Theodoro Braga e as proposições para uma arte brasileira
Paola Pascoal
PASCOAL, Paola. Theodoro Braga e as proposições para uma arte brasileira. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/tb_pp.htm>.
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Theodoro Braga foi, como diversos outros atores sociais do século XIX-XX, um profissional “multifacetado”[1]. Formou-se advogado em 1893, pela Faculdade de Direito do Recife, mas na mesma cidade logo cedo se inclinou à formação artística, a qual iniciou por volta de 1892, pelas mãos de Jerônimo José Telles Júnior, mestre do paisagismo pernambucano, que, segundo o historiador Edilson da Silveira Coelho, foi um dos responsáveis pela construção de sua personalidade artística. Já no Rio de Janeiro, em 1894, Theodoro Braga estudou pintura na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), com os professores Belmiro de Almeida, Daniel Bérard e Zeferino da Costa, obtendo conceito máximo, quando de sua formatura em 1898.
Em 1899, recebeu o Prêmio de Viagem à Europa e partiu para aperfeiçoamento na cidade de Paris, onde estudou na Academia Julian com Jean-Paul Laurens, mestre da pintura histórica francesa. Na sua estadia em Paris, Theodoro Braga manteve contato com a arte decorativa francesa, assim como pode percorrer vários outros países europeus, estudando e colhendo informações e aperfeiçoando técnicas para melhorias de suas obras.
De regresso a Belém, em 1905, sua terra natal, pôde desenvolver pintura alusiva à fundação da cidade [cf. Imagem], por encomenda daquela municipalidade, fortalecendo seus vínculos com a pintura histórica. Ali produziu A planta brasileira (copiada do natural) aplicada à ornamentação, um repertório visual manuscrito com introdução de Manoel Campello, no qual o artista se utiliza da flora e fauna e dos padrões decorativos retirados da cerâmica produzida por culturas indígenas, especialmente da cerâmica marajoara, facilmente identificável com suas tramas geométricas, e labirínticas.
Theodoro Braga mudou-se para o Rio de Janeiro em 1921, gravitando neste período em torno dos docentes e dos formandos da ENBA, até que, no mesmo ano, mudou-se para São Paulo, para desenvolver atividade docente no Instituto de Engenharia Mackenzie, onde ministrou disciplina de Desenho Técnico, e na Escola de Belas Artes local, que chegou a dirigir. Ainda no Instituto de Engenharia Mackenzie, em 1930, Braga desenvolveu especificamente, nos cursos de Engenharia e Arquitetura, as disciplinas de desenho técnico, desenho a mão livre, arte decorativa, história da arte, modelagem e modelo vivo.
Mesmo tendo se radicado em São Paulo, manteve vínculos de pesquisa com o seu estado natal, assim como com a produção da ENBA, participando de salões da década de 1920, nos quais apresentou “uma série de projetos e protótipos de natureza diversificada, como colunas, vasos, tapetes, xales ou elementos tipográficos, aproveitando motivos da flora da Amazônia, bem como dos grafismos dos índios marajoara ou dos que habitaram outrora o rio Cunani, no Amapá”[2].
Sua produção ainda conta com a publicação do livro Artistas Pintores do Brasil, de 1942, e várias publicações em periódicos como na revista Ilustração Brasileira, com os textos Estylização nacional de arte decorativa aplicada, de 1921, e Nacionalização da arte brasileira, na mesma revista, em 1922. É possível, ainda, fazer menção às várias telas que pintou, como, por exemplo, A fundação da cidade de Belém, de 1908; Muiraquitã, de 1920 [cf. Imagem], e Périplo Máximo de Antônio Raposo Tavares, de 1928.
Por meio da pesquisa desenvolvida foi possível perceber que a produção de Braga, tanto artística quanto literária, é extremamente vasta e rica, sendo impossível mencioná-las, interpretá-las e descrevê-las neste artigo, que é fruto da pesquisa de Iniciação Científica, desenvolvida sob auspícios da FAPESP. Tal pesquisa tem por foco a trajetória de Theodoro Braga, personagem central deste artigo, elucidando sua relevância e atuação nas artes visuais e na arquitetura brasileiras da primeira metade do século XX, ao mesmo tempo em que procura encontrar elementos que favoreçam uma compreensão mais detida sobre certa “cultura marajoara”, que vicejou no Brasil no mesmo período.
Os grafismos da cerâmica marajoara, descobertos em pesquisa arqueológica em finais do século XIX, no Pará, foram acolhidos por artistas como sendo a origem da arte brasileira, livre de qualquer influência. O forte debate social e intelectual em torno da construção da identidade nacional propagandeou o retorno a tais padrões artísticos indígenas. Os resultados das pesquisas arqueológicas foram amplamente divulgados na primeira metade do século XX, atraindo não apenas a atenção dos pesquisadores e estudiosos, mas também dos habitantes do Estado do Pará. A pesquisadora Denise Pahl Schaan alega que, conforme a cultura marajoara era descrita pelos cientistas, era ao mesmo tempo acolhida como um passado regional, fazendo com que a população se apoderasse da reconstituição deste passado, agregando-lhe sua própria interpretação.
[...] e eles tinham o meio ambiente como referência primordial para tudo o que faziam, e criaram uma matriz estética que precisa ser vista como pilar da história da arte. Mais do que estilos, esses povos criaram a escultura, a cerâmica, a gravura e a pintura. Antes deles nada havia. Qualquer arte produzida depois deles precisa ser vista em referência ao que eles fizeram, eles são a matriz, seja estética ou técnica.[3]
Esses apontamentos permitem verificar o pano de fundo em que a discussão sobre a cultura visual Marajoara se inseriu. Convém, então, tecer considerações sobre a produção de Theodoro Braga relacionada a nacionalização da arte brasileira. O pesquisador André Cozzi alega que a imagem frequente de Theodoro Braga como um pintor comportado, sempre calmo e resignado, não condiz com o que ele pretendia realmente, pois almejava uma “livre expressão fundamentada no rigor de estudos preliminares de matemática e geometria, não na subjetividade psicologizada”[4].
A intenção de Theodoro Braga era criar objetos decorativos com inspiração em elementos nacionais, visando enraizar uma “herança comum” na essência das criações artísticas brasileiras, através de uma memória nacional capaz de afastar qualquer estrangeirismo, causando, assim, uma identificação local. Ou seja, o projeto de Theodoro Braga era o de articular a sociedade em torno de um desenvolvimento artístico alternativo, e para tanto, a arte decorativa seria a melhor maneira de mobilizar toda uma sociedade, pois acreditava no fato que a arte era o elemento unificador das nações.
Segundo a pesquisadora Patrícia Bueno de Godoy, “o esforço de Theodoro Braga para a divulgação do projeto de nacionalização da arte brasileira visava chamar a atenção de professores e industriais, pois estes seriam os grandes responsáveis por espalhar esse novo caráter, verdadeiro da arte nacional”[4b]. Isso nos revela que Braga via no design uma atividade industrial, capaz de ser pensada dentro de agendas de reprodução da arte, contrariando, assim, a interpretação costumeira de que praticava uma arte “artesanal”.
Braga, de fato, concedeu amplo destaque à necessidade de implantação de cursos, desde as séries primárias, que contemplassem uma metodologia embasada no repertório nacional, e que redundassem num espraiamento de motivos marajoaras, os quais seriam, com o passar do tempo, inculcados na população brasileira, ao ponto desta se reconhecer como herdeira de tal cultura, apropriando-se assim de tais elementos.
O estudo sobre Theodoro Braga permite perceber a envergadura de sua produção, o empenho e a forma aplicada com que estudava. Portanto, é de fácil percepção a “multiformidade”[5] de toda a sua obra e pensamento. Já se sabe que um dos métodos utilizados por Braga foi o incentivo às modificações das práticas do ensino do desenho e da arte em geral no Brasil, para uma produção de obras com características presumidamente brasileiras, o que leva o pesquisador Clóvis Morais Rêgo a alegar que a preocupação com o brasileirismo se constitui em Braga “num 'leit-motiv'. A nacionalização de nossa arte se transforma nelee em uma quase obsessão”[6].
Braga acreditava que, por meio da orientação com caráter prático ao ensino de desenho e da união entre formas novas e típicas, seria construído o futuro estilo brasileiro[7]. Da mesma forma, alegava que “a grande Arte Nacional está entregue a mocidade brasileira, que tem sabido e saberá elevá-la ao apogeu da verdade, do sentimento e da originalidade. Falta-nos, porém, a nossa arte aplicada; aos nossos operários compete nacionaliza-la”[8].
Durante toda sua vida, Theodoro Braga esteve cercado pelas questões da arte e do ensino, dimensões que, entrelaçadas, seriam capazes de se integrarem ao cotidiano do povo brasileiro, como confirma a publicação do XVIII Salão Paulista de Belas Artes, em artigo necrológico: “oitenta anos viveu ele, pode-se dizer que tirando os tempos indecisos da infância, todos eles foram dedicados à arte.”[9]
Entretanto, a produção de Braga passou por mudanças de acordo com o contexto em que viveu: “mantendo ou não o pé no passado romântico, ou o corpo no ufanismo republicano, ou no modernismo que se abria a sua frente”[10], Braga buscava a nacionalização da arte brasileira, que se daria, como dito anteriormente, pela libertação estético-visual dos modelos estrangeiros. Entretanto, Theodoro Braga começou a ter contato primeiramente com a arte decorativa francesa, quando residiu em Paris para a realização de seus estudos como pensionista da ENBA. Segundo a pesquisadora Patrícia Bueno de Godoy, Braga teria sido influenciado por Eugène Grasset, artista de extrema importância na arte decorativa e um dos nomes mais significativos do Art Nouveau. Como sabido, uma das ideologias compositivas da Art Nouveau é a estilização de motivos vegetais, de maneira a invocar uma nova relação com a natureza, tema lançado ainda no século XIX, por Viollet-le-Duc.
De acordo com Godoy, em seu estudo Nacionalismo na arte decorativa brasileira - De Eliseu Visconti a Theodoro Braga, o projeto de Braga tinha como principal objetivo a articulação da sociedade para um desenvolvimento artístico alternativo, introduzindo concepções modernas e um debate nacionalista sobre o ornamento e o ensino da arte:
Acreditava que o estabelecimento de um estilo inconfundivelmente brasileiro deveria surgir com a infiltração do ornamento - inspirado na flora, na fauna e na arte marajoara - em todas as esferas sociais. Para isso, a reformulação educacional era a medida mais urgente a ser executada. O ensino da arte decorativa, desde as primeiras séries escolares, e a eliminação dos repertórios estrangeiros, exaustivamente copiados pelos alunos, seria a maneira ideal para instituir uma arte incontestavelmente nacional.[11]
Braga, em suas publicações, tentava comprovar que as mudanças nos padrões artísticos brasileiros poderiam mudar e enraizarem-se em si mesmos, alegando, assim, que para nacionalizar a arte seria necessário, primeiramente, educar e instruir o operariado desde o início, incorporando o ensino de desenho nas escolas brasileiras.
Não somente Patrícia Bueno de Godoy vem desenvolvendo pesquisa acerca das produções de Braga, pois é perceptível que nos últimos anos houve um crescimento de estudos que buscam entender melhor a figura e o tempo de Theodoro Braga. Segundo Edilson da Silveira Coelho, pesquisador citado anteriormente, o fato de Braga ter se tornado rapidamente um artista de renome no Pará fez com que este se sentisse “o responsável por propor mudanças sobre o modo de fazer arte na Amazônia”[12].
De acordo com Coelho, Braga passou a fazer vários convites a artistas brasileiros para exporem suas obras no Pará, beneficiando-se da expansão do mercado da borracha, e ajudando na divulgação de uma arte “mais nacional”, assim como já faziam os artistas estrangeiros. Outra atitude tomada por Braga, segundo Edilson da Silveira Coelho, foi a de promover entre 1908 a 1920, uma grande quantidade de exposições escolares, as quais seriam capazes de incentivar a formação crítica e estética de crianças e adolescentes[13].
Pode-se perceber claramente que, para Edilson da Silveira Coelho, o papel de maior importância de Braga foi o de conseguir ser, ao mesmo tempo, tanto um pintor “clássico” quanto moderno, já que, por meio de suas atividades e de sua campanha nacionalista, foi capaz de desenvolver a história da Amazônia sob uma nova perspectiva.
Theodoro Braga primava pela pesquisa, resgate e exaltação dos elementos regionais e populares por meio da cultura, buscando, conforme já defendia Angelo Agostini no final do século XIX, o fim das idealizações da história e da mitologia sobre o Brasil e captando a paisagem do país, para que finalmente se pudesse constituir uma escola efetivamente nacionalista de pintura, traduzindo em arte a alma do povo brasileiro, como Alberto Nepomuceno e Heitor Villa-Lobos fizeram na música, Mário de Andrade e Portinari, na literatura e nas artes plásticas.[14]
O historiador André Cozzi também defende uma visão específica acerca de Theodoro Braga, e alega que, ao fazer um estudo sobre as obras de Theodoro Braga, especialmente a tela Fascinação de Iara [cf. Imagem], “é [preciso] tentar fazer o percurso de um artista que vive mais que a mero interesse pelo belo”, pois as obras de Braga podem ser entendidas como forma de manifestação modernista para a redefinição da identidade nacional brasileira. Para ele, a produção de Braga seria uma “proposição para um novo modelo social”, pois se percebe a mudança nos personagens indígenas, que passam a ter presença como sujeito, “passam a protagonizar, juntamente com seu fabulário, como a genuína e verdadeira identidade nacional, a ser entendida e valorizada como tal”.
A produção de Aldrin de Figueiredo é a que mais bem tem delineado a atuação de Theodoro Braga. Em um dos seus textos, A memória modernista do tempo do Rei: narrativas das guerras napoleônicas e do Grão-Pará nos tempos do Brasil-Reino (1808-1831), o autor explora a presença de Braga dentro do ambiente modernista que vicejava no Brasil nos anos 1920-1930, e demonstra sua erudição e diligente pesquisa, sobretudo sobre os temas amazônicos [15].
Aldrin Figueiredo alega que o estudo de pintura histórica na Europa fez com que Theodoro Braga constituísse um estilo próprio e criasse um “projeto de obra, qual seja o de elaborar uma versão pictórica da história da Amazônia”:
Entre 1903 e 1905, Theodoro Braga se dedicou a costurar um novo momento nas artes plásticas do Pará, com iniciativas de aproximação entre artistas, literatos e autoridades do governo local em torno do debate do nacionalismo, da identidade regional e da história pátria. Sua atividade como pintor se enredou cada vez mais nos estudos genéricos, sem uma linha temática definida, para o universo urbano de Belém.[16]
Theodoro Braga começava assim, segundo Figueiredo, a compor uma nova leitura sobre a velha história da Amazônia, pois, por meio da tela A fundação da cidade de Belém, Braga teria inventado o modernismo no Pará, e sua modernidade está mais inserida no papel de “recontar e reescrever a própria história da arte”[17] do que propriamente em suas técnicas de pintura utilizadas. Segundo Figueiredo, no início do século XX, Theodoro Braga dentre outros intelectuais, começava a atuar na “investigação de um 'fundo gentílico' das tradições paraenses, por meio de registro folclórico”, registrando “a autenticidade e a beleza desses costumes em potencial via de extinção”[18].
Outro autor de extrema importância é Clóvis Morais Rêgo, que em sua pesquisa tenta mostrar o perfil e a intensidade das produções de Theodoro Braga, declarando, “nos campos em que pontificou, quer no das artes, como no das letras e especialmente da historiografia, o traço inconfundível de sua pujança mental”[19]. Clóvis Morais Rêgo é o responsável pela elaboração do livro Theodoro Braga: historiador e artista, publicado em 1974, resultado das comemorações do centenário de nascimento de Braga, obra de extrema importância, pois consegue capturar algumas de suas obras plásticas, como charges, um escudo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, duas caricaturas de Braga, além de alguns frontispícios de suas publicações bibliográficas.
Clóvis Morais Rêgo ainda transcreve, nesse trabalho, a homenagem póstuma que Braga recebeu no V Salão Paulista de Belas Artes, no qual foi aclamado pela qualidade de seus trabalhos, como pode ser percebido no excerto:
[...] E o extraordinário em Theodoro Braga é que, quanto mais o seu espírito se universalizava, mais o seu temperamento de artista se abrasileirava. No caso, pode-se dizer que a sua cultura, o seu saber, o seu amplo conhecimento do mundo e das culturas de outras terras e gentes serviu para que nele se acentuasse cada vez mais o amor ao Brasil.
Por meio dessa mesma publicação, é possível perceber que, de fato, Theodoro Braga ficou conhecido por suas investidas na nacionalização da arte, sendo até mesmo considerado obsessivo, pois buscava elementos na flora e na fauna brasileiras e ainda na composição de nossos índios, para a campanha que passa a desenvolver em prol da arte decorativa, elementos que aparecem na grande maioria de suas produções pictóricas e publicações literárias. O resgate da arte indígena propagandeado por Braga consiste especialmente na aplicação dos motivos marajoara, como dito anteriormente, em variados tipos de suporte, na intenção de difundir e nacionalizar a “verdadeira” arte brasileira esquecida, em detrimento dos estrangeiros, fenômeno que se convencionou chamar de estilo marajoara, marajoara-déco ou neomarajoara.
Márcio Roiter afirma que, nas primeiras décadas do século XX, acontece na decoração das casas uma epidemia deste estilo, já que os labirintos, zigue-zagues, gregas e tramas geométricas, derivadas dos desenhos marajoara eram aplicados em toda e qualquer superfície. Segundo Roiter, a identidade brasileira entre os anos de 1930 e 1950, período de vigência do Art Déco, era representada pela vertente aborígene, marajoara, guarani, tupi e tupinambá, e até o próprio governo de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, incentivava o orgulho nacional, tentando buscar nas origens os parâmetros para um projeto de nação[20]. É justamente neste período que surgem os selos e moedas com decorações marajoaras [Figura 1].
O Art Déco é o termo que mais costumeiramente se associa às manifestações no campo das artes decorativas e na arquitetura produzidas partir da década de 1920, no estrangeiro, identificadas pela utilização de estruturas geometrizadas e de forte influência cubista. Segundo Marcelo Araujo e Regina Barros[21], estudiosos destas manifestações, o nome Art Déco é derivado da abreviação da Exposition Internationalle des Arts Décorative et Industrilles Modernes, acontecida em Paris entre abril e outubro de 1925. Tal exposição teve como finalidade incentivar a união produtiva entre artistas, artesãos e fabricantes de manufaturas, assim como estimular a abertura de mercados para as artes aplicadas produzidas na França. Tal exposição é de extrema importância no campo da arte, pois é um dos marcos da união entre indústria e a arte. A partir daquele momento o “luxuoso modern style rapidamente se disseminou por todo o mundo, incorporando influências locais. No Brasil, o Art Déco incorporou referências a motivos indígenas.”[22]
Para Theodoro Braga, a arquitetura, assim como a arte decorativa, deveriam se basear somente no que é brasileiro, como fica claro no texto Por uma arte brasileira, no qual declara, que a arquitetura,
arte por excelência, escrínio de todas as outras artes, melhor que todas elas, poderá, em todos os seus mínimos detalhes, como nos seus grandes conjuntos, através da alma vibrátil dos seus apóstolos abnegados, buscar na nossa natureza a linha, o gesto, o movimento, que possam caracterizar a arte arquitetônica brasileira.[23]
Não por acaso, Theodoro Braga exerceu durante muito tempo atividade docente dentro do curso de arquitetura no Instituto Mackenzie, dando também aulas de arte decorativa, permitindo que as bases de sua campanha de nacionalização da arte brasileira fossem transmitidas fortemente aos futuros arquitetos, pois os incentivava, claramente, a utilizar a natureza brasileira como um padrão ornamental. Em texto publicado na revista Acrópole, denominado Por uma arte brasileira, Braga repudia qualquer influência estrangeira em todos os âmbitos da arte. Por meio de sua campanha, carregada de conteúdo ideológico, tentou incentivar os arquitetos a criarem de forma prática uma “personalidade arquitetônica” verdadeiramente brasileira. Rogava ele aos arquitetos:
Façamos obra nossa por e para nós mesmos; e aos arquitetos, mais do que a qualquer outro artista, cabe delinear, em seus mínimos detalhes, o acabamento patriótico de suas obras, sempre expostas ao grande público, dando-lhes uma ornamentação que não se dispensa que eduque, pela execução plástica, o espírito popular, integrando-o no ambiente em que vive. Façamos obra nossa Brasileira.[24]
Essa atitude de Braga e de diversos outros contemporâneos seus, como Euclydes Fonseca, Manoel Pastana ou Fernando Correia Dias de Araújo, inscreve-se na construção de uma identidade nacional, sobretudo pela busca por um caráter nacional, que caminha em vários segmentos, mas é evidente que pode ser vista como uma questão de interpretação, carregada de subjetividade, mesmo que sejam demandas colocadas no coletivo, assim como a política, a cultura, a arquitetura e a arte.
Por meio deste estudo, ainda recente e relativamente no início, é possível perceber que, para Theodoro Braga, o principal objetivo de sua “campanha” era utilizar-se da natureza para criar uma visualidade compartilhada[25], genuinamente brasileira, como podem ser vistos em desenhos encontrados em seu acervo pessoal, base para o desenvolvimento deste estudo, que de certa forma são exemplares da estilização da flora e fauna brasileira nas artes plásticas [Figura 2a e Figura 2b]. Nesse sentido, Theodoro Braga alega:
a ubérrima natureza, dizíamos, dá-nos elementos com que poderemos, com estudo e inteligência, semelhante ao mineiro, o extrair de tantas maravilhas, a maravilha suprema, síntese objetiva que será o padrão da época em que vivemos - estilo, caráter, tipo, originalidade - , aceitando aos pósteros o caminho a seguir, levantando bem alto, como o lábaro da pátria, a nossa personalidade inconfundível.[26]
Em seu artigo Estylização Nacional de Arte Decorativa Applicada, Braga alega que “a pátria sacrossanta, possui, com essa inesgotável fonte de inspiração, capacidade para criar, como outros povos criaram, um estilo que caracterize a arte nacional em todas as modalidades práticas de sua vida de grande povo que é”[27]. A estilização da natureza em símbolos pátrios são bastante significativas, pois caminham de acordo com a discussões de seu momento de produção, em que a questão da formação de uma nacionalidade, de uma identidade nacional, fossem de fato projetadas para que as pessoas pudessem se identificar com a maneira que estavam sendo representadas.
A releitura de Braga desses símbolos faz parte, provavelmente, de seu estudo sobre escudos de armas, publicado em 1912, denominado “Estudos heráldico” - para a criação dos estudos d’armas para os municípios do Pará. Em outro texto, Cerâmica Ornamental, pede atenção e cuidado aos artistas em suas composições, para que a nova obra brasileira executada possa impressionar os leigos, “fazendo-lhes compreender esse sentimento de patriotismo”. Ou seja, Braga buscava estabelecer uma arte que pudesse trazer uma identificação com o público observador em geral, seria uma arte que todos pudessem compreender, não somente por sua composição técnica, mas, sobretudo, revelando de forma muito simples uma pátria, seria a representação de uma nação.
A produção de Theodoro Braga deve ser entendida como expressão de sua ideologia. Clóvis Morais Rego alega que Theodoro Braga “sonhou ver coisas velhas sob ângulos novos e [...] soube dar um cunho nacionalista à sua obra”[28]. Para Edilson da Silveira Coelho, esse olhar buscava ressaltar a “renovação que o artista buscava ao pensar a arte brasileira no seu tempo e projetá-la para o futuro. E, mesmo trocando a Amazônia pela selva de pedra paulistana, manteve-se tão amazônida quanto antes”[29], afirmação que pode ser facilmente confirmada por meio da análise de seu acervo pessoal, composto por grande documentação reunida desde 1921 até sua morte em 1953, constantemente utilizado para o desenvolvimento deste estudo.
De acordo com a análise deste acervo, Theodoro Braga acreditava que a renovação da arte brasileira deveria ter por base a sua própria origem; portanto, torna-se necessário o constante resgate das culturas indígenas amazônicas, permitindo “fortalecer a nossa individualidade”, fazendo-nos reconhecer nossos regionalismos e, principalmente, identificando-nos como “povo soberano”.
No Fundo Theodoro Braga encontraram-se conteúdos de grande relevância, pois foram os resultados de anos de pesquisa, que abarcaram todo e qualquer assunto que dizia respeito à região amazônica ou às artes, em geral. É possível verificar, na documentação consultada, uma forte ligação de Braga com o Estado do Pará, mesmo quando já residia no Rio de Janeiro e em São Paulo. Afirma-se isso porque boa parte da documentação analisada foi recolhida por Braga quando estava fora do Pará, e diz respeito a publicações das mais diversas naturezas, como, por exemplo, o Diário Oficial do Estado do Pará, que recebia diariamente em sua caixa postal, quando era docente do Instituto Mackenzie.
Em linhas gerais, grande parte dos documentos encontrados neste acervo são manuscritos, que abordam as biografias de pessoas relacionadas à história do Pará; recortes e cópias de Decretos-lei, retiradas do Diário Oficial do Pará, correspondências que dialogam diretamente com a produção e pesquisa de Braga. São encontradas, ainda, imagens de jardins, rios, paisagens naturais, de edificações e de pessoas; recortes de jornais, com notícias diversas com referência ao Pará; dossiês sobre exposições no Pará, relatórios de obras de artes e seus respectivos valores monetários; catálogo de exposições; desenhos; croquis de retratos; dossiês sobre economia das regiões paraenses; dossiês sobre saúde pública; dossiês sobre ensino; dossiê sobre religiões; dossiês sobre referência bibliográfica em geral.
Contudo, a maior parte dos documentos encontrados é de verbetes para um possível dicionário sobre a natureza do norte do país como pode ser verificado no documento Carta ao Instituto Nacional do Livro[30], no qual fica claro o interesse de Braga em publicar sua pesquisa de 37 anos sobre a região amazônica, com o título Dicionário enciclopédico do Estado do Pará.
Tenho em mãos, após 37 anos de pesquisas, aqui no Brasil cimo em varios países d’Europa, prestes para ser publicado, o meu Dicionário de História, Geografia, Etnografia, Monografias, Estatisticas, Biografias do Estado do Pará, que poderia ser intitulado também de Dicionário Enciclopedico do Estado do Pará. Na impossibilidade de vos apresentar os originais desse meu dicionário, tal a grande quantidade de papel escrito, ponho sob vossos olhos, alem de uma carta, em reprodução fotostática, do eminente historiador patricio Rocha Pombo, uma prova fotográfica do armário onde guardo, em ordem, os meus originais. [Figura 3]
Por meio deste acervo, pode-se perceber o tamanho da produção de Braga, seu empenho e a forma aplicada com que estudava, já que este é composto por documentos de diversos formatos, assuntos e gêneros, mostrando, assim, a extrema dinâmica de sua produção. É possível perceber seu alto grau de organização e de pleno entendimento do que é ser um artista e um historiador, já que em sua obra os dois campos constantemente se cruzaram, sendo possível afirmar que, para Braga, tudo podia ser historicizado, tudo podia ser tema de estudo, como, também, tudo podia ser alçado à categoria de fonte.
Enfim, pode-se concluir que de fato a produção de Theodoro Braga tanto artística visual, quanto literária esteve fortemente ligada a sua tentativa de construção de uma cultura e de uma representação de brasilidade, que pudesse, por meio de seu passado comum reunir e integrar toda uma sociedade, discurso muito frequente no início do século XX.
[1] COELHO, Edilson da Silveira. A multiforme obra artística e intelectual de Theodoro Braga. Comunicação apresentada no III Encontro de História da Arte da UNICAMP- IFCH/ UNICAMP. Campinas: IFCH, 2007. Disponível em: <http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2007/COELHO,%20Edilson%20da%20Silveira.pdf>. Acesso 1 dez. 2012.
[2] VALLE, Arthur. Repertórios Ornamentais e identidades no Brasil da 1ª República. Apresentado no XIII Encontro de História. Rio de Janeiro: ANPUH-Rio. p.7. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1213300383_ARQUIVO_anpuh_2008.pdf>.
[3] ANTES - Histórias da Pré-História. Concepção Marcelo Dantas; curadoria Niéde Guidon, Anne-Marie Pessis, Gabriela Martin; tradução Gavin Adams. Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro:, 2004. 300 p., il. color. p. 14.
[4] COZZI, André. “Fascinação de Iara” - o nacional e o feminino na obra de Theodoro Braga. 19&20, Rio de Janeiro, v. II, n. 2, abr. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/fascinacao_iara.htm>. Acesso 1 dez. 2012.
[4b] GODOY, Patrícia Bueno. O nacionalismo na arte decorativa brasileira - De Eliseu Visconti a Theodoro Braga. Comunicação Apresentada no I encontro de História da arte, IFCH-UNICAMP, Campinas: 2004. p. 84. Disponível em: <http://www.unicamp.br/chaa/rhaa/atas/atas-IEHA-v3-078-086-patricia%20bueno%20godoy.pdf>. Acesso 1 dez. 2012.
[5] COELHO, op. cit.
[6] MORAIS REGO, Clóvis. Theodoro Braga: historiador e artista. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1974, pp.28.
[7] BRAGA, Theodoro. Estylisação nacional de arte decorativa applicada. In: Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro: 25 dez. 1921. Nº. 16. Ano IX. Transcrição disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ilustracao_brasileira/ib_1922_09_tb.htm>. Acesso 1 dez. 2012.
[8] BRAGA, Theodoro. Nacionalização da arte brasileira. In: Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro: Ano X, set. 1922. Transcrição disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ilustracao_brasileira/ib_1921_12_tb.htm>. Acesso 1 dez. 2012.
[9] XVIII SALÃO PAULISTA DE BELAS ARTES. São Paulo: Galeria Prestes, 1953. (homenagem póstuma a Theodoro Braga).
[10] COELHO, op. cit, p.167..
[11] GODOY, op. cit., p. 80.
[12] COELHO, op. cit., p.162.
[13] Idem.
[14] Idem. p. 166.
[15] FIGUEIREDO, Aldrin Moura . A memória modernista do tempo do Rei: narrativas das guerras napoleônicas e do Grão Pará III nos tempos do Brasil - Reino (1808-18310). Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008.
[16] FIGUEIREDO, Aldrin Moura . Quimera Amazônica: Arte, mecenato e colecionismo em Belém do Pará, 1890-1910. CLIO. Série História do Nordeste (UFPE), v. 28, p. 71-93, 2010.
[17] FIGUEIREDO, Aldrin Moura . A fundação da Cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará, de Theodoro Braga. Nossa História, Rio de Janeiro, v. 1, n. 12, p. 22-26, 2004.
[18] FIGUEIREDO, Aldrin Moura. Eternos modernos: uma história social da arte e da literatura na Amazônia, 1908- 1929. Tese de doutorado. Campinas, UNICAP, 2001. p 79.
[19] MORAIS REGO, op. cit, p. 25.
[20] ROITER, Márcio Alves. A Influência Marajoara no Art Déco Brasileiro. In. Revista UFG, Julho 2010, Ano XII nº 8, p.20.
[21] O Art Déco Brasileiro. Coleção Fulvia e Adolpho Leiner. Pinacoteca do Estado de São Paulo. 2008, p.8.
[22] Idem, p. 9.
[23] BRAGA, Theodoro. Por uma arte Brasileira. In: Revista de Engenharia Mackenzie, São Paulo, Jul ,1938.
[24] PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. O marajoara. In. Modernizada ou Moderna? A arquitetura em São Paulo, 1938-45. (Tese de Doutorado) São Paulo: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 36.
[25] Theodoro Braga acreditava que por meio da utilização da flora “nacional” nos mais diversos suportes artísticos, contribuiria para levar o povo brasileiro a perceber a relevância nacional no cenário artístico.
[26] BRAGA, Theodoro. Estylisação nacional de arte decorativa applicada, op. cit.
[27] Idem.
[28] MORAIS REGO, Clóvis, op. cit.
[29] COELHO, Edilson da Silveira, op. cit.
[30] Carta ao Instituto Nacional do Livro, encaminhada ao Sr. Dr. Américo Facó, chefe de seção da enciclopédia e de dicionário do instituto nacional do livro no Rio de Janeiro em 15 de agosto de 1944. Correspondência de Theodoro Braga. Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo - Fundo Theodoro Braga “Recortes de Jornais, Manuscritos (c, e, f, g, h) Correspondências, Calendário, Recortes do Diário Oficial de 1938”. Caixa 00401.