Proposições
para o estudo da crítica de arte do século XIX [1] [2]
Dario Gamboni
GAMBONI,
Dario. Proposições para o estudo da crítica de arte do século
XIX. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/criticas/dgamboni_critica.htm
* * *
As artes são um
vasto domínio, do qual eles possuem todas as chaves em seus bolsos […]
Eugène Delacroix, “Des critiques en matière d'art”, 1829
Definição, delimitação
1.
O que devemos entender por “crítica de arte” do século XIX? No Petit
Larousse de la peinture, Philippe Junod
distingue duas acepções do termo “crítica de arte”: de um lado, um sentido
estreito, que designa um gênero literário específico, cuja aparição no século
XVIII coincide com a retomada da organização regular de exposições públicas e
do qual os Salons de Diderot constituem o
protótipo por excelência; de outro lado, um sentido amplo, que se aplica a
“todo comentário sobre uma obra contemporânea ou do passado”, e abarca gêneros
tais como a poesia, a ficção romanesca, a biografia, o ensaio, a correspondência
e o diário[3].
2.
Nesse segundo sentido, a “crítica de arte” recobre aquilo que Julius von
Schlosser denominou a “literatura artística” (Kunstliteratur), ou seja, do ponto de vista de Schlosser,
o conjunto de “fontes escritas secundárias, indiretas”, com exceção somente
“dos testemunhos impessoais como as inscrições, atas e inventários”[4].
Em balanço teórico e metodológico das relações entre arte e literatura no
século XIX, Jean-Paul Bouillon propôs uma lista
provisória de “categorias” de textos compreendidos nessa “literatura
artística”, mencionando alguns exemplos conhecidos:
3.
o artigo de imprensa ou o verbete de dicionário, a crônica de arte (Burty, Geffroy),
a resenha de exposição (os Salons), o guia de museu (Gautier), o relato
de viagem, a monografia (Champfleury, Goncourt), o
estudo histórico (Thoré, Chesneau),
o texto polêmico (Silvestre, Mirabeau), o manifesto (Duranty,
mas também Courbet ou Manet), a coletânea de
aforismos (Dolent), o romance sobre arte (Burty, Goncourt, Zola), o romance de arte, […] a correspondência de arte (Pisarro, Van Gogh, Cézanne) […] [5]
4.
Percebemos, de imediato, que todas essas categorias foram praticadas por
autores considerados como “críticos de arte”. Com efeito, os laços unindo o Salon
ou, mais amplamente, a resenha de exposição, aos outros gêneros são numerosos e
importantes, como testemunha o parentesco não somente de autores, mas também de
órgãos de publicação, de canais de difusão e de públicos, assim como a
complementaridade das funções. Dessa maneira, a fronteira separando a definição
estreita e a definição ampla de crítica de arte se revela permeável e mesmo
imprecisa, suscetível de se tornar objeto de debates e de constituir um tópico
de discussão para os protagonistas, assim como para os seus historiadores[6].
Eu proponho, portanto, considerar que, para compreender a estrutura da “crítica
de arte” do século XIX, é necessário levar em conta a priori do conjunto
da “literatura artística” do período.
Heterogeneidade, pólos, tipologias
5. Esse conjunto é,
evidentemente, heterogêneo, composto de todo tipo de textos, de autores e de
publicações, tratando de temas muito diversos, e sua análise demanda uma
tipologia ou, melhor, tipologias.
6. Em um estudo sincrônico
dos modos de descrição das obras de arte na França de fins do século XIX,
Catherine Lepdor distinguiu, com base em uma análise
interna, duas concepções antagônicas de crítica de arte, que ela associou a
tipos opostos de autores, de órgãos de imprensa e de públicos[7]:
tratava-se, de um lado, de uma concepção “científica”, que preconizava a
objetividade e a exatidão, defendida e ilustrada por educadores ou
administradores das Belas Artes, como Georges Lafenestre,
Eugène Müntz, Louis Courajod e Paul Mantz, em revistas prestigiosas e duráveis,
tais como a Revue des Deux Mondes e a Gazette
des Beaux-Arts; e, de
outro lado, de uma concepção “literária”, que privilegiava a expressão
subjetiva e “sintética” - na tradição da crítica “poética” romântica e baudelariana[8] -, praticada por jovens escritores
independentes, como Albert Aurier, nas pequenas
revistas efêmeras (à exceção do Mercure de France) e autofinanciadas do
simbolismo. Eu proponho considerar essas duas “concepções” como pólos, e a estes acrescentar um terceiro, o pólo “jornalístico”, desenvolvido sobretudo nos jornais
diários, por profissionais de imprensa. Me parece possível avançar a hipótese
de que, durante século XIX, mais particularmente em sua segunda metade, aquilo
que chamamos “crítica de arte” conheceu um processo de profissionalização[9],
no curso do qual o pólo jornalístico se tornou
dominante, enquanto o pólo científico foi objeto de
uma especialização, constituindo a “história da arte” - essencialmente
consagrada às obras do passado -, e o pólo literário
se viu marginalizado e relegado como uma forma de “literatura pura”.
7. Elementos de
categorização análogos se encontram em declarações sobre a crítica de arte,
feitas no final de século XIX. Em 1893, com o intuito de colocar em relevo as
excepcionais qualidades de crítico que atribuía a Joris-Karl
Huysmans, Roger Marx reconhecia, por exemplo, que “o
momento presente não carece nem de historiadores eruditos, nem de repórteres em
busca de atualidades, nem de cronistas sedutores e volúveis”[10]:
os “historiadores eruditos” evocam o pólo científico
e os “repórteres em busca de atualidades” o pólo
jornalístico; quanto aos “cronistas sedutores e volúveis”, podemos
relacioná-los ao pólo literário, pelo primado formal
da língua, e ao pólo jornalístico, pelo gênero da
crônica. Em 1903, ao definir a “missão da nova crítica” e ao declarar que
“muitos artistas desprezaram a profissão por causa dos profissionais”, Camille Mauclair excluiu, por seu turno, o modelo jornalístico,
afirmando que “a ideia do crítico é quase análoga àquela do poeta, e um misto
entre aquela do poeta e do sábio”[11].
8. Esse esquema tripolar
deveria servir a uma classificação, mas tipologias mais precisas são
necessárias a fim de analisar, sobre os eixos sincrônico e diacrônico, o
espectro de autores, de textos, de órgãos de publicação e de objetos da
crítica. A questão das categorias de textos já foi evocada, e aquela dos
objetos da crítica a ela se relaciona muito diretamente; seria necessário
afinar as divisões (distinguindo, por exemplo, no contexto dos artigos de
imprensa, as resenhas de exposição individual, de exposição coletiva, de grupo
de exposições ou de salon(s), as
entrevistas e as enquetes, os exames retrospectivos da obra de um ou de vários
artistas, os necrológios, as definições de um grupo ou de um movimento, os
debates estéticos, históricos ou políticos gerais etc.) e destacar os elementos
de hierarquização que as atravessam, como a oposição entre o geral e o
particular, ou aquela entre o durável e o efêmero[12].
9. Sendo a crítica de arte
desprovida de formação específica e não constituindo a ocupação exclusiva de
seus autores, uma atenção particular deveria ser concedida ao estudo
comparativo das formações e sistemas de atividade desses últimos, assim como de
suas origens sociais e de seus vínculos institucionais. Por quais vias os
diversos “críticos de arte” chegaram à crítica de arte? Além disso, quantos e
quais autores escreviam poesia ou ficção, trabalhavam na imprensa, ensinavam,
ocupavam um posto na administração de Belas Artes, colaboravam com os marchands,
produziam eles próprios obras de arte[13]?
A partir de uma primeira sondagem efetuada com base em obras publicadas, de um
lado, pelos autores de resenhas do Salon de 1859, e, de outro, pelos
autores catalogados como críticos de arte em 1893, Martha Ward constatou uma
fraca, mas crescente, tendência à especialização entre os críticos, bem como a
preponderância de autores que se dedicavam igualmente à crítica literária[14].
10. Por fim, uma tipologia
de órgãos de publicação deveria levar em conta a sua periodicidade (do
periódico diário ao livro), o seu grau de especialização, a sua tiragem e
difusão, assim como a composição sócio-política de
seus colaboradores, de seus financiadores e de seus públicos. Aí também, os
elementos de hierarquização, bem como de divisão, devem ser destacados,
remetendo a princípios de hierarquização e de classificação em parte diversos e
concorrentes. A supremacia incondicional do livro foi afirmada por escritores
como Huysmans, que, de maneira progressiva, submeteu
a essa forma o conjunto de sua produção como crítico de arte[15]. Tal supremacia é nuançada
pela referência ao grau de especialização feita por Redon,
por exemplo, quando este escreve:
11. A única força na
qual se produzem artigos capazes de conferir algum impulso ao pensamento é as
revistas, essa nova forma do livro, onde alguns espíritos distinguidos tratam
por vezes de questões mais gerais. Mais essa espécie de publicação não cai sob
os olhos de todos, apenas o especialista dela se preocupa; enquanto o amador
menos refinado, para o qual a arte é um luxo e que dela se ocupa somente em seu
tempo livre, só pode fruí-la quando o artigo da
revista, recolhido e agrupado, tomou a forma mais durável e mais determinada do
livro.[16]
Modos de seleção, campos e
interesses
12. Dando prosseguimento
aos trabalhos de Julius Von Schlosser e de Johannes Dobai, o estudo da crítica
de arte do século XIX deve agora enfrentar esse imenso corpus de textos[17].
Em face de tal tarefa, podemos com razão lamentar que, até recentemente, a publicação e o exame de textos de crítica dependeu
sobretudo da sua facilidade de acesso, da qualidade literária que lhes era
reconhecida e da glória literária de seus autores[18].
Mas, se tais princípios de escolha se revelam tendenciosos e restritivos em
relação às necessidades e aos objetivos atuais, vale a pena nos interrogarmos
sobre o sentido desse mecanismo de seleção: o fato é que, durante um período
que chega talvez ao seu fim, a crítica de arte do passado dependeu, para sua
conservação e sua transmissão, da condescendência, da crítica e da história
literárias, mais do que da história da arte.
13. Essa dupla dependência
acadêmica deriva da natureza dual e da posição intermediária da crítica de
arte. De um ponto de vista semiótico, ela se encontra, com efeito, ligada tanto
ao sistema icônico quanto ao sistema verbal, os quais ela procura por em relação. Em termos sociológicos, podemos situá-la na
interseção de vários campos, notadamente do campo artístico e do campo
literário[19].
14. O termo “campo” é
empregado por Pierre Bourdieu para designar os espaços sociais relativamente
autônomos, constituídos progressivamente para as diversas práticas culturais,
em uma evolução na qual o século XIX representa uma etapa decisiva[20].
Ele exprime uma visão dinâmica, que permite compreender a interdependência
essencial das diversas concepções e posições que coexistem no interior de tais
espaços, bem como os conflitos que as opõem, em torno do princípio de
hierarquização e da delimitação de suas fronteiras. Podemos considerar, assim,
a “crítica de arte” do século XIX como um campo e procurar analisar sua
estrutura e evolução - lembrando que a estrutura de um campo representa apenas
o estado transitório de uma relação de forças sempre em movimento. Um de seus
traços maiores parece ser, todavia, um grau de autonomia bastante fraco e uma
sensível submissão à atração de outros campos que na crítica de arte se
entrecruzam.
15. A atração mais visível
é aquela do campo literário, da qual a seleção do corpus acima evocada
representa apenas um testemunho mais e menos indireto. Essa pregnância
do modelo literário foi particularmente marcante na França, como constantemente
se sublinhou[21]. Ela afetava igualmente o conjunto do
campo artístico e do campo da imprensa. Assim, na virada do século, em seus Racontars de rapin,
Gauguin denunciava o monopólio exercido pelos “homens de letras”, não somente
sobre a posição de crítico, mas também sobre aquelas de diretor e conservador
de museus[22]. Quanto à imprensa, Chantal Georgel notou que um vínculo essencial, que causava “o
espanto e a admiração dos observadores estrangeiros”, unia o mundo da
literatura e o do jornalismo francês no curso dos três primeiros quartos do
século XIX, antes de se desfazer em seus últimos decênios[23].
16. O pertencimento a um
campo define, entre outras coisas, um certo número de interesses específicos -
simbólicos, assim como materiais - que contribuem para orientar a ação. No
contexto de uma análise de relações de Odilon Redon
com a literatura e os escritores, tentei identificar aquilo que resultava, para
os críticos de arte “decadentes” e simbolistas, de seu pertencimento ao campo
literário[24]. No interior desse último, a crítica de
arte constituía sobretudo um espaço de lançamento, de relação e de relegação.
Tratava-se de uma posição marginal, até mesmo inferior, por causa de sua
associação com a “literatura industrial” e da importância do referente
extralinguístico; ainda assim, graças ao prestígio cultural das belas artes -
especialmente da pintura -, e ao exemplo de escritores famosos, podia-se a ela
recorrer a fim de se lançar como literato, bem como a fim de assegurar um
rendimento.
17. Seria necessário
situar, de maneira análoga, a crítica de arte e os críticos de arte no interior
do campo da imprensa (com a sua distinção entre jornalistas políticos e
culturais, e, entre esses últimos, entre críticos de arte, críticos literários,
críticos de teatro e críticos musicais) e no interior do campo artístico,
tentando reconhecer os interesses associados a essas posições. O que poderia
representar o fato de escrever crítica de arte para este ou aquele tipo de
jornalista, para um inspetor de Belas Artes, para um professor universitário ou
da Ecole des Beaux-Arts? De que maneiras as formações, as
possibilidades e as expectativas correspondentes podiam contribuir para definir
as suas concepções e práticas de crítica de arte? Enfim, como a influência do
campo político, transmitida notadamente pela organização da imprensa, era
repassada e interpretada no interior do campo da crítica de arte?
18. Um interesse simbólico
específico que podemos atribuir a esse campo é a “autoridade” reconhecida a um
crítico. Esta parece depender, sobretudo, do pioneirismo e do sucesso de suas
escolhas e julgamentos. É assim que Huysmans saúda,
em 1885 - sob o disfarce de um pseudônimo - a sua própria obra de crítica:
19. Ele igualmente
escreveu os Salons reunidos em seu livro L’Art moderne, o primeiro
volume que explica com seriedade os impressionistas e assinala a Degas a
posição superior que ele virá a ocupar no futuro. O Sr. J.-K. Huysmans foi também o primeiro a fazer notar
Raffaelli, quando ninguém considerava esse pintor; foi o primeiro,
ainda, a explicar e lançar Odilon Redon. Que outro
crítico de arte atual é dotado desse faro agudo e dessa compreensão da arte, em
suas mais diversas manifestações?[25]
20. Oito anos mais tarde,
Roger Marx fez notar que o valor dos escritos de Huysmans
foi imediatamente reconhecido por sua crítica de arte, explicando que “o tempo
desempenhou aqui o ofício de consagrador, certificando, em curto termo, como
eram bem fundadas as opiniões emitidas e confirmando um a um os vereditos
lançados”[26]. Nesse sentido, a descoberta do “gênio
do futuro”, na qual Anita Brookner quis ver um traço
maior da crítica francesa até Huysmans[27],
pôde, efetivamente, constituir um objetivo comum e unificador para o conjunto
de críticos. Mas um outro tópico, mais fundamental, constituía o próprio
fundamento do direito de exercer o poder da crítica.
Poder, competências,
interdependência
21. Há, com efeito, entre
o julgamento individual emitido por um crítico e a consagração coletiva que
transmuta esse julgamento em “autoridade”, outros vínculos além do tempo,
evocado por Roger Marx. Durante o século XIX, o poder detido pelo crítico de
arte tornou-se uma evidência. Em 1829, Delacroix
fala, com uma lucidez zombeteira, dos críticos aos artistas:
22. [...] mesmo
ferindo-vos, eles revelam ao mundo que vós viveis; vós seríeis, sem eles,
insetos sufocados antes de chegar à luz: [...]. Prestai,
portanto, um pouco de reconhecimento ao trabalho ao que eles se dão, para fazer
de vós alguma coisa.[28]
23. No artigo já citado, Mauclair evoca seu “poder discriminatório”[29],
e, em 1890, avaliando retrospectivamente um século de crítica do Salon, Philibert Audreband escreveu em l’Art que “realmente, um resenhador
de Salon renomado distribui, à maneira de um deus, a glória e o desdém,
a reputação e o esquecimento, a vida e a morte”[30].
24. Harrison e Cynthia
White mostraram que, no último terço do século XIX, um novo sistema de
consagração e difusão de obras de arte (que eles chamaram “sistema
marchand-crítico”) se estabelece, com base em um mercado livre de valores
simbólicos e econômicos[31]. Este sistema confere à critica de arte um poder ampliado,
que atiça as lutas em torno de seu exercício legítimo. Cada grupo envolvido -
em virtude das proveniências e dos pertencimentos já evocados - procura impor a
definição da crítica de arte que corresponde a sua própria concepção e lhe
atribuir uma posição dominante em seu campo. Seria necessário estudar
sistematicamente os elementos de teoria da crítica de arte que participam neste
conflito e que se encontram dispersos nos escritos do período.
25. Utilizando as
categorias propostas acima, podemos classificar os critérios de competência
avançados nos debates segundo sua natureza prioritariamente linguística ou
referencial, como correspondentes, em maior ou menor medida, a uma concepção
literária, científica ou jornalística da crítica de arte. Estes critérios
incluem, por exemplo, de um lado, a capacidade de escrever - de bem escrever -
enquanto tal, a de criar um equivalente verbal da obra visual, a de exprimir em
palavras a intenção que lhe deu origem ou, ainda, a de explicar o seu tema com
a ajuda de fontes literárias, bem como, por outro lado, a erudição do connaisseur, um conhecimento da atualidade artística
e um acesso direto às declarações dos artistas. Uma posição radical é adotada
pelos artistas, que buscam reafirmar sua antiga exclusividade em matéria de
pertinência crítica[32]. É o caso de James McNeill
Whistler que, em 1878, depois de ter intentado um
processo por difamação a John Ruskin, publicou um panfleto no qual denunciava a
crítica como uma instrumentalização da arte pela literatura, e, em última
análise, como um mal inútil: “The cry, on their part,
of 'Il faut vivre', I most certainly meet, in this case, with the appropriate answer, 'Je n'en vois
pas la nécessité'”[33].
26. Mas a função que
confere à crítica de arte o seu poder, o de “revelar ao mundo” e o de
“distribuir [...] a vida e a morte”, era indispensável e não podia ser exercida
por aqueles mesmos que deveriam ser dela o objeto. Pierre Bourdieu falou, a
esse propósito, de “produção do valor”, enfatizando o fato de que a produção
das obras de arte modernas não é um feito do artista apenas, mas representa um
processo coletivo, que exige a colaboração de todo o campo artístico[34].
É desse modo que, por exemplo, um caricaturista podia ridicularizar, como um auto-coroamento derrisório, a recusa de Courbet
de sua exclusão na Exposição universal de 1855[35],
e que Mallarmé, em 1876, podia repreender o júri do Salon por não ter
sabido proclamar Manet “pontífice supremo por sua própria eleição, investido,
por sua fé, da missão de curar as almas”[36].
O tabu da auto-consagração igualmente permitia ao
crítico nova-iorquino Royal Cortissoz escrever que
não se podia culpar o crítico de arte “por sorrir aos Whistlers
desse mundo, com seus ipse dixits a respeito
de quem é e de quem não é autorizado a abrir a boca a respeito de pintura”[37].
27. Assim, em seus
próprios antagonismos, críticos e artistas eram mutualmente dependentes e
solidários. De maneira idêntica, a luta em torno dos critérios de competência,
corolário da inexistência de qualquer autoridade absoluta, unia o conjunto dos
protagonistas e testemunhava uma relativa autonomia. Os limites dessa autonomia
se evidenciavam, entretanto, na virtual inexistência de uma posição radical que
afirmasse a auto-suficiência
da crítica de arte. Esta posição é encontrada, excepcionalmente, em Oscar Wilde,
que, em 1891, publica, como uma resposta implícita a Whistler,
um ensaio intitulado O Crítico como artista, no qual reivindica, para o
crítico “a mesma relação em face à obra de arte que a do artista em face ao
mundo visível da forma e da cor, ou do mundo invisível da paixão e do
pensamento”[38].
28. Em 1903, Camille Mauclair adianta, por sua vez, mas de maneira mais débil,
que “a verdadeira e bela crítica [é] uma criação” e poderia se tornar uma arte[39].
Mais do que uma provocação ofensiva, esse seu pleito é uma defesa nostálgica do
modelo literário (a crítica “deveria ser um objeto de orgulho para os
escritores, estes deveriam se orgulhar de uma bela crítica tanto quanto de um
belo poema”) contra a preponderância dos jornalistas profissionais,
qualificados pejorativamente como “articulistas”, “ocupantes de rubrica” e
“folhetinistas patenteados”[40]. Nesse momento, o jornalismo começa, com
efeito, a ser percebido e organizado como uma profissão; simultaneamente, a
história da arte universitária define seu território e a defesa purista da
especificidade das artes relega à periferia, tanto em literatura como em
pintura, qualquer prática intersemiótica e referencial.
Tradução do francês por Arthur
Valle
_________________________
[1] Originalmente publicado como : GAMBONI, Dario. Propositions pour l'étude de la
critique d'art du XIXe siècle. Romantisme,
1991, v. 21, n. 71, p. 9-17 (nota do tradutor).
[2]
Esse artigo é baseado em uma comunicação apresentada oralmente no 78. congresso
anual do College Art Association (Nova Iorque, 14-17 fev. 1990), na seção “Art Criticism in Nineteenth Century France”, sob
convite de Michael Orwicz, a quem eu aqui agradeço.
[3]
JUNOD, P.. Critique d'art. In:
Petit Larousse de la peinture, vol. 1. Paris: Larousse p. 405-410.
[4] “Auch der Begriff der Quellenkunde selbst bedarf einer
Einschränkung; gemeint sind hier die sekundären, mittelbaren, schriftlichen
Quellen, vorwiegend also im Sinne der historischen Gesamtdisziplin die
literarischen Zeugnisse, die sich im theoretischen Bewusstsein mit der Kunst
auseinandersetzen, nach ihrer historischen, ästhetischen oder technischen Seite
hin, während die sozusagen unpersönlichen Zeugnisse, die Inschriften, Urkunden
und Inventare, anderen Disziplinen zufallen und hier nur einen Anhang bilden
können”. SCHLOSSER, J. Von. Die Kunstliteratur. Ein Handbuch zur
Quellenkunde der neueren Kunstgeschichte. Viena: Schroll,
1924, p. 1. (Livre tradução: “O próprio conceito de ciência das fontes
necessita de uma delimitação; se entendem aqui as fontes escritas, secundárias,
indiretas, sobretudo, no sentido histórico, os testemunhos literários que se
referem em sentido teorético à arte, sob seus aspectos histórico, estético e
técnico, enquanto que os, por assim dizer, testemunhos
impessoais - inscrições, documentos e inventários -, dizem respeito a outras
disciplinas e podem aqui ser apenas matéria para um apêndice”).
[5]
BOUILLON, J.-P.. Mise au point théorique et méthologique. Revue d'histoire littéraire de la France,
nov.-dez. 1980, p.880-899 (p. 897).
[6]
Sobre a implicação dos historiadores de arte no estudo da crítica de arte, ver
GAMBONI, D.. Remarques sur la critique d'art, l'histoire de l'art et le champ artistique
à propos d'Odilon Redon. Revue suisse d'art et d'archéologie, vol. 39,
1982, p. 104-108.
[7]
LEPDOR, C.. Ekphrasis 1890. Fonctions et formes
de la description dans le commentaire d'art (mémoire de licence, Université de
Lausanne, jun. 1989).
[8] ver DROST, Wolfgang. Kriterien der Kunstkritik Baudelaires.
Versuch einer Analyse. In: NOYER-WEIDNER, Alfred (ed.).
Baudelaire (Wege der Forschung, vol. 283). Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
1976, p. 410-442 (p. 410-412).
[9]
Durante a seção “Art Criticism
in Nineteenth Century
France” (ver nota 2), Susan L. Siegfried descreveu a primeira etapa desse
processo, com a renúncia do anonimato e a aparição do folhetim cultural na
imprensa pós-revolucionária (“The Politics of Retrenchement in the Postrevolutionary Press”).
[10]
MARX, R.. J.-K. Huysmans. Paris: Kleinmann, 1893, p. 9.
[11]
MAUCLAIR, C.. La mission de la critique nouvelle. La Quinzaine,
1 set. 1903, p. 1-25 (p. 15 e p. 13).
[12]
Assim é que, ao passar em revista as publicações que tratavam das artes do
desenho, oferecidas ao público não especializado, Odilon Redon
deplora as limitações inerentes às resenhas de exposição, afirmando que “essa
espécie de escritos, cuja base está na atualidade, não permite que aqueles que
a publicam se afastem de um dado particular, cujo fim não seja o da instrução”
(texto datado de 14 de maio [1878], em REDON , O.. A soi-même. Journal (1867- 1915). Notes sur la vie, l'art et les artistes. Paris:
Corti, 1961, p. 66).
[13]
Evocando “o crítico” em geral, Mauclair escreve, em 1903 : “Ele tem relações com os marchands de quadros
e negocia indiretamente as compras e as vendas. Ele disputa os cargos oficiais,
a inspetoria de Belas Artes, as decorações, a participação nas Comissões de
Estado” (op. cit., nota 11, p. 5). A respeito da diversidade de papéis
desempenhados pelos críticos de arte e sua importância em suas relações com os
artistas, ver GAMBONI, D.. La Plume et le pinceau. Odilon Redon et la littérature. Paris:
Minuit, 1989, p. 79-84.
[14] WARD,
M.. Representing and Reproducing Critical Authority in
the 1880's, comunicação apresentada
na seção “Art Criticism in Nineteenth Century France” (ver nota 2);
as fontes utilizadas são,
para 1859, a bibliografia estabelecida
por M. Ward com Christopher Parsons (A
Bibliography of Salon Criticism in Second Empire
Paris. Cambridge: Cambridge University
Press, 1986) e, para 1893, o Anuário da imprensa francesa, publicado a partir
de 1891. A partir dessa fontes, se constata que os
críticos de arte que publicavam somente obras sobre as belas artes
representavam 6,5% do total em 1859, contra 15% em 1893; e que a porção
daqueles cujas publicações concerniam igualmente a literatura se elevou à 42%,
em 1893.
[15] ver La
Plume et le pinceau (op. cit.,
nota 13), p. 106-107.
[16]
Ver nota 12. Fazendo notar que “a atualidade é hoje o invariável pretexto da
crítica”, Mauclair aconselha ao “crítico inteligente”
a “considerar os artigos como fragmentos de um livro futuro”, a fim de poder se
limitar, no fim do ano, “de desembaraçá-los dos parágrafos relativos à
atualidade que lhe serviu de pretexto” (op. cit, nota
12, p. 23).
[17]
Ver a nota 4 e DOBAI, J.. Die Kunstliteratur des Klassizismus und der Romantik in
England. Berna:
Benteli, 1974-1977 ; para o século XIX francês, ver a
bibliografia da crítica do Salon sob o Segundo Império (note 14), cujo
desdobramento, consagrado à Monarquia de Julho e à Segunda República, foi
anunciada por Neil McWilliam, assim como o projeto
conduzido conjuntamente pelas Universidades de Clermont e de Montréal (ver La
Critique d'art en France
1850-1900, atas do colóquio de Clermont-Ferrand,
25, 26 e 27 mai. 1987, reunidas e apresentadas por J.-P. Bouillon,
Université de Saint-Etienne, CIEREC, Travaux LXIII, 1989, p. 11-12).
[18]
Em 1980, J.-P. Bouillon assim denunciava “a seleção a
priori de textos em função de um julgamento qualitativo implícito a partir
dos 'grandes nomes' -, bem como da facilidade de acesso dos documentos” e
reivindicava um “trabalho de inventário e repertoriamento
de textos” longamente negligenciados (op., cit., nota 4, p. 889 e p. 893) ; na
introdução de sua bibliografia, С. Parsons e M. Ward escreveram, no mesmo
sentido: “By expanding out from the limited hierarchy of writers
that has resulted from this
emphasis upon literary style and personal connexions with artists and
movements, it may be possible to
arrive at a fuller, more informed picture of the values, composition and function of
midnineteenth-century criticism”
(op. cit., nota 14, p. ix).
[19] Ver
JURT, Joseph. Huysmans entre le champ littéraire et le champ artistique. In: Huysmans: une esthétique de la décadence, atas do colóquio de Bâle,
Mulhouse e Colmar de 5, 6 e 7 nov. 1984, organizado por André Guyaux, Christian Heck e Robert Kopp,
Genève-Paris, Slatkine, 1987, p. 115-126.
[20] Ver notadamente BOURDIEU , P.. Le
marché des biens symboliques. L'Année sociologique, vol. 22, 1971, p.
49-126; La production de la croyance: contribution à
une économie des biens symboliques. Actes de la recherche en sciences
sociales, n° 13, fev. 1977, p. 3-44; e Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1980, p. 113-120: Quelques
propriétés des champs.
[21]
Harrison e Cynthia White viram nisso
o efeito conjugado da doutrina acadêmica e de um modo
de educação: “As remains true to the present day, an
educated Frenchman felt himself qualified to write on any subject - and most
particularly on the arts. The conception of art as a learned profession,
fostered by the Academy, had placed it within the range of topics upon which a
learned man might discourse. ” (Canvases and
Careers: Institutional Change in the French Painting World. New York-Londres-Sidney: Wilney &
Sons, 1965, p. 10).
[22] GAUGUIN, Paul. Racontars
de rapin. Paris: Falaize,
1950 (1a. ed. 1919, redação 1902), p. 15.
[23]
GEORGEL, С.. Les Journalistes. Paris: Réunion des musées nationaux (Dossiers du Musée d'Orsay,
5), 1986, p. 8 e p. 20-21.
[24] Ver La
Plume et le pinceau (op. cit.,
nota 13), p. 70 sg.
[25]
MEUNIER, A.. J.-K. Huysmans. Paris:
Vanier (Les hommes d'aujourd'hui), 1885, reimpresso em HUYSMANS, J.-K.. En marge. Paris:
Lesage, 1927, p. 59.
[26] J.-K. Huysmans (op. cit., nota 10), p.
8.
[27]
BROOKNER, A.. The Genius of the Future. Studies
in French Art Criticism. Diderot - Stendhal - Baudelaire - Zola - the Brothers
Goncourt - Huysmans. Londres: Phaidon, 1971.
[28] DELACROIX, Eugène. Des critiques en matière d'art. Revue
de Paris, mai. 1829, t. 2, p. 68, reimpresso em DELACROIX, E.. Œuvres
littéraires, vol. 1. Etudes esthétiques. Paris:
Crès, 1923, p. 1-7 (p. 7).
[29] La mission de la critique nouvelle (op. cit., nota 11), p. 4.
[30] AUDREBAND , P.. Pages d'histoire contemporaine. Les Salonniers
depuis cent ans . l'Art,
1890, tomo 49, p. 237-238, citado
em Ekphrasis 1890 (op. cit., nota 7), p. 42.
[31]
Ver nota 21; para maiores precisões sobre as etapas desse processo complexo,
consultar VAISSE, Pierre. Salons,
expositions et sociétés d'artistes en France 1871-1914. In:
HASKELL, Francis (ed.). Atti
del XXIV Congresso Inter nationale di Storia dell'Arte, vol. 7: Saloni, gallerie, musei e loro influenza sullo sviluppo dell'arte de i secoli XIX e XX. Bologne: Cooperative libraria universitaria
éditrice, 1981, p. 141-151.
[32]
Ver Critique d'art (op. cit,
nota 3), p. 409. Podemos supor que é como crítico que Ferdinand Brunetière defende, em 1880, a mesma posição; ver Les Salons de Diderot. Revue des Deux Mondes, 1880, vol. 3, p. 457-469 (citado
em EHRARD, Antoinette. L'“impossible” Salon de 1880”.
In: La Critique d'art en France 1850-1900, op. cit., nota 17, p. 147-155, p.
154).
[33]
WHISTLER, J. McNeill. Whistler vs. Ruskin. Art and Art Critics, reproduzido
em The Gentle Art of Making Enemies. New
York: Dover, 1980 (reimpressão da segunda edição de 1892), p. 25.
[34] Ver La production de la croyance (op. cit., nota 20) e
BOURDIEU, P.. Lettre à Paolo Fossati à propos de la Storia dell'arte italiana. Actes
de la recherche en sciences sociales, n° 31, jan. 1980, p. 90-92.
[35] BERTALL. “Ao fim de sua Exposição universal, Courbert concede a si próprio algumas recompensas bem merecidas, na presença de uma multidão seleta, composta
de M. Bruyas e de seu cachorro”. Journal amusant, 12 jan. 1856, reproduzido em
Courbet selon les caricatures et les images, documents réunis et publiés par
Charles Léger, préface de Théodore Duret. Paris: Rosenberg, 1920, p. 35 [cf
Imagem].
[36] “[...] a self -created sovereign pontiff, charged by
his own faith with the cure of souls [...]” (The Impressionists and Edouard
Manet. The Art Monthly Review, 30 set. 1876), tradução
de VERDIER, Philippe. Stéphane Mallarmé: “Les impressionnistes et Edouard Manet” 1875-1876.
Gazette des Beaux-Arts, nov. 1975, p. 147-156 (p. 148-149).
[37] “The art critic may be forgotten if he smiles at the
Whistlers of this world, with their ipse dixits as
to who shall and who shall not open his mouth about painting
” (CORTISSOZ, R.. Personalities in Art. New York, Londres: Scribner, 1925, p. 5 sg.).
[38] WILDE, O.. Intentions. Paris:
Union générale d'éditions, 1986 (sem menção do autor da tradução), p. 139-140.