JULIÃO MACHADO
por Sandra Leandro
“A critica, perfeitamente imparcial, sem peias e sem atrevimentos que
melindrem a liberdade de cada um, na esfera d’acção que lhe pertence, a critica
que não aspira á gargalhada ruidosa, nem pela insolência do desenho, nem pelo
torpe do assumpto, nem pelo desbragado da linguagem, mas a critica moralisadora
e fecunda, não menos cruel, por delicada, é a que nos propomos
fazer de todos os assumptos”[1] - Foram estas as palavras iniciais do
primeiro jornal que foi seu, com competente programa e intenções que se
prolongariam no tempo. Julião Machado: caricaturista, ilustrador de jornais e
livros, cenógrafo, desenhador de ex-libris, dramaturgo dedicado sobretudo a Comédias Dramáticas, escreveu também em
diversos periódicos.
Oriundo de uma família endinheirada de negociantes de origem açoriana,
Julião Félix Machado nasceu em 19 de Junho de 1863 em São Paulo de Luanda. Foi
enviado para a metrópole com o objectivo de receber uma instrução esmerada.
Como registou Osvaldo Macedo de Sousa, instalou-se
primeiramente em Coimbra mudando de rota para Lisboa, e já nessa época a sua
personalidade extremamente viva, bem diferente dos seus tardos anos, o
encaminhou para uma vida mais dedicada à boémia do que aos estudos. Dando-se
conta da sua estroinice, a família pô-lo à testa dos negócios, mas o seu
comportamento e os desenhos satíricos confundidos por entre os livros de
contabilidade provaram que o comércio não era a sua vocação e podia representar
a ruína da família…
Frequentou a mesa do Grupo do Leão, foi discípulo do pintor José
Malhoa, e grande admirador de Rafel
Bordalo Pinheiro que de certa forma muito o influenciou. Começou a publicar
as suas caricaturas em 1886 n’O Diabo Coxo e na Revista Illustrada em
1887.
A herança por morte do pai foi investida, em Outubro de 1888, na criação do
semanário humorístico ilustrado A Comedia Portugueza. Este periódico
teve sensivelmente a duração de um ano e nele se evidenciou o que o afastava de
Rafael: a crítica não era tão acutilante, a sátira política era superada pela
crónica social, o desenho era mais limpo, mas parecia não se desprender das
suas mãos com a mesma facilidade. Menos tumulto nos assuntos, menos caos nas
mãos…
Publicou, simultaneamente, O Diário Illustrado em 1888 e a Gazeta
de São Carlos no ano seguinte. Colaborou nos Pontos nos ii em 1890,
desenhando a primeira página de 22 de Agosto e na página seguinte Manuel Gustavo deu-lhe as boas
vindas. Encontrá-lo-emos, em 1891, como Director artístico de A Baixa.
Como se referiu, um dos traços que o distinguiam era a preferência pela crónica
social, elegia os acontecimentos, não as pessoas e o público
em Portugal não se entusiasmava com esse trabalho, pois preferia uma
crítica personalista e mais incisiva, no fundo mais violenta.
Como as suas opções não vingavam, resolveu dar um novo impulso à carreira e
rumou a Paris. Na Cidade Luz prosseguiu estudos no atelier de Fernand
Cormon entre 1892[2] e 1894. Procurou ganhar a vida como
caricaturista, mas o intento não lhe correu de feição. Em 1893 ilustrou para
Fialho de Almeida o livro O País das Uvas. Tendo a
herança terminado, decidiu emigrar para a Argentina, destino que
prometia um futuro economicamente desafogado. Mas esse mesmo destino fez escala
portuária no Rio de Janeiro onde foi sondado pelo meio jornalístico, sendo-lhe
proposto um lugar importante:
O Rio literário e artístico recebeu-o de braços abertos – “'franqueando-lhe
as redações dos jornais, os clubes, os centros de cavaco, os cafés e os
botequins […]. O monóculo de Julião insistia, perscrutando a vida carioca. E
ei-lo, o bloco de papel debaixo do braço de atleta, a ponta aguçada do lápis
espiando no bôlso cimeiro do paletó, a colaborar na Gazeta de Noticias,
onde escreviam Eça e Ramalho. Depois, com Olavo Bilac e Guimarães Passos, aparece em A Bruxa. O
Jornal do Brasil reclama-o para fazer páginas inteiras. Seguidamente, é
João Lage que, de braço dado, o leva para O País”[3].
Herman Lima fez ainda referência à tertúlia do Café Papagaio e da Colombo
onde pontificavam Olavo Bilac, Francisco Paula Nei, Guimarães
Passos (com quem fundaria o Gil Bras), entre outros e na qual Julião
Machado participava. Recordem-se as importantes palavras de Luís Edmundo:
A roda possui um grande
caricaturista e ainda melhor ilustrador, Julião Machado. É português de
nascimento. Vive entre brasileiros, na mais estreita comunhão, irmão de
verdade, grande irmão, em meio até aos mais rubros e extremados nacionalistas.
Faz crítica de acontecimentos, de costumes (nossos costumes), de pessoas
(nossas pessoas), com chiste, com graça, com talento, mas sem ofender a
ninguém. Bilac chamava-o, com muito espírito, “amansa
jacobinos”, porque os mais exaltados nacionalistas que dêle se
aproximavam refreavam os seus entusiasmos patrióticos, só para não magoá-lo.[4]
Estabeleceu-se assim no Rio no final do ano de 1894 e ali viu o seu
trabalho valorizado e globalmente apreciado como um importante renovador
gráfico com um traço, elegância e capacidades técnicas ainda não experimentadas
em terras brasileiras. Associou-se a Olavo Bilac quando trabalharam juntos n’A
Cigarra, que cantou
de Maio de 1895 a Dezembro de 1896. Bilac deixou A Cigarra em Outubro e a sua saída é lamentada, no entanto, esta
parceria a que tem de se somar João Lage continuou na luxuosa A Bruxa que andou pelos ares de
Fevereiro de 1896 até Dezembro de 1904.
Na Gazeta de Notícias, durante o ano de 1896, Machado cruzou os seus
desenhos com a pena de Lúcio de Mendonça criando a secção “Caricaturas
Instantâneas” que seria adaptada pela revista Careta com o título Almanaque
das Glórias. Ainda em 1896 foi um dos ilustradores do Livro das noivas de
Júlia Lopes de Almeida.
Considerando as permutas entre artistas portugueses e brasileiros é muito
significativa a seguinte carta inédita de Julião Machado. Firmada no Rio em 19
[?] de Dezembro de 1899, nela intercede por Manuel Teixeira da Rocha recomendando-o a Rafael Bordalo
Pinheiro:
Segue n'este vapor para
Paris / (creio que com alguma demora / em Lisboa) o Teixeira da Rocha, / um
artista brazileiro muito cons-/ciencioso que vae ser, subsidi-/ado pelo
Rego Barros. / É de sup-/pôr que este o procure e então / melhor do que por mim
sabera / noticias d'aqui. Este tenciona de-/morar-se
na Europa dois annos / e eu espero bem, (porque sei de quan/quanto [sic] sao
capazes a sua força / de vontade e a sua excelente apti-/dão) que esta viagem
hade fazer / d'este um artista notavel [...] Não occuparia a sua atten/ção com o Teixeira da Rocha que o / o meu
querido amigo aqui conhe-/ceu d'esta vez se este álem ser
/ um valente caracter de homem / e de amigo, não fosse um ver-/dadeiro artista,
ja muito concei-/tuado por ca. Alem de tudo isto / creio que não lhe sera
desagra-/davel a si, ter o ensejo de, com a sua tao generosa affabilidade / e
com os seus preciosíssimos con-/selhos animar um artista brazileiro / que vai a
Europa pela primeira / vez e que - naturalmente - lu-/ctara com o tedio e talvez com / o desalento.[5]
Entretanto as inovações que Julião Machado foi lançando provocavam uma
importante emulação entre os caricaturistas mais jovens como a novidade que
Ruben Gill lembrou: “Devemos considerar a secção ‘Figuras, Figurinhas e
Figurões’, criada e mantida por Julião Machado no Jornal do Brasil em
1899 - traçada a nanquim e reproduzida em clichês zincográficos do gravador
Cardoso - verdadeiramente a gênese da charge de atualidades urbanas
naquele jornal”[6]. Lembremos também um periódico
litografado a cores O Mercúrio, ou o desenho de um policial Os irmãos
da luva vermelha, banda desenhada de 1902[7].
Em Portugal, Rafael viu apreendida A Paródia em Janeiro de 1903 e,
por precaução alteraram, o nome do jornal para Parodia - Comedia Portugueza,
fundindo-se editorialmente com a antiga publicação de Machado e Mesquita, que
tinha ressurgido em 1902. Provavelmente no final no ano de 1903 ou no início de
1904, Julião regressou a Portugal e foi saudado por Rafael na Parodia -
Comedia Portugueza[8]. De resto, os seus desenhos já se podiam
ver desde 1903 na Ilustração Portuguesa, e por
esses anos também publicaria na revista quinzenal ilustrada Brasil-Portugal.
Ilustrou as Fábulas de Bocage, em 1905, servindo-se de muita volúpia
vegetal da Arte Nova. Entretanto voltou para o Brasil.
Em 1906 estava em pleno no Rio de Janeiro, era 2º Secretário do Real
Gabinete Português de Leitura e foi o pivot da estada de José Malhoa que
ali expôs individual e apoteoticamente pela primeira vez. Malhoa chegou no dia
10 de Junho a bordo do Cordiliére o mesmo navio que transportava dois outros
artistas muito apreciados pelo público do Brasil os actores Chaby Pinheiro e
Eduardo Brazão. O espectáculo da recepção deve ter sido cintilante com grande
número de lanchas a aproximarem-se para receberem os artistas e certamente
também pela novidade: era desta vez o pintor José Malhoa que brilhava mais
alto. Foi Julião Machado quem primeiro o viu. Malhoa ficou instalado justamente
em casa do seu amigo e antigo discípulo e no dia seguinte, acompanhado por ele,
deslocaram-se à Escola de Belas-Artes onde foram recebidos por Henrique
Bernardelli, Rodolfo Amoedo, Araújo Viana e Victor Viana. No dia 4 de Julho o Real
Gabinete Português de Leitura ofereceu um banquete em honra do grande artista e
na hora do champagne foi Julião Machado que brindou em nome daquela
instituição oferecendo o ágape ao pintor que agradeceu
comovido[9].
Machado devia ter natural propensão para brindar, basta recordar que também foi
ele a desenhar o menu do almoço oferecido ao pintor no
Leão de Ouro em 1928, com um “Camões” erguendo a taça[10].
Saúde!
Fonte: LEANDRO, Sandra. 19
tragédias, 20 comédias na arte portuguesa do século XIX. In: VALLE, Arthur;
DAZZI, Camila; PORTELLA, Isabel (org.). Oitocentos
- Tomo III :
Intercâmbios culturais entre Brasil e Portugal. 2ª. Edição. Rio de Janeiro:
CEFET/RJ, 2014, p. 478-483 [cfr. link]
* Veja mais sobre Julião Machado em DezenoveVinte
[1] A
comedia portugueza. Lisboa, n.º 1, Out. 1888, p. 1.
[2] Esta
data carece confirmação pois em carta refere que saiu
de Lisboa em 1893.
[3] LIMA,
Herman. História da caricatura no Brasil. 3º vol. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora, 1963, p. 968.
[4] Idem,
ibidem, p. 968.
[5] Museu
Rafael Bordalo Pinheiro / Lisboa. Espólio documental 0525.
[6] LIMA, Herman. Op. cit., p. 971.
[7] FONSECA,
Letícia. História do Jornal do Brasil: concepção e trajetória até a primeira
metade do século XX. PUC-Rio Certificação Digital nº 0610429/CA. 2008. Disponível em <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0610429_08_cap_02.pdf>.
[8] Parodia-
Comedia Portugueza. Lisboa, nº 53, Jan. 1904, p.3.
[9] Museu
José Malhoa / Caldas da Rainha. Espólio de José Malhoa.
[10] LEANDRO,
Sandra. Luz sobre luz. In José Malhoa. Milano; Lisboa: Franco Maria
Ricci; Arting, 2008, p. 109.