Gênero e impermanência nas artes visuais de Pernambuco: Fedora
do Rego Monteiro
Madalena Zaccara[1] e
José Lucas Vila Nova[2]
ZACCARA, Madalena;
NOVA, José Lucas Vila. Gênero e impermanência nas artes visuais de Pernambuco:
Fedora do Rego Monteiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. XII, n. 2, jul./dez. 2017. https://doi.org/10.52913/19e20.xii2.09
*
* *
1. Pernambuco
traz consigo a marca de ter gerado inúmeros artistas com produção relevante
para o país e para o mundo. Mas é também um dos espaços brasileiros aonde,
pedagogicamente, a mulher foi mais marcantemente condicionada pelo sistema
patriarcal, por várias gerações, a uma existência e uma educação voltadas para
o lar e suas afinidades. Uma boneca ancestralmente amestrada para a servidão e
que, nas palavras de Gilberto Freyre foi programada para ser “um ser
artificial, mórbido. Uma doente deformada no corpo para ser serva e boneca de
carne do marido.”[3]
2. O
Nordeste brasileiro “floresceu em famílias rurais ou semi-rurais, patriarcais,
latifundiárias, escravocratas e, essencialmente, falocráticas.”[4]
Essa condição ancestral parece perdurar no inconsciente da região e talvez
justifique a ainda reduzida quantidade e variedade de estudos desenvolvidos
aqui sobre gênero em suas múltiplas abordagens. O apagamento da mulher artista
na região é só mais um olhar entre tantos em desenvolvimento por historiadoras
feministas após a década de setenta do século XX.
3. Escrita
por homens, a narrativa histórica se absteve de incorporar às suas preocupações
o sujeito feminino. Este fato não foi uma prerrogativa da historiografia
brasileira ou latino-americana, ou mesmo da realidade pernambucana, mas
uma atitude constante, inclusive em países hegemônicos onde a preocupação com
os direitos femininos e o reconhecimento da condição subalterna da mulher
cronologicamente se processou mais cedo.
4. No
universo sócio-cultural pernambucano, o ideal feminino esteve historicamente
ligado a uma instrução que tinha como objetivo principal a transformação da
mulher em boa esposa e boa mãe de família. Pensar não era importante. Criar,
menos ainda. Essa certeza da inaptidão intelectual feminina está no cerne da
sociedade patriarcal brasileira (e pernambucana) da época. Chegou com os
conquistadores portugueses e foi sancionada pela Igreja Católica.
5. Nessa
América portuguesa, herdeira da mentalidade misógina ibérica, sob normas
ditadas pelos eclesiásticos, a mulher letrada era considerada um perigo,
principalmente se seus conhecimentos excedessem os masculinos. A educação feminina
era, portanto, direcionada a aprendizados tais como costura, bordado e doutrina
cristã, que demandavam um baixo nível de alfabetização.
6. Através
dos relatos de Henry Koster sobre a mulher nordestina branca a partir de seu
livro Viagens ao Nordeste do Brasil,
publicado em Londres pela primeira vez em 1816, podemos vislumbrar a vida das
mulheres oitocentistas reclusas em Pernambuco. Diz o aventureiro:
7.
Não se veem as mulheres
além das escravas negras, o que dá um aspecto sombrio às ruas. As mulheres
portuguesas e as brasileiras, e mesmo as mulatas de classe média, não chegam à
porta de casa durante todo o dia. Ouvem a Missa pela madrugada, e não saem
senão em palanquins, ou à tarde, a pé, quando, ocasionalmente, a família faz um
passeio.[5]
8. Koster,
que desembarcou no Recife em 1809 (um ano depois da chegada da família real e
da corte portuguesa fugitivas das tropas de Junot, marechal de Bonaparte),
traça assim o perfil da posição ocupada pela mulher branca no Recife
oitocentista. As modificações introduzidas com a vinda da corte para o Brasil
vão, muito lentamente, se refletir em um Recife distante e, consequentemente,
na vida de suas mulheres. Em relação às artes visuais, o seu ensino, enquanto
ofício vai ser iniciado na Província de Pernambuco pelo exército que passou a
juntar o aprendizado das primeiras letras ao desenho. Ele voltava-se para “os
filhos de pais pobres, ou seja, da camada mais humilde da população.”[6]
Segundo Melo e Silva,[7] também visando esse público alvo, o Liceu
de Artes e Ofícios vai ser inaugurado em Recife no ano de 1880 em uma situação local
de analfabetismo e de pouca industrialização. Esse quadro não era diferente no
que se refere ao status social do alunado da Academia Imperial de Belas Artes,
em uma nação escravagista de base rural, sem economia urbana sólida e com uma
classe artesanal pouco significativa, a carreira artística destinava-se às
classes pobres urbanas.[8]
9. Para
as mulheres, a primeira oportunidade de educação artística aparece na década de
20 do século XX com a criação pelo governo do Estado de Pernambuco das Escolas
Profissionais, masculina e feminina. Entretanto, a masculina (hoje, Escola
Técnica Professor Agamenon Magalhães) ministrava “cursos de trabalhos em metal,
em madeira, artes gráficas, artes aplicadas e desenho enquanto a Escola Profissional
Feminina, inaugurada em 1929, ministrava artes domésticas em geral.”[9]
Antes dessas iniciativas anteriormente descritas, o ensino era literalmente
passado de pai para filho.
10. Em
relação às artes visuais a ideia dominante já em pleno século XX era a de que a
arte para as mulheres nada mais era do que um passatempo a mais para as moças
de famílias abastadas, consolidando uma formação voltada principalmente para o
casamento. Essa concepção foi bem mais contundente no Nordeste do que na
região Sudeste aonde informações (e consequentes mudanças) chegavam mais
facilmente. Além disso, se naquela região a mulher só participou, com
restrições, dos ensinamentos da Academia Imperial de Belas Artes a partir de
fins do século XIX, em Pernambuco só em 1932 o ensino das Artes Visuais foi
sistematizado pela fundação da Escola de Belas Artes em Recife. Essa realidade
reflete-se no seu reconhecimento como profissional e na sua inserção no mercado
de trabalho.
11. Mas,
apesar de todas essas dificuldades temos notícias de uma artista mulher
trabalhando como pintora em Pernambuco nos primórdios do Brasil colônia. Rita
Joana de Sousa, nascida em Olinda em 1595 e falecida na mesma cidade em 1618
foi pintora e escritora. Tornou-se conhecida através do livro Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco,
de Domingos do Loureto Couto,[10] beneditino pernambucano, inédito até ao
início do século XX e editado em 1904. O cronista da ordem de São Bento se
refere a ela no contexto das mulheres que se destacaram nas letras e nas armas
em Pernambuco. Isso, entretanto, bem depois e em menos linhas do que as
empregadas para enaltecer as virtudes de mulheres pernambucanas que se
recolheram ao claustro, morreram assassinadas por seus maridos e filhos em nome
da honra ou se converteram após vida “desonrosa” e, mesmo, depois de destacar o
mérito das índias convertidas.
12. Rita
Joana de Sousa é, portanto, a primeira mulher artista da qual se tem notícia no
Brasil e cujo nome nos chega através das poucas linhas sobre ela escritas pelo
monge beneditino no século XVII e só descobertas no XX. Também temos notícias
esparsas sobre as filhas de João de Deus Sepúlveda[11]
- Tereza, Lucinda e Verônica de Sepúlveda - que aprenderam o ofício com o pai e
que com ele trabalharam, mas que sobre as quais quase nada se conhece.[12]
13. Há uma
lacuna posterior que vai dos holandeses até a geração de Telles
Júnior,[13] de quem se sabe que pelo menos duas de suas filhas
foram pintoras como ele. Segundo Bianor de Medeiros, citado por José Claudio em
seu livro Tratos da Arte de Pernambuco:
“Dona Ester pinta flores admiravelmente.”[14]
Outra irmã (e sexta filha de Telles Junior), Raquel Telles, pintora e poetisa,
ensinou pintura a vários artistas de uma geração em Pernambuco e por eles é
citada como mestra.[15] Ainda constam no texto de Medeiros
algumas alunas do próprio Telles Junior: as senhoras donas Maria Cândida de
Figueiredo Santos, Amélia Cândida de Oliveira e Silva, Beatriz Montenegro, Maria
Amália Moscoso Bandeira, Cristina F. Bittencourt, Celecina Rodrigues Saraiva e
Julieta Carneiro da Cunha. Sobre elas assim se pronuncia Bianor Medeiros
em 1906:
14.
A lista dos nomes de
suas discípulas talentosas, amabilíssimas senhoras de elevada educação que
apesar de contrariadas em sua modéstia, me facilitaram os retratos que
aparecerão mais adiante, constituindo a simpática e brilhante falange das
Amadoras.[16]
15. Muitos
desses nomes ainda permanecem esquecidos no tempo, com artistas talentosas
permanecendo relegadas à categoria de amadoras. Provavelmente, sem sequer
poderem sonhar “em sua modéstia” com uma condição profissional enquanto
artistas. Como as alunas de outro artista pernambucano, Rodolfo Lima, que foi
professor durante muitos anos em vários colégios do Recife.[17]
Entre elas constam Dona Maria Rosa e Silva e Dona Ester e Dona Diná Maia. A
profissão (de artista) não recomendava. Principalmente para as mulheres. Era,
portanto, na condição de “sinhás donas amadoras” que elas eram identificadas,
mesmo no início do século XX, quando ousavam assinar uma tela.
16. A
alternativa para a realidade local feita de exclusão, amadorismo e esquecimento
foi um caminho percorrido por muito poucas. Ele significava uma formação a ser
feita no sudeste do país ou na Europa: uma situação rara para a realidade
pernambucana e a qual pouquíssimas mulheres tiveram acesso. Depois dessa
geração de pálidas e esquecidas sinhás artistas um nome se destaca no cenário
da presença da mulher nas artes visuais em Pernambuco: Fedora do
Rego Monteiro.
Fedora do Rego Monteiro: de sinhá prendada a
artista visual
17. Fedora
do Rego Monteiro Fernandes nasceu em Recife em 3 de fevereiro de 1889 e faleceu
na mesma cidade em 1975. Era filha de Ildefonso do Rego Monteiro, um
representante comercial da Havendich & Co, empresa inglesa do ramo de
tecidos, e de Elisa Cândida Figueiredo Melo do Rego Monteiro, professora normalista
que era prima em terceiro grau dos também pintores Pedro
Américo de Figueiredo e Mello[18] e
Aurélio
de Figueiredo. Fedora tinha mais quatro irmãos. Todos se dedicaram às
artes: José foi arquiteto; Débora, formada pela Faculdade de Direito de Recife,
tornou-se escritora; Vicente e Joaquim foram, como ela, pintores.
18. De
família abastada e com padrões intelectuais e de comportamento diferentes de
seus conterrâneos e contemporâneos, Fedora do Rego Monteiro pode seguir para o
Rio de Janeiro em 1908, apenas quatro anos depois da publicação do livro de
Bianor de Medeiros, onde estudou pintura na Escola de Belas Artes, “tendo como
mestres os pintores conceituados: Modesto
Brocos, Zeferino da Costa e Eliseu
Visconti.”[19] De lá, em 1911, seguiu para Paris onde
foi estudar na Académie Julian que, no século anterior (extremamente
radical em relação à participação feminina no estudo das artes), passou a
aceitar mulheres em seus cursos. Entre 1911 e 1915, recebeu aulas de vários
professores, entre eles o pintor toulousano Paul Gervais que era um dos
principais mestres da Academie Julien. Seus biógrafos citam frequentemente o
pintor Désiré-Lucas como outro mestre de Fedora no período parisiense.
Acreditamos tratar-se de Désiré-Lucas Louis, aluno de Bouguereau e especialista
em retratos e paisagens. Em Paris, segundo afirma A. Austregesilo em 1924[20],
ela expôs no Salão dos Independentes, no Salão do Outono, no Salão dos Artistas
Franceses. Fedora volta ao Brasil, com a iminência da Primeira Guerra Mundial e
passa algum tempo no Rio de Janeiro antes de regressar ao Nordeste. É sobre
esse momento de sua trajetória que nos fala João Ribeiro no Diário de Pernambuco de 6 de março de
1917 :
19.
Para os lados do
pitoresco arrabalde de Copacabana vive uma jovem artista de quem o Brasil
espera a realização. Cercada do carinho dos seus pais, a senhorita Fedora do
Rego Monteiro dedica-se a sua arte com o mais vivo e intenso culto. Começou a
sua educação artística na nossa Escola de Bellas Artes, onde teve como mestres
Zefferino, Visconti e Brocos, de cujas lições se aproveitou durante 4 anos. Não
era, porém, o Rio o ambiente mais propício para o complemento de sua educação
estética. Como todos os artistas, sentiu a fascinação de Paris, o grande meio
em que se definem as verdadeiras vocações de arte. E lá viveu outros 4 anos,
recebendo a inspiração de novos mestres: Guetin, Gervais e Desiré Lucas.
20. De
volta ao Rio e Janeiro, Fedora expõe com elogios da crítica que a compara a uma
das artistas mais destacadas naquele cenário, Georgina de
Albuquerque. De acordo com a Revista
do Brasil em 1916 (cfr. link):
21.
A sra. Georgina de
Albuquerque não é, neste Salon, a única artista vitoriosa. Realmente, o belo
sexo faz-se representar, com brilho e dignidade. A sra. Fedora do Rego Monteiro
que, há pouco, nos chegou de Paris e fez uma exposição numerosíssima, onde não
rareavam as belas obras, obteve a Pequena Medalha de Prata, com um retrato a
pastel, aceito no Salon des Artistes Français.
22. Após
esta nova temporada no Rio de Janeiro, Fedora volta para Recife em fins de
1917. Em sua cidade natal faz uma exposição individual na Associação dos
Empregados do Comércio e se casa com o intelectual pernambucano Aníbal
Fernandes que entre outras funções foi professor, jornalista, deputado
estadual, secretário de Justiça e Instrução, diretor da Inspetoria Estadual dos
Monumentos Nacionais e conservador do Museu Histórico e de Arte Antiga do
Estado de Pernambuco. De Recife ela manda trabalhos para a XXIII e XXIV
Exposições Gerais de Belas Artes da ENBA. Em 1920, assim se manifesta sobre ela
o conhecido sociólogo e intelectual pernambucano Gilberto Freyre:
23.
Outras mulheres
sul-americanas têm triunfado nos centros artísticos da Europa - como
musicistas, pintoras, escultoras e cantoras de ópera. Alguns dias antes de
deixar minha cidade natal para New York tive o prazer de jantar com uma das
mais brilhantes pintoras brasileiras, Fedora do Rego Monteiro, cujos trabalhos
têm sido elogiados por críticos parisienses.[21]
Gênero e Impermanência nas artes visuais de
Pernambuco
24. A
volta da artista para seu estado natal a levou ao encontro de outro espaço de
vivência e atuação. No trânsito Paris-Pernambuco, ela teve que se adaptar à
realidade da província que não permitia ousadias naqueles anos vinte. Como
exemplo nós temos o fato de que, no início da década seguinte, em março de
1930, seu irmão Vicente do Rego Monteiro trouxe para o Recife uma exposição de
obras dos principais representantes da chamada “Escola de Paris.”[22]
Foi um fracasso em termos de público e vendas. A mostra também não foi
compreendida por seus pares. Essa reação se deu principalmente por conta das
diferenças de códigos culturais entre a capital pernambucana e Paris onde a
liberdade de criação atraía artistas de todo o planeta.
25. No que
dizia respeito à sua produção artística Fedora, permanecia entre a linguagem
acadêmica - aprovada, por exemplo, pelo Salão dos Artistas Franceses, do qual
ela participou e cuja exposição anual remonta a 1881, sucedendo ao Salão da
Academia de Belas Artes e organizada pela Sociedade dos Artistas Franceses - e
o Impressionismo, que já tinha dado lugar na França a outras linguagens das
vanguardas artísticas. Isso a colocava, no Brasil e principalmente em
Pernambuco na vanguarda das transformações próprias de seu tempo, como situa
Lucílio Varejão em 1924:
26.
A meio de todos esses -
aparece ainda a figura de D.Fedora Monteiro Fernandes que se não enquadra entre
eles - porque viajou durante muitos anos, pelos museus da Europa, e teve bons
mestres e, com sua aguda percepção de lá trouxe uma maneira pessoal, pouco
simpática aos profanos amigos do chromo, do “lambido”, mas perfeitamente
satisfatória as “elites” conhecedoras das inflexões quase radicais por que
passa agora, nos centros culturais, na arte pinturesca de depois da guerra…[23]
27. Essa
linguagem de vanguarda e os limites de gênero imposto à mulher em Pernambuco -
que incluía a mulher artista profissional - a fez vivenciar um espaço limitante
em relação a sua atuação em Recife apesar das relações políticas e sociais de
seu marido. A consequência mais visível é que apesar da artista,
juntamente com Balthazar da Câmara, Henri Moser, Murilo La Greca, Bibiano Silva, Henrique Silva e Mario Tulio, estar à frente da organização do II Salão de
Arte Oficial de Pernambuco, em 1930, e do fato de que esse mesmo grupo esteve
articulado com a fundação da Escola de Belas Artes de Pernambuco em 1932, onde
Fedora ensinará posteriormente (única mulher que foi professora deste período,
dentre os 33 professores da instituição), ela não consta no quadro de sua
administração inicial ou posterior. Os primeiros dirigentes da EBAP foram:
Bibiano Silva, diretor; Heitor Maia Filho, vice-diretor; Jaime Oliveira,
secretário e Luiz Mateus Ferreira, tesoureiro. O fato nos convida à reflexão,
pois, afinal, inegavelmente, ela é a presença que mais se destaca no contexto
profissional das Artes Visuais em Pernambuco na década de 1930, com um
currículo bem mais sólido e cosmopolita em relação aos seus companheiros da
EBAP.
28. A
partir de 1942, através de um decreto estadual,[24]
instituiu-se o Salão Anual de Pintura no Museu do Estado de Pernambuco, onde
foram expostos apenas trabalhos de pintura à óleo e predominou a participação
de alunos e professores da Escola de Belas Artes do Recife. Os Salões
constituíam, então, o principal evento artístico realizado no Estado: um
símbolo do desenvolvimento das Artes Visuais em Pernambuco e vitrine para o
reconhecimento e validação da produção artística. Fedora do Rego Monteiro, uma
das fundadoras da Escola de Belas Artes de Pernambuco, membro do seu corpo
docente e personalidade atuante no universo das artes plásticas, parece também
ser a exceção feminina neste cenário. Analisando as premiações dos Salões
acontecidos entre 1942 até 1947, quando a própria Fedora ganha um segundo
prêmio, só aparece seu nome como expressão do universo feminino nas artes
visuais profissionais de Pernambuco No que diz respeito à comissão julgadora do
Salão, só em 1950 vemos a presença de uma mulher: Lygia E. de Oliveira.
29. É
importante lembrar também que, quase paralelamente à implantação da Escola de
Belas Artes, um grupo de jovens artistas rompia com seus ensinamentos e criava
o “Grupo dos Independentes,” que praticava valores estéticos inovadores e
trazia o vocabulário moderno para o cenário artístico pernambucano.
Desenhistas, caricaturistas, pintores e escultores compunham o grupo e fundaram
os primeiros Salões Independentes de Arte entre 1933 e 1936. ”Independência de
tudo que fosse tradicional” era a regra.[25]
O “Grupo dos Independentes” também não tinha, entre seus fundadores, nenhuma
mulher. Entretanto, na mostra realizada no “I Salão dos Independentes”
observarmos as presenças de Fedora Monteiro, Emília Marchesine e Crisolice Lima
- em um universo de 22 artistas - o que demonstra que elas eram competentes,
atuantes e se interessavam pela independência da tradição.
30. Dentro
de uma realidade social de hegemonia masculina, Fedora do Rego Monteiro
destacou-se não só como pintora, mas como a única professora da Escola de Belas
Artes do Recife, nos anos 1930. Trabalhou por anos a fio como professora de
desenho e pintura e expôs mesmo após sua volta a Recife, em salões do Rio de
Janeiro e da capital de Pernambuco. Tornou-se professora em 15 de julho de
1932, lecionando inicialmente a cadeira de natureza-morta [Figura 1].
31. Sobre
sua atuação enquanto mestra, a imprensa local se manifesta com louvores, o que,
porém, não impediu o seu esquecimento posterior. Sobre ela assim se referiu o Jornal Pequeno, publicado no Recife em
22 de agosto de 1932:
32.
Merecem
rasgados applausos os seus collaboradores, esforçados artistas, procurando
levantar o nível cultural do Recife. Entre os professores figura uma pintora,
nome bastante conhecido e a garantia de que a aula que tiver a seu cargo será
conduzida com brilho: Fedora do Rego Monteiro Fernandes, já laureada e mais -
consagrada pelo *Salon Officiel* de Paris, onde expoz um soberbo auto-retrato.[26]
33. O fato
é que. tanto como professora como quanto artista, Fedora se destacou. Enquanto
criadora, teve um currículo internacional, recebeu críticas de críticos
parisienses - em uma Paris então centro hegemônico das artes visuais do
Ocidente. Sobre seu trabalho escreveu, por exemplo, G. d’Escoyag:
34.
Mlle.
Fedora est une coloriste á laquelle la nature a departi avec prodigalité tous
les dons qu’une artiste peut envier; ses oeuvres ont des qualités d’envelloppe
et de coloris três personnelles; j’en aime la franchise de touche, la couleur
nuancée, delicate, harmonieuse.[27]
35. Além
de representar a pintura brasileira no mercado de arte francês, Fedora também
atuou no processo de articulação e difusão das artes visuais brasileiras no
contexto internacional não só como expositora em diversos salões, mas como
membro fundador da Association des
Artistes Brésiliens como nós podemos verificar através do jornal Le Radical de 21 de novembro de 1913:
36.
Le
“Cercle des Artistes Brésiliens” tient aujourd’hui sa première réunion, ou sera
décidée la date de l’exposition générale de ce groupe formée de l’élite de la
jeunesse artistique brésilienne. […] Citons, parmi les membres du Cercle Mmes
la vicomtesse de Sistello, la comtesse de Alto-Mearim, la baronne Hamoir de Rio
Branco, Mlle Fedora do Rego Monteiro, Mme Clotilde de Rio-Branco, MM Julio
Balla, Manoel Madruga, Marques Campar Correia e Castro, Vicente do Rego
Monteiro, Jose Rodrigues, Jose do Rego Monteiro, Oscar Pereira da Silva, Helene
Pereira da Silva, Gaspar Coelho de Magalhaes, etc. etc.[28]
37. Esta
artista atuante e engajada expôs até os últimos anos de sua vida, falecendo em
1975 aos 86 anos, na cidade de Recife. Mas, apesar do reconhecimento
profissional e social de seus contemporâneos muito pouco se fez em relação à
construção de sua memória. Como outras artistas que atuaram em Pernambuco,
Fedora faz parte das lacunas memoriais de um número importante de mulheres que
trabalharam e trabalham no estado desde Rita Joana de Sousa.
38. Os
estudos pioneiros sobre gênero no Brasil se iniciam, em sua maioria, no início
do século XXI - algumas décadas atrasados, portanto, em relação aos países
anglo-saxões e mesmo latinos. Eles tiveram como objeto e cenário uma
sociedade marcadamente desigual, católica e patriarcal e é necessário remarcar
que as questões de gênero nas artes visuais não possuem a mesma dinâmica nas
suas regiões não hegemônicas, nas quais se inclui o Nordeste brasileiro.
39. As
pressões do movimento feminista, desde os anos 1970, apoiadas pela entrada
maciça das mulheres na vida acadêmica e no mercado de trabalho provocaram uma
quebra no silêncio histórico e historiográfico e novas produções intelectuais
afirmam a presença da mulher nos mais diversos campos do conhecimento. Essa
recente inclusão das mulheres tem revelado momentos inesperados da presença
feminina nos acontecimentos históricos, bem como um alargamento do discurso,
até então estritamente estruturado para pensar as ações individuais e as
práticas coletivas como essencialmente masculinas.
40. Fedora
do Rego Monteiro se destacou profissionalmente entre seus contemporâneos no
cenário nacional e internacional e hoje é praticamente esquecida na realidade
que conjuga gênero e impermanência nas artes visuais. O objetivo deste texto é
o de que ele funcione como parte de um resgate de uma artista que trilhou o
difícil caminho de sinhá prendada a artista visual no início do século XX.
Referências
bibliográficas
A. Austregesilo . Ilustração Brasileira,1924.
ALVES, Solange Mousinho; ROCHA, Solange
Pereira. As mulheres na visão de um viajante inglês - século XIX. In: Anais
do II Seminário Nacional Gênero
e Práticas Culturais: culturas, leituras e representações.
Disponível em: <http://itaporanga.net/genero/gt1/500.pdf>. Acesso em: 1
dez. 2017.
ANJOS, Moacir dos; VENTURA Jorge Morais .
Picasso 'visita' o Recife: a exposição da Escola de Paris em março de 1930. Estudos
Avançados. vol.12 no.34 São Paulo Sept./Dec. 1998 Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000300027>.
Acesso em: 1 dez. 2017.
BARBOSA, Kleumanery de Melo. Dos Salões de
Arte em Pernambuco. Monografia para conclusão do curso de Graduação em
Licenciatura em Desenho e Plástica sob a orientação da Prof. Marilene Melo de
Almeida. Universidade Federal de Pernambuco. 2002.
CABRAL, Carlos Romeu. Fedora do Rego Monteiro,
O marche d”art francês e a internacionalização da pintura brasileira no século.
In: Anais da Anpap, 2016, Disponível em: <http://anpap.org.br/anais/2016/comites/chtca/carlos_cabral.pdf>.
Acesso em: 1 dez. 2017.
CLAUDIO, José. Tratos da Arte de Pernambuco.
Recife: CEPE, 2012
COUTO, Domingos de Loreto. Desagravos do
Brasil e Glórias de Pernambuco. Rio de Janeiro: Officina
Typographica da Biblioteca Nacional, 1904
DURAND, José Carlos. Arte privilégio e
Distinção. Editora Universidade de São Paulo, Perspectivas. São Paulo:
1989.
FREYRE, Gilberto. Diário de Pernambuco,
6 jan. 1920.
MELO E SILVA, Beatriz de Barros. A pedagogia
da Escola de Belas Artes do Recife - Um olhar a mais. Dissertação
apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em
Historia. Recife, 1995.
QUINTAS, Fatima. Sexo a moda patriarcal: o
feminino e o masculino na obra de Gilberto Freyre. São Paulo: Globo, 2008.
RIBEIRO, João. Diário de Pernambuco, 6
mar. 1917.
RODRIGUES, Nise de Souza, O grupo dos
independentes: arte moderna no Recife-1930. Recife; Editora da Aurora,
2008.
SANTOS, Niedja
Ferreira in O ensino do desenho na Escola de Belas Artes e Pernambuco
(1932 A 1946). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em
Artes Visuais da UFPE-UFPB. 2015
VAREJAO, Lucilo in Ilustração
Brasileira. Rio de Janeiro, 1924.
ZACCARA, Madalena. Uma artista mulher em Pernambuco
no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro Fernandez. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1,
jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/frm_mz.htm>.
Acesso em: 1 dez. 2017.
______________________________
[1] Doutora em História da
Arte - Université Toulouse II, também em Toulouse, França, como bolsista Capes.
Tem pós-doutorado pela Escola de Belas Artes da Universidade de Porto,
Portugal, também como bolsista Capes e desenvolveu pesquisas junto a Université
de Laval, Quebec Canadá e a Universidad de Murcia, Espanha. Atualmente é
professor Associado IV da Universidade Federal de Pernambuco. Ensina no
Programa Associado de Pós Graduação em Artes Visuais UFPE-UFPB. Endereço
eletrônico: madazaccara@gmail.com
[2] Graduando em Artes
Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco, pesquisador do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
[3] FREYRE, Gilberto apud
QUINTAS, Fatima. Sexo a moda patriarcal: o feminino e o masculino na
obra de Gilberto Freyre. São Paulo: Globo, 2008, p. 67.
[4] QUINTAS, Fatima. Sexo
a moda patriarcal: o feminino e o masculino na obra de Gilberto Freyre.
São Paulo: Globo, 2008, p. 171.
[5] KOSTER, Henry Apud
ALVES, Solange Mousinho; ROCHA, Solange Pereira. As mulheres na visão de um
viajante inglês - século XIX. Anais do II Seminário Nacional Gênero e Práticas
Culturais: culturas, leituras e representações. Disponível em: http://itaporanga.net/genero/gt1/500.pdf
[6] MELO E SILVA, Beatriz
de Barros. A pedagogia da Escola de Belas Artes do Recife - Um olhar a mais.
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obtenção do
grau de mestre em Historia. Recife, 1995.p.52.
[7] MELO E SILVA, op. cit., 1995, p. 53.
[8] DURAND, José Carlos. Arte
privilégio e Distinção. Editora Universidade de São Paulo, Perspectivas.
São Paulo: 1989.
[9] MELO E SILVA, op. cit., 1995, p. 53.
[10] COUTO, Domingos de
Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Rio de Janeiro:
Officina Typographica da Biblioteca Nacional, 1904.
[11] João de Deus Sepúlveda.
(Recife PE 17-- - s.l. 17--). Pintor, dourador, músico e tenente. É considerado
o mais importante pintor pernambucano do período colonial. Executa as pinturas
dos painéis laterais e do forro da nave da Igreja da Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Carmo (1760/1761) e do forro da nave da Igreja de São Pedro dos
Clérigos (1764/1768), no Recife. (Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural).
[12] CLAUDIO, José. Tratos
da Arte de Pernambuco. Recife: CEPE, 2012, p. 257.
[13] Jerônimo José Telles
Júnior (Recife 1851 – Recife 1914). Pintor e professor, ele dedica-se
especialmente a retratar a natureza da região nordeste do Brasil,
principalmente a pernambucana.
[14] MEDEIROS, Bianor.
Nossos quadros e nossos pintores. Recife: A cultura acadêmica, 1906, apud CLAUDIO, José. Tratos da Arte
de Pernambuco. Recife: CEPE, 2012, p. 226.
[15] Arquivos
particulares da artista pernambucana Zélia Gouveia.
[16] MEDEIROS, Bianor apud CLAUDIO, José. Tratos da Arte
de Pernambuco. Recife: CEPE, 2012, p. 226.
[17] Ibidem, p. 233.
[18] Pedro Américo e Aurélio
de Figueiredo e Mello, irmãos, artistas paraibanos. O primeiro foi pintor,
desenhista, professor, caricaturista, escritor. Muda-se para o Rio de Janeiro,
onde estuda no Colégio Pedro II e no ano seguinte matricula-se na Academia
Imperial de Belas Artes - AIBA. Entre 1859 e 1864, com bolsa concedida pelo
imperador dom Pedro II (1825 - 1891), estuda na École National Superiéure des
Beaux-Arts [Escola Nacional Superior de Belas Artes] de Paris. Autor de
trabalhos românticos importantes para a História da Arte brasileira como a
Batalha de Avaí e a Batalha de Campo Grande. O segundo, pintor, caricaturista,
desenhista, escultor, escritor. Freqüenta, ainda adolescente, a Academia
Imperial de Belas Artes - AIBA, no Rio de Janeiro, sob a orientação de seu
irmão Viaja para a Europa e reside em Florença, entre 1876 e 1878. Nessa época,
trabalha no ateliê do irmão e estuda com Antônio Ciseri (1821 - 1891), Nicolò Barabino
(1832 - 1891) e Stefano Ussi (1822 - 1901), todos pintores de história, gênero
e retrato.
[19] A. Austregesilo. Ilustração
Brasileira, 1924 p. 111.
[20] Idem.
[21] FREYRE, Gilberto. Diário
de Pernambuco, 6 jan. 1920.
[22] “A relevância da
exposição da Escola de Paris está, em primeiro lugar, no fato de alguns dos
artistas ali representados terem sido os responsáveis por várias das grandes
inovações nas artes plásticas nas primeiras décadas do século XX, tais como o
fovismo, o cubismo e o surrealismo. Mas foi igualmente marcante por ter sido a
primeira grande exposição de arte moderna europeia a desembarcar no Brasil e a
única, de porte equivalente, de que se teria notícia nos dez anos seguintes”
in ANJOS, Moacir dos; VENTURA Jorge Morais . Picasso 'visita' o
Recife: a exposição da Escola de Paris em março de 1930. Estudos Avançados.
vol.12 no.34 São Paulo Sept./Dec. 1998 Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000300027
[23] VAREJAO, Lucílio.
Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro, 1924, p. 45.
[24] Decreto Estadual 725 de
25 de abril de 1942 apud Kleumanery de Melo Barbosa, Dos Salões de
Arte em Pernambuco. Monografia para conclusão do curso de Graduação em
Licenciatura em Desenho e Plástica sob a orientação da Prof. Marilene Melo de
Almeida. Universidade Federal de Pernambuco. 2002.
[25] RODRIGUES, Nise de
Souza, O grupo dos independentes: arte moderna no Recife-1930. Recife;
Editora da Aurora, 2008.
[26] Jornal Pequeno, Recife, 22 ago. 1932. Citado em: SANTOS, Niedja
Ferreira. O ensino do desenho na Escola de Belas Artes e Pernambuco (1932 A
1946). Dissertação de Mestrado. Programa de Pós Graduação em Artes
Visuais da UFPE-UFPB. 2015 p.91.
[27] d’ESCOVAG, G. d’ apud
João Ribeiro. Diário de Pernambuco, 6 mar. de 1917.
[28] M. P. Nouvelle du Monde
des Arts. Le Radical, Paris, 21 nov. 1913. Citado em: CABRAL,
Carlos Romeu. Fedora do Rego Monteiro, o marché d’art francês e a
internacionalização da pintura brasileira no século XX. Anais da Anpap,
2016, Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2016/comites/chtca/carlos_cabral.pdf