Do Pitoresco ao Sublime: Eduard Hildebrandt no Brasil (1844)

Rafael Alves Pinto Junior

PINTO JUNIOR, Rafael Alves. Do Pitoresco ao Sublime: Eduard Hildebrandt no Brasil (1844). 19&20, Rio de Janeiro, v. XVI, n. 2, jul.-dez. 2021. https://doi.org/10.52913/19e20.xvi2.08

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1.     Dentre os vários artistas viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, Eduard Hildebrandt (1818-1868) foi um dos que mais parecem ter se distanciado das pretensões cientificas que moveram a mão e os olhos de viajantes como Spix, Martius ou Debret, por exemplo. Sua produção se aproxima do puramente estético, ainda que pesem as preocupações com o registo, com o lugar. Hildebrandt, dono de uma paleta única, produziu uma obra própria, autoral e inconfundível, estruturada em princípios compositivos e formais que a diferenciou das demais produzidas em seu tempo (ZAROBELL, 2003). Para Castro Maya (1965, p.162), ele era um expoente entre os aquarelistas.[1]

2.     Os estudos referentes aos artistas viajantes não são novos. Muitos já foi dito sobre os olhares estrangeiros em várias abordagens. Vale ressaltar que, por artista viajante entende-se aqueles que se aventuraram por lugares além das fronteiras europeias. Como tal, Hildebrandt se incluiu entre os que, a partir de 1822, se dispuseram a (re)descobrir o Brasil.[2] Neste contexto, existe uma extensa bibliografia específica sobre o tema e recapitular esta questão ultrapassa em muito os limites deste trabalho. No entanto, a complexidade deste debate não compromete em absoluto a análise proposta. Estamos a ressaltar a tessituras de camadas de significações à composição de algumas obras de uma produção específica, uma operação de leitura da imagem a que nos convida Baxandall (2006). Desta forma, de maneira geral, parece válido concluir que a ampla bibliografia sobre o tema geralmente não se debruça sobre os aspectos formais das obras. Como Claudia Mattos (2007, p. 411) acertadamente observou, esta bibliografia se deter no discurso a respeito do olhar europeu, tateando os limites do próprio discurso. Preocupações a respeito de identidades e significações parecem ter tido mais interesse.

3.     Como herdeiros do Iluminismo, estes artistas viajantes se esforçaram para registrar, catalogar, sistematizar e hierarquizar o que viam (BELLUZZO, 1994). Evidentemente que não lhes era possível desembaraçarem-se de convicções pessoais, formações acadêmicas e cargas simbólicas pessoais. Como resultado, produziram olhares que devem ser relativizados: muitas vezes romantizando narrativas e impressões, ou carregando nas comparações com o mundo civilizado que a Europa representava. Não levaram em consideração que o Brasil não havia passado por um processo de modernização como seus países de origem e que, sobretudo no interior, devido às distâncias continentais, estes antagonismos eram ainda mais contrastantes. Neste complexo jogo das alteridades, as diferenças de biografias produziram diferentes narrativas: olhares sempre deslocados, ainda que portadores a priori de uma intenção científica, objetiva e de acordo com seus próprios princípios de coerência e consistência analítica (ADÈS, 1997). Desta maneira, os registros dos viajantes são registros do que suas culturas permitiam-lhes ver. Se, de um lado, suas percepções estavam aguçadas pelas possibilidades de comparações culturais, por outro lado não deixavam de ser prejudicadas pela falta de vivência do habitante, pois desconheciam a história do presente testemunho. Para Márcia Naxara (2001), ao aliar ciência e estética numa sensibilidade romântica, esse olhar estrangeiro alicerçou um modo de representação onde, juntamente com o interesse científico, vicejavam críticas às populações locais e menos “civilizadas” que o padrão europeu. Essa ação fundamentou todo um discurso orbitando em torno de conceitos como barbárie, decadência, atraso, pobreza e ignorância.

4.     Coloco-me ao lado de pesquisadores que entendem que este conceito de artista “viajante” tendeu a reduzir o não europeu a um outro genérico. E. como tal, impede a compreensão da diversidade da produção desses artistas, funcionando como uma forma de resistência ao projeto de construção de uma história da arte global, isenta dos preconceitos que acompanharam o surgimento e desenvolvimento da disciplina desde o século XIX (MATTOS, 2007, p. 412). Importa, pois, utilizar o instrumental analítico próprio do campo das imagens à compreensão da produção destes artistas estrangeiros. Reconhecer a pluralidade de abordagens, a diversidade da produção e os aspectos formais das sensibilidades envolvidas neste processo parece propiciar um caminho mais frutífero que o do debate entre identidades construídas ou anuladas.

5.     Em relação a Hildebrandt, sabe-se que uma sensibilidade romântica o moveu desde cedo à instrução. Aos dezenove anos de idade, foi ser aluno de Wilhelm August Leopold Krause (1803-1864), conhecido pintor de paisagens e marinhas. Como outros artistas românticos de sua época, Krause recebeu influência de importantes conceitos filosóficos. Dentre eles, está o Sublime dinâmico conceituado por Kant (1995) em 1790: o homem impotente diante de céus tempestuosos, mares revoltos e nuvens turbulentas. Esta postura filosófica diante do mundo natural foi retomada por vários autores, com tonalidades variadas ao longo de todo o século XIX que alimentaram a sensibilidade romântica nas mais variadas formas de expressão. A pintura, a música e a literatura se ocuparam em expressar este sentimento em tinta, sons e texto.

6.     Hildebrandt não esteve ausente deste debate e parece ter filtrado a turbulência expressa em muitas das composições de Krause, ao mesmo tempo em que parece ter absorvido como o professor dispunha da luminosidade e fazia dela um elemento estruturante. As formas são criaturas de luz no sentido em que a luz estrutura a composição. Em obras como Penhasco de Dover, de 1842 [Figura 1], por exemplo, podemos observar um princípio: o primeiro plano aparece na penumbra contrastando com a iluminação direta do plano posterior. Desta maneira, o ponto focal da composição desloca-se para o fundo garantindo profundidade à imagem. Ao mesmo tempo, o contraste torna-se dramático, semelhante a uma iluminação teatral.

7.     Com Krause, Hildebrandt parece também ter alicerçado o entendimento de que, mais do que o espaço exterior ao homem, a paisagem é produto de uma maneira de ver o espaço. Contrariamente ao ponto de vista científico que entende a paisagem como produto das forças naturais, a arte lhe atribui significado. Inscreve-a no conjunto do imaginário social (FÍGOLI, 2007).

8.     Certamente Hildebrandt teve várias influências. O mundo artístico de sua época estava em ebulição. O fluxo do romantismo na Alemanha foi se espalhando, notadamente a partir de 1819, com a influência da Escola de Pintura de Düsseldorf, um conjunto de tendências que comportava tanto uma visão realista, mais crítica, quanto temas como a pintura de gênero e de paisagens. Como todo fazer artístico, o de Hildebrandt bebia das fontes disponíveis.

9.     Depois de Krause, Hildebrandt foi em 1842 para Paris onde trabalhou com o pintor Eugène Louis Gabriel Isabey (1803-1886). Em 1842, Isabey era já um artista conceituado no meio da época. Dedicava-se à pintura de gênero, cenas históricas e paisagens, com predileção por cenas de naufrágio e céus tempestuosos. Dominava uma paleta mais escura em composições carregadas de tensões. Mesmo nas composições menos trágicas, Isabey não abandonou as tensões compositivas com a luz a aparecer como elemento pulsional.

10.   Como Krause na Alemanha, Isabey se dedicava às marinhas. As aquarelas que ele produziu se diferenciam das elaboradas composições do atelier. E parece plausível supor que Hildebrandt tenha sido mais sensível a estas aquarelas menos convulsionadas, mas carregadas de tensões. Em Fortaleza marinha [Figura 2], por exemplo, podemos identificar uma horizontalidade dominante com o conjunto de figuras ocupando aproximadamente um terço da porção inferior do quadro. Adiante teremos a oportunidade de observar como Hildebrandt usou este modelo. Importa aqui observar que parece ter sido através de Isabey que Hildebrandt teria conseguido a maestria das composições e o domínio da técnica como aquarelista tão apreciada pelos críticos.

11.   Vale ressaltar que recapitular os caminhos biográficos de Hildebrandt está muito além dos nossos objetivos. Apenas procuraremos identificar as influências artísticas que parecem ter contribuído para sua obra. Um caminho metodológico para instrumentalizar a análise de algumas obras que ele produziu no Brasil. Assim, depois da França, em 1843 Hildebrandt retornou para a Alemanha e conheceu o célebre cientista Alexander von Humboldt (1769-1859). O artista chegou a retratar o cientista em sua biblioteca em Berlim [Figura 3]. Por recomendação de Humboldt, Hildebrandt recebeu uma premiação de viagem financiada pelo Imperador Frederico Guilherme IV - uma viagem que o levaria ao Brasil e aos Estados Unidos e que seria um ponto de inflexão em sua produção artística. A produção de marinhas recuaria sensivelmente dando lugar a paisagens com vigorosos efeitos de luz e sombra.

12.   A questão que nos interessa é a identificação dos princípios que o artista utilizou na produção de sua obra em sua breve passagem pelo Brasil. A hipótese é que ele fundamentou estas composições valendo-se de dois conceitos: o Pitoresco e o Sublime dinâmico, amalgamando elementos e reinterpretando à sua maneira na criação de uma obra autoral. Resumidamente, faremos uma breve recapitulação destes conceitos para entender como eles foram (re)interpretados por Hildebrant.

O Pitoresco

13.   O que se entende como Pitoresco foi teorizado pelo escritor e desenhista britânico Alexander Cozens (1717-1786) em seu tratado Um novo método de auxílio à invenção no desenho de composições paisagísticas originais (1785).  De acordo com Argan (1988, p. 18), o objetivo da estética do Pitoresco era a construção da variedade das aparências, aplicando um sentido à natureza semelhante às significações que os humanos atribuem às coisas. Com isto em mente, importava excluir pretensões universalizantes e focar no que de característico e particular pudesse ser construído através da poética da arte. Descortinava-se uma nova possibilidade de posicionamento frente aos estímulos do mundo natural, estímulos que o artista devia captar e construir sobretudo pela diversidade que as paisagens naturais poderiam oferecer.

14.   As palavras de Cozens não caíram em terra estéril. Ao contrário. o Pitoresco entrou no centro do debate artístico do final do século XVIII até meados do século XIX. Em pouco tempo, outros pensadores se dedicaram ao tema, aprofundando as colocações de Cozens. Willian Gilpin (1724-1804), por exemplo, no segundo ensaio do livro Tree Essays (1792) desenvolveu um argumento que teria grande influência no século XIX: o prazer de se encontrar o Pitoresco através de viagens. Para ele, o Pitoresco seria um conjunto de regras colocadas como um instrumental de representação ao mundo natural. Principalmente em regiões inexploradas e em paisagens “inéditas.” o olhar do observador (artista) seria conduzido a uma espécie de suspense onde o prazer de se encontrar o novo seria continuamente deslocado para um horizonte mantido fugidio. A beleza estava em toda parte, mas seria alcançada pelo interesse da visão estética em “descortinar” uma paisagem.[3]

15.   De acordo com esse raciocínio, para se fazer uma composição artística legitimamente pitoresca importava atentar principalmente para dois princípios estruturantes: em primeiro lugar, a textura que deveria ser rica, não ser lisa e não possuir linhas retilíneas “óbvias;” em segundo lugar, o contraste que deveria estruturar um primeiro plano escuro ou na penumbra e um plano posterior iluminado. A colocação de um ponto focal na claridade em planos posteriores garantiria a impressão da “distância” e da “profundidade” do campo pictórico tão cara à visão das paisagens.[4]

16.   Pontos de vista à altura do observador eram sempre preferíeis às vistas aéreas, garantindo a fidedignidade do “olhar” do artista - algo como se o observador estivesse nos olhos do autor e pudesse, de alguma maneira, vivenciar uma parte da experiencia estética por ele construída. Ao projeto estético romântico, os matizes peculiares importavam: diferenças de um lugar de outro, as especificidades locais de um povo que o diferenciava-o de um outro etc. Para o romantismo, as diferenças identitárias formavam as características de cada indivíduo visto como único, inserido à nação a qual pertencia (ROSENFELD, 1978). Neste raciocínio, as paisagens poderiam formar uma espécie de “catálogo” correspondente aos povos espalhados pelo planeta.

O Sublime dinâmico

17.   Tal como Pitoresco, o tema do Sublime estava no cerne da concepção romântica de arte. Como artista instruído de sua época, era natural que Hildebrant estivesse familiarizado com reflexões acerca do Sublime desencadeadas por Edmund Burke (1729-1797) e, mais tarde, por Kant (1724-1804). A obra de Burke Pesquisa Filosófica sobre a origem de nossas ideias de Sublime, publicado em 1756, contribuiu, mais que qualquer outra, para difundir o tema do Sublime. Para Burke (1993, p. 48):

18.                                 Tudo aquilo que pode despertar ideias de dor e perigo, ou seja, tudo aquilo que seja, em certo sentido, terrível ou que diga respeito a objetos terríveis, ou que atue de modo análogo ao terror é uma fonte de Sublime, ou seja, é aquilo que produz a mais forte emoção que o espírito é capaz de sentir.

19.   Ainda que o autor reconheça ser incapaz de explicar as causas do que denomina como Sublime, sua concepção implica no estabelecimento de uma relativa distância do objeto estético. O artista vê, sente e compõe a cena, mas esta não o atinge. Está posta, colocada “lá,” por mais amedrontadora, triste ou trágica que possa ser.

20.   Em 1790, Kant, com sua Critica da Faculdade do Juízo, aprofundou a diferenciação entre o Belo e o Sublime e categorizou duas formas da experiencia do Sublime: o matemático e o dinâmico. De acordo com Kant, a visão de um céu estrelado ou a contemplação do Universo, do Cosmos e do Firmamento seriam exemplos de experiencias do Sublime matemático. A razão advinda dos sentidos seria sobrepujada pela imaginação diante de conceitos como infinito e eternidade, ma dimensão além da escala humana a esmagar o eu do observador sensível. Por outro lado, o Sublime dinâmico corresponderia à impressão de uma infinita potência, não a impressão de uma infinita vastidão (ECO, 2007, p. 294). A visão da expressão das forças da natureza - como uma tempestade - seria um exemplo de uma experiência deste tipo do Sublime. Analisando o Sublime dinâmico, Jair Barboza (2012, p. 106-107) observou que:

21.                                 Ora, a filosofia transcendental kantiana, ao descrever o “jogo” (Spiel) entre as faculdades de conhecimento, razão e imaginação, que caracteriza o Sublime, nota que em tais ocasiões o sentimento atinge uma máxima tensão, em especial no chamado Sublime dinâmico, que provém precisamente da elevação diante de terríveis forças.  Aqui se trata de um momento em que, não obstante o medo, é-se remetido à própria “destinação suprassensível.” Os objetos infinitamente poderosos que contrastam com a insignificância física do espectador e o fazem temer pela própria integridade, possibilitam a ele, no entanto, uma elevação por sobre a sua inferioridade ilusória, ao fazê-lo descobrir em si uma autoconservação de tipo inteiramente diferente. Ele sente-se partícipe da humanidade indestrutível, sente-se para além do mero corpo físico ameaçado de aniquilamento.

22.   Trata-se de um espetáculo que oferece uma atração proporcional à magnitude do terror que ele suscita - para Kant, um espetáculo filtrado pela razão. Uma situação em que o sujeito se coloca em condições propícias para desvelar a experiência resultante do enfrentamento com o poder da natureza. Em ambas as experiencias do Sublime – matemático ou dinâmico – o sujeito recorre à razão: diante da incapacidade da imaginação, o puro sensível capitula.

23.   Estes conceitos foram retomados, debatidos e rediscutidos por diversos escritores e artistas nas mais diversas áreas, alimentando a sensibilidade do romantismo ao longo de grande parte do século XIX. Uma sensibilidade partícipe do lastro cultural que exerceu - como em todo processo cultural - ações de poderosos filtros perceptivos que interferem na percepção enquanto são transformados por ela. A obra de Eduard Hildebrandt é particularmente interessante a demonstrar esse processo.

Hildebrandt no Brasil

24.   Quando Hildebrandt rumou para o Brasil, veio imbuído pelo desejo de apreender os lugares. Sabia que o tempo era exíguo e muitos esboços seriam desenvolvidos após seu retorno à Europa. O artista chegou ao Brasil em março de 1844 e foi recebido com distinção. Ficou até meados de outubro. Foi retratado em aquarela por Louis Auguste Moreaux (1818-1877), percorreu lugares no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Pernambuco, e deixou material para a V Exposição Geral de Belas Artes, que se realizaria em dezembro daquele ano. O retrato feito por Moreaux [Figura 4] mostra um homem do alto de seus 26 anos em camisa de algodão, lenço no pescoço e amplo chapéu a encarar com firmeza o observador. O braço esquerdo apoiado numa simples cadeira de madeira pretende certa espontaneidade.

25.   A viagem de Hildebrandt ao Brasil resultou em 170 obras, entre desenhos e aquarelas, algumas das quais serviram de base para algumas composições a óleo executadas entre 1845-46, após seu retorno à Europa.

26.   De uma maneira geral, exceto em obras panorâmicas como a da Baia de Salvador e a do Rio de Janeiro [Figura 5 e Figura 6], parece válido observar a aplicação de princípios lastreados na sensibilidade romântica em que ele estava inexorável e naturalmente imerso. Alguns aspectos particulares de suas obras são, de fato, originais. O fato de que não seja difícil encontrar referências e precursores[5] em nada deslustra sua produção. Esta parece ser original sobretudo à medida em que se afasta de visões pretensamente objetivas que embasaram diversas obras de muitos artistas de sua época. Algumas de suas obras parecem ser produto de uma equação entre a razão e a emoção solidamente construídas, ainda que estejam ausentes pretensões de se excluir ou resolver antíteses desta natureza. Por um lado, a razão pode ser reconhecida pelo desejo do registro da paisagem; por outro lado, a emoção pode ser identificada pelos princípios compositivos que Hildebrandt empregou na composição das imagens. Se ele fez isto consciente ou se fez através de sua poiesis - resultado da sensibilidade romântica de seu tempo - é outra questão.

27.   Em obras como São Paulo (1844) [Figura 7], podemos identificar algumas das influências que o artista recebeu de Wilhelm A. L. C. Krause. O primeiro plano, na penumbra, funciona como uma base para que a paisagem urbana apareça iluminada ao fundo. Aqui também podemos identificar uma estrutura que Hildebrandt empregaria muitas vezes: figuras dispostas ocupando aproximadamente a metade ou a terça parte inferior do espaço compositivo. Metade ou dois terços da composição ficavam reservadas para o céu e seus efeitos. A intenção do Pitoresco pode ser identificada na pretensão de caracterizar o lugar, como uma primeira intenção a mover o pincel do artista. São Paulo, em 1844, pouca coisa era além de uma cidade no sertão e como tal ela aparece vista pelo artista. A experiência do Sublime dinâmico é garantida pela tensão criada pela luminosidade. Não há necessidade de céus tempestuosos ou demonstrações de convulsões de forças naturais. O contraste entre o caminho do primeiro plano e a paisagem urbana ao fundo cria uma suficiente tensão visual. O artista utilizaria esse recurso em diversas outras oportunidades com graus variáveis de intensidade. Outros exemplos deste princípio compositivo podem ser identificados em obras como Lagoa Rodrigo de Freitas (1844) [Figura 8] e Igreja da Piedade, Salvador (1844) [Figura 9].

28.   Este princípio tensional gerador aparece em algumas imagens da paisagem urbana. Chafariz e Igreja de Santa Rita no Largo de Santa Rita, de 1844 [Figura 10], é um exemplo bastante claro. Se em São Paulo, o mundo natural na penumbra aparece contrastante em primeiro plano, em Chafariz e Igreja de Santa Rita é o conjunto de figuras humanas que desempenha este papel. O conjunto de escravos, realizando diversas atividades em dois grupos à esquerda e à direita, contrasta fortemente com a alvura da igreja iluminada ao fundo. O chafariz e as fachadas de alguns edifícios à direita também estão na sombra, ampliando o conjunto do contraste entre a luz e a sombra. Uma pequena procissão - que parece não vir da igreja -, liderada por um homem branco com uma bandeira, forma um pequeno ponto de luz na sombra à direita da imagem. O céu, claro, forma um fundo complementar à fachada iluminada. Ainda que a arquitetura ocupe área considerável da composição, são os tons claros que unificam a luz da cena. O conjunto de figuras humanas ocupa a parte inferior da imagem e marca uma horizontalidade que reforça o contraste das luzes e a verticalidade da arquitetura. Em Rio de Janeiro, Igreja de Santa Rita (1844) [Figura 11], os contrastes entre as sombras e a luz são ainda mais dramáticos: casebres e formas na penumbra praticamente englobam a forma da alvenaria branca posterior da igreja, fortemente iluminada.  

29.   Rua do Ouvidor (1844) [Figura 12] é outro exemplo desta estrutura compositiva. O conjunto de figuras humanas, coisas e objetos na rua também formam uma massa horizontal na penumbra, oposta ao espaço edificado e iluminado ao fundo. Para Hildebrandt, o conjunto de coisas, escravos, feixes de cana e lixo são formas a compor o contraste, que se opõe à organização retilínea da torre da igreja ao fundo. Contraste que o artista utiliza com desenvoltura, um recurso que tanto pode ser obtido com elementos do mundo natural quanto com elementos do espaço construído. Contrastes tensionais são objetivos compositivos que Hildebrandt parece ter se esforçado para produzir nas obras que fez no Brasil. O Pitoresco pode ser identificado com o que ele aqui viu no Brasil e pretendeu classificar como “brasileiro;” entretanto, parece ser incorreto dizer que isto deva ser entendido como um padrão de intenção. O Pitoresco, ainda que tenha subsidiado o artista, não parece ter sido a finalidade que ele perseguiu. Ao menos nas imagens mais expressivas e mais elaboradas, outros mecanismos parecem sido chamados à ação. Ao menos como objetivo visual - que ultrapassa em muito o simples registro -, as composições tensionadas em contrastes parecem ter sido mais relevantes. Uma tensão sensorial que só poderia ser resultado dos objetivos da visualidade Sublime romântica. Mesmo em obras feitas após o retorno do artista à Europa como Der Largo di Carioca in Rio de Janeiro (1850) [Figura 13], ele manteria este contraste, ainda que de maneira bem mais branda. Mas, ainda assim, há um contraste a tensionar a composição: o primeiro plano com sombras e com o edifício prismático à direita contrastando com a linha iluminada da igreja ao fundo.

30.   Esta tensão obtida pelo recurso de contrastes de luz e sombra pode ser identificada também nos diversos desenhos monocromáticos em carvão e guache realizados em 1844. Em Bahia [Figura 14], por exemplo, uma casa com telhado de palha cercada de árvores em primeiro plano contrasta fortemente com as linhas retas e iluminadas da igreja ao fundo. Em Rua da Misericórdia [Figura 15], podemos observar uma paisagem toda na penumbra a fornecer a base para que pontos luminosos formados por edifícios no fim da perspectiva se destaquem. Em Morro do Castello [Figura 16], uma composição que ocupa uma grande diagonal, o acesso curvo pela Ladeira do Castelo e as rochas contrastam com a fachada diretamente iluminada da arquitetura.

31.   Hildebrandt explorou e se esforçou para construir tensões. Em aquarelas coloridas como Igreja de Santa Luzia [Figura 17], o edifício da igreja aparece iluminado contra um céu carregado e pesado ao fundo. Em Engenho Velho [Figura 18], o céu é o protagonista: tumultuado, sinuoso, quase como um espelho da silhueta formada pelas montanhas ao fundo. Tons escuros, sombras e um céu prenhe de tempestade dominam a composição. É exemplo evidente da fonte do Sublime dinâmico, em que o artista alemão evidentemente bebia.

32.   Um outro exemplo deste romantismo pode ser identificado na aquarela Ilha das Cobras no Rio de Janeiro (1844) [Figura 19]. Na imagem, podemos ver sombras fortemente dramáticas ocupando praticamente todo o centro da composição. Um conjunto de pedras e escombros associados às edificações próximas remete à poética das ruinas. Para muitos artistas românticos da primeira metade do século XIX, as ruinas forneciam um tema interessante para a arte exatamente por serem carregadas de incompletudes. Elas eram o resultado da ação de um tempo inexorável que reduzia tudo a pó. Das aquarelas que Hildebrandt produziu no Brasil em 1844, esta parece ter sido a mais sombria.

33.   Estas sensibilidades românticas pareciam ser tão vívidas para o artista que, mesmo diante de paisagens que em nada pareciam remeter às visões que inspiraram artistas como, por exemplo, Caspar David Friedrich (1774-1840), Hildebrandt agiu de maneira similar a seus contemporâneos. Diante de paisagens brasileiras, ele viu, interpretou e produziu algo que pode ser associado à poética das montanhas: um viajante que se deixa fascinar por rochedos inacessíveis, abismos e amplos horizontes a desaparecer no horizonte. O artista não aparece. Não podemos vê-lo de costas como Friedrich vendo a paisagem [Figura 20]. Apesar disto, podemos ver o que ele viu. Podemos ver o que ele muito provavelmente quis representar para que sejamos capazes de sentir como ele deve ter se sentido: insignificantemente esmagado diante da grande cena que a paisagem lhe proporcionava. As intenções de quaisquer pretensões do que se pode classificar como Pitoresco capitularam diante de aspirações que o Sublime proporcionava. Paisagens como Botafogo no Rio de Janeiro [Figura 21] e duas intituladas Paisagem com Alta Montanha [Figura 22 e Figura 23], executadas em 1844, aparecem sombrias, nevoadas e marcadas pela evocação de distâncias. Numa imagem, o céu parece carregar uma tempestade prestes a desabar. Em outra, as nuvens parecem formar uma outra cadeia de montanhas no plano posterior, como um eco. Mesmo inserindo elementos formais caracteristicamente associados a uma paisagem tropical - como uma palmeira, por exemplo, em Palmeira nas montanhas (1844) [Figura 24] -, o resultado visual é de uma imagem nublada, velada, longínqua. Imersa em uma atmosfera carregada, tempestuosa. Essas imagens em nada lembram paisagens tropicais - pitorescas - que diversos outros artistas viajantes se esforçaram para construir, impressionados pela força da luminosidade do Brasil.

34.   Mas nem tudo era tensões, sombras ou paisagens nebulosas. Simultaneamente, Hildebrandt produziu obras com tons mais cálidos. Enriqueceu sua paleta com cores mais vivas: vistas da Baía do Rio de Janeiro [Figura 25] e de Salvador, jangadas e conjuntos vegetais tropicais como Bananeiras [Figura 26] e Arbustos de bambu à beira d´água com pessoas [Figura 27], vistas urbanas como Chafariz da rua do Conde, Rio de Janeiro [Figura 28], e marinhas como Boa Viagem [Figura 29] são exemplos de composições ricas, estruturadas e formalmente equilibradas com luminosidades uniformes. Os contrastes são de cores e formas, não de sombras e luzes.

35.   Do Brasil, o artista seguiu para a América do Norte e daí retornou a Europa. Sua carreira de artista viajante não se resumiu nesta viagem. Ao contrário, estava apenas começando. Nos anos seguintes, ele viajaria muito e seria muito prolífico. Em 1848, esteve na Ilha da Madeira e na Península Ibérica. Em 1851, foi ao Egito, Turquia e Grécia. Em 1861, realizou uma viagem à volta do planeta produzindo centenas de desenhos, pinturas a óleo e aquarelas. Neste sentido, a viagem do artista ao Brasil parece ter representado uma afirmação: produto de uma realização técnica e uma poética compositiva.

36.   Não se trata de estabelecer comparações entre uma ou outra obra. Também não se trata de categorizá-las. Cremos que isto seria um exercício infrutífero e destituído de interesse. A produção do artista seguiu os critérios que o ele próprio havia estipulado. Como exímio artífice, seus olhos se voltaram com interesse para temas bastante diversos. Além das paisagens, produziu imagens de peixes, escravos, retratou cenas do cotidiano, barcos, pessoas e conjuntos de vegetação [Figura 30].  Neste recorte, nos detivemos em algumas obras produzidas no Brasil onde o recurso dramático do contraste parece ter sido empregado com mais energia. Selecionamos obras onde os elementos de luz e sombra estabelecem relações formais extremamente precisas na composição da imagem. Nestes casos, mais que representar o visível, a pintura parece objetivar suscitar no observador a experiencia do sentimento que o Sublime permitiu para o artista representar.

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ZAROBELL, J.. Marine Painting in Mid-Nineteenth-Century France. In: WILSON-BAREAU, Juliet et. al. Manet and the Sea. Yale University Press, 2003, p. 16-33. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/216984953.pdf Acesso 01 mar. 2021.

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[1] Entre 1846 e 1849, Hildebrandt elaborou uma série de litogravuras com o tema “costumes peculiares dos brasileiros”, obras que tem o interesse do registro. Compositivamente, estão distantes das aquarelas produzidas em 1844. A esse respeito ver: https://www.brasilianaiconografica.art.br/autor/19089/eduard-hildebrandt Acesso 02 mar 2021.

[2] A esse respeito, ver: PEIXOTO, 1989.

[3] Outros pensadores levariam adiante as ideias de Gilpin, como por exemplo Richard Knigth (1751-1824) em seu livro Uma investigação analítica sobre os princípios do gosto (1805), Uvedale Price (1747-1827) em seu livro Ensaio sobre o Pitoresco, Comparado com o Sublime e o Belo (1794).

[4] Exatamente como Wilhelm August Leopold Krause fazia em muitas de suas composições.

[5] Como tivemos a oportunidade de observar através das influências de Wilhelm August Leopold Krause e Eugène Louis Gabriel Isabey na formação do artista.