o
riso irônico. Como afirma Frye:
18.
A
principal distinção entre a ironia e a sátira é que a sátira é a ironia
militante: suas normas morais são relativamente claras, e aceitam critérios de
acordo com que são medidos o grotesco e o absurdo. A invectiva abrupta ou
xingamento é sátira em que há relativamente pouca ironia: por outro lado,
sempre que um leitor não esteja certo de qual seja a atitude do autor ou de
qual suponha ser a sua, temos ironia com relativamente pouca sátira.[36]
19. Por
fim, para completar sua crítica, a ironia de Brocos
vai tomar formas mais radicais no livro em que se lança abertamente à ficção,
seu Viaje a Marte, publicado em 1930. Aqui, Brocos mais uma vez lida com
o tema racial, mas com estratégias radicais de miscigenação e práticas
eugênicas. A relação crítica com a religião está presente mais uma vez. No
livro de Brocos, vamos encontrar ideias como a esterilização de pessoas com
males incuráveis ou mesmo a separação por município de crianças nascidas com
algum tipo de defeito físico para afogamento em uma piscina. Na ficção, Brocos considera que as mulheres mais saudáveis e belas
deveriam ser escolhidas para procriar, esterilizando-se as demais.
20. Embora
Modesto Brocos y Gomez tenha enfatizado sua intenção de construir uma ficção
que poderia se realizar no futuro, seu texto tem um traço de humor, o mesmo que
encontramos em A Redenção de Cã - neste caso, um sutil traço anedótico.
21. As
anedotas, em seu modo satírico, são comuns nos textos utópicos. Segundo Ribeiro,[37]
o modo satírico pode ser identificado em obras que não pertencem ao gênero da
sátira, mas que a utilizam de algum modo. As sátiras mais antigas, denominadas Menipéias[38],
por exemplo, possuíam hibridismo formal e a presença de certa ambiguidade, o
que faria com que aquele que a lesse ficasse em dúvida se era uma obra “séria”
ou “cômica”.
22. O
hibridismo formal das utopias seria, então, uma questão comum, havendo mistura
dos gêneros histórico, ficcional, retórico e mesmo filosófico. No jogo de
desejo de perfeição da utopia, há muita inverossimilhança, traço que acentua o
fato que a utopia é, fundamentalmente, um discurso crítico de sua época. Para
Ribeiro[39], é justamente esse jogo entre
verossimilhança versus inverossimilhança que torna o texto irônico e
ambíguo.
23. A
ideia da unificação das raças está presente em Viaje a Marte; nela,
algumas especificidades se constituem no jogo da inverossimilhança, acentuado
desde as utopias renascentistas. O autor quer que suas ideias sejam praticadas,
mas, ao mesmo tempo, dedica um significativo espaço para conjecturar acerca de
instituições, como as religiosas, que, em seu texto tomam força como ideias
absurdas para enfatizar os estranhamentos próprios em textos com modo
anedótico. Como exemplo, examinemos sua defesa de uma ordem religiosa, a das
“Hermanas Humanitárias”.
24. A
“Hermandad de Las Hermanas Humanitárias” seria uma estratégia de grande
destaque na cultura marciana. Por meio dela, muitos aspectos da sociedade
poderiam ser corrigidos: da ordenação dos impulsos sexuais de conservação da
espécie às práticas assistencialistas que envolviam trabalhos em asilos,
internatos e hospitais. As “Hermanas Humanitárias” são apresentadas formalmente
como irmãs de caridade, mas, na prática, agem como prostitutas: suas funções
sexuais são claras, como atender às “necessidades masculinas” zelando pela
saúde, moralidade, práticas de higiene e prevenção de doenças. As “Hermanas”, inclusive, eram recrutadas em
grupos para atender ao exército.
25. No
capítulo em que o ilustrado personagem Feijoó explica sobre as “Hermanas”, fica
claro que a instituição se originou pelo fechamento de conventos nos “tempos
bárbaros na Terra”. Os conventos haviam sido retiros de pessoas “ociosas”, que
viviam uma “vida egoísta e folgazã”[40]. Com as reformas, houve substituição dos
conventos pelas casas das “Hermanas”, advindas das casas de prostituição, que
“na Terra nunca foram devidamente valorizadas”[41].
Na ficção de Brocos, as reformas em Marte deram outro status
às prostitutas (embora o autor não use explicitamente esse nome), conferindo a
elas uma posição de respeito e consideração das autoridades. As “Hermanas” possuíam
espaços reservados nos teatros e igrejas e fora de seu ministério
eram tratadas como virgens[42].
26. O
recrutamento de tais mulheres ocorria por indicação das comunidades locais de
higiene e elas eram escolhidas entre “as que não estavam aptas ao matrimônio,
principalmente as histéricas, as de temperamento ardente e
as voluntárias”[43].
Logo em seguida, o autor escreve que elas eram de todas as camadas sociais e
que entrariam na irmandade a fim de serem “esposas da humanidade”, em uma
“orgulhosa, saudável e benéfica missão”[44]. Os homens que visitavam as “Hermanas”
contribuíam com uma “limosna”[45], que servia para as despesas do convento[46].
27. A obra
Viaje a Marte, bem como o quadro Redenção de Cã, mostram a visão do
pintor-escritor espanhol sobre a questão racial no Brasil. O que hoje vemos
como racismo é a forma como se apresentava o debate sobre miscigenação, as
ideias utópicas de equilíbrio entre as raças. Na obra de Brocos, a sátira e o
modo anedótico estão presentes, de forma que se cria certa ambiguidade, também
uma característica das utopias. O tom crítico, irônico e principalmente
anedótico[47] na obra de Brocos seria, nessa
perspectiva, uma forma de acentuar o estranhamento em relação ao seu mundo
conhecido, a “Terra do Cruzeiro”. Terra de pouca formação artística e com
inúmeros desafios sociais e políticos.
Referências bibliográficas
BROCOS, Modesto. A Questão do Ensino de
Bellas Artes. Seguido da Crítica Sobre a Direção de Bernardelli e
Justificação do Autor. Rio de Janeiro: 1915.
BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores. Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro,
1933. DAZZI, Camila (org.). Retórica dos pintores, de Modesto Brocos (versão
integral). 19&20,
Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/brocos_retorica.htm
BROCOS, Modesto. Viaje a Marte.
Valencia: Ed. Arte y Letras, 1930.
FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. São
Paulo: Cultrix, 1957.
HERKENHOFF, Paulo. Corpo,
Arte e Filosofia no Brasil. Disponível em: www.seminariosmv.org.br/2007/textos/txt_paulo.pdf
Acesso em 14/10/2012.
MACEDO, José Rivair. Os Filhos
de Cam: a África e o saber enciclopédico medieval. Signum: Revista da ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001.
RIBEIRO, Ana Cláudia Romano. A
Utopia e a Sátira. Morus - Utopia e Renascimento. Campinas - SP: UNICAMP
- IEL - Setor de Publicações, n. 6, p. 139-147, 2009.
SKINNER, Quentin. Hobbes e
a Teoria do Riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004.
______________________________
[1] GEHIM/ CNPq - Programa
de Pós-Graduação em História/ UFG
[2] BROCOS, Modesto. A
Questão do Ensino de Bellas Artes. Seguido da Crítica Sobre a
Direção de Bernardelli e Justificação do Autor. Rio de Janeiro: 1915.
[3] Frase do poeta e
retórico romano Juvenal (c. 55 - c.127) que dizia “a ira serve, às vezes, para
inspirar os poetas”.
[4]BROCOS, idem, p.95-113.
[5] Idem.
[6] Brocos viaja para a
Europa em 1896. No ano de 1900 retorna ao Brasil.
[7]“Do Sr. Modesto Brocos
há duas vistas de Teresópolis, tiradas de pontos vizinhos do local denominado
Barreira, na estrada que conduz aquela pitoresca e aprazível cidade. São feitas
na hora melancólica e nostálgica do crepúsculo, e despertam certa sensação de
tristeza e de saudade, principalmente de quem tiver trazido recordações de dias
felizes passados naquele delicioso recanto”. Notas de Arte. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 12 set. 1902, p.3. Da inauguração do evento há
uma nota na Gazeta de Notícias dizendo que o Dr. Campos Salles, Presidente da
República, havia se demorado em frente de alguns retratos de Modesto Brocos.
Ver Exposição Geral de Belas Artes. A Inauguração. Gazeta de Notícias, Rio
de Janeiro, 2 set. 1902, p.2. Disponível em 19 & 20.
[8] Possivelmente D. Daniel
Duran, Vice-Presidente da Sociedade Española de Beneficência. No Ofício de 12
de janeiro de 1907 faz-se constar haverá inauguração do retrato de D. Daniel
Duran com pompa. Ofício ao Sr. D. Manuel Castro Gonzalez. Estatuto de La
Sociedad Española de Beneficencia (1866). Rio de Janeiro, 12 de janeiro de
1907. Copiador de Ofícios, p.266. Disponível em: www.hospitalespanholrj.com.br/download/transcricoes/
Acesso em 06/05/2015.
[9] Salão de 1902.
Vernissage. A Notícia, Rio de Janeiro, 30-31 ago. 1902, p.3. Disponível
em 19 & 20.
[10] Trata-se de um quadro
que representa o interior de uma modesta habitação rural.
[11] DUQUE, Gonzaga. O Salão
de 1904. Kósmos, Rio de Janeiro, set. 1904, n/p. Disponível em 19 &
20.
[12] FREI FRAPRESTO.
IMPRESSÕES DO "SALÃO". A
Noticia, Rio de Janeiro, 13-14 set. 1904, p. 2..
[13] “Modesto Brocos
concorre com brilho ao nosso anual certame artístico”. V. V. O Salão. O Paiz,
Rio de Janeiro, 9 de set. 1905, p. 2. Em 1910, Brocos
expõe o quadro do Sr. Azeredo Coutinho; cfr.: Notas de Arte. Jornal do
Commercio, Rio de Janeiro, 1 set. 1910, p. 6
[14] “[...] Tais telas
revelam que o artista não as pintou bem disposto ou
com muita boa vontade, pois quem conhece M. Brocos sabe que ele é capaz de
coisa melhor do que as telas atualmente expostas”. AMADOR, Bueno. Belas-Artes. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 15 set. 1908.
[15] Notas de Arte. Jornal
do Commercio, Rio de Janeiro, 9 set. 1909, p. 3
[16] Ao elogiar um retrato
de Angelina Agostini, Gonçalo Alves considera: “Esse retrato, do modo por que
está executado, põe numa bagagem de algumas milhas a obra de fancaria dos
medalhões enferrujados como Aurélio de Figueiredo e Modesto Brocos”. ALVES,
Gonçalo. Notas do “Salon” - Angelina Agostini. A
Noite, Rio de Janeiro, 6 set. 1912, p. 1. A Noite era um
jornal vespertino que circulou no RJ entre 18 de junho de 1911 e 27 de dezembro
de 1957, quando foi extinto.
[17] François-Marie Daniel
Bérard (Rio de Janeiro RJ 1846 - Maceió AL 1910). Pintor, professor e
desenhista. Obtém bolsa de estudo da Academia Imperial de Belas Artes para
estudar na Europa. Na França, freqüenta o ateliê do pintor Pill, e cursa a
Escola de Belas Artes de Paris, tendo aulas com Henri Lehmann e Gustave
Jacques. De volta ao Brasil, integra um grupo de artistas pernambucanos e
instala ateliê permanente no Liceu de Artes e Ofícios de Recife. Em 1894, fixa
residência no Ceará.
[18] BROCOS, 1915, p. 104
[19] Rivadávia da Cunha
Correia (1866-1920). Ministro da Fazenda no Governo Hermes da Fonseca (09/05 a
11/08/ 1913 como interino) e como efetivo de 11/08 a 15/11/1914. Prefeito do
Rio de Janeiro de 1914 a 1916.
[20] Francisco Pradilla y Ortiz (1848-1921) foi um pintor espanhol, diretor da
Real Academia de Espanha em Roma e do Museu del Prado em Madrid.
[21] BROCOS, Idem, p. 86
[22] Relativo a encômio; que
louva ou contém louvor.
[23] BROCOS, Ibidem, p. 56
[24] Sobre A Filosofia e
o Riso no ano de 2001.
[25] SKINNER, Quentin. Hobbes
e a Teoria do Riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004, p. 10-14
[26] No livro De Oratore,
ao discursar sobre o risível, o personagem César afirma que o riso está
restrito a temas indignos ou deformados.
E Quintiliano completa em seu Instituto Oratoria que “o riso tem
sua origem em coisas que são de algum modo deformadas ou indignas” (Ibidem, p.
20-21).
[27] Ibidem, p. 63
[28] Assim como todo homem
pode fazer a descrição do que viu na escritura, por que não poderia descrever a
mesma cena na pintura? Brocos (1933).
[29] Etapa da elocução
retórica para Brocos: “Elocução refere-se à boa execução do quadro, que na
plástica, a habilidade do pincel e o colorido vai de acordo com o assunto”
(BROCOS, Modesto. Retórica dos pintores.
Rio de Janeiro: Typ. D’A Industria do Livro, 1933, p. 10).
[30] BROCOS, Modesto. Viaje
a Marte. Valencia: Ed. Arte y Letras, 1930, p. 99
[31] BROCOS, Modesto. A
Questão do Ensino de Bellas Artes, Seguido da Crítica sobre a Direção
Bernardelli e Justificação do Autor. Rio de Janeiro, 1915, p. 9.
[32] A esse respeito ver
MACEDO, José Rivair. Os Filhos de Cam: a África e o Saber Enciclopédico
Medieval. Signum: Revista da ABREM, Vol. 3, p. 101-132, 2001.
[33] Ver, a esse respeito, a
biografia de Isidoro Brocos (1841-1914), pai de Modesto Brocos. Disponível em: http://coleccion.abanca.com/gl/Coleccion-de-arte/Artistas/ci.Isidoro-Brocos.formato7.html
Acesso em maio, 2015.
[34] Ao comentar sobre o
quadro após a exposição na Escola Nacional de Belas Artes em 1895, um crítico
de arte do Jornal do Commercio datado de 7 de setembro de 1895 chega a
dizer que “o tema é delicado para o trato público: [...] o assunto em si é
pouco delicado para ser assim publicamente tratado: envolve fatos sociais que
realmente se dão, mas que não são aceitos na ordem geral das coisas. Fere
preconceitos ainda arraigados em muitos espíritos e, para ser compreendido,
demanda explicações demasiadamente delicadas para serem franca e claramente
expostas.” NOTAS SOBRE ARTE. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7
set.1895, p. 2.
[35] Segundo Paulo
Herkenhoff, curador de arte e diretor do Museu Nacional de Belas Artes
(2003-2006) o depoimento de Aricles, neta de Modesto Brocos, contradiz que o
pintor comungava com a ideia de embranquecimento. HERKENHOFF, Paulo. Corpo,
Arte e Filosofia no Brasil. Disponível em: www.seminariosmv.org.br/2007/textos/txt_paulo.pdf
Acesso em 14/10/2012.
[36] FRYE, Northrop. Anatomia
da Crítica. São Paulo: Cultrix, 19571957, p. 219
[37] RIBEIRO, 2009, p.140
[38] Sátiras que encontram
sua formalização literária em Menipo de Gadara (séc. IV e III a.C.) e que
podemos ler em Diógenes Laércio (200 - 250d.C.).
[39] RIBEIRO, Ana Cláudia
Romano. A Utopia e a Sátira. Revista Morus - Utopia e Renascimento.
Campinas - SP: UNICAMP - IEL - Setor de Publicações, n. 6, 2009, p. 139-147.
[40] BROCOS, Viaje a
Marte, p. 224
[41] Ibidem, p. 229-230.
[42] Embora enfatize a
valorização social das “Hermanas”, Brocos acaba por
deixar à mostra os paradoxos da função quando explica como são recrutadas, ou
mesmo, ao detalhar algumas das tarefas a que estavam submetidas essas mulheres.
As “Hermanas” limpavam o convento e, dentre elas, havia jovens enviadas para lá
como castigo por algum juiz.
[43]
BROCOS, Viaje
a Marte, p. 226.
[44] Idem.
[45] Dinheiro que,
tradicionalmente, definido nos Evangelhos e no Cristianismo Primitivo, se
oferece, em troca de nada, aos pobres e necessitados, à conservação de templos
ou para o clero.
[46] As “Hermanas” faziam
voto de pobreza, portanto, não poderiam receber presentes ou pecúnias que as
levassem a algum tipo de enriquecimento.
[47] A anedota é aqui
compreendida como um modo satírico que se utiliza de narrativas. Destaque-se
que o pintor escritor possuía afinidades com o gênero, como comprovam suas
xilogravuras publicadas no jornal satírico republicano O Mequetrefe (1875).
Na obra de Brocos y Gomez, portanto, encontraremos traços críticos, usados com
recursos de estranhamento pelo inverossímil, estratégias que se expressariam,
muitas vezes de modo irônico. Sua relação com a conjuntura histórica ocorre em
perspectiva performática e contingencial, com tons anedóticos.