Do Pitoresco ao Sublime: Eduard Hildebrandt no Brasil (1844)
Rafael
Alves Pinto Junior
PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Do Pitoresco ao
Sublime: Eduard Hildebrandt no Brasil (1844). 19&20, Rio de Janeiro, v.
XVI, n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.08
* * *
1. Dentre
os vários artistas viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, Eduard Hildebrandt (1818-1868) foi um dos que mais parecem
ter se distanciado das pretensões cientificas que moveram a mão e os olhos de
viajantes como Spix, Martius ou Debret,
por exemplo. Sua produção se aproxima do puramente estético, ainda que pesem as
preocupações com o registo, com o lugar. Hildebrandt, dono de uma paleta única,
produziu uma obra própria, autoral e inconfundível, estruturada em princípios
compositivos e formais que a diferenciou das demais produzidas em seu tempo
(ZAROBELL, 2003). Para Castro Maya (1965, p.162), ele era um expoente entre os
aquarelistas.[1]
2. Os
estudos referentes aos artistas viajantes não são novos. Muitos já foi dito
sobre os olhares estrangeiros em várias abordagens. Vale ressaltar que, por
artista viajante entende-se aqueles que se aventuraram por lugares além
das fronteiras europeias. Como tal, Hildebrandt se incluiu entre os que, a
partir de 1822, se dispuseram a (re)descobrir o Brasil.[2] Neste
contexto, existe uma extensa bibliografia específica sobre o tema e recapitular
esta questão ultrapassa em muito os limites deste trabalho. No entanto, a
complexidade deste debate não compromete em absoluto a análise proposta.
Estamos a ressaltar a tessituras de camadas de significações à composição de
algumas obras de uma produção específica, uma operação de leitura da imagem a
que nos convida Baxandall (2006). Desta forma, de maneira geral, parece válido
concluir que a ampla bibliografia sobre o tema geralmente não se debruça sobre
os aspectos formais das obras. Como Claudia Mattos (2007, p. 411) acertadamente
observou, esta bibliografia se deter no discurso a respeito do olhar europeu,
tateando os limites do próprio discurso. Preocupações a respeito de identidades
e significações parecem ter tido mais interesse.
3. Como
herdeiros do Iluminismo, estes artistas viajantes se esforçaram para registrar,
catalogar, sistematizar e hierarquizar o que viam (BELLUZZO, 1994). Evidentemente
que não lhes era possível desembaraçarem-se de convicções pessoais, formações
acadêmicas e cargas simbólicas pessoais. Como resultado, produziram olhares que
devem ser relativizados: muitas vezes romantizando narrativas e impressões, ou
carregando nas comparações com o mundo civilizado que a Europa representava.
Não levaram em consideração que o Brasil não havia passado por um processo de
modernização como seus países de origem e que, sobretudo no interior, devido às
distâncias continentais, estes antagonismos eram ainda mais contrastantes.
Neste complexo jogo das alteridades, as diferenças de biografias produziram
diferentes narrativas: olhares sempre deslocados, ainda que portadores a
priori de uma intenção científica, objetiva e de acordo com seus próprios
princípios de coerência e consistência analítica (ADÈS, 1997). Desta maneira,
os registros dos viajantes são registros do que suas culturas permitiam-lhes
ver. Se, de um lado, suas percepções estavam aguçadas pelas possibilidades de
comparações culturais, por outro lado não deixavam de ser prejudicadas pela
falta de vivência do habitante, pois desconheciam a história do presente
testemunho. Para Márcia Naxara (2001), ao aliar ciência e estética numa
sensibilidade romântica, esse olhar estrangeiro alicerçou um modo de
representação onde, juntamente com o interesse científico, vicejavam críticas
às populações locais e menos “civilizadas” que o padrão europeu. Essa ação
fundamentou todo um discurso orbitando em torno de conceitos como barbárie, decadência,
atraso, pobreza e ignorância.
4. Coloco-me
ao lado de pesquisadores que entendem que este conceito de artista “viajante”
tendeu a reduzir o não europeu a um outro genérico. E. como tal, impede a
compreensão da diversidade da produção desses artistas, funcionando como uma
forma de resistência ao projeto de construção de uma história da arte global,
isenta dos preconceitos que acompanharam o surgimento e desenvolvimento da
disciplina desde o século XIX (MATTOS, 2007, p. 412). Importa, pois, utilizar o
instrumental analítico próprio do campo das imagens à compreensão da produção
destes artistas estrangeiros. Reconhecer a pluralidade de abordagens, a
diversidade da produção e os aspectos formais das sensibilidades envolvidas
neste processo parece propiciar um caminho mais frutífero que o do debate entre
identidades construídas ou anuladas.
5. Em
relação a Hildebrandt, sabe-se que uma sensibilidade romântica o moveu desde
cedo à instrução. Aos dezenove anos de idade, foi ser aluno de Wilhelm August
Leopold Krause (1803-1864), conhecido pintor de paisagens e marinhas. Como
outros artistas românticos de sua época, Krause recebeu influência de
importantes conceitos filosóficos. Dentre eles, está o Sublime dinâmico
conceituado por Kant (1995) em 1790: o homem impotente diante de céus
tempestuosos, mares revoltos e nuvens turbulentas. Esta postura filosófica
diante do mundo natural foi retomada por vários autores, com tonalidades
variadas ao longo de todo o século XIX que alimentaram a sensibilidade
romântica nas mais variadas formas de expressão. A pintura, a música e a
literatura se ocuparam em expressar este sentimento em tinta, sons e texto.
6. Hildebrandt
não esteve ausente deste debate e parece ter filtrado a turbulência expressa em
muitas das composições de Krause, ao mesmo tempo em que parece ter absorvido
como o professor dispunha da luminosidade e fazia dela um elemento
estruturante. As formas são criaturas de luz no sentido em que a luz estrutura
a composição. Em obras como Penhasco de Dover, de 1842 [Figura 1], por
exemplo, podemos observar um princípio: o primeiro plano aparece na penumbra
contrastando com a iluminação direta do plano posterior. Desta maneira, o ponto
focal da composição desloca-se para o fundo garantindo profundidade à imagem.
Ao mesmo tempo, o contraste torna-se dramático, semelhante a uma iluminação
teatral.
7. Com
Krause, Hildebrandt parece também ter alicerçado o entendimento de que, mais do
que o espaço exterior ao homem, a paisagem é produto de uma maneira de ver o
espaço. Contrariamente ao ponto de vista científico que entende a paisagem como
produto das forças naturais, a arte lhe atribui significado. Inscreve-a no
conjunto do imaginário social (FÍGOLI, 2007).
8. Certamente
Hildebrandt teve várias influências. O mundo artístico de sua época estava em
ebulição. O fluxo do romantismo na Alemanha foi se espalhando, notadamente a
partir de 1819, com a influência da Escola de Pintura de Düsseldorf, um
conjunto de tendências que comportava tanto uma visão realista, mais crítica,
quanto temas como a pintura de gênero e de paisagens. Como todo fazer
artístico, o de Hildebrandt bebia das fontes disponíveis.
9. Depois
de Krause, Hildebrandt foi em 1842 para Paris onde trabalhou com o pintor
Eugène Louis Gabriel Isabey (1803-1886). Em 1842, Isabey era já um artista
conceituado no meio da época. Dedicava-se à pintura de gênero, cenas históricas
e paisagens, com predileção por cenas de naufrágio e céus tempestuosos.
Dominava uma paleta mais escura em composições carregadas de tensões. Mesmo nas
composições menos trágicas, Isabey não abandonou as tensões compositivas com a
luz a aparecer como elemento pulsional.
10. Como
Krause na Alemanha, Isabey se dedicava às marinhas. As aquarelas que ele
produziu se diferenciam das elaboradas composições do atelier. E parece
plausível supor que Hildebrandt tenha sido mais sensível a estas aquarelas
menos convulsionadas, mas carregadas de tensões. Em Fortaleza marinha [Figura 2], por
exemplo, podemos identificar uma horizontalidade dominante com o conjunto de
figuras ocupando aproximadamente um terço da porção inferior do quadro. Adiante
teremos a oportunidade de observar como Hildebrandt usou este modelo. Importa
aqui observar que parece ter sido através de Isabey que Hildebrandt teria
conseguido a maestria das composições e o domínio da técnica como aquarelista
tão apreciada pelos críticos.
11. Vale
ressaltar que recapitular os caminhos biográficos de Hildebrandt está muito
além dos nossos objetivos. Apenas procuraremos identificar as influências
artísticas que parecem ter contribuído para sua obra. Um caminho metodológico
para instrumentalizar a análise de algumas obras que ele produziu no Brasil.
Assim, depois da França, em 1843 Hildebrandt retornou para a Alemanha e
conheceu o célebre cientista Alexander von Humboldt (1769-1859). O artista
chegou a retratar o cientista em sua biblioteca em Berlim [Figura 3]. Por recomendação
de Humboldt, Hildebrandt recebeu uma premiação de viagem financiada pelo
Imperador Frederico Guilherme IV - uma viagem que o levaria ao Brasil e aos
Estados Unidos e que seria um ponto de inflexão em sua produção artística. A
produção de marinhas recuaria sensivelmente dando lugar a paisagens com
vigorosos efeitos de luz e sombra.
12. A
questão que nos interessa é a identificação dos princípios que o artista
utilizou na produção de sua obra em sua breve passagem pelo Brasil. A hipótese
é que ele fundamentou estas composições valendo-se de dois conceitos: o
Pitoresco e o Sublime dinâmico, amalgamando elementos e reinterpretando à sua
maneira na criação de uma obra autoral. Resumidamente, faremos uma breve
recapitulação destes conceitos para entender como eles foram (re)interpretados
por Hildebrant.
O
Pitoresco
13. O que
se entende como Pitoresco foi teorizado pelo escritor e desenhista britânico
Alexander Cozens (1717-1786) em seu tratado Um
novo método de auxílio à invenção no desenho de composições paisagísticas
originais (1785). De acordo com Argan (1988, p. 18), o objetivo
da estética do Pitoresco era a construção da variedade das aparências,
aplicando um sentido à natureza semelhante às significações que os humanos
atribuem às coisas. Com isto em mente, importava excluir pretensões
universalizantes e focar no que de característico e particular pudesse ser
construído através da poética da arte. Descortinava-se uma nova possibilidade
de posicionamento frente aos estímulos do mundo natural, estímulos que o
artista devia captar e construir sobretudo pela diversidade que as paisagens
naturais poderiam oferecer.
14. As palavras de Cozens não caíram em terra estéril. Ao
contrário. o Pitoresco entrou no centro do debate artístico do final do século
XVIII até meados do século XIX. Em pouco tempo, outros pensadores se dedicaram
ao tema, aprofundando as colocações de Cozens. Willian Gilpin (1724-1804), por
exemplo, no segundo ensaio do livro Tree Essays
(1792) desenvolveu um argumento que teria grande influência no século XIX: o
prazer de se encontrar o Pitoresco através de viagens. Para ele, o Pitoresco
seria um conjunto de regras colocadas como um instrumental de representação ao
mundo natural. Principalmente em regiões inexploradas e em paisagens
“inéditas.” o olhar do observador (artista) seria conduzido a uma espécie de
suspense onde o prazer de se encontrar o novo seria continuamente deslocado
para um horizonte mantido fugidio. A beleza estava em toda parte, mas seria
alcançada pelo interesse da visão estética em “descortinar” uma paisagem.[3]
15. De
acordo com esse raciocínio, para se fazer uma composição artística legitimamente
pitoresca importava atentar principalmente para dois princípios estruturantes:
em primeiro lugar, a textura que deveria ser rica, não ser lisa e não possuir
linhas retilíneas “óbvias;” em segundo lugar, o contraste que deveria
estruturar um primeiro plano escuro ou na penumbra e um plano posterior
iluminado. A colocação de um ponto focal na claridade em planos posteriores
garantiria a impressão da “distância” e da “profundidade” do campo pictórico
tão cara à visão das paisagens.[4]
16. Pontos
de vista à altura do observador eram sempre preferíeis às vistas aéreas,
garantindo a fidedignidade do “olhar” do artista - algo como se o observador
estivesse nos olhos do autor e pudesse, de alguma maneira, vivenciar uma parte
da experiencia estética por ele construída. Ao projeto estético romântico, os
matizes peculiares importavam: diferenças de um lugar de outro, as
especificidades locais de um povo que o diferenciava-o de um outro etc. Para o
romantismo, as diferenças identitárias formavam as características de cada
indivíduo visto como único, inserido à nação a qual pertencia (ROSENFELD,
1978). Neste raciocínio, as paisagens poderiam formar uma espécie de “catálogo”
correspondente aos povos espalhados pelo planeta.
O
Sublime dinâmico
17. Tal
como Pitoresco, o tema do Sublime estava no cerne da concepção romântica de
arte. Como artista instruído de sua época, era natural que Hildebrant estivesse
familiarizado com reflexões acerca do Sublime desencadeadas por Edmund Burke
(1729-1797) e, mais tarde, por Kant (1724-1804). A obra de Burke Pesquisa
Filosófica sobre a origem de nossas ideias de Sublime, publicado em 1756,
contribuiu, mais que qualquer outra, para difundir o tema do Sublime. Para
Burke (1993, p. 48):
18.
Tudo aquilo que pode despertar ideias de dor e
perigo, ou seja, tudo aquilo que seja, em certo sentido, terrível ou que diga
respeito a objetos terríveis, ou que atue de modo análogo ao terror é uma fonte
de Sublime, ou seja, é aquilo que produz a mais forte emoção que o espírito é capaz
de sentir.
19. Ainda
que o autor reconheça ser incapaz de explicar as causas do que denomina como
Sublime, sua concepção implica no estabelecimento de uma relativa distância do
objeto estético. O artista vê, sente e compõe a cena, mas esta não o atinge. Está
posta, colocada “lá,” por mais amedrontadora, triste ou trágica que possa ser.
20. Em
1790, Kant, com sua Critica da Faculdade do Juízo, aprofundou a
diferenciação entre o Belo e o Sublime e categorizou duas formas da experiencia
do Sublime: o matemático e o dinâmico. De acordo com Kant, a visão de um céu
estrelado ou a contemplação do Universo, do Cosmos e do Firmamento seriam
exemplos de experiencias do Sublime matemático. A razão advinda dos sentidos
seria sobrepujada pela imaginação diante de conceitos como infinito e
eternidade, ma dimensão além da escala humana a esmagar o eu do observador
sensível. Por outro lado, o Sublime dinâmico corresponderia à impressão de uma
infinita potência, não a impressão de uma infinita vastidão (ECO, 2007, p.
294). A visão da expressão das forças da natureza - como uma tempestade - seria
um exemplo de uma experiência deste tipo do Sublime. Analisando o Sublime
dinâmico, Jair Barboza (2012, p. 106-107) observou que:
21.
Ora, a filosofia transcendental kantiana,
ao descrever o “jogo” (Spiel) entre as faculdades de conhecimento, razão e
imaginação, que caracteriza o Sublime, nota que em tais ocasiões o sentimento
atinge uma máxima tensão, em especial no chamado Sublime dinâmico, que provém
precisamente da elevação diante de terríveis forças. Aqui se trata de um
momento em que, não obstante o medo, é-se remetido à própria “destinação
suprassensível.” Os objetos infinitamente poderosos que contrastam com a
insignificância física do espectador e o fazem temer pela própria integridade,
possibilitam a ele, no entanto, uma elevação por sobre a sua inferioridade
ilusória, ao fazê-lo descobrir em si uma autoconservação de tipo inteiramente
diferente. Ele sente-se partícipe da humanidade indestrutível, sente-se para
além do mero corpo físico ameaçado de aniquilamento.
22. Trata-se
de um espetáculo que oferece uma atração proporcional à magnitude do terror que
ele suscita - para Kant, um espetáculo filtrado pela razão. Uma situação em que
o sujeito se coloca em condições propícias para desvelar a experiência
resultante do enfrentamento com o poder da natureza. Em ambas as experiencias
do Sublime – matemático ou dinâmico – o sujeito recorre à razão: diante da
incapacidade da imaginação, o puro sensível capitula.
23. Estes
conceitos foram retomados, debatidos e rediscutidos por diversos escritores e
artistas nas mais diversas áreas, alimentando a sensibilidade do romantismo ao
longo de grande parte do século XIX. Uma sensibilidade partícipe do lastro
cultural que exerceu - como em todo processo cultural - ações de poderosos
filtros perceptivos que interferem na percepção enquanto são transformados por
ela. A obra de Eduard Hildebrandt é particularmente interessante a demonstrar
esse processo.
Hildebrandt
no Brasil
24. Quando
Hildebrandt rumou para o Brasil, veio imbuído pelo desejo de apreender os
lugares. Sabia que o tempo era exíguo e muitos esboços seriam desenvolvidos
após seu retorno à Europa. O artista chegou ao Brasil em março de 1844 e foi
recebido com distinção. Ficou até meados de outubro. Foi retratado em aquarela
por Louis Auguste Moreaux (1818-1877), percorreu lugares no Rio
de Janeiro, São Paulo, Salvador e Pernambuco, e deixou material para a V
Exposição Geral de Belas Artes, que se realizaria em dezembro daquele ano. O
retrato feito por Moreaux [Figura 4] mostra um homem do alto de seus 26 anos em
camisa de algodão, lenço no pescoço e amplo chapéu a encarar com firmeza o
observador. O braço esquerdo apoiado numa simples cadeira de madeira pretende
certa espontaneidade.
25. A
viagem de Hildebrandt ao Brasil resultou em 170 obras, entre desenhos e
aquarelas, algumas das quais serviram de base para algumas composições a óleo
executadas entre 1845-46, após seu retorno à Europa.
26. De uma
maneira geral, exceto em obras panorâmicas como a da Baia de Salvador e a do
Rio de Janeiro [Figura
5 e Figura 6],
parece válido observar a aplicação de princípios lastreados na sensibilidade
romântica em que ele estava inexorável e naturalmente imerso. Alguns aspectos
particulares de suas obras são, de fato, originais. O fato de que não seja
difícil encontrar referências e precursores[5] em
nada deslustra sua produção. Esta parece ser original sobretudo à medida em que
se afasta de visões pretensamente objetivas que embasaram diversas obras de
muitos artistas de sua época. Algumas de suas obras parecem ser produto de uma
equação entre a razão e a emoção solidamente construídas, ainda que estejam
ausentes pretensões de se excluir ou resolver antíteses desta natureza. Por um
lado, a razão pode ser reconhecida pelo desejo do registro da paisagem; por
outro lado, a emoção pode ser identificada pelos princípios compositivos que
Hildebrandt empregou na composição das imagens. Se ele fez isto consciente ou
se fez através de sua poiesis - resultado da sensibilidade romântica de
seu tempo - é outra questão.
27. Em
obras como São Paulo (1844) [Figura 7], podemos identificar algumas das influências
que o artista recebeu de Wilhelm A. L. C. Krause. O primeiro plano, na
penumbra, funciona como uma base para que a paisagem urbana apareça iluminada
ao fundo. Aqui também podemos identificar uma estrutura que Hildebrandt empregaria
muitas vezes: figuras dispostas ocupando aproximadamente a metade ou a terça
parte inferior do espaço compositivo. Metade ou dois terços da composição
ficavam reservadas para o céu e seus efeitos. A intenção do Pitoresco pode ser
identificada na pretensão de caracterizar o lugar, como uma primeira intenção a
mover o pincel do artista. São Paulo, em 1844, pouca coisa era além de uma
cidade no sertão e como tal ela aparece vista pelo artista. A experiência do
Sublime dinâmico é garantida pela tensão criada pela luminosidade. Não há
necessidade de céus tempestuosos ou demonstrações de convulsões de forças
naturais. O contraste entre o caminho do primeiro plano e a paisagem urbana ao
fundo cria uma suficiente tensão visual. O artista utilizaria esse recurso em
diversas outras oportunidades com graus variáveis de intensidade. Outros
exemplos deste princípio compositivo podem ser identificados em obras como Lagoa
Rodrigo de Freitas (1844) [Figura 8] e Igreja da Piedade, Salvador (1844) [Figura 9].
28. Este
princípio tensional gerador aparece em algumas imagens da paisagem urbana. Chafariz
e Igreja de Santa Rita no Largo de Santa Rita, de 1844 [Figura 10], é um
exemplo bastante claro. Se em São Paulo, o mundo natural na penumbra
aparece contrastante em primeiro plano, em Chafariz e Igreja de Santa Rita é
o conjunto de figuras humanas que desempenha este papel. O conjunto de
escravos, realizando diversas atividades em dois grupos à esquerda e à direita,
contrasta fortemente com a alvura da igreja iluminada ao fundo. O chafariz e as
fachadas de alguns edifícios à direita também estão na sombra, ampliando o conjunto
do contraste entre a luz e a sombra. Uma pequena procissão - que parece não vir
da igreja -, liderada por um homem branco com uma bandeira, forma um pequeno
ponto de luz na sombra à direita da imagem. O céu, claro, forma um fundo
complementar à fachada iluminada. Ainda que a arquitetura ocupe área
considerável da composição, são os tons claros que unificam a luz da cena. O
conjunto de figuras humanas ocupa a parte inferior da imagem e marca uma
horizontalidade que reforça o contraste das luzes e a verticalidade da
arquitetura. Em Rio de Janeiro, Igreja de Santa Rita (1844) [Figura 11], os
contrastes entre as sombras e a luz são ainda mais dramáticos: casebres e
formas na penumbra praticamente englobam a forma da alvenaria branca posterior
da igreja, fortemente iluminada.
29. Rua do
Ouvidor (1844) [Figura 12] é outro exemplo desta estrutura compositiva.
O conjunto de figuras humanas, coisas e objetos na rua também formam uma massa
horizontal na penumbra, oposta ao espaço edificado e iluminado ao fundo. Para
Hildebrandt, o conjunto de coisas, escravos, feixes de cana e lixo são formas a
compor o contraste, que se opõe à organização retilínea da torre da igreja ao
fundo. Contraste que o artista utiliza com desenvoltura, um recurso que tanto
pode ser obtido com elementos do mundo natural quanto com elementos do espaço
construído. Contrastes tensionais são objetivos compositivos que Hildebrandt
parece ter se esforçado para produzir nas obras que fez no Brasil. O Pitoresco
pode ser identificado com o que ele aqui viu no Brasil e pretendeu classificar
como “brasileiro;” entretanto, parece ser incorreto dizer que isto deva ser
entendido como um padrão de intenção. O Pitoresco, ainda que tenha subsidiado o
artista, não parece ter sido a finalidade que ele perseguiu. Ao menos nas
imagens mais expressivas e mais elaboradas, outros mecanismos parecem sido
chamados à ação. Ao menos como objetivo visual - que ultrapassa em muito o
simples registro -, as composições tensionadas em contrastes parecem ter sido
mais relevantes. Uma tensão sensorial que só poderia ser resultado dos
objetivos da visualidade Sublime romântica. Mesmo em obras feitas após o
retorno do artista à Europa como Der Largo di Carioca in Rio de Janeiro
(1850) [Figura 13],
ele manteria este contraste, ainda que de maneira bem mais branda. Mas, ainda
assim, há um contraste a tensionar a composição: o primeiro plano com sombras e
com o edifício prismático à direita contrastando com a linha iluminada da
igreja ao fundo.
30. Esta
tensão obtida pelo recurso de contrastes de luz e sombra pode ser identificada
também nos diversos desenhos monocromáticos em carvão e guache realizados em
1844. Em Bahia [Figura
14], por exemplo, uma casa com telhado de palha cercada de árvores em
primeiro plano contrasta fortemente com as linhas retas e iluminadas da igreja
ao fundo. Em Rua da Misericórdia [Figura 15], podemos observar uma paisagem toda na
penumbra a fornecer a base para que pontos luminosos formados por edifícios no
fim da perspectiva se destaquem. Em Morro do Castello [Figura 16], uma
composição que ocupa uma grande diagonal, o acesso curvo pela Ladeira do Castelo
e as rochas contrastam com a fachada diretamente iluminada da arquitetura.
31. Hildebrandt
explorou e se esforçou para construir tensões. Em aquarelas coloridas como Igreja
de Santa Luzia [Figura
17], o edifício da igreja aparece iluminado contra um céu carregado e
pesado ao fundo. Em Engenho Velho [Figura 18], o céu é o
protagonista: tumultuado, sinuoso, quase como um espelho da silhueta formada pelas
montanhas ao fundo. Tons escuros, sombras e um céu prenhe de tempestade dominam
a composição. É exemplo evidente da fonte do Sublime dinâmico, em que o artista
alemão evidentemente bebia.
32. Um
outro exemplo deste romantismo pode ser identificado na aquarela Ilha das
Cobras no Rio de Janeiro (1844) [Figura 19]. Na imagem, podemos ver sombras fortemente
dramáticas ocupando praticamente todo o centro da composição. Um conjunto de
pedras e escombros associados às edificações próximas remete à poética das
ruinas. Para muitos artistas românticos da primeira metade do século XIX, as
ruinas forneciam um tema interessante para a arte exatamente por serem carregadas
de incompletudes. Elas eram o resultado da ação de um tempo inexorável que
reduzia tudo a pó. Das aquarelas que Hildebrandt produziu no Brasil em 1844,
esta parece ter sido a mais sombria.
33. Estas
sensibilidades românticas pareciam ser tão vívidas para o artista que, mesmo
diante de paisagens que em nada pareciam remeter às visões que inspiraram
artistas como, por exemplo, Caspar David Friedrich (1774-1840), Hildebrandt
agiu de maneira similar a seus contemporâneos. Diante de paisagens brasileiras,
ele viu, interpretou e produziu algo que pode ser associado à poética das
montanhas: um viajante que se deixa fascinar por rochedos inacessíveis, abismos
e amplos horizontes a desaparecer no horizonte. O artista não aparece. Não
podemos vê-lo de costas como Friedrich vendo a paisagem [Figura 20]. Apesar
disto, podemos ver o que ele viu. Podemos ver o que ele muito provavelmente
quis representar para que sejamos capazes de sentir como ele deve ter se sentido:
insignificantemente esmagado diante da grande cena que a paisagem lhe
proporcionava. As intenções de quaisquer pretensões do que se pode classificar
como Pitoresco capitularam diante de aspirações que o Sublime proporcionava.
Paisagens como Botafogo no Rio de Janeiro [Figura 21] e duas
intituladas Paisagem com Alta Montanha [Figura 22 e Figura 23],
executadas em 1844, aparecem sombrias, nevoadas e marcadas pela evocação de
distâncias. Numa imagem, o céu parece carregar uma tempestade prestes a
desabar. Em outra, as nuvens parecem formar uma outra cadeia de montanhas no
plano posterior, como um eco. Mesmo inserindo elementos formais
caracteristicamente associados a uma paisagem tropical - como uma palmeira, por
exemplo, em Palmeira nas montanhas (1844) [Figura 24] -, o
resultado visual é de uma imagem nublada, velada, longínqua. Imersa em uma
atmosfera carregada, tempestuosa. Essas imagens em nada lembram paisagens
tropicais - pitorescas - que diversos outros artistas viajantes se esforçaram
para construir, impressionados pela força da luminosidade do Brasil.
34. Mas
nem tudo era tensões, sombras ou paisagens nebulosas. Simultaneamente,
Hildebrandt produziu obras com tons mais cálidos. Enriqueceu sua paleta com
cores mais vivas: vistas da Baía do Rio de Janeiro [Figura 25] e de
Salvador, jangadas e conjuntos vegetais tropicais como Bananeiras [Figura 26] e Arbustos
de bambu à beira d´água com pessoas [Figura 27], vistas urbanas como Chafariz da rua do
Conde, Rio de Janeiro [Figura 28], e marinhas como Boa Viagem [Figura 29] são
exemplos de composições ricas, estruturadas e formalmente equilibradas com
luminosidades uniformes. Os contrastes são de cores e formas, não de sombras e
luzes.
35. Do
Brasil, o artista seguiu para a América do Norte e daí retornou a Europa. Sua
carreira de artista viajante não se resumiu nesta viagem. Ao contrário, estava
apenas começando. Nos anos seguintes, ele viajaria muito e seria muito
prolífico. Em 1848, esteve na Ilha da Madeira e na Península Ibérica. Em 1851,
foi ao Egito, Turquia e Grécia. Em 1861, realizou uma viagem à volta do planeta
produzindo centenas de desenhos, pinturas a óleo e aquarelas. Neste sentido, a
viagem do artista ao Brasil parece ter representado uma afirmação: produto de
uma realização técnica e uma poética compositiva.
36. Não se
trata de estabelecer comparações entre uma ou outra obra. Também não se trata
de categorizá-las. Cremos que isto seria um exercício infrutífero e destituído
de interesse. A produção do artista seguiu os critérios que o ele próprio havia
estipulado. Como exímio artífice, seus olhos se voltaram com interesse para
temas bastante diversos. Além das paisagens, produziu imagens de peixes,
escravos, retratou cenas do cotidiano, barcos, pessoas e conjuntos de vegetação
[Figura 30].
Neste recorte, nos detivemos em algumas obras produzidas no Brasil onde o
recurso dramático do contraste parece ter sido empregado com mais energia.
Selecionamos obras onde os elementos de luz e sombra estabelecem relações
formais extremamente precisas na composição da imagem. Nestes casos, mais que
representar o visível, a pintura parece objetivar suscitar no observador a
experiencia do sentimento que o Sublime permitiu para o artista representar.
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[1] Entre 1846 e 1849,
Hildebrandt elaborou uma série de litogravuras com o tema “costumes peculiares
dos brasileiros”, obras que tem o interesse do registro. Compositivamente,
estão distantes das aquarelas produzidas em 1844. A esse respeito ver: https://www.brasilianaiconografica.art.br/autor/19089/eduard-hildebrandt
Acesso 02 mar 2021.
[2] A esse respeito, ver:
PEIXOTO, 1989.
[3] Outros pensadores
levariam adiante as ideias de Gilpin, como por exemplo Richard Knigth
(1751-1824) em seu livro Uma investigação analítica sobre os princípios do
gosto (1805), Uvedale Price (1747-1827) em seu livro Ensaio sobre o
Pitoresco, Comparado com o Sublime e o Belo (1794).
[4] Exatamente como Wilhelm
August Leopold Krause fazia em muitas de suas composições.
[5] Como tivemos a
oportunidade de observar através das influências de Wilhelm August Leopold
Krause e Eugène Louis Gabriel Isabey na formação do artista.