Raimundo Cela: um balanço historiográfico

Vera Rozane Araújo Aguiar Filha 

ARAÚJO, Vera Rozane A. F.. Raimundo Cela: um balanço historiográfico.  19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 1, jan.-jun. 2021. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XVI1.03

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1.     Raimundo Cela, dentre as várias posições que ocupou durante seus 64 anos de vida, foi sacralizado pela crítica de arte como “o pintor do Nordeste.”[1] A alcunha ganhou força, sobretudo, após seu falecimento, em 1954, quando, dois anos depois, uma exposição póstuma em sua homenagem foi realizada no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA). A partir daí, os caminhos percorridos pela ideia são bem difíceis de mapear. Todavia, uma afirmação a seu respeito é possível: ela está intimamente ligada aos interesses por sistemas simbólicos,[2] tanto para o Brasil, como para o Nordeste. Como cearense que também sou, de alguma maneira, as imagens das produções de Cela estiveram presentes em meu imaginário. Talvez, seria mais adequado intitulá-lo como o “pintor do Ceará”?

2.     Durante a graduação em História, pela Universidade Federal do Ceará, o gosto particular para as questões artísticas me levou até a personagem. Imaginei que seria uma figura conhecida no mundo acadêmico cearense. Estava errada. De fato, muitas pessoas o conheciam, mas, assim como eu, apenas por seus trabalhos. Aquilo passou a me incomodar, tanto quanto a alcunha “pintor do Nordeste” colada ao seu nome nos primeiros excertos biográficos localizados.

3.     A partir do pouco material encontrado inicialmente, fui percebendo a complexidade da trajetória artística de Raimundo Cela, sobretudo em suas ligações com dois objetos de pesquisa da historiografia e historiografia da arte no Brasil: (1) os dilemas da Primeira República, no que se refere a política, sociedade e cultura; e (2) as questões envolvendo os modelos de ensino e prática artística no âmbito da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), o “problema” da arte acadêmica versus a experiência “modernista” ou “moderna” na capital carioca. Com o andamento da pesquisa e o aprofundamento das discussões teóricas, o tal problema deixou de embasar a discussão promovida em meu Mestrado em História, defendido em 2017, pela Universidade Federal de São Paulo.[3] Um dos motivos para este deslocamento foi a compreensão de que a “querela” era apenas uma das chaves interpretativas das tensões cotidianas que conformavam os saberes e os fazeres entre normas e conteúdos aplicados à ENBA. O olhar de minha dissertação passou a contemplar a forma, a norma e a cultura escolar, que delimita, organiza e ressignifica o cotidiano de todos os envolvidos no sistema para o ensino de arte.

4.     Foi na cidade portuária de Camocim, litoral oeste do Ceará, que Raimundo Cela viveu grande parte de sua vida. Nascido em Sobral, em 19 de julho de 1890, mudou-se ainda criança para Camocim, devido à transferência de seu pai que, na época, era funcionário na construção da Estrada de Ferro de Sobral. Primeiro filho da professora sobralense Maria Carolina Brandão Cela e do mecânico espanhol José Maria Cela Mosquera, cursou ensino primário junto de sua mãe e viveu no interior do estado até a adolescência.

5.     Existem pouquíssimas informações sobre a infância de Cela; no entanto, quase sempre há referências ao seu “dom” para a prática artística. O suposto “gosto” pela arte, surgido precocemente, poderia ser justificado pela existência de um primeiro trabalho considerado artístico, atribuído à data de 1902 [Figura 1], quando a personagem tinha 12 anos de idade.[4] A pintura faz parte do acervo dedicado a Raimundo Cela no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), localizado em Fortaleza, configurando a maior coleção de obras do artista. A tela de natureza-morta, pintada a óleo sobre madeira - com 20 x 25 cm de dimensão - recebeu a inscrição “R Cela”, assinatura que o acompanhou ao longo de toda sua vida como artista. Para a análise que desenvolvi, elementos argumentativos como o da “genialidade” ou do “dom” foram deixados de lado, para, assim, compreender a trajetória de Raimundo Cela como uma série de posições sucessivas ocupadas por um mesmo agente.[5]

6.     Em 1906, aos 16 anos de idade, Cela mudou-se para Fortaleza com intuito de realizar curso preparatório para o ensino superior. Desse período da vida do artista, sabe-se que estudou no Liceu do Ceará, centro educacional público de destaque na capital cearense. Em 1909, obteve o título de Bacharel em Ciência e Letras.

7.     A partir daí, a personagem ingressou em um novo momento de sua vida. Em busca de cursar nível superior,[6] desembarcou no Rio de Janeiro. Iniciou os estudos como aluno livre na Escola Nacional de Belas Artes e, em 1911, matriculou-se como aluno regular no curso de Engenharia Civil na Escola Politécnica, a pedido do pai. Também nesse período, Cela atuou profissionalmente como desenhista do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais e da Seção de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, ligados à Comissão Rondon.

8.     Enquanto aluno livre da ENBA, Cela conquistou do chamado Prêmio de Viagem ao Estrangeiro. O prêmio, de certa forma, é um traço importante para mapear o perfil do estudante “exemplar,” aquele em que a Escola investia desde o Império e legitimava como representantes dos modelos de ensino praticados na instituição. A oportunidade dada a Cela para estudar na Europa decorre da sua participação no Salon de 1917, ou XXIV Exposição Geral de Belas Artes. O óleo sobre tela produzido por Cela, intitulado O Último Diálogo de Sócrates [Figura 2], é um trabalho de grandes proporções (171 cm x 240 cm), aparentemente caracterizado pelos traços “antiquados” que ainda perseguia a formação artística na Escola: a tradição Neoclássica da pintura histórica. Fatura tão cara ao modelo acadêmico francês importado para a realidade brasileira no século XIX, quando se instalou a Academia Imperial de Belas Artes, e que foi amplamente rechaçada pelos contemporâneos do pós-Proclamação da República, momento em que artistas e estudantes reivindicaram mudanças severas nos modos de fazer e ensinar arte na antiga academia. Ao longo da pesquisa, percebi que a obra era bem mais complexa, sobretudo, ao estudar seus pormenores, configurando um trabalho bastante original e com aspectos técnicos considerados “modernos.”[7]

9.     É interessante ressaltar, a partir das elucidações do sociólogo Pierre Bourdieu, que nem tudo que hoje é utilizado como “material” para os estudos históricos foi concebido como tal. O autor destacou que os objetos devem ter importância social ou política, pois isso dará valor ao discurso proposto.[8] Concordo com Bourdieu e pontuo o seguinte aspecto da problematização: os valores sociais, políticos, até os culturais e os econômicos, não são dados, muito menos imutáveis. Na verdade, como bem colocou o sociólogo, não existe nada dado no mundo social; nós é que, ingenuamente, interiorizamos as estruturas impostas por ele. Mas, se tudo é construção, como apreender as epistemologias que significam as práticas, as ações de grupo, enfim, o mundo social como um todo? De que maneira é possível entender, nas palavras de Bourdieu, “como são construídos os instrumentos que constroem a sociedade”?[9] Para mim, o maior desafio é romper com essas estruturas impostas, principalmente ao escavar as camadas mais profundas que envolvem não o objeto de pesquisa, mas as construções em torno dele e é por isso que um balanço historiográfico sobre Raimundo Cela foi fundamental.

10.   Relembro, a partir do sociólogo francês, que o movimento para a construção dos objetos deveria partir de dois eixos principais: a capacidade de construir um fato socialmente insignificante em objeto científico ou reconstruir cientificamente objetos socialmente importantes e apreendê-los de um ângulo imprevisto.[10] O que a trajetória de Raimundo Cela me proporcionou, após elegê-lo como objeto de pesquisa, se encaixa nos dois eixos apontados pelo sociólogo. Na primeira situação, no Ceará, embora a personagem não seja reconhecida por muitos, as suas obras fazem parte do imaginário cultural local - logo, conformaria um objeto “dado”, ou seja, de relevância (como eu pensei no início da pesquisa). O diferencial estaria no tal ângulo. Quanto ao segundo caso, descrevo o próprio caminho que me levou à investigação. Durante a realização do Mestrado, devido ao deslocamento do Nordeste para o Sudeste, meu novo lugar de fala foi São Paulo, onde, talvez, poucos pesquisadores iriam conhecer a personagem - caracterizando, teoricamente, um objeto socialmente insignificante para aquela realidade social. Fui, portanto, desafiada a conformá-lo como um objeto de pesquisa interessante para meus novos leitores. Arisco afirmar que tal aceitação se deu - como a boa dica que Bourdieu postulou - pelo ângulo imprevisto dado ao objeto, qual seja: a cultura escolar na ENBA entre “tradição” e “modernidade.” Todas as novas informações encontradas foram sendo associadas à bibliografia sobre o período, construindo uma base forte para formular problemas e inquerir verdades cristalizadas, como o “pintor do Nordeste” ou a acunha “artista acadêmico,” frequentemente atribuída à sua fase de formação como aluno livre na ENBA.

11.   Gabriela Pessoa, em seu trabalho sobre um contemporâneo a Raimundo Cela, o alagoano Virgílio Maurício (1892-1937), ao se referir aos artistas “’esquecidos” pela historiografia da arte produzida no final do século XIX e início do XX, destacou o seguinte aspecto:

12.                                 Muitos fatores concorrem para que este esquecimento seja levado adiante, como a desvalorização de determinado estilo artístico em detrimento de outro, relacionado, por sua vez, a uma renovação do gosto artístico ou a imposição de novas correntes que acabam por tomar a frente daquelas que a precederam no cenário artístico. Na melhor das hipóteses, os trabalhos esquecidos passaram a ser enfileirados nos espaços das reservas técnicas de museus e instituições culturais, sendo este, ainda, um destino digno. Estas obras de artistas esquecidos ou negados, normalmente, tendem a se perder, assim como o nome de seus criadores.[11] 

13.   O caso de Raimundo Cela não é muito diferente. Tomadas as devidas peculiaridades das trajetórias, o olhar para o artista cearense é bastante recente e, assim, não é incomum escutar que o trabalho sobre sua produção ainda está por ser feito. De fato, em termos acadêmicos, são poucas as referências que conformaram Raimundo Cela como objeto de pesquisa. O sociólogo Delano Pessoa foi um responsável por essa inserção. Seu encontro com o artista se deu no ano de 2007, a partir do contato com o livreto de autoria do artista plástico cearense Estriga, intitulado Contribuição ao re-conhecimento de Raimundo Cela, publicado em 1988.[12] Essa referência foi o ponto inicial de uma série de monografias sobre artes plásticas no Ceará, cujo projeto, à época, foi a promoção de edições voltadas para a “preservação de divulgação da nossa memória cultural.”[13] Segundo Estrigas:

14.                                 Raimundo Cela seria, realmente, a figura mais indicada para esta edição inicial. Foi Cela, na sua época, o nosso pintor e gravador de maior projeção, atingindo reconhecimento nacional que o levou aos meios europeus onde completou sua formação artística. [...] Cela não foi, nem tem sido comentado, analisado, criticado e divulgado como deveria ser. E essa insuficiência de referências a sua pessoa o colocar numa situação de desconhecimento e torna difícil de mostrá-lo de maneira mais ampla.[14] 

15.   Não à toa, o título do livro versa a palavra “re-conhecimento,” na tentativa de problematizar as questões referentes ao reconhecimento efetivo da personagem como parte fundamental da construção do campo artístico cearense e nacional, bem como uma espécie de revisitação/revisão dos discursos pouco concretos que até ali existiam sobre os caminhos percorridos pelo artista. Todavia, é importante destacar que, mesmo havendo grande esforço para elucidar novas questões sobre a vida de Cela, como lista de obras, levantamento de dados biográficos por meio de entrevista com familiares e cronologia, a publicação possui tom bastante elogioso e pouco crítico, reproduzindo informações sem pesquisa investigativa mais profunda. Como ponto de partida, o livreto é de grande valia, mas muito já se avançou quanto à vida de Cela.

16.   Antes do aparecimento do primeiro trabalho exclusivamente sobre Raimundo Cela na academia, e além dos textos publicados em folhetos e pequenos catálogos de exposição que ocorriam na capital cearense, menciono duas importantes referências: o livro/catálogo fruto da exposição R. Cela. Luz: natureza e cultura (1994), realizada no Centro Cultural do Palácio da Abolição, em Fortaleza;[15] e a publicação do livro/catálogo, ou raisonné, intitulado Raimundo Cela (1890-1954), de 2005, organizado pelo marchand e proprietário das Edições Pinakotheke Max Perlingeiro. No primeiro, além da catalogação das obras expostas na mostra, é possível encontrar textos que trazem novos aspectos para a análise da obra de Cela, como, por exemplo, o texto de abertura escrito pelo então Secretário da Cultura do Ceará, Paulo Linhares, e o conceito de “pintura solar” na obra do artista cearense. Também foi realizada uma entrevista com o artista e historiador da arte Quirino Campofiorito, destacando a atuação de Raimundo Cela como professor da ENBA nos primeiros anos da década de 1950 e se reproduziu de modo integral a tese intitulada: Perspectivas das sombras-solares,[16] apresentada à ENBA, em 1949, para ocupar a cadeira de Perspectiva, Sombras e Estereotomia. Além desses, o livro/catálogo contou com outros textos interessantes:

17.   O primeiro texto do conjunto, intitulado A Academia, é de autoria de Adir Botelho. O autor comenta sobre a gravura do seu professor na ENBA. O segundo, História alegre de um homem triste, cujo autor é Renato Sóldon, trata das tensões vividas por Cela diante das dificuldades encontradas ao exercer a profissão de engenheiro, professor e artista. No terceiro texto, Fortaleza contemporânea de Cela, Estrigas buscou situar Cela em relação à Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), num diálogo com a produção pictórica local. Os três textos mencionados estão na primeira parte do livro/catálogo. Na segunda parte, intitulada Fortuna Crítica foram publicados os textos: Sentimento estético, traço e concepção, de Otacílio de Azevedo; Tradição e Renovação, de Henrique Barroso; Revelação de Raimundo Cela ao grande público, de Jean Pierre Chabloz; Paisagem europeia na cultura brasileira, de Oswaldo Teixeira; Cela, o pintor do Nordeste, de Almir Pinto; Curvas de ondas e gestos heroicos, de Herman Lima; por fim, Raimundo Cela: um pioneiro esquecido, de José Roberto Teixeira Leite.[17]

18.   Já o trabalho organizado por Max Perligeiro, segundo Delano Pessoa, é um marco para a trajetória de Raimundo Cela e menciona o seguinte histórico da publicação:

19.                                 O Catálogo Racional, como prefere chamar Max Perlingeiro, “é a coisa mais importante que o artista pode deixar. Geralmente é. E a forma de eternizar um artista é concentrar tudo aquilo que ele produziu numa única fonte”. Nele, estão incluídos, praticamente, todos os textos publicados ao longo dos anos, em livros, catálogos, jornais e revistas, nos quais foi abordada a trajetória do artista e a fortuna crítica de suas obras, bem como a reprodução de todos os trabalhos de Cela localizados em instituições e coleções particulares até 2004.  O desejo de produzir um livro dessa envergadura data do período em que Max Perlingeiro, por volta de 1979 a 1982, começou a se debruçar com mais profundidade sobre as obras do artista, como também, a partir das exposições realizadas com a sua curadoria, na Galeria Multiarte e noutras instituições.[18] 

20.   O livro/catálogo conta com textos de autoria do historiador da arte Fábio Magalhães; do artista plástico Estrigas; do aluno de Raimundo Cela, Adir Botelho, e do artista plástico e crítico de arte Cláudio Valério Teixeira. Além dos textos, a publicação reuniu muitas fontes biográficas, como a reprodução das cartas enviadas ao pai entre os anos de 1913 e 1922 e fontes imagéticas, como a organização de toda a obra de Raimundo Cela em catálogo dividido em pintura, desenho e gravura. Também foram reproduzidos os demais trechos bibliográficos que se referem à personagem, retirados de catálogos de exposição e livros de história da arte brasileira. A união de todo esse material conforma, sem dúvida, a fonte de pesquisa mais completa e indispensável para aqueles que buscam hoje saber sobre a vida e a obra de Raimundo Cela.

21.   Quanto aos trabalhos acadêmicos sobre a personagem, destaco que a monografia de especialização intitulada: O “pintor do Nordeste”: a narrativa/pintura de Raimundo Cela,[19] defendida por Delano Pessoa Barbosa, foi o ponto de partida de uma trajetória investigativa que completou 10 anos em 2017. Ao longo de uma década, o sociólogo se debruçou sobre a vida e a obra do artista cearense, trazendo elementos inéditos para a discussão em torno da personagem. Já em sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará, Delano Pessoa abordou a produção artística de Cela durante as décadas de 1930 e 1950, sobretudo no que diz respeito à construção visual do litoral e de seus trabalhadores, relacionando, assim, a fatura do artista às matrizes cientificistas vigentes à época de suas produções de pintura de marinha e paisagem litorânea. Usando do aporte teórico elucidado por Bourdieu sobre trajetória, Pessoa esquematizou dados da vida de Cela a partir das seguintes travessias: entre Camocim e Saint-Agrève; construção da Paisagem Litorânea, e litoral entre olhares, retomando o argumento que construiu em sua monografia de especialização, sobre as mudanças discursivas que conformavam os traços de regionalidade do nordeste do sertão em detrimento do litoral.

22.   A partir desse trabalho, Delano Pessoa participou de importantes reuniões científicas, sobretudo, no campo da História da Arte e da Sociologia, movimento que inseriu Raimundo Cela efetivamente aos debates sobre a arte produzida no entresséculos.[20] Em sua tese de doutorado, defendida em 2017 pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, o pesquisador se debruçou sobre a circulação das obras de Raimundo Cela, sobretudo após o seu falecimento, em 1956. O estudo tem como objetivo, por meio da análise dos catálogos de exposições individuais e coletivas (tratados pelo sociólogo como objeto e também como fonte), compreender a produção artística da personagem ”após o próprio Cela”. O intento, de certa forma, constrói a história da assinatura “R. Cela” nos mundos da arte. Texto bastante informativo, traz aspectos inéditos da circulação das imagens das obras de Raimundo Cela e os principais agentes que tangenciam os “valores simbólicos” do trabalho da personagem entre o aspecto local e o nacional.

23.   Recentemente, a dissertação intitulada Arte e Geografia: a análise da paisagem litorânea em Raimundo Cela (2016) foi defendida por Karla da Silva Almeida, no Mestrado Acadêmico em Geografia da Universidade Estadual do Ceará. O trabalho teve como principal objetivo analisar a paisagem litorânea através da obra de Raimundo Cela, entre os anos de 1929 e 1941. Usando da literatura da iconografia da paisagem, estabeleceu os diálogos entre a geografia e a arte, ao centrar discussão na construção de “paisagens sob a ótica geográfica cultural, admitindo a interdisciplinaridade com a arte, como uma forma para expressar as percepções geográficas. Deste modo, almejamos a compreensão da obra de Cela na qual caracteriza-se como um registro geográfico e cultural de um período vivido pelo pintor na cidade de Camocim, no Ceará.[21]  

24.   Durante a graduação em História, realizei trabalho monográfico (2013) sobre a construção do campo artístico no Brasil a partir da institucionalização das práticas de ensino à época da chegada da chamada Missão Artística Francesa e da implantação da Academia Imperial de Belas Artes. Num dos capítulos, me dediquei à Escola Nacional de Belas Arte e à trajetória de Raimundo Cela, a fim de mapear as principais disputas no campo artístico da época, entre o que chamei de “academismo” e o “reformismo.”[22] Esse exercício foi a base para a continuação da pesquisa no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de São Paulo, em que o conceito de cultura escolar no âmbito da ENBA veio acrescentar ao debate da institucionalização da arte no Rio de Janeiro e a trajetória de Raimundo Cela como aluno livre e praticante dessa ambiência escolar.

25.   Ao longo desses últimos anos, venho participando de eventos gerais em História e especializados em História da Arte, fato que insere cada vez mais a personagem na historiografia da arte da Primeira República e na História da Arte brasileira. Percebo que a assinatura “R. Cela” não é tão estranha aos ouvidos dos pesquisadores e pesquisadoras como no início da pesquisa. Durante esse tempo, uma das maiores contribuições que proponho é a de pensar as noções de arte nacional ou sobre carreiras individuais de artistas a partir de seus próprios processos formativos, institucionalizados ou não. Abraçar noções tautológicas e até mesmo anacrônicas sobre a vida dos artistas e consequentemente, de suas obras, conforma uma História da Arte baseada em achismos e pobre no exercício crítico do olhar para as próprias obras de arte. Ao debruçar-me sobre as evidências - ou seja, os registros da passagem de Raimundo Cela num dado espaço/tempo, aliado, obviamente, ao teto imaginativo que a narrativa histórica também demanda -, tem-se base forte para inquerir, problematizar e até promover afirmações sobre o que está sendo objetivado: a cultura escolar no âmbito da ENBA.

Referências bibliográficas:

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PINTO, Almir. Cela o pintor do Nordeste. Catálogo da Exposição Póstuma Raimundo Cela, 1956. In: Raimundo Cela (1890-1954). Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 2004, p. 139-142.

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[1] PINTO, Almir. “Cela o pintor do Nordeste”. Catálogo da Exposição Póstuma Raimundo Cela, 1956. In: Raimundo Cela (1890-1954). Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 2004. p. 139-142.

[2] Instrumentos de conhecimento e de comunicação entre o mundo social; integram e reproduzem uma definida ordem, conformando consensos e meios de dominação social. Ver: BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 9-10.

[3] ARAÚJO, Vera Rozane. A. F. A trajetória de Raimundo Cela e a cultura escolar da ENBA (1910-1930). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de São Paulo, 2017.

[4] A natureza morta foi adquirida a partir da venda realizada por um grupo de trabalhos à Universidade Federal do Ceará, por Eunice Medeiros Cela, esposa do artista. No documento referente à venda, segue a descrição da obra como: “natureza morta- trabalho do artista aos 12 anos de idade. Valor inestimável.” Essa informação vem sendo reproduzida nos catálogos em que a obra veio a ser exposta - cito, por exemplo, o de 1956, quando da primeira exposição individual sobre o artista após a sua morte. Todavia, em 2016, em exposição retrospectiva, uma nova informação surgiu. Segundo a curadoria: “Esta obra [natureza morta] é considerada uma das primeiras pinturas de Raimundo Cela. Presume-se que tenha sido realizada durante seus primeiros anos de estudo na Escola Nacional de Belas Artes”. Consultar pasta referente à trajetória de Raimundo Cela no acervo do Museu de Arte da UFC, material reproduzido e cedido pelo pesquisador Delano Pessoa, e Raimundo Cela: um mestre brasileiro. Catálogo de Exposição. Curadoria Denise Mattar. São Paulo: Museu de Arte Brasileira (MAB/FAAP), 2016.

[5] Se analisada de maneira mais cuidadosa, a ideia da existência do “dom” - uma aptidão inata ao fazer artístico, em Cela ou em qualquer outra personagem - é problemática. Essa noção teleológica busca explicações para acontecimentos do futuro a partir de dados do passado, dando à vida da personagem um aspecto evidente, linear. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaína (coord.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006. p. 185.

[6] Antônio Martins Filho afirma que, na primeira década do século XX, no Ceará, não existia nenhuma escola de ensino superior. A primeira a ser fundada foi a Faculdade de Direito, em 1912, seguida da Escola de Agronomia do Ceará, em 1918. Todavia, Fernando de Azevedo, ao abordar o processo de descentralização do ensino superior no início do século XX cita a criação de faculdades livres de Direito, sendo, uma delas, em Fortaleza, no ano de 1907. Ver: MARTINS FILHO, Antônio. Uma Universidade para o Ceará. In: Revista do Instituto do Ceará. Anno LXIII, 1949; e AZEVEDO, Fernando de. A Cultura Brasileira [1943]. São Paulo: Edusp, 2010. p. 672.

[7] ARAÚJO, op. cit, 2017.

[8] BOURDIEU, Pierre. Introdução a uma sociologia reflexiva. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 20.

[9] Ibidem. p. 36.

[10] Ibidem. p. 20.

[11] OLIVEIRA, Gabriela Rodrigues Pessoa de. Entre pinturas e escritos: aspectos da trajetória de Virgílio Maurício (1892-1937). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Estudos Brasileiros. Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2016. p. 13.

[12] ESTRIGAS [Nilo de Brito Firmeza]. Contribuição ao Reconhecimento de Raimundo Cela. Fortaleza: Edições Tukano, 1988.

[13] VASCONCELLOS, Ignês Medeiros de. Primeira Página. In: Ibidem.

[14] Conforme apontou Delano Pessoa: “De um modo geral, um catálogo de exposição apresenta a lista das obras expostas, a cronologia do artista, um ou mais textos de críticos sobre os trabalhos e as reproduções de obras expostas. No que se refere ao livro/catálogo, além das informações presentes num catálogo, traz também um conjunto de textos produzidos e fac-símiles de textos já publicados em outros materiais (esses devidamente autorizados pelos autores e editores). Outra diferença diz respeito ao formato da edição. Esta costuma ser em tamanho maior do que a dos catálogos comuns, deixando de ser uma brochura” (BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. Catálogos de exposição: a circulação das obras de Raymundo Cela. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2017, p. 158-159).

[15] Segundo Delano Pessoa: “Finalizadas as comemorações dedicadas ao [centenário de] nascimento Raymundo Cela, no ano de 1994, foi realizada, em Fortaleza, a exposição R. Cela: luz, natureza e cultura, no Centro Cultural do Palácio da Abolição. A mostra com pinturas, desenhos e gravuras do artista, fez parte do projeto implementado pelo então secretário da cultura Paulo Linhares, cujo objetivo era ‘recolocar o Ceará na rota das grandes exposições de artes plásticas’” (BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. Catálogos de exposição: a circulação das obras de Raymundo Cela. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2017, p. 156).

[16] CELA, Raimundo Brandão. Perspectivas das sombras Solares. Tese de Concurso para a Cadeira de Perspectiva, Sombras e Estereotomia da Escola Nacional de Belas Artes. Universidade do Brasil: Rio de Janeiro, 1949.

[17] BARBOSA, op. cit, p. 160.

[18] Ibidem. p. 180.

[19] BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. O ‘pintor do Nordeste’: a narrativa /pintura de Raimundo Cela. Monografia de Especialização. Especialização em Teoria e Metodologia da História. Universidade Estadual Vale do Acaraú: Sobral, 2007.

[20] BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. Anatomia das formas: o estudo da cabeça como ponto de partida para construção visual dos trabalhadores litorâneos na pintura de Raymundo Cela. In: MALTA, Marize; PEREIRA, Sonia Gomes; CAVALCANTI, Ana (org.). Ver para Crer: visão, técnica e interpretação na Academia. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2013, p. 227-231; BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. Da Pintura de Marinha à Paisagem Litorânea: a construção visual de Raymundo Cela (1930-1950). BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. MALTA, Marize; PEREIRA, Sonia Gomes; CAVALCANTI, Ana (org.). Novas perspectivas para o estudo da arte no Brasil de entresséculos (XIX/XX): 195 anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2012, p. 101-108; BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. A Sala Raymundo Cela do Museu de Arte da UFC (MAUC). In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado, RAMOS, Francisco Régis Lopes (org.). Futuro do Pretérito: Escrita da História e História do Museu. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010, p. 218-235; e BARBOSA, Delano Pessoa Carneiro. De longe e de perto: o paradigma acadêmico na pintura de Raymundo Cela. In: MALTA, Marize (org.). O ensino artístico, a história da arte e o museu D. João VI. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2010, p. 277-286.

[21] ALMEIDA, Karla Maria da Silva. Arte e Geografia: a análise da paisagem litorânea em Raimundo Cela. Dissertação de Mestrado. Mestrado Acadêmico em Geografia. Programa de Pós-graduação em Geografia. Universidade Estadual do Ceará: Fortaleza, 2016.

[22] ARAÚJO, Vera Rozane A. F. Por um espaço para a arte no Brasil: a Escola Nacional de Belas Artes e a construção do campo artístico no país (1816-1930). Monografia. Departamento de História. Universidade Federal do Ceará: Fortaleza, 2013.