Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora nacional
Raquel Medeiros
MEDEIROS, Raquel. Mário de Andrade e a busca pela arte brasileira: a pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora nacional. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/marioandrade.htm>
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A atitude estética pregada por Mário de Andrade resume-se, por assim dizer, à supressão do individualismo moderno, obedecendo às exigências técnicas do fazer artístico. O fato de o artista compreender e dominar a técnica de sua arte o colocava numa relação de respeito com sua obra, e não mais de possessão. O foco seria a própria arte e não mais o artista.
O fazer artístico, assim, tornava-se uma ação produtiva, que tinha como objetivo “a fabricação de um produto”, sem atender a nenhum desejo do artista. O que se deveria perseguir era a melhoria da técnica ou habilidade do artista e não mais o próprio artista ou suas habilidades pessoais (MORAES, 1999, p. 71).
Mário de Andrade mencionou Maritain e sua teoria da arte, além de outros escolásticos, como pressuposto teórico à sua tese sobre a atitude estética. Essa teoria “define o agir e o fazer como os dois domínios que constituem a ordem da inteligência prática, distinta da ordem da inteligência especulativa” (MORAES, 1999, p. 70). O objetivo do escritor ao utilizar esse referencial era, sobretudo, distanciar o fazer artístico do individualismo típico da Modernidade definindo a obra como critério do que seja artístico, e não mais o artista, como se vinha fazendo pela maioria dos modernos.
Outro ponto de concordância do escritor com Maritain era a indistinção entre arte e artesanato, atribuindo a ambos uma origem comum. Para o escolástico, era necessário ir além do reconhecimento de arte e técnica típicas de determinado período histórico e ir ao campo conceitual, alcançando a identidade do fazer artístico.
Esse ponto foi essencial para o interesse de Mário pelo escolástico. O caminho para a superação do individualismo típico da modernidade seria submeter a arte a um contexto exterior, em que até a origem do artista seria desconhecida. Concomitantemente, havia a referência à dimensão interna do fazer artístico na medida em que se trabalhava a técnica e a produção artesanal. “Tudo dependia, agora, de fazer o artista retornar à sua vocação artesanal original” (MORAES, 1999, p. 72).
No entanto, Mário de Andrade dava um enfoque maior à matéria como determinante da obra de arte ou artesanato. Assim, arte e artesanato não seriam distintos pelo fato de que seriam fazeres submetidos ao material e suas determinações.
Ao contrário de Maritain, o escritor via que a dimensão técnica do fazer artístico era o que lhe dava uma força moralizadora. Sua tese era de que a aproximação entre arte e artesanato era o que conseguiria superar o desvio moral advindo do individualismo moderno. Essa postura o colocou em contato com as propostas dos arquitetos modernos, que, na época, procuravam adequar suas técnicas aos novos recursos, obtidos pela onda crescente de industrialização. A arquitetura era considerada uma arte submetida à natureza estética e não aos “caprichos” do arquiteto.
A arquitetura é considerada uma forma de arte que deve fiar-se menos na invenção do artista que nas exigências do engenheiro. Ainda que guarde um critério de natureza estética, ela depende basicamente de pressupostos de natureza técnica, dedutiva, e não da invenção do artista. Por isso, a arquitetura ocupa um lugar à parte entre as belas-artes, sendo possível mesmo argumentar a favor da sua exclusão do seu meio. (MORAES, 1999, p. 77)
Primeiro, a arquitetura era dependente da natureza técnica e do material e se definia pela finalidade a que se destinava, superando, assim, o individualismo. Em O artista e o Artesão, Mário indicou uma série de argumentos que colocavam em xeque a questão da autoria, relativizando a importância de técnicas individuais, partindo justamente do exemplo da arquitetura em que o fim justifica os meios - a obra como principal - o caráter social da arte.
Nesse mesmo argumento - o caráter social da arte - Mário incluiu o folclore, em que a presença humana se dava de forma não individualista, com dimensão funcional. O folclore foi de extrema importância na constituição do ideário de cultura nacional proposto pelo escritor e pelo próprio Movimento Modernista.
O retrato-do-Brasil que Mário de Andrade propôs-se traçar nesse momento terminava por identificar o ser nacional à ‘coisa folclórica’. No folclore estariam enraizados os traços de nacionalidade. Ora, a manifestação folclórica é coletiva, social, não há como definir a autoria individual de um produto já seu. Já este fato aponta para a inexistência nela de qualquer traço de individualismo. A ‘coisa folclórica’ tampouco está sujeita a qualquer desvio formalista, sendo sua principal característica a economia de recursos inventivos. (MORAES, 1999, p. 80, grifos meus)
Nota-se que a dimensão de arte proposta era o distanciamento do formalismo, atribuindo à arte uma dimensão utilitária, própria da vida coletiva. A serventia do objeto artístico era o que determinava sua forma - uma perspectiva pragmática do fazer artístico (MORAES, 1999). Essa perspectiva foi ao encontro dos pressupostos do movimento, pois se abrigou na cotidianidade do povo brasileiro; a presença do artista/artesão de modo não destacado, dando ao usuário do objeto artístico uma forma de comunicação com sua realidade social.
A atitude estética proposta pelo escritor revelou uma arte inserida no cotidiano, servindo ao usuário, que, por sua vez, poderia se identificar com a utilidade do instrumento, com sua aparência não destacada no cotidiano da vida coletiva.
De modo geral, Mário de Andrade propunha certo resgate da vida cotidiana coletiva em contraste com os “males” da modernidade - experimentalismo acentuado, formalismo demasiado e hermetismo prejudicial à arte social. A solução à acentuada visão do papel do gênio seria dar prioridade ao material no processo de criação, regenerando e moralizando o artista. Sublinhando “a função da arte na vida das coletividades”, o escritor tinha como objetivo a oposição ao individualismo e ao formalismo, focando no papel social da arte em si e do próprio fazer artístico (MORAES, 1999, p. 88).
Em O Artista e O Artesão, aula inaugural de Mário de Andrade para o curso de Filosofia e História da Arte da Universidade do Distrito Federal, foram abordados quatro elementos que constituem a base de toda obra de arte: a sublimação e a comunhão social, ligadas ao psíquico, e a técnica e a forma, ligadas ao material. Destacou, ainda, o desequilíbrio entre esses elementos ao longo da história, em que prevaleceu o sentimento em detrimento dos aspectos expressivos - individualismo x social: “se o espírito não tem limites na criação, a matéria o limita na criatura” (ANDRADE, 1975, p. 25)
Pode-se tirar dessa força moral que o fazer artístico tem o fato de que, ao transferir todo o conhecimento para a obra de arte, o artista/artesão não mede nem filtra os efeitos que ela terá nos grupos sociais ou indivíduos, retomando o caráter social do fazer artístico, numa perspectiva interacionista - a arte como comunicação, comunhão e expressão, desinteressada de objetivos individualistas e ideológicos.
Identifica-se, assim, a atitude estética proposta por Mário de Andrade, “uma nova direção para a técnica artística que, ao invés de se apresentar como veículo para a expressão de uma personalidade, a técnica passaria a condicionar e limitar o gesto do artista.” Na proposta, havia “um sentido inexorável de destruição do eu” (SANDRINI, 2009, p. 464).
É possível distinguir as três categorias daquilo que o escritor chamava de arte: o artesanato, que seria a aprendizagem com o material; o virtuosismo, movimento de pesquisa da tradição em determinado fazer artístico, e a solução pessoal, que seria o diálogo entre o material, o artista e as exigências contemporâneas (SANDRINI, 2009, p. 464). Neste sentido, a postura do artista/artesão seria a de intensa pesquisa, um “engajamento constante, em todas as direções: a artista não deve alienar-se, nem de si mesmo, nem de seu artesanato, nem da história” (LAFETÀ, 1974, p. 161). Ou seja, afirmar o valor coletivo da arte. Identifica-se, deste modo, o primeiro ponto do que denomina-se, aqui, de tríade conceitual proposta por Mário de Andrade: o direito permanente à pesquisa estética.
Quanto ao direito de pesquisa estética e atualização universal da criação artística, é incontestável que todos os movimentos históricos das nossas artes... sempre se basearam no academismo. Com alguma exceção individual rara, sem a menor repercussão coletiva, os artistas brasileiros jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, se eliminava assim o direito de pesquisa, e consequentemente de atualidade. [...] Ora o nosso individualismo entorpecente se esperdiçava no mais desprezível dos lemas modernistas, ‘Não há escolas!’, e isso terá por certo prejudicado muito a eficiência criadora do movimento. E si não prejudicou a sua ação espiritual sobre o país, é porque o espírito paira sempre acima dos preceitos como das próprias ideias... Já é tempo de observar, não o que um Augusto Meyer, um Tasso da Silveira e um Carlos Drummond de Andrade têm de diferente, mas o que tem de igual. (ANDRADE, 1942, p. 479)
Diante desta atitude estética e a urgência da postura de pesquisador dos intelectuais e do próprio artista, como consequência viria a atualização da inteligência artística nacional, segundo ponto da tríade conceitual marioandradiana, fruto da atitude estética que pregava a pesquisa constante, extrapolando o fator meramente estético da arte e alcançando seu significado para a coletividade. A inteligência artística nacional ainda se baseava no conceito de arte social e na conquista do direito permanente à pesquisa estética:
Quanto à conquista do direito permanente de pesquisa estética, creio não ser possível qualquer contradição: é a vitória grande do movimento no campo da arte. E o mais característico é que o antiacademismo das gerações posteriores à da Semana de Arte Moderna, se fixou exatamente naquela lei estético-técnica de ‘fazer milhor’, a que aludi, e não como um abusivo instinto de revolta, destruidor em princípio, como foi o do movimento modernista. Talvez seja o atual, realmente, o primeiro movimento de independência da Inteligência brasileira, que a gente possa ter como legítimo e indiscutível. Já agora com todas as possibilidades de permanência. (ANDRADE, 1942, p. 480 e 481)
Mário de Andrade ainda completa:
Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário. Atuais, atualíssimos, universais, originais mesmo por vezes em nossas pesquisas e criações, nós, os participantes do período milhormente chamado ‘modernista’ fomos, com algumas exceções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa esquecemos de mudar a atitude interessada diante da vida contemporânea. (ANDRADE, 1942, p. 482)
A arte colocada como agente ideológico seria aquela que tinha como tarefa a transmissão de mensagens. No entanto, se a mensagem estivesse acima de interesses individuais, poderia exprimir um conteúdo libertário e novo. Nesse sentido, seriam necessárias condições para a constituição da arte com caráter social em um sentido singular, o que seria alcançado pelo desinteresse de interferência excessiva do autor/artesão na obra.
Partindo dessa premissa, surgiu a posição da arte sem interferências externas, dando aos sujeitos mecanismos para a arte desinteressada, sem subordinação a mecanismos ideológicos ou políticos, focada na vida coletiva.
Pode-se notar que, nesse ponto, o pensamento do escritor se aproximou das áreas de Sociologia e Antropologia, focando na questão da formação da cultura e identidade nacionais, principalmente com a aproximação do escritor com a doutrina de Durkheim. No estudo dos recursos imaginativos elaborados pelos grupos sociais nas práticas religiosas feito pelo sociólogo, Mário de Andrade aproveitou essa premissa para apontar que, tal qual a religião, a arte também possui o poder de comunhão e afirmação de uma identidade coletiva - “a arte era concebida como fundadora da nacionalidade” (MORAES, 1999, p. 107).
A arte nacional, longe de exprimir um caráter político-ideológico, exprimiria os aspectos culturais, frutos do afeto (sentimentos e emoções) dos grupos sociais, situando a arte no bojo da vida social, fruto e reflexo da vida coletiva de determinado grupo cultural.
Para Mário de Andrade, a arte já estava presente no povo, e o artista, portanto, deveria abordar, em suas obras, a arte popular, transpondo seus elementos. Para ele, a nacionalidade estava contida no folclore.
Essa visão de nacionalidade estava sustentada numa cadeia de reduções. A nacionalidade seria a própria cultura popular que, por sua vez, ligar-se-ia ao elemento folclórico. O folclore, assim, é tido como o primitivo, que definiu, para o escritor, o genuíno elemento nacional, que levaria o país ao concerto das nações cultas, definindo a cultura brasileira como singular. A arte não era tida como nacionalista, tal qual na Rússia ou Alemanha, mas nacional, reflexo das realidades sócio-culturais do país, longe dos traços externos e superficiais, podendo, coincidir, assim, com o contexto universal (MORAES, 1999).
Assim, a atualização da inteligência brasileira se daria com a arte em consonância com a vida comum, como reflexo de uma cultura ou identidade nacional. É extremamente importante destacar que essa tese proposta por Mário de Andrade foi decisiva na formulação do conceito que transferiu a arte, como expressão cultural, das mãos dos especialistas e técnicos para as mãos do povo, detentor do verdadeiro elemento nacional.
É nas viagens ao interior do país que se pode identificar de onde Mário tirou o terceiro ponto de sua tríade conceitual: a consciência criadora nacional. É de extrema importância seguir os passos do autor nessas viagens, para que se possa entender sua trajetória posterior, como homem público e, principalmente, como intérprete do Brasil.
O fruto literário mais conhecido dessas viagens, o livro O turista aprendiz, pode ser considerado uma literatura de registro, fonte de pesquisa nas áreas de ciências sociais e literatura, por exemplo. Dorothea Passetti (2004) indica a importância desse tipo de literatura pela mescla de observações, anotações científicas e de cunho pessoal do pesquisador que escreveu o livro. Passetti continua tecendo comentários sobre a literatura de registro: “Relatos de viagem lançam o leitor para espaços desconhecidos. Mostram outras faces de lugares familiares e promovem intimidades com o autor ao permitirem reconhecer, quando ali está, tanto o que havia sido imaginado pela leitura quanto vestígios do passado ou maneiras pelas quais foram sendo alteradas as descrições anteriores” (2004, p. 35)
Sua primeira viagem, entre 13 de maio e 15 de agosto de 1927, percorreu o rio Amazonas até o Peru, o rio Madeira até a Bolívia e o rio Marajó, no intuito de revelar o país e constituir uma representação da cultura nacional, fruto da visão do escritor sobre o Norte e Nordeste como depositários da cultura popular, do folclore, num trabalho identificado por Antonio Gilberto Ramos Nogueira (2005) como etnográfico, pela rigidez metodológica na coleta de documentação, utilizando instrumentos diversos.
Na primeira viagem surgiu o projeto Na Pancada do Ganzá, obra não concluída pelo falecimento de Mário em 1945. Posteriormente foi publicada por Oneyda Alvarenga e Telê Ancona Lopez, entre outras importantes discípulas. Nessa viagem foi acompanhado por Olívia Guedes Penteado, mecenas do Modernismo, Margarida Guedes Nogueira e Dulce do Amaral Pinto, filha de Tarsila do Amaral.
Nessa viagem vários elementos foram incorporados não só na redação do projeto, mas no livro Macunaíma, em que, por carta, Mário havia pedido a Câmara Cascudo manifestações folclóricas do Nordeste para serem incluídas em sua redação. Cascudo inclusive havia sido convidado pelo escritor para acompanhá-lo na viagem, mas não foi. Os contatos, porém, já eram mantidos desde um pouco antes. Desde 1926 já confessava ao amigo sua “fome” de conhecimento da vida do povo brasileiro:
Tem momentos em que eu tenho fome, mas positivamente física, fome estomacal de Brasil agora. Até que enfim sinto que é dele que me alimento! Ah! si eu pudesse nem carecia você me convidar, já faz sentido que tinha ido por essas bandas do norte visitar vocês e o norte. Por enquanto é uma pressa tal de sentimentos em mim que não espero nem seleciono. Queria ver tudo, coisas e homens bons, ruins, excepcionais e vulgares. Queria ver, sentir, cheirar. Amar já amo. (ANDRADE, 1991, p. 35)
A segunda viagem ocorreu entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, concentrada, principalmente, em três estados nordestinos: Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Durante o percurso das viagens, as impressões do autor foram transformadas no livro O turista aprendiz. Os percursos tiveram um papel extremamente importante na narrativa modernista nas diversas regiões após 1924 (NOGUEIRA, 2005, p. 104).
Viajando pelo Nordeste, nosso cronista nos comunica que ainda há um Brasil por descobrir e valorizar, para ser entendido enquanto vida e cultura do povo. Essa dimensão, a da pesquisa etnográfica e a do enfoque sociológico revelará danças dramáticas, o catimbó e procurará analisar as condições de vida da região, numa perspectiva nova que deseja abandonar a caracterização do regional através do exótico e do pitoresco, porque estará preocupada com as relações de produção e com as classes sociais. (LOPEZ, 2002, p. 41)
Enquanto na primeira viagem o pesquisador foi acompanhado por mecenas dos modernistas, a segunda, como correspondente do Diário Nacional, deu a Mário a oportunidade de aprofundar sua coleta de dados em música, arquitetura, imaginário religioso, vida e trabalho do homem brasileiro, sintetizado na visão do nordestino.
Com sua câmera, foi fotografando tudo à sua volta: amigos de viagem, pessoas, paisagens, trabalhos, transporte e arquitetura. A fotografia foi decisiva na sua opção metodológica, que revelou, de início, o espanto do homem cosmopolita com o caboclo ou o nordestino e seus hábitos culturais. Importante frisar que esses relatos não revelaram só uma realidade objetiva e impessoal, mas a própria “memória subjetiva” do autor (NOGUEIRA, 2005, p. 111). “Aqui sente a necessidade de colher e registrar, diretamente da fala do povo, os elementos constitutivos da brasilidade procurada. Sua concepção de cultura indica que acreditava na vitalidade e força criativa das tradições autóctones como renovação permanente no processo criativo”. (NOGUEIRA, 2005, p. 113)
A própria postura metodológica, de coleta e pesquisa, veio da Europa desde o século XVIII ao início do século XX, fruto do interesse dos intelectuais em definir a questão nacional. Assim, pela arte popular - a consciência criadora nacional - poder-se-ia construir um conceito sólido de nacionalidade. No Brasil, a oposição entre folclore e civilização preocupou os intelectuais, principalmente Mário de Andrade, na preservação não só do material como, também, das práticas culturais populares, protegendo-as da ideia de um progresso prejudicial ao ócio vital à criação artística do povo (NOGUEIRA, 2005). A síntese do Brasil refletiu-se em Macunaíma, por exemplo:
Minha intenção foi esta: Aproveitar no máximo possível lendas, tradições, costumes, frases feitas, etc., brasileiros. E tudo debaixo dum carácter sempre lendário porém como lenda de índio e de negro. [...] Um dos meus cuidados foi tirar a geografia do livro. Misturei completamente o Brasil inteirinho como tem sido minha preocupação desde que intentei me abrasileirar e trabalhar o material brasileiro. Tenho muito medo de ficar regionalista e me exotisar pro resto do Brasil. Assim lendas do norte, botei no sul, misturo palavras gaúchas com modismos nordestinos ponho plantas do sul no norte e animais do norte no sul etc. Enfim, é um livro tendenciosamente brasileiro. (ANDRADE, 1991, p. 75)
O diário de viagens de Mário constituiu, assim, um elemento etnográfico: até mesmo a cozinha nacional estava presente, apresentando-a não só do ponto de vista culinário, mas, também, como expressão popular dos usos que o homem brasileiro fazia de seu ambiente e sua capacidade inventiva.
As descrições do escritor/pesquisador forneceram para sua época e para estudos posteriores sobre identidade nacional, diversas categorias analíticas do ponto de vista do nacional, étnico e do regional ou social, estabelecendo as distinções entre os grupos humanos, esboçando “uma cartografia da diversidade cultural”, indo direto ao objeto de estudo, o povo, para tornar a pesquisa fidedigna, aliando os dados à bibliografia e suas próprias impressões pessoais (NOGUEIRA, 2005, p. 126).
A fotografia, como constituinte do acervo da cultura nacional, despertou a importância da preservação do patrimônio cultural, na sua gestão no Departamento de Cultura de São Paulo e, posteriormente, no cargo de assistente técnico do Sphan, tendo a iconografia como forma de manter os elementos que estivessem se degradando, como a arquitetura, desenhos rupestres ou construções populares: “À medida que a memória visual vai compondo o retrato do Brasil, a fotografia é apreendida como fonte histórica, documento, meio de conhecimento com o mesmo reconhecimento que se deu ao signo escrito”. (NOGUEIRA, 2005, p. 135)
As legendas das fotografias tiradas pelo escritor revelaram a amplitude de abordagens, que refletia a preocupação em ter um retrato fiel do poder criativo do povo brasileiro: legendas de teor literário, humorístico, referencial, de exercício do moderno. Pedaços de um país desconhecido que tinha uma força criadora que precisava ser preservada e refletir o homem brasileiro e sua arte.
Na abordagem da vida do povo, a viagem a Natal, em 15 de dezembro de 1928, deu a Mário de Andrade o conhecimento do Brasil pela ótica do folclore. Na análise da vida do operário, seu vocabulário sugeria o contato com o marxismo.
Respeitando a linguagem popular, através do estudo do cordel ou das músicas populares, o escritor preocupou-se em dar forma às temáticas nacionais através dos processos de criação e técnicas do homem do povo, “da versatilidade do poeta ao embolar, Mário entreviu a importância do processo criativo na constituição de manifestações populares” (NOGUEIRA, 2005, p. 166).
Inventariando as festas populares, fez um traçado histórico em consonância com a mobilidade da tradição, fundamentado na atualização, concebendo a nação como a reinvenção da tradição, colocando-a como a base da identidade nacional, fundando e reinventando tradições.
Continuando com sua preocupação em relação aos diferentes modos de vida do homem brasileiro e com o rigor científico da coleta de dados, Mário de Andrade ainda manteve contato com Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss. Essa relação se iniciou aproximadamente em 1935, com a chegada do casal ao Brasil e a publicação do artigo de Lévi-Strauss no jornal O Estado de São Paulo em que propunha à USP a criação de um Instituto de Antropologia Física e Cultural.
Com a não aceitação da proposta do pesquisador pela Universidade, Mário, então diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, publicou novamente o artigo na Revista do Arquivo Municipal e convidou Dina para ministrar um Curso de Etnografia junto ao Departamento. Do curso, foi criada a Sociedade de Etnografia e Folclore, em 1937, vinculada ao Departamento de Cultura e tinha como principal objeto a pesquisa etnográfica.
Também foi o Departamento que financiou uma parte da primeira expedição do casal aos Bororo e Kadiwéu, de 1935 a 1936, além de outras viagens a Pirapora do Bom Jesus, a Mogi das Cruzes e outras pequenas cidades: “Nesse sentido, a transformação do projeto do Instituto de Antropologia no Curso de Etnografia agregou, à proposta defendida por Lévi-Strauss de fazer uma coleta rigorosa e objetiva para o avanço da ciência antropológica, a concepção da etnografia como prática que contribuiria para fortalecer a forma e o conteúdo do caráter nacional, que seriam trabalhados na produção artística.” (VALENTINI, 2009, p. 3)
As pesquisas realizadas na Sociedade de Etnografia e Folclore estavam inseridas em um contexto de transformações pelas quais passavam as disciplinas de Sociologia, Antropologia e Etnologia - nas discussões dos conceitos de raça e cultura - e a política pública municipal, em São Paulo, e nacional: “A etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores, que vão à casa do povo recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor.” (ANDRADE, 1936 apud NOGUEIRA, 2007, p. 263)
Essa preocupação com as pesquisas científicas e com o registro e preservação do objeto dessas pesquisas evidencia o caráter pedagógico que Mário deu ao Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo. O próprio Curso de Etnografia e Folclore, com seu objetivo de formar para a pesquisa, é um reflexo dessa preocupação com a área educativa. E o se caráter de difusão demonstra a ideia de um projeto amplo, de formação do público em âmbito nacional: “Esta variedade de formas de produzir conhecimento, que permitia a aproximação a questões e problemas muito diversos por um mesmo pesquisador, se vê nas pesquisas realizadas com recursos do Município e foi articulada em torno de uma episteme difusionista cujo primeiro objetivo era a reconstrução histórica das migrações e transformações culturais que teriam resultado nos e dos traços culturais ou biológicos estudados.” (VALENTINI, 2009, p. 4)
Vários projetos foram elaborados na gestão do escritor, para a Divisão de Bibliotecas, a Divisão de Educação e Recreio e a Discoteca Pública, pautando-se nos esportes, na criança, na higiene, nas artes e na preservação da cultura popular, através da reinvenção de práticas da cultura do povo que estavam sendo perdidas na cidade de São Paulo. Em relação à amplitude nacional, o Departamento desenvolveu atividades como festas e brincadeiras tradicionais com filhos de operários e outras crianças.
Tanto o curso ou mesmo as atividades voltadas ao público se configuraram como preparativos para a Missão de Pesquisas Folclóricas. Em meio ao recolhimento dos primeiros registros sonoros dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Bahia, junto a Oneyda Alvarenga, Mário enviou seus primeiros “discípulos” a campo: Luis Saia - chefe da Missão e sócio-fundador da SEF - Martin Braunwieser, músico; Benedito Pacheco, técnico de som e Antonio Ladeira, auxiliar geral e assistente técnico de gravação.
O início da Missão se deu em 6 de fevereiro de 1938. Depois de passar pelo Rio de Janeiro, Vitória, Salvador e Maceió, aportou em Recife em 13 de fevereiro, ficando até 23 de março. Lá, filmaram cocos, cantigas de roda, sertaneja, pedintes, ex-votos, caboclinhos, maracatus, o toré dos índios pancarus e sua festa do umbu.
Depois, a Missão ficou em Paraíba até 30 de maio, realizando pesquisas pelo sertão. Filmaram e fotografaram bumba-meu-boi, vaquejada, reis do congo, cantigas infantis, sambas, canto de carregadores de pedra, reisados, desafios, repentes, lundus, cabaçal, catimbó e realizaram vários registros da arquitetura popular, tão importante na atitude estética de Mário.
Passando pela substituição de Mário frente ao Departamento de Cultura e alguns problemas políticos, a Missão teve sérias dificuldades no Maranhão, entre os dias 15 e 21 de junho. Mesmo assim, conseguiram registros do Tambor de criolo e Tambor de mina, bumba-meu-boi e carimbo. Passaram também por Belém do Pará, ficando até 7 de julho, até serem obrigados a voltar para São Paulo.
O material colhido foi organizado por Oneyda Alvarenga e catalogada na coleção Arquivo Folclórico (1946 e 1948) e na coleção Registros sonoros do folclore musical brasileiro - RSFMB (de 1948 a 1946). Mesmo com a prematura morte de Mário, seu legado continuou, tanto na formação de pesquisadores quanto na importância do registro da cultura popular nacional.
Os diversos sentidos dados à palavra arte, a percepção da consciência criadora do povo brasileiro e a própria preocupação com o rigor científico e a formação de pesquisadores e do próprio povo deram às ações de Mário de Andrade enquanto escritor e pesquisador o início de uma prática pautada na ideia de uma nova visão de arte brasileira.
Do mesmo modo, a “cordial mastigação”, própria da Antropofagia, deu-se no conhecimento do outro enquanto formador da heterogeneidade da cultura nacional, apreendendo e reinventando a memória coletiva e a própria cultura.
Do direito à pesquisa estética, pautado em sua tese do artista pesquisador; da atualização da inteligência artística, como reflexo da cultura e da vida coletiva, e pela consciência criadora nacional, descoberta em suas viagens e na sua prática enquanto funcionário público, Mário de Andrade construiu os arcabouços teórico e simbólico do que seria a identidade nacional, originada de uma visão inovadora do que seria a arte brasileira.
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