O olhar distante e o próximo - a produção dos artistas-viajantes

Miguel Luiz Ambrizzi [1]

AMBRIZZI, Miguel Luiz. O olhar distante e o próximo - a produção dos artistas-viajantes. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla2.htm>

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I - OS ARTISTAS-VIAJANTES - UMA INTRODUÇÃO

Encontramos registros gráficos, pictóricos e literários produzidos no Brasil desde o período colonial. Missionários de Portugal, naturalistas, cientistas e artistas da Holanda, França, Áustria, Alemanha, entre outras nações organizaram-se em expedições e vieram ao Brasil com os mais diversos motivos: desbravar terras ainda não habitadas, explorar as riquezas naturais dos trópicos, coletar informações sobre os habitantes, a fauna e a flora brasileira, dentre outros mais. Estes viajantes mostraram curiosidade e espanto diante do mundo novo que descobriram.

Através destas visualidades podemos ver o Brasil descrito de uma forma minuciosa em diversos aspectos. Representações da natureza, dos costumes dos seus habitantes e registros de espécimes vegetais e animais realizados por esses artistas e cientistas fizeram chegar até nós uma demonstração de como foi a vida brasileira desde a sua descoberta até o final do Império.

Historicamente, vemos que, em 1555, estabelece-se na baía de Guanabara uma colônia francesa chefiada por Nicolas Durand de Villegagnon, com os geógrafos André de Thevet e Jean de Léry, que produziram obras geográficas extraordinárias. No século XVII (1630), os holandeses chegam à Capitania de Pernambuco. Comandados por Maurício de Nassau (governador, capitão e almirante-general), os artistas Albert Eckhout e George Marcgraff, além de geógrafos, médicos, engenheiros, geômetras e botânicos, estabelecem-se na região.

Entre 1783 e 1792, o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira e os ilustradores José Joaquim Codina e José Joaquim Freire realizam a Viagem Filosófica ao Amazonas[2].

No início do século XIX o Brasil abre seus portos às nações amigas, o que possibilitou a entrada de um grande número de estudiosos no país. Neste período ocorre então a Missão Austríaca, da qual participaram o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius e os zoólogos Johann Baptiste von Spix[3] e Johann Natterer, acompanhados por desenhistas, entre eles Thomas Ender[4], e assistentes.

Em 1816, a convite da Corte portuguesa, chega ao Rio de Janeiro a Missão Artística Francesa, chefiada por Joaquim Lebreton, e composta por um grupo de artistas, entre os quais os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas Antoine Taunay, os escultores Auguste Marie Taunay, Marc e Zéphirin Ferrez e o arquiteto Grandjean de Montigny[5].

O francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu o país no período de 1816 a 1822. Visitou as regiões de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Sua última viagem foi à província do Rio Grande do Sul, a qual se constituiu na primeira expedição botânica a esta região do país.

É dentro deste contexto que nos anos de 1822 a 1829, chefiados pelo Barão George Heinrich von Langsdorff[6], os artistas João Maurício Rugendas, Aimé Adriano Taunay e Hércules Florence[7], juntos com outros cientistas, percorreram as regiões de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo. Seus objetivos eram desbravar as terras brasileiras, catalogar as espécies naturais, grupos étnicos e costumes. Esse projeto científico resultou em uma grande quantidade de diários, coleções de objetos e espécies naturais, desenhos e aquarelas.

Ao tomarmos essas produções ao longo dos séculos XVI a XIX, surgem algumas questões: como podemos definir a produção dos artistas-viajantes? Haveria uma definição? Quais características são identificáveis nas obras visuais (desenhos, pinturas, gravuras) que constituiriam o que chamamos de arte dos viajantes?

No decorrer do texto percorremos a questão da representação para verificar qual é o conceito que está presente no trabalho dos artistas-viajantes. Há algum padrão de representação? Se sim, que padrão é esse e como ele se define? Questões que levaram à investigação de qual foi a orientação dessas representações, o que se representava e como.

Outra questão se refere ao trabalho específico do artista-viajante, para pontuar de que forma arte e ciência se relacionavam nas produções desses artistas e investigar como se constroem os olhares: o distante e o próximo, o olhar naturalista (científico) e o olhar da paisagem, o que permitiu encontrar como estas revelam o olhar estrangeiro.

II - ARTISTAS-VIAJANTES (XVII-XIX) E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR ESTRANGEIRO SOBRE O BRASIL

Com a abertura dos portos no início do século XIX, várias expedições científicas começaram a vir ao Brasil como a Missão Austríaca e a Missão Artística Francesa, entre outras expedições e viajantes.

A que vieram esses artistas viajantes e naturalistas estrangeiros ao Brasil? O que viram? O que sentiram? O que ficou registrado através de sua arte? Como desvendar o olhar dos artistas estrangeiros dirigidos para a Terra Brasilis?

Que tipo de representação estava presente no trabalho desses artistas viajantes: havia algum padrão de representação? Se sim, que padrão era esse? O que orientava essas representações? O que era representado e como?

Essas são algumas questões que guiam este texto que pretende apresentar, de uma forma sintética, a produção de alguns artistas e cientistas viajantes estrangeiros que vieram ao Brasil do século XVII ao XIX.

Se nos debruçarmos sobre os acervos de grandes colecionadores e de museus brasileiros e do mundo para identificarmos os registros visuais que foram produzidos por artistas e cientistas viajantes encontraríamos uma impressionante quantidade de obras que nos trazem informações e testemunhos de épocas, com a produção de imaginários multifacetados na ordenação de uma certa identidade do Brasil.

Centenas de viajantes que passaram pelas entranhas das terras brasileiras, que percorreram enormes distâncias procurando descobrir o novo, as novas espécies, novas topografias, exploraram e vivenciaram grandes experiências com o intuito de desenvolver o conhecimento científico a respeito destas terras. Os resultados destas viagens - visões do Novo Mundo - foram materializados em crônicas, diários de viagens, pinturas, gravuras, desenhos, mapas, dentre outros recursos.

Com a reprodução da natureza, dos costumes dos seus habitantes e o registro de espécimes vegetais e animais, esses artistas e cientistas fizeram chegar até nós uma demonstração de como foi a vida brasileira desde a sua descoberta até o final do Império.

No entanto, Belluzzo observa que

esse legado iconográfico, assim como a literatura de viagem dos cronistas europeus, só pode dar a ver um país configurado por intenções alheias. Não basta reconhecer que eles escreveram páginas fundamentais de uma história que nos diz respeito. O olhar dos viajantes espelha ademais as condições de nos vermos pelos olhos deles (BELLUZZO, 1994, p. 8).

Desta forma, temos a difícil questão muito debatida pela História, na qual se discute a forma como a História do Brasil foi contada e escrita, pois durante muito tempo a nossa história foi comandada pelos colonizadores que aqui chegaram e, junto com eles, “as obras configuradas pelos viajantes engendram uma história de pontos de vista, de distâncias entre modos de observação, de triangulações do olhar” (BELLUZZO, 1994, p. 8).

Mario Carelli, no seu texto Os pintores viajantes transmissores de diferenças nos diz que as imagens produzidas pelos viajantes, “em sua dimensão iconográfica, dizem muito ao mesmo tempo sobre o Brasil e sobre o olhar europeu. Elas nos permitem completar o estudo da ‘confrontação de olhares’” (CARELLI. 1994, p. 71).

Assim como este autor, Belluzzo também ressalta este mesmo aspecto da produção ao nos dizer que “mais do que entrever o Brasil deixam ver o europeu. Mais do que enxergar a vida e a paisagem americana, levam a focalizar a espessa camada da representação. Evidenciam mais versões do que fatos” (BELLUZZO, 1994, p. 8).

Mas, afinal, como podemos definir a produção dos artistas-viajantes? Haveria uma definição? Quais características são identificáveis nas obras, aqui especificamente, visuais (desenhos, pinturas, gravuras) que constituiriam no que chamamos de arte dos viajantes? De uma coisa sabemos, essa atração pelos trópicos não interessou somente aos naturalistas (para aprimorarem seus trabalhos científicos), mas também aos “artistas, em busca do exotismo e do insólito” (CARELLI, 1994, p. 72).

Como afirma Pinheiro (2000), em seus “diálogos interconexos”, as contaminações do campo científico pelo artístico, e vice-versa, não são apenas características das produções recentes em arte e ciência. Elas já estão explicitadas nas estratégias de produção das imagens desde o período das Grandes Navegações - do século XVI ao XIX, com a exploração das fronteiras planetárias. O artista, contratado para trabalhar nas expedições científicas, podia usar a observação científica como leitmotiv para a exploração formal bem como a ciência se fez valer da arte para a obtenção de diferentes meios de registro da realidade.

De acordo com Pinheiro,

voltando os olhos para o passado, vejo que essa aproximação não é tão nova assim, nem de uma parte, nem de outra. O que seriam os antigos registros pictóricos dos viajantes europeus nas terras distantes: Pintura? Etnografia? Ciências Naturais? A arte usava como motivo a observação científica, e a ciência usava a arte como registro, como instrumento. Temos, portanto, a arte falando de antropologia, a antropologia usando a arte como instrumento, e ainda a antropologia falando de arte enquanto objeto de estudo (2000, p. 129).

A arte produzida por estes artistas tinha como matéria a exploração do material etnográfico e, portanto, acabava falando de uma “certa antropologia” a partir de suas investigações formais. Por sua vez, as expedições científicas faziam dos artistas e de suas técnicas de registro da realidade um instrumento técnico para o desenvolvimento das pesquisas. E, posteriormente, as próprias reflexões do campo teórico irão tomar estas obras como documentos do passado, falando de arte do ponto de vista das relações culturais.[8]

Esta questão levantada por Pinheiro encontra-se apontada no estudo monográfico de Oliveira e Conduru (2004). Para estes autores, que estudaram uma série de pranchas com representações coloridas de barbeiros, estamos diante de um problema nos relacionamentos entre arte e ciência. Se, na atualidade, como aponta Pinheiro (2000), estas interconexões parecem resultar em produtos artísticos reconhecidos, no passado, o julgamento por parte da ciência poderia destinar ao limbo as obras com excessivo caráter artístico e pouco caráter científico. Se hoje temos uma interconexão, no século XIX havia mais uma negociação mediada por categorias científicas. Se hoje o artista se apropria da ciência para o estético, no passado a ciência fazia o uso técnico do saber artístico. Como apontamos, estas atitudes apropriativas do artista, e mais liberadas em relação aos moldes científicos para a produção das imagens, podem resultar na exclusão das imagens, no seu ocultamento tanto para a ciência quanto para a arte (OLIVEIRA e CONDURU, 2004), bem como na separação entre artista e naturalista, aos moldes das relações tensas encontradas na expedição Langsdorff.

Nestes termos, o comentário de Belluzzo aponta um dos caminhos para estas questões:

As imagens elaboradas pelos viajantes participam da construção da identidade europeia. Apontam os modos como as culturas se olham e olham as outras, como imaginam semelhanças e diferenças, como conformam o mesmo e o outro. Diferentes e irredutíveis pontos de vista criam uma alucinante memória de muitos brasis. O imaginário derivado da relação colonial europeia é introjetado como imagem do Brasil, contribuindo para formar nossa dimensão inconsciente. A questão dos diferentes pontos de vista permanece atual, na medida em que persiste o discurso sobre o aqui e o lá, revestido do debate entre o centro e as margens, e na medida em que se atualiza em abordagens contemporâneas que reafirmam a condição intercultural, inerente ao material estudado (BELLUZZO, 1994, p. 8).

No decorrer dos séculos, os inúmeros viajantes que percorreram o Brasil registrando o que viam produziram uma grande quantidade de documentos escritos e visuais que carregam uma variedade de imaginários, de olhares e de relações que se estabeleceram no período de suas permanências nestas terras. Porém, Belluzzo ressalta que

embora as representações estudadas sejam constituídas de modo tão diversificado, assemelham-se na medida em que revelam aspectos de um país de cultura dependente, sob a forma de fragmentos, que, por sua vez, compõem outras histórias. Não somos os autores e nem sempre os protagonistas. Fomos vistos, não nos fizemos visíveis. Não nos pensamos, mas fomos pensados. Ainda assim, a contribuição dos viajantes forja uma possível memória de passado e povoa nosso inconsciente (1994, p. 9).

Uma outra autora que contribui para nossa reflexão acerca das viagens e dos relatos dos viajantes é Flora Süssekind. Esta afirma que a viagem “é ocasião para o aprendizado” que se dá através da experiência e do “contato direto com as coisas do mundo” (1990, p. 110). Em O Brasil não é longe daqui - o narrador, a viagem, a autora acrescenta que nestes relatos pertencentes às expedições científicas “o narrador já parece iniciar o trajeto formado, com sólidos conhecimentos de ciências naturais que apenas testa e amplia diante de novos espécimes e terras desconhecidas(idem). Portanto, aqui o aprendizado não é de si mesmo, “mas da própria capacidade de resistência e trabalho mesmo em condições por vezes bastante adversas(idem). A viagem possibilita o conhecimento do novo, de outras culturas, de outros locais, de novas relações[9].

Sobre a questão da viagem e das obras dos viajantes Belluzzo acrescenta que:

Pode-se afirmar a existência de uma estética condizente com pontos de vista de viajantes. A viagem sempre foi um meio eficiente, melhor dizendo, um método pelo qual o sujeito deixa o âmbito cotidiano e a esfera do mesmo para experimentar o outro ponto de vista, outra visão, quer desvendando a diversidade do mundo, quer colocando em confronto o universo interior e exterior (1994, p. 34).

Para Belluzo, “o viajante preza a experiência de partir, de dividir, de alternar, que experimenta sucessivamente em detrimento da vivência do contínuo e do permanente” (1994, p. 34). A autora afirma que

a viagem “romântica” não leva só à prática da visão do outro, tira proveito da emoção das rupturas, do se perder e do se encontrar. Treina um conhecimento por pontos de vista alternados, desenvolve a capacidade de entrar e sair do assunto, de ver a partir de fora e a partir de dentro. Enfim, condiz com a visão de múltiplos pontos de vista, individuais e culturais (idem).

Contudo, os viajantes naturalistas não podem ser simples espectadores, tal como nos explica Miriam Moreira Leite em A documentação da literatura de viagem. Este viajante devia ser um ator de passagem, observador atento da realidade, exercitando diante dela a arte de pensar, desprendendo-se de seu mundo imaginário, para dirigir a atenção ao verdadeiramente útil(MOREIRA LEITE, 1984, p. 25)[10].

Os resultados dessas viagens, as obras e relatos dos atentos viajantes contribuíram para a história cultural, para as artes e para as ciências. Durante as viagens temos “roteiro imperioso, paisagem útil, classificações, notas, desenhos feitos de imediato. Nada apenas de passar pelos lugares”. Para estes viajantes “era preciso aumentar sempre as coleções, tentar instruir eventuais colaboradores na preparação de vegetais e animais para os futuros estudos da História Natural”. E, além disso, também “apresentar sugestões para o país - desde agrícolas a educativas ou literárias -, defender os povos naturais” (SÜSSEKIND, 1990, p. 116).

Os artistas-viajantes não produziam somente desenhos, pinturas e esboços. Várias pranchas produzidas por eles são acompanhadas de anotações que, por vezes, de tão minuciosas, transformaram-se em verdadeiras anotações de diário, um registro escrito do que o artista acabara de pintar. Estes escritos são, em sua maioria, técnicos, classificatórios, são informações científicas que pretendem ressaltar os interesses de tal registro. Porém, em algumas poucas aquarelas e desenhos destes pintores podemos encontrar um outro olhar que não o do naturalista funcionando como ponto de mira para as paisagens” (SÜSSEKIND, 1990, p. 116). Observemos a anotação de Rugendas durante a execução de um trabalho [Figura 1] em sua visita à cachoeira de Ouro Preto:

Azul-escuro e muito transparente, nas nuvens [...] tonalidade vermelho-cinza do poente. Montanhas no plano posterior-ultramarino, pico montanhoso alongado amarelo [...] rochas de montanha alta [...] (apud SÜSSEKIND, 1990, p. 120). [11]

Não encontramos anotações geológicas ou botânicas, classificações de espécies, mas sim informações ligadas “à cor e à luz ou do momento exato em que a desenhava ou a serem utilizadas caso viesse a pintá-la” (SÜSSEKIND, 1990, p. 120). Süssekind explica que seria como que o artista “por um momento, desarmado o olhar, tivesse de fato visto a paisagem”. Ela afirma ainda que seria como se ele a percebesse

não atemporalizada, como se nas generalizações e sistemas de classificação, mas presente, perceptível com aquela luz e aquelas cores exatas apenas naquele instante preciso. Daí, de um lado, o registro rápido a lápis, sem cor, sem muitas sombras, e de outro, a anotação cheia de reticências, do que de fato parece impressioná-lo. Aquela paisagem corriqueira, sem nada de especial a destacar, mas que, sob determinada luminosidade do poente, detém seu olhar e o obriga a registrá-la, assim mesmo, por escrito, como rápida epifania em meio ao cotidiano do viajante (SÜSSEKIND, 1990, p. 120).

E, em algumas situações, as poucas informações escritas que acompanham as imagens as legitimam, como podemos observar em Hércules Florence, artista da Expedição Langsdorff:

Depois de expor em detalhes uma paisagem, Florence acrescenta a seguinte notação ao seu diário: “O senhor Taunay desenhou esta bela paisagem e voltamos à chapada”. Como quem diz: se a descrição parecer insuficiente, recorra ao desenho; ou, se quiser certificar-se da fidelidade da descrição por escrito, compare-a à sua “duplicata” plástica. De que se encarregava muitas vezes o próprio relator da viagem (SÜSSEKIND, 1990, p. 147)[12].

Segundo Carelli (1994, p. 73), a maior parte dos artistas-viajantes prefere as anotações das “singularidades brasileiras ao subjetivismo inflamado”. Para ele, “praticando a arte da viagem sentimental, eles propõem pinturas agradáveis de hábitos estrangeiros e de costumes desconhecidos”. Para este autor, a arte dos viajantes teria como regra geral, na sua “abordagem documentária”, o “realismo” como prioridade. Encontramos em seu ofício um estudo interdisciplinar, pois o “pintor viajante é frequentemente geógrafo, naturalista e mesmo historiador”.

Tal como nos diz Flora Süssekind,

lições de botânica, inventários de costumes (cavalhadas, batuques, queimadas de Judas, festas do Divino), lugares (vendas, fazendas, vilas, quilombos, igrejas, minas, aldeias), tipos (o tropeiro, o escravo rural e o urbano, o moleque, a mulher guardada a sete chaves, o fazendeiro, o gaúcho, o padre, o vendeiro, o índio), vistas (cachoeiras, matas cerradas, grutas, sertão, litoral): é esse “viajante previdente” que dá a ver e treina o modo de ver a paisagem brasileira de seus aprendizes locais. Marcando-se, nos relatos desses viajantes ilustrados, simultaneamente um ponto de mira, um traçado de mapa e uma paisagem natural a ser atemporalizada e etiquetada “Brasil” (1990, p. 149-150).

Assim, as tensões negociações permanentes entre artistas e cientistas desdobram-se, no artista, nas relações que duplicam a condição do olhar e o entremeio entre o olhar naturalista - esperado pelos cientistas - e o olhar da paisagem - encontrado pelos artistas. A paisagem era também o ponto de encontro entre as descrições textuais, tanto do tipo naturalísticas (científicas) quanto do tipo artísticas. Assim, vimos enunciar-se um problema de contemplação em meio ao universo da observação, numa oscilação permanente entre o desejo documentário (descrever, contextualizar) e o desejo de atemporalidade (a imagem contemplativa da paisagem “brasileira”).

Sobre a questão da paisagem Burke diz que

se a paisagem física é uma imagem que pode ser lida, então a paisagem reproduzida numa pintura é a imagem de uma imagem. [...] No caso da paisagem, árvores e campos, rochas e rios, todos esses elementos comportam associações conscientes ou inconscientes para os espectadores. Devemos enfatizar que nos referimos a observadores de determinados lugares e períodos da história. Em algumas culturas a natureza selvagem é detestada e até temida, enquanto em outras ela é um objeto de veneração. Pinturas revelam que uma variedade de valores, incluindo inocência, liberdade e o transcendental, foi toda projetada na terra (BURKE, 2004, p. 53-54).

Esta atemporalidade procurada e identificada ao exercício de uma estética do sublime kantiano deve ser, num estudo historiográfico e de revisão de fontes, remetida à sua recontextualização.

Assim, na produção de imagens e textos acerca da paisagem brasileira estarão sendo referidos não somente formas adotadas nos desenhos, esboços, pinturas e notas feitas em diários. Elas remetem a uma experiência do artista em solo brasileiro e a uma conceituação negociada com categorias europeias de apreensão da realidade na qual a própria terra deve ser pensada como objeto de valoração.

Burke nos oferece o exemplo da paisagem pastoral:

Por exemplo, o termo ‘paisagem pastoral’ foi criado para descrever pinturas feitas por Giorgione (c. 1478-1510), Claude Lorrain (1600 -1682) e outros, porque elas expressam uma visão idealizada da vida rural, especialmente a vida de pastores e pastoras, da mesma forma que a tradição ocidental da poesia pastoral a partir de Teócrito e Virgílio. Parece que essas paisagens pintadas acabaram influenciando a forma de percepção das paisagens reais. Na Inglaterra do final do século 18, ‘turistas’ - com o poeta Wordsworth foi um dos primeiros a chamá-los - com guias de viagem na mão, viam a região do Lake District, por exemplo, como se estivessem tratando de uma série de pinturas realizadas por Claude Lorrain, descrevendo-a como ‘pitoresca’. A ideia de pitoresco ilustra um aspecto geral sobre a influência das imagens na nossa percepção do mundo. Desde 1900, turistas em Provence têm vindo para observar a paisagem local como se fosse feita por Cézanne (BURKE, 2004, p. 54).

Para os artistas que viajavam pelo Brasil, o nascimento de uma paisagem, como diz Süssekind (1990), resulta de um jogo entre um olhar previdente e um olhar flutuante, da observação / descrição / documentação e da experiência luminosa e colorida / sensações visuais / atemporalizante. Nas paisagens nascentes, uma certa tipicidade ou simbolismo dos trópicos passa a integrar-se a uma representação do cenário brasileiro.

Nesta representação do “trópico”, como já afirmamos acima, encontram-se amalgamados o interesse geográfico e a representação técnica por meio da arte, mas ainda podemos incluir aqui um senso político da representação simbólica. Assim, as paisagens ou elementos dela podem se tornar meios estáveis de amostragem e de identificação de si e do outro. As diferentes vegetações e populações e as formas pelas quais aparecem organizadas na superfície de representação (papel, tela, madeira) tornaram-se, no caso brasileiro, em símbolos de uma Nação, para si (nacionalismo do romantismo) e para os outros (exotismo dos trópicos para ser reconhecido em diferentes partes do mundo).

II.1 - Recuperando passados: os viajantes, os artistas-viajantes e o Brasil

Desde fins do séc. XV e por todo o séc. XVI predominou na Europa em relação ao Novo Mundo certa visão fantasiosa que se nutria de narrativas extravagantes de viagens imaginárias ou sobrenaturais. Eram ora regiões maravilhosas, onde se situaria o próprio Paraíso Terrestre, ora terras inóspitas despovoadas ou, pior ainda, habitadas por seres monstruosos. Colombo, em carta na qual dava contas do que pudera presenciar em sua viagem de 1492, observava com alívio não ter se deparado com os monstros humanos que muitas pessoas esperavam que encontrasse, mas ao contrário, com uma população “muito bem feita de corpo”.[13]

Segundo Burke,

raças monstruosas podem ter sido inventadas para ilustrar teorias sobre a influência do clima, revelando a pressuposto de que pessoas que habitam lugares extremamente frios ou quentes não podem ser totalmente humanas. Contudo, pode ser esclarecedor tratar essas imagens não como simples invenções, mas como exemplos de percepção distorcida e estereotipada de sociedades remotas. [...] Na medida em que a Índia e a Etiópia se tornaram mais familiares aos europeus nos séculos 15 e 16 nem Blemmiae, Amazonas ou Sciopods puderam ser encontrados, os estereótipos forma realocados no Novo Mundo. (2004, p. 157-158).

É com a memória de Hans Staden que temos os primeiros relatos sobre o Brasil. Segundo Belluzo (1994, p. 12), o texto ilustrado de Staden funda a memória do Brasil e marca o imaginário que se desenvolve através dos viajantes dos séculos XVI e XVII e por meio de publicações ilustradas, com trabalhos de Leo Theodore de Bry [Figura 2][14].

Mas, se verificarmos historicamente, teríamos como um primeiro imaginário dos viajantes, nos primórdios do século XVI, aquele fruto das relações travadas com os índios, constituindo a figura do bom selvagem[15], para a qual a França contribuiu muito, na construção de um mito (BELLUZZO, 1994). Podemos ver nas obras desta época, como as de Jean de Léry (1555) e de André Thevet (1557), o índio nu, atlético, com um referencial das relações proporcionais da Antiguidade, semelhantes às figuras das estátuas gregas [Figura 3] [16].

Dessa visão nostálgica e irreal dos nossos ameríndios travestidos em heróis da Antiguidade Clássica derivam certas representações, nas quais assumem aparência ou postura hercúlea ou apolínea. Corpos bem proporcionados como estátuas gregas, algumas devidas a grandes artistas como Albrecht Dürer e Hans Burgkmair, os quais, logicamente, nunca chegaram a ver um ameríndio de perto. Embora já desde os primeiríssimos anos do séc. XVI começassem a chegar a Portugal e a outros países da Europa, trazidos como bichinhos amestrados pelos colonizadores[17].

Os índios foram apresentados como exemplo do homem universal, o que caracterizaria a visão do bom selvagem, visão de uma terra (do Brasil) associada ao Éden (paraíso). Porém, vemos também nas obras desta época algumas representações que se contrapõem a essa ideia de Éden. Ao entrarem em contato com os índios canibais os viajantes estrangeiros puderam conhecer as nações mais selvagens, ocasionando um forte impacto.

Assim, de todos os costumes dos naturais do Brasil, o que mais chocou e ao mesmo tempo fascinou os europeus, foi a antropofagia [Figura 4]. Por isso, a mais remota representação de indígenas brasileiros é uma xilogravura anônima ilustrativa do Novus Mundus de Vespúcio (c. 1505). Mostra um grupo de canibais, entre eles mulheres e crianças, devorando à beira-mar o corpo de um inimigo que acabaram de assar numa fogueira. A beleza física dos antropófagos, sua longevidade, o fato de andarem despidos, não possuírem propriedade privada ou forma de governo, foram noções todas elas equivocadas ou imprecisas, que só muito mais tarde seriam reformuladas[18] [19].

Esse contato com as tribos canibais deixou uma forte marca nestes viajantes, pois, realmente, esta prática provoca um grande choque com o outro, o estranho[20]. Estes índios, durante muitos anos, causaram medo aos colonizadores que, para desbravarem estas terras, tiveram que lutar e, aos poucos, exterminar estas nações mais selvagens.

Porém, já com a Missão Holandesa[21] que veio em 1630 temos uma outra relação com o mundo natural brasileiro por parte dos seus participantes, impondo-se uma forma descritiva da realidade[22], dando fundamentos a uma abordagem visual de caráter científico, destacando-se aí os trabalhos do alemão George Markgraff (astrônomo, cientista e autor de ilustrações cartográficas), Frans Post (paisagista)[23], Albert Eckhout [24] [Figura 5] [25], e alguns outros pintores que não tiveram tanto destaque, como Zacharias Waneger, Caspar Schmalkalden e Johan Nieuhof .

Com a pintura holandesa no Brasil, os artistas que acompanharam o Conde de Nassau introduzem uma “nova concepção de imagem (BELLUZZO, 1994). A autora (1994, p. 19) nos diz que “a nova noção de imagem diz respeito aos simulacros visíveis dos corpos, às emanações das coisas no espaço, ao vazio que torna possível a visão dos corpos”. Portanto, o artista Albert Eckhout, principalmente, com sua pintura, “realiza à luz do dia a descoberta do fenômeno da vista. Pode-se dizer que assinala outro renascimento: o renascimento dos sentidos”. (BELLUZZO, 1994, p. 19).

Ao vermos as composições de Eckhout, sentimo-nos induzidos não somente à visão, mas a outros sentidos como o tato, o paladar e o olfato. Essas naturezas-mortas [Figura 6 e Figura 7] são

feitas pelo prazer dos sentidos e exibem a habilidade artística e o virtuosismo, herdados pelo Renascimento da experiência da Antiguidade clássica. Filiam-se às pinturas que desenvolvem artifícios para enganar os sentidos, como os artistas italianos do século XV verificam nos modelos antigos. As coisas da natureza estimulam assim prazeres ilusórios, não verdadeiros, dando lugar a um jogo entre a aparência e a verdade (BELLUZZO, 1994, p. 24)[26].

Para Belluzzo, estes vegetais nos convidam ao prazer de degustá-los. Algumas frutas aparecem cortadas ao meio, enfatizando este prazer ao espectador; mostram estas testemunhas da fecundidade das terras do Novo Mundo.A contemplação da natureza brasileira promove a visão e o tato, provoca a sensação do gosto e do cheiro, afirma a autora (1994, p. 114-118).[27]

Galard (2000) ressalta ainda que essa aproximação dos objetos, aparentando estar quase vivos sobre a tela, sobre fundo de céu, transmite a impressão de que Eckhout quis nos convidar a uma exaltação dos sentidos, ou talvez mesmo a celebrar uma espécie de abolição da distância, reafirmando tal pensamento.

A permanência dos artistas de Nassau no Nordeste representa um episódio isolado e dos mais interessantes da história da pintura brasileira, pois não deixaram discípulos ou pintores que continuassem os trabalhos. O fato se reveste de importância também para a história da arte ocidental, pois corresponde cronologicamente à primeira investida da arte holandesa fora do continente europeu. Além disso, pelo fato de não serem católicos, esses pintores puderam entregar-se livremente a gêneros pictóricos até então jamais praticados no Brasil, sendo os primeiros a fixarem profissionalmente a paisagem, os habitantes, a fauna e a flora brasileiros. As pinturas e desenhos de Post, Eckhout e provavelmente outros artistas de Nassau, foram aproveitadas como cartões de tapeçarias pela Manufatura dos Gobelins e divulgadas em sucessivas tiragens até vésperas da II Guerra Mundial[28].

A produção artística de Post e Eckhout contribuiu para a autonomia da pintura de paisagem e natureza-morta tal como podemos verificar no texto de Belluzzo:

A confiança na experiência estética marca uma nova etapa na história da arte e é devida à contribuição de artistas flamengos e holandeses, que tiram proveito da observação naturalista, cuja plástica é elaborada a partir da luminosidade da cor. No século XVII, os holandeses, herdeiros das tradições flamengas, afirmam a autonomia da pintura de paisagem e a natureza-morta (1994, p. 19).

Estes serão gêneros privilegiados, que permanecerão em várias outras expedições estrangeiras que virão a partir do início do século XIX.

II.2 - O olhar distante e o próximo - a pintura de paisagem e a natureza-morta

Como vimos, temos dois gêneros da pintura que guiarão as futuras produções dos artistas-viajantes. Ambos gêneros nos permitem refletir sobre qual seria a distância que devemos nos colocar para obtermos uma melhor visão sobre o Brasil, isso independente de origem ou nacionalidade, já que temos uma visão mais aproximada (a natureza-morta) e uma mais distanciada (a paisagem).

Essa reflexão foi feita por Jean Galard, para quem numa distância longe demais temos uma realidade que se embaralha e “não se vislumbra senão aquilo que se deseja crer”. Porém, perto demais perdemos a importância do conjunto, pois, ao observarmos elementos particularmente, eles adquirem uma importância desmedida, perdendo assim o conjunto. E é aí que entra o cerne da questão: “entre o olhar muito afastado, que se engana, e o olhar muito próximo, que se acostuma até nada mais enxergar, qual a distância certa?” (GALARD, 2000, p. 36). O autor ainda ressalta que a “distância aqui considerada é mental e psicológica” e questiona:

que recuo intelectual e afetivo se deve tomar para que um país, em seu conjunto e em sua originalidade, nos apareça? Teriam mesmo os “viajantes” de antigamente boas chances de manter, com relação ao Brasil, este recuo na medida certa? O que vem a ser hoje um “viajante”? E um estrangeiro? (GALARD, 2000, p.36).

Galard ainda nos mostra que também podemos considerar a distância de um modo físico e literal, que poderá contribuir para essa reflexão. Ou até mesmo essencial, pois se estamos trabalhando com imagens, com obras visuais, elas implicam necessariamente um ponto de vista mais ou menos distante para com o que representam.

Observemos o que diz a respeito o artista Rugendas quando trata das florestas brasileiras:

As florestas nativas constituem a parte mais interessante das paisagens do Brasil; mas também a menos suscetível de descrição. Em vão procuraria o artista um posto de observação nessas florestas em que o olhar não penetra além de poucos passos; as leis de sua arte não lhe permitem exprimir com inteira fidelidade as variedades inumeráveis das formas e das cores da vegetação que ele se vê envolvido. É igualmente impossível suprir a essa falha por meio de uma descrição e muito erraria quem imaginasse consegui-lo através de uma nomenclatura completa ou de uma repetição frequente de epítetos ininteligíveis ou demasiado vagos. O escritor vê-se manietado pelas regras da sã razão, e pela teoria do belo, dentro de limites tão estreitos quanto os do próprio pintor e a que é dado somente ao naturalista transpor (RUGENDAS, 1976, apud SÜSSEKIND, 1990, p. 117-118).

Este comentário, tal como analisa Süssekind, parece entregar à “razão do naturalista a ordenação possível da paisagem”, ressaltando a duplicidade desta relação entre documentação e flutuação do olhar, entre descrição e paisagem, como já vimos em tópico anterior deste capítulo.

O artista nos chama atenção para um olhar que toma como modelo o do naturalista. Süssekind ressalta que o artista não “sugere em momento algum a possibilidade de não representar ‘tudo’” e explica que de uma forma enciclopédica suas “pranchas deveriam abranger espécies, famílias, gêneros, variações cromáticas e de tamanho, múltiplas configurações de tipos e lugares idênticos, sempre procurando dar conta de um detalhe a mais”, o que por muitas vezes ocasionam algumas composições “cheias” demais (SÜSSEKIND, 1990, p. 118).

Aqui se insere o pintor Frans Post que, no século XVII, faz um recorte da vasta natureza brasileira. Sua obra é um exemplo clássico da origem de concepção da paisagem vigente nos Países-Baixos a partir da década de 1620 [Figura 8] [29]

Para Galard, a pintura de paisagem holandesa de Frans Post

em meio às vastidões brasileiras, consegue “recortar” sua paisagem. Ao vivo, a cena tem uma amplidão tal que não se pode abarcá-la senão virando a cabeça. O pintor condensa essa vista, comprime-a, enfatiza o primeiro plano, aproxima o longínquo, amplia os objetos localizados à meia distância, eleva à altura do céu, areja o conjunto, “como se” a vista resultasse de uma luneta invertida. Isso se comprova, não por documentos de arquivos, isto é, por informações extrínsecas, mas pela própria evidência interna dos quadros. (GALARD, 2000, p. 38).

Jean Galard nos diz que Eric Larsen, em seu livro sobre Frans Post, supõe que no início do século XVII, no meio intelectual holandês que estava no Brasil, a invenção do telescópio poderia ter influenciado a concepção de paisagem. Larsen trabalha com a hipótese de que, num dia qualquer, alguém poderia ter observado pelo lado maior da luneta e visto o efeito produzido. Se observarmos pelo lado invertido do telescópio, vemos uma paisagem condensada e embaralhada, ao invés de amplos detalhes. Essa vista amontoada é também reduzida de forma proporcional, “ao passo que, a olho nu, a extensão assim circunscrita não poderia ser abarcada por um único olhar” (LARSEN, 1962, apud GALARD, 2000, p.38). Sendo assim, esse uso imprevisto da luneta galileana poderia ter originado a concepção de paisagem da época. Porém, para Galard isso não é de grande importância.

Com esse exemplo de leitura da obra de Post podemos identificar um tipo/estilo de composição submetido a uma certa distância que pode ser definida pelo olhar distante (de paisagem) e pelo olhar aproximado (natureza-morta).

O olhar aproximado pressupõe que a composição possua um primeiro plano ocupado por uma vegetação, um animal, ou um grupo de personagens, tudo minuciosamente reproduzido. Utilizado para o estudo individual da espécie, nos aponta Süssekind (1990, p. 112), “é como se o olhar desse viajante naturalista de algum modo tentasse escapar às grandes extensões e, mesmo imerso nelas, visse apenas o miúdo, as espécies vegetais, pássaros e insetos”.

Um bom exemplo (e vale a pena retomarmos) deste olhar são as obras de Eckhout, tanto nas suas composições com vegetais [Figura 6 e Figura 7] como das representações dos índios [Figura 5]. Segundo Galard, os legumes e as frutas que nos oferece aos olhos, ou antes coloca sob o nosso nariz, nos tapam a vista” (2000, p.38). Nas suas obras, esses elementos aparecem sob um fundo paisagístico, ou um céu anuviado. Suas representações de proximidade permitem-nos uma precisa identificação do objeto pintado, seja ele um vegetal, um animal ou um ser humano. Essas composições estão diretamente ligadas ao gênero da “natureza-morta”, evocando os sentidos, algo comum na Holanda desta época e, muitas vezes, em suas obras. Como diz Belluzzo,

Eckhout simula janelas que dão vista para o céu ao longe, e dispõe as espécies botânicas próximas ao espectador sobre a superfície do parapeito. Apesar disso, a luminosidade do céu chega, muitas vezes, primeiro ao olho. O jogo de trompe l´oeil é também resultante da coincidência entre a linha de terra e a linha do horizonte, pela qual o artista produz o encontro da natureza-morta com a paisagem (1994, p. 24).

Um outro artista que também adotou a posição aproximada para descrever sua visão da geografia, das cenas locais cotidianas e históricas foi Jean-Baptiste Debret, que permaneceu no país durante os anos de 1816 a 1831. Sobre este artista, Pedro Corrêa do Lago (2000), em O olhar distante: A Paisagem Brasileira vista pelos Grandes Artistas Estrangeiros 1637-1998, observa que sua observação era minuciosa, que o artista se preocupava com detalhes ínfimos, como detalhes de roupas, chapéus e topografia [Figura 9 e Figura 10] [30] [31].

Por um outro lado, a grandiosidade da natureza brasileira não permite que possamos vê-la por inteiro. A foz do rio Amazonas, por exemplo, não pode ser percebida. Para que possamos ver a floresta brasileira é preciso dividi-la em pequenos quadros, para assim mostrarmos sua monumentalidade grandiosa (BELLUZZO, 1994).

Para que se realize um bom trabalho de registro, de classificação da natureza e de suas espécies é necessário que se utilize ambos olhares, de ambas técnicas que se complementam, possibilitando assim um estudo mais elaborado e fiel. Pode não satisfazer cientificamente as informações visuais contidas somente em uma prancha, pois o maior número de informações possível valoriza o trabalho. É como se não bastasse o simples registro de uma vista e fosse necessário delinear com nitidez ainda alguma árvore, espécie vegetal de pequeno porte, algum homem em atividade característica ou apenas passando. Seria como se uma prancha única devesse dar conta de uma multiplicidade de espécies existentes ou atividades possíveis naquele exato local.

Segundo Galard (2000), os artistas podem escolher dois tipos de apresentação da sua obra. Independentemente de a topografia permitir ao observador uma vista aproximada ou afastada, os artistas demonstram atitudes diferentes quanto à configuração dos lugares. Alguns artistas, como Thomas Ender, preferem manter-se a uma certa distância do que eles descobrem. Para o autor,

a técnica utilizada - lápis e aquarela - , a extrema delicadeza do traço e da cor desempenham, sem dúvida, um papel preponderante no aspecto fantasmagórico de certas obras... além do mais, Ender, membro da missão científica austríaca de 1817, tomou um recuo em relação à caravana de seus compatriotas: duas grandes árvores os separam; silenciosa ela passa como num sonho. Para o Palácio do Governo em São Paulo[Figura 11], o artista deixou, entre ele mesmo e os prédios que representa, uma vasta área deserta. (GALARD, 2000, p.40). [32]

Há, porém, outros artistas que preferem nos convidar a entrar no espaço desvelado do quadro, e, através de sua composição, suas obras induzem o espectador a penetrar no seu espaço. Esse convite deve-se muito às linhas de composição, à perspectiva do terreno que nos leva a desbravar as ruas. Um exemplo desta configuração do lugar está na obra de Nicolas Antoine Taunay (pai de Aimé-Adrien Taunay, integrante da expedição Langsdorff), intitulada Morro de Santo Antônio em 1816. Portanto, em certas obras o espectador é mantido à distância, em outras é convidado a entrar, penetrar para vivenciar de forma imaginária a situação em que este artista esteve.

Em suma, em meio a representações de naturezas-mortas e paisagens, de relatos de viagens, temos que a partir do século XVII, uma pintura de observação e a prática da coleção de objetos[33] (taxonomia, classificações) passam a fixar certos modos de representação visual da natureza. Nestas representações, temos dados etnográficos, botânicos e geográficos, dados esses que caracterizam uma interdisciplinaridade na iconografia.

É durante esse período que o olho tem uma função prioritária para a observação e descrição visual das espécies - da natureza - para fins de classificação, uma taxonomia das espécies individualmente como no seu conjunto. Portanto, “o olho assume uma função ativa, colaborando na tarefa de configurar e identificar o mundo através da construção da forma dos seres da natureza” (BELLUZZO, 1994, p. 28). Neste sentido,

para que se possa observar os seres, as suas qualidades deverão ser transformadas em quantidades: a “figura” formada pela planta deve ser percebida com relação à quantidade de componentes e como grandeza, descrita em cada um de seus elementos e na disposição entre eles. Além da análise comparativa das proporções, outro parâmetro é dado pelas figuras regulares da geometria platônica. O círculo, o hexágono, o triângulo precedem o olhar que busca apreender como a forma das plantas afeta a figura geométrica (BELLUZZO, 1994, p. 28).

Desta forma, o que podemos verificar aqui é que, neste modelo de conhecimento adotado pela ciência clássica, o sentido da visão é que define o modelo de conhecimento. Portanto, a “visão” sempre está associada aos critérios e modos operativos de que o homem dispõe e o que a autora nos afirma é que o desenho torna-se, de acordo com o pensamento clássico, um “modo de experimentar a verdade exterior pelos sentidos; ajusta-a por meio do raciocínio e é capaz de definir o visto por meio de regras constantes e lógicas” (BELLUZZO, 1994, p. 30).

Através da observação e da descrição destes artistas e cientistas-viajantes, seus trabalhos demonstram que

a imagem que podia ser obtida por procedimentos aproximativos cedia à representação visual dos seres da natureza por meio da forma, instância capaz de permitir a análise e o discernimento desses entes naturais. Para defini-los seria necessário situá-los em um determinado lugar, encontrar a posição ocupada por cada um deles com respeito aos outros seres do universo, concebido, assim, como um cosmos ordenado e contínuo (BELLUZZO, 1994, p. 30).

E é a partir dos fins do século XVIII e início do século XIX que essa representação do visível vai se modificando junto com a percepção da natureza, que não mais se preocupa com a superfície de um ser, mas agora com a profundidade, com o lado oculto. É neste período que a ordem visível e a ordem oculta apresentam relações, surgindo assim a noção de organismo. Aqui encontramos a transição de um olhar voltado para a forma (exterior) para o seu interior[34].

II.3 - A pintura de paisagem no século XIX

Dentro do desenvolvimento representacional pictórico, a pintura paisagística acaba por afirmar-se com especial ênfase entre os artistas não-católicos. No Brasil, país de formação portuguesa, católica, a ênfase se deu na pintura de caráter religioso e as imagens da paisagem adquirem uma cor local 300 anos após o “descobrimento”. A contribuição partiu justamente da Missão Holandesa e de artistas como Post e Eckhout. Quando a natureza brasileira era representada, um filtro europeu era diretamente aplicado a esta realidade. Com os pintores flamengos, esta realidade é modificada, em função do profundo conhecimento pictórico, do interesse na aplicação das técnicas e do desenvolvimento de métodos de observação extremamente valorizados por parte dos artistas e seus correligionários.

A presença da Corte no Brasil dá início a um processo acelerado de transformação social, cultural e artística. A abertura dos portos e a grande circulação de estrangeiros no país fazem aparecer novas imagens.

Assim como afirma Moreira Leite,

a mudança da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e a abertura dos portos brasileiros alteraram sensivelmente a receptividade oficial a naturalistas estrangeiros, mesmo quando representavam ostensivamente o pólo científico dos tentáculos imperialistas das nações europeias. A partir da segunda metade do século XVIII, a História Natural fora incluída nos programas de viagens, científicas ou não, e uma epidemia de colecionismo alastrou-se pelas populações europeias americanas. A observação e a catalogação, reduzindo a distância entre as coisas e a linguagem, ‘aproximou a linguagem do olhar observador e as coisas observadas das palavras’ (Foucault, 1966: 144) e se constituíram em tarefas incorporadas antes pela nobreza, mas aos poucos pelas demais camadas sociais” (MOREIRA LEITE, 1996: 34).[35]

Mas não somente com a vinda de explorações científicas irá se desenvolver esta relação entre arte, ciência e natureza no Brasil. As explorações político-científicas e os naturalistas viajantes estarão acompanhados por artistas que, apresentando-se às costas brasileiras, realizarão, através do desenho e da pintura, registros feitos por um olhar diletante ou turístico.

Como aponta Belluzzo,

com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, notadamente após a independência do país, acorrem ao Rio de Janeiro estrangeiros dedicados às atividades diplomáticas, outros tantos relacionados à Marinha inglesa que, na qualidade de artistas diletantes, apresentam domínio do desenho. Ancoram também na costa brasileira passageiros das viagens turísticas pelo mundo. Possuem uma visão educada na estética do pitoresco e buscam desfrutar o espetáculo da paisagem (1994, p. 34).

Mesmo assim, a natureza era, ainda no século XVIII, buscada com fins alegóricos, seguindo os modelos da Missão Francesa, bem representada na Academia de Belas-Artes e na chamada Escola Fluminense. Em 1816, chega ao Brasil a Missão Artística Francesa, um grupo de artistas e artífices franceses de formação neoclássica que iria exercer uma profunda influência na pintura brasileira da metade do século XIX, até praticamente a Semana da Arte Moderna de 1922. Os artistas da Missão Artística Francesa pintavam, desenhavam, esculpiam e construíam à moda europeia. Obedeciam ao estilo neoclássico (novo clássico), ou seja, um estilo artístico que propunha a volta aos padrões da arte clássica (greco-romana) da Antiguidade. Os pintores deveriam seguir algumas regras na pintura, tais como a inspiração nas esculturas clássicas gregas e na pintura renascentista italiana, sobretudo em Rafael, mestre inegável do equilíbrio da composição e da harmonia do colorido. Como líder do grupo, assumiu as negociações Joachim Lebreton (1760-1819), secretário recém-destituído do Institut de France, responsável pela organização do projeto. A partir das informações de Humboldt, que visitara a região amazônica em 1810, Lebreton planejou criar uma escola de formação de artistas no continente sul-americano[36].

Entre os franceses, acadêmicos, Nicolas-AntoineTaunay e, posteriormente, seu filho, Félix-Emile, podem ter sido os representantes de uma transformação desta abordagem alegórica, trazendo elementos de composição romântica, onde prevalecem as vistas do Rio de Janeiro.

É desta época também a obra de Manuel Araújo de Porto-alegre, exigente mestre e diretor da Academia, que já proclamava que o estudo da paisagem é coetâneo aos estudos de botânica, geologia e meteorologia. O método paisagístico desenvolver-se-á na forma da saída do estúdio e na busca dos ambientes e da iluminação fornecida pela própria natureza[37].

Assim, assistimos a uma paisagem que resulta da combinação dos estudos da pintura topográfica e de uma definição no interior do gênero denominado de pitoresco. O pitoresco natural surge inicialmente na Inglaterra a partir do jardim inglês. Foi um artifício com o qual se pretendeu dar à realidade do jardim uma aparência estética, ou seja, com o qual se procurou arranjar a natureza por imitação à arte. O pitoresco natural, conhecido como romanesco, deu lugar ao termo romântico. A pintura era tida como mestra por excelência, em se tratando de evidenciar o modo irregular e assimétrico de distribuição da natureza, os efeitos variados assumidos pela vegetação, pelas superfícies rugosas, sobre as quais se imprimem ocorrências luminosas (BELLUZZO, 1994, p. 36).

Com relação às viagens pitorescas, Belluzo afirma que elas

estão de acordo com preceitos morais de um certo ideal de contenção, combinados com o modo de apreciação estética da paisagem. Artistas profissionais e amadores, vindos da Inglaterra ao Brasil, desde a segunda década do século XIX, eram dotados da visão desinteressada, que os deixava apreender a natureza a partir de características emprestadas da arte (1994, p. 36).

Ainda, segundo a autora,

a visão do pitoresco significa um modo de ver marcado pelo primado dos valores pictóricos sobre a paisagem observada. De acordo com o critério do gosto pelo pitoresco, só algumas notáveis combinações da natureza se oferecem ao artista como dignas da arte. Ao lado do cume pitoresco, é o recôndito do jardim que ocupa papel central nessa poética, um dos temas mais explorados pelos diletantes artistas ingleses (Ibid).

E Belluzzo completa, dizendo que:

o artista-viajante que se alia à estética do pitoresco não é um construtor da pintura de paisagem e sim um fruidor do espetáculo da natureza. O que agrada na natureza ele reconhece pela cultura artística. Trata-se de um método psicológico e não dogmático de análise da impressão estética, o artista não parte da beleza, mas da faculdade subjetiva que o faz sentir e gozar o mundo (Ibid).

Nestes termos, há uma possível passagem entre pitoresco e romantismo aos moldes ingleses, tal como nos acorre a esta tradição de pintura de paisagem. O que se destaca nesta combinação é a valorização do detalhamento, do pormenor, no interior de uma vista panorâmica, ou seja, a fruição detalhada de uma realidade, apreendida como a metáfora do jardim inglês, uma ordem natural encontrada numa aparente desordem estética racional. Não é de uma beleza geométrica que se fala, mas de um sentido de fruição pelo valor do próprio mundo natural[38].

Em consonância com este sentimento, Belluzzo (1994) afirma que a costa brasileira proporciona um maior estímulo ao sentimento do pitoresco aos artistas-viajantes, pois possui terrenos acidentados e uma variedade de pontos de vista que são capazes de revelar sucessivas surpresas ao observador. É da surpresa que se faz a matéria desta apreensão da beleza do mundo natural. O que também estimula este sentimento são as casas que se encontram isoladas junto com a vegetação, cuja mescla da natureza com a arquitetura configuram uma espécie de ambiência ideal.

O pitoresco e o romântico deverão conviver no século XIX com uma concepção de vista panorâmica. Essa técnica / modelo paisagístico possui uma afinidade com a visão do todo e com o mais amplo alcance do campo perceptivo. A partir de um ponto de vista central o artista retrata a sua visão do todo da paisagem, circundando 360º e ela é apresentada no interior de uma rotunda, possibilitando ao espectador um artifício paisagístico capaz de fazer com que a fruição seja uma espécie de espetáculo.

Como afirma Belluzzo, o Rio de Janeiro e sua topografia foram o alvo imediato das panorâmicas:

a Baía de Guanabara prestou-se especialmente à concepção do panorama circular. Os panoramas tomados a partir de barcos ancorados na barra demarcam a linha entre o mar e a terra e os perfis montanhosos que se situam no encontro da terra com o céu. Outra solução motivada pela topografia do Rio de Janeiro levava o artista a atingir o ponto mais alto, para lançar o olhar de um só golpe e divisar a diversidade da paisagem da cidade litorânea ao longe. O paisagista é também um observador a distância que, em nome de ver tudo, se separa e abstrai o mundo (BELLUZZO, 1994, p. 35).

Tudo isto já nos fazia conceber uma relação explícita entre a arte e a ciência, preconizando os elementos que iriam dar as necessárias condições ao desenvolvimento das tarefas dos artistas dentro das expedições científicas.

De acordo com Belluzo,

o crivo científico marca profundamente a relação dos artistas-viajantes com a paisagem brasileira, a considerar, por exemplo, o fato de notórios artistas estarem a serviço de expedições científicas. É o caso de homens com uma formação completa, como Rugendas [...] entre outros, cujo interesse panorâmico se manifesta na busca de uma visão de conjunto, vindo ainda sintetizado em diversas esferas da vida às quais dedicam atenção (Ibid).

Nesta mesma perspectiva, o que estamos marcando é a presença de um duplo entendimento. O primeiro, da tradição pitoresca, e, o segundo, de uma tradição científica, vinda das expedições, dos métodos da geografia física, que aderem a uma visão de conjunto de um ambiente a ser registrado pelo artista.

Outro foco que ainda se apresenta ao artista é o vedutista. Nele, privilegia-se o efeito de ilusão do quadro e uma relação com princípios arquitetônicos no formato da composição formal de uma paisagem. Como diz Belluzzo, em outro momento:

um outro modelo de visão paisagística, que também surge no fim do século XVIII, baixo a designação da vista panorâmica, provém da tradição italiana vedutista e não rompe com o conceito do quadro, nem subordina o visto ao espetáculo de efeito ilusionista que tem lugar em rotundas europeias. Nas vistas urbanas panorâmicas, a palavra vista aparece impropriamente aplicada a essa concepção de desenho de paisagem, pois tem o inconveniente de evocar uma atitude passiva, não condizente com o teor construtivo dos desenhos e com a clara intervenção na paisagem observada. As aquarelas de Ender, os desenhos de Burchell são momentos de construção do espaço da paisagem que nascem da implantação do desenho em uma certa zona do papel e tendem a colocar um foco sobre o motivo arquitetônico (BELLUZZO, 1994, p. 35).

Dentro deste cenário político e cultural, as inquietações artísticas irão se realizar em torno das pressões de um romantismo - na estética do terrível (escravismo) e do sublime (natural) - e das transformações do pensamento científico, sob a influência do naturalista e explorador prussiano Alexander von Humboldt.

Moreira Leite (1996) comenta que Humboldt era um cientista e mecenas, investindo sua fortuna particular nas expedições e no planejamento e organizações das ciências físicas e naturais e no estudo da distribuição geográfica. Humboldt impulsionou a ciência do século XIX, fazendo dela um modelo também para as formas do pensamento artístico. Artistas como Goethe, reconheciam nele a erudição, o conhecimento sistemático das ciências e uma incrível imaginação.

Aqui também irá se firmando um sentido determinado do termo Natureza e das formas adequadas a sua observação, traçando uma relação direta entre esta e o papel do naturalista, como aquele que vive imerso no ambiente que estuda.

É desta definição da História Natural que será retirada a exata determinação do modo de observação e, portanto, do modo de registro, envolvido num procedimento de imersão. Esta, por sua vez, resultará na apreensão do todo e numa nova maneira de contemplação, como nos mostra Belluzzo:

A visão de conjunto e de interação das paisagens de Humboldt faz jus às exigências do homem total da época iluminista, assim como ao artista-cientista, que sabe colocar a sensibilidade em colaboração com a razão. A abordagem paisagística da natureza, formulada nos termos de uma “geografia das plantas”, dá preferência à impressão geral causada pelas massas de vegetais e supera o exame dos vegetais isolados. Estimula a procura da vida espalhada pela atmosfera, desperta e promove a observação do todo e favorece a atitude de contemplação da natureza (1994, p. 31).

Aqui, o detalhe - do pitoresco - transita para uma compreensão mais abrangente das massas de vegetais, valorizando o conjunto ao invés de apenas a realização de pranchas com formas isoladas. Flores, frutos e outros elementos deverão ser observados no seu habitat [Figura 12] [39].

Portanto, os modelos que seriam utilizados entre os artistas do século XIX marcavam a presença de tradições da pintura flamenga (da natureza-morta e das paisagens), dos elementos da Missão Francesa e da influência de Humboldt[40] (pensamento científico).

Foi justamente esta visão que fez com que outros cientistas e naturalistas se interessassem mais a estudar a vida natural nos trópicos, aumentando assim a quantidade de viagens vindas da Europa, como a viagem do príncipe Maximilian von Wied-Neuwied (1815-1817), a Missão Austríaca (1817-1820), e a de Langsdorff, estudada mais profundamente no próximo capítulo.

Ao final, podemos apenas ressaltar que dentre as técnicas eleitas, a pintura acaba por se sobressair em relação ao desenho. Nos termos de Belluzzo (1994, p. 36), “a pintura, mais do que o desenho, realiza o impulso romântico da imagem paisagística, que proporciona o encontro entre a imaginação e a realidade”. E que “conta com suas próprias tradições, mas também se beneficia da experiência acumulada pelos desenhistas da primeira metade do século” (idem).

A autora ainda afirma sobre o sentimento de imersão representado na pintura dos artistas viajantes do século XIX, pintura essa que

é capaz de expressar com vantagem não só os recortes pitorescos da paisagem como também o sentimento da imensidão. Traduz a experiência física do mundo, no que ela tem de vivência do mundo exterior, como revelam as sensações atmosféricas; no que ela tem de reconhecimento interior, como fazem pressentir as sensações cinestésicas, que estabelecem ligações entre o homem e o mundo. A impressão luminosa e a sensação da cor, que borram os limites dos corpos na paisagem atmosférica, também concorrem para criar um sentido unitário, do qual o próprio artista não se exclui, fundindo-se também ele à paisagem” (BELLUZZO, 1994, p. 36).

É na pintura que a paisagem encontrará, enquanto gênero, a sua linguagem. A cisão entre formas pitorescas-românticas e iluministas-classicizantes encontra sua apreensão em duas tradições de pintura europeia. São elas, a pintura arcádica[41] e a pintura naturalista. A primeira, da vertente francesa, a segunda, aparecendo em formas inglesas e francesas da arte.

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____________________

[1] Miguel Luiz Ambrizzi é Doutorando em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto - Portugal. Mestre em Cultura Visual FAV- UFG, graduado em Educação Artística - Hab. em Artes Plásticas pela UNESP (2005); Docente e pesquisador nas áreas de Artes, Arte-Educação, Linguagens artísticas e História da Arte. E-mail: miguelirou@hotmail.com

[2] Para maiores informações sobre a Viagem Filosófica ao Amazonas ver: Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira - A Expedição pelas Captanias de Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Documento de Museu Bocage de Lisboa, Kapa Editorial, s/ data e o catálogo Viagem Filosófica: uma redescoberta da Amazônia (1792-1992), Rio de Janeiro: Index, 1992.

[3] Para maiores aprofundamentos sobre os trabalhos de Spix e Martius ver GUIMARÃES, 1994; SPIX, J. B. von; MARTIUS, K. F. P. von, 1938. Ainda sobre a Missão Austríaca, a partir das amostras de plantas e das impressões colhidas por Von Martius, foi elaborada a Flora brasiliensis, uma obra em 15 volumes, a qual se tornou referência sobre as plantas do Brasil e agora pode ser consultada também pela internet, por meio da Flora brasiliensis on-line: http://florabrasiliensis.cria.org.br/

[4] Os trabalhos de Thomas Ender são analisados em WAGNER, Robert (org). Thomas Ender no Brasil (1817-1818): aquarelas pertencentes à Academia de Belas Artes em Viena. Graz: Akademische Druck-u, 1997.

[5] Para maiores aprofundamentos sobre a Missão Artística Francesa, ver BANDEIRA, 2006 e CAMPOFIORITO, 1983.

[6] George Henrich Von Langsdorff é seu nome alemão. Depois que ele se naturalizou russo passa a ser conhecido por Gregory Ivanovith Langsdorff. Nesse trabalho referimo-nos a ele somente como Langsdorff.

[7] Estes são os nomes abrasileirados, os quais serão apresentados neste texto.

[8] Ver nas referências bibliográficas: OLIVEIRA E CONDURU, 2004.

[9] A estética da viagem é alvo de dois importantes textos encontrados na coletânea O Olhar (Novaes, 1988). Neles, os autores ressaltam esta componente de uma estética contemplativa, o que poderia permitir o desdobramento destas relações com a estética do sublime kantiano.

[10] Apud SÜSSEKIND, 1996, p. 116.

[11] COSTA, 1995, p. 65.

[12] Süssekind refere-se a um comentário de Florence contido em FLORENCE, 1977, p. 173.

[13] Para mais informações ver BURKE, 2004, p. 157-158.

[14] Imagem disponível na Coleção Imagens Históricas do Brasil, Editora Abril, sem data.

[15] O termo será alvo da apropriação por parte da filosofia francesa do romantismo do século XVIII-XIX, tendo como principal expoente a figura de Jean-Jacques Rousseau.

[16] Imagem disponível no CDROM “Artistas-viajantes” - do Itaú Cultural.

[17] Ver CDROM “500 Anos de Pintura Brasileira”.

[18] Mais informações, ver CDROM “500 Anos de Pintura Brasileira”.

[19] RAMINELLI, 2005, p. 26.

[20] Para uma análise mais detalhada desta questão, ver BURKE, 2004, p. 159.

[21] A vinda dos holandeses para a Capitania de Pernambuco foi de grande importância para o Brasil. O Conde Johan Maurits van Nassau-Siegen (conhecido nos textos brasileiros como João Maurício de Nassau) trouxe consigo uma série de profissionais como geógrafos, médicos, engenheiros, geômetras e botânicos. E, até o século XIX, praticamente estes viajantes holandeses conseguiram executar um trabalho deste gênero em nossas terras devido ao fato dos portugueses impedirem a entrada de qualquer estrangeiro, provavelmente por razões estratégicas, no sentido de esconder das outras nações as riquezas naturais de nosso país. Ver CDROM “500 Anos de Pintura Brasileira”.

[22] ALPERS, 1999.

[23] Para Aguillar (2000), a estada de Post, entre outros artistas e cientistas (os holandeses) que acompanharam o conde Maurício de Nassau, foi a inauguração da grande arte ocidental leiga no Novo Mundo.

[24] Elly de Vries toma como base o enfoque tradicional de análise de Eckhout e ressalta o caráter documental desta produção artística. “[...] a tarefa do artista de documentar o Novo Mundo e a forma com que suas obras foram utilizadas como fonte científica sobre as plantas, os animais e os povos do Brasil. Elly de Vries estava entre os primeiros a chamar a atenção para as importantes relações entre as pinturas de Eckhout e os cerca de 400 estudos, os Theatri Rerum Naturalium Brasiliae, que Nassau e os artistas levaram do Brasil quando voltaram a seu país” (BERLOWICZ, DUE, WAAEHLE, 2003, p. 25).

[25] Imagem disponível no catálogo Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002, 2002.

[26] Vale ressaltar que nesse momento a Europa tem a arte de Caravaggio que, com seu naturalismo, revoluciona a arte européia, submetendo todos os eventos e temas a uma mesma hierarquia. Quebra com as leis e normas da perspectiva renascentista e quer a veracidade a todo custo e, como ressalta Nelson Aguilar, “o Barroco rompe essa subserviência em busca de uma linguagem mais direta, a bíblia em imagens do cristianismo militante ou a natureza tal e qual restituída por Vermeer ou Rembrandt (AGUILLAR, 2000, p. 33).

[27] Ambas são óleo sobre tela, sem assinatura e pertencentes à Coleção Etnográfica do Museu Nacional da Dinamarca, Copenhagen. Imagens disponíveis no catálogo Albert Eckhout volta ao Brasil 1644-2002, 2002. Encontram-se disponíveis em: BERLOWICZ, B.; DUE, B.; WAEHLE, E., 2002. p. 48 e 57.

[28] Mais informações, ver CDROM “500 Anos de Pintura Brasileira”.

[29] Imagem disponível no CDROM “500 anos de Pintura Brasileira - Uma Enciclopédia Interativa”.

[30] Imagem disponível no CDROM “500 Anos de Pintura Brasileira - Uma Enciclopédia Interativa”.

[31] Imagem disponível no CDROM Artistas-viajantes - Itaú Cultural.

[32] Imagem disponível em: www.sp.gov.br/acervo - acesso dia 08/11/2006.

[33] Desde os séculos XV e XVI já havia um desejo de se construir um grande inventário da natureza numa espécie de enciclopédia. Essas coleções (gabinetes científicos) levadas à Europa formaram os Museus de História Natural no final do século XVIII e início do século XIX, período em que foi intensa a produção científica de classificações (CDROM “500 anos de Pintura Brasileira”).

[34] Essas questões estão somente apresentadas, mas não serão detalhadas neste trabalho.

[35] A autora faz referência à obra FOUCAULT, M. Les Mots er les Choses. Une Archeologie des Sciences Humanies. Paris: Gallimard, 1966.

[36] Para mais informações ver BANDEIRA, 2006, e OLIVEIRA e CONDURU, 2004.

[37] Mais informações em CDROM “500 anos de Pintura Brasileira”.

[38] Para o estudo das relações entre homem e natureza na cultura inglesa recomenda-se a obra de Keith Thomas (1988). Nesta história, o autor demonstra como os ingleses eram conhecedores de História Natural e tinham interesse em toda forma de cultivo da relação homem-natureza, indo desde o estudo científico às coleções de animais empalhados e ao hábito popularizado da pintura de flores.

[39] DIENER, 2002, p. 58.

[40] Para mais informações, ver PRATT, 1991.

[41] Um importante texto que trata do tema da pintura arcádica francesa encontra-se na coletânea de Lévi-Strauss (1995). Num ensaio denominado Mirando a Poussin, Lévi-Strauss analisa as relações entre esta pintura, considerada artificial, como sendo a produção simbólica de modelos reduzidos, aos moldes de sua compreensão da arte, já enunciada em O pensamento selvagem.