Dilemas pinturescos: notas sobre a passagem do pintor Guttmann Bicho por Florianópolis em 1919
PEREIRA, Lucésia. Dilemas pinturescos: notas sobre a passagem do pintor Guttmann Bicho por Florianópolis em 1919. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/lp_gb.htm>.
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1. Recentemente, ao apresentar a publicação de um livro cujo tema central era (ainda) a modernidade e o modernismo brasileiro, Annateresa Fabris (2010) reconhecia que a história construída sobre o modernismo foi elaborada em grande parte pelos protagonistas dos eventos. Esta afirmação acena para a necessidade de questionar alguns discursos cristalizados ao longo do tempo. Entre eles, o argumento sobre o suposto hermetismo da Escola Nacional de Belas Artes - ENBA, instituição com a qual o modernismo teve um confronto mais aberto. A ENBA recebeu críticas a esse respeito com base na ideia de que em seus preceitos seguiam-se as normativas das instituições europeias. Dessa forma, seu caráter reacionário nada tinha a oferecer de genuíno à montagem da brasilidade.[1] Sabemos, entretanto, que os redutos considerados mais herméticos do país não eram, afinal, tão fechados assim. Nas primeiras décadas do século XX já se debatiam na Escola questões centrais como a necessidade de atualização das linguagens e o nacionalismo. Afirma Zilio (2010) que a ENBA ensaiava passos no sentido de buscar outras influências, além do neoclassicismo e do repertório da pintura histórica.[2] Indiferente, a isto, nos discursos veiculados, persistiu uma imagem genérica de que o ideário da escola mantinha-se estreitamente vinculado aos padrões do academicismo, mesmo após a mudança institucional de 1890.[3]
2. A operação de planificar o passado fez da ENBA e de seus artistas um bloco monolítico, uma vez que se tornou um modus operandi para conceituar a arte realizada antes da Semana de 1922. Ao comentar a escassez de registros sobre o pintor Galdino Guttmann Bicho[4], Athur Valle chamou a atenção para o quanto isto destoa da intensa atuação que ele teve no cenário artístico deste tempo: “De toda essa atividade, hoje pouco se fala. Na nossa historiografia da arte, Guttmann Bicho habita uma espécie de limbo, cujo o aspecto nebuloso, as breves e repetitivas referências presentes nos dicionários de artistas plásticos brasileiros fazem pouco para aclarar” (VALLE, 2007). Podemos acrescentar a isto que a nebulosidade sobre o funcionamento do sistema de artes[5] se torna ainda mais espessa quando se trata de refletir sobre as regiões mais apartadas da capital federal, de São Paulo ou Minas Gerais. Se quase nada se sabe sobre a atuação de Guttmann Bicho na capital da República, ainda mais invisíveis são as referências sobre sua passagem por Florianópolis no ano de 1919, a despeito dos interessantes significados que podem ser conhecidos por detrás desta “visita”.
3. Afirma Durand (2001) que a itinerância foi um modo de vida de vários artistas que transitaram pelas distintas regiões brasileiras nessa época. A movimentação nas primeiras décadas do século anterior nem sempre se limitou a ser um modo de ganhar a vida, pois era parte, ainda, de um espírito aventureiro presente em toda a América desde as primeiras formações coloniais. Para os mais afortunados significou eventualmente a conjugação de ambos, o sustento e a aventura. A considerar a concorrência mais acirrada nas metrópoles, pois lá o destaque era para os nomes já consagrados, e, não havendo nestes primórdios da profissionalização galerias ou marchands que se incumbissem da comercialização de trabalhos, restava àqueles que dependiam da sua venda, montar uma galeria portátil e ir ao encontro do mercado. Daí o caráter comercial, ambulante e efêmero das exposições, tal qual aconteceram em Florianópolis por volta de 1919, quando, no transcurso de um ano, a ilhada capital de Santa Catarina recebeu a visita de, pelo menos, quatro nomes de artistas com razoável fama: Antonio Matos, Bertoni Filho, Dakir Parreiras e Guttmann Bicho. As suas exposições eram eventos públicos e, como tal, demandavam uma sociabilidade específica, onde a presença do artista e, evidentemente, suas láureas eram valores agregados às obras. Na imprensa local, temos curiosos indícios das expectativas e interesses estabelecidos entre o autor e a clientela citadina, cuja avidez por imagens movimentava um mercado nem tão acanhado ou periférico, como possa sugerir a condição geográfica da Ilha de Santa Catarina.
4. O Sr. Bertoni Filho encerra hoje sua esplêndida vernissage, que fora inaugurada há dois dias no Salão do Club Concórdia. Toda ela composta de lindos quadros a óleo, que muito elogiados foram por quantos os viram, a exposição foi visitadíssima, tendo causado a todos uma ótima impressão. [...] Adquiriram quadros o Governo do Estado, os srs. dr. José Boiteux, Elpidio Fragoso e Francisco Moura Filho que ofereceu uma formosa tela ao Circulo Católico de São José (A República, 04/02/1920).
5. Dos quatro viajantes antes citados, os três primeiros tiveram breves passagens por Florianópolis, apenas o tempo necessário para uma rápida “vernissage”. Ao contrário deles, Gutmann Bicho permaneceu por cerca de um ano, o que pode ser considerado um período razoável para um artista de muitas andanças. Sua estada na cidade foi uma breve pausa num itinerário prolongado que, até ali, incluíra viagens a várias regiões do Brasil, inclusive para o norte, onde buscou elementos para a ilustração de um livro do historiador paranaense Rocha Pombo. Entre as razões para sua permanência em Florianópolis, temos as oportunidades profissionais abertas em duas esferas de atuação (entre aquelas possíveis aos artistas); como professor no Liceu de Artes e Ofícios e, pelas possibilidades de comercialização dos seus trabalhos, por meio de encomendas ou por quadros feitos livremente e depois postos à disposição dos interessados. Entre estas pinturas, esclarecem as fontes pesquisadas, estavam retratos, naturezas-mortas e paisagens. Nestas últimas, o pintor demonstrou interesse nas marinhas. Gosto que, segundo a biografia, foi despertado desde a infância vivida em Sergipe (SE). É lamentável que dentre as telas remanescentes de sua estadia não figure nenhuma paisagem de Florianópolis, pois consta nos jornais pesquisados que Gutmann Bicho realizou várias delas, expondo seu ponto de vista sobre panoramas locais, aparentemente muito bem aceitos por representantes da sociedade local, que enxergaram nestas telas uma correspondência ao que já era entronizado pelas letras sobre a beleza edênica da natureza local,
6. Nas paisagens e marinhas que recordam recantos formosos de nossa Ilha, o sr. Guttmann derramou todo o colorido intenso de nossa natureza; ora dando-lhe o cobalto do nosso céu lindíssimo nos claros dias de sol esplendente de luz, ora, refletindo nas águas rumorosas de nossas praias o lampejar verde da esmeralda; ora, semeando tonalidades berrantes pelos recôncavos floridos e verdejantes de nossos arrabaldes. Com fino poder de observação transmitiu às suas telas, tudo aquilo que constitui o justo orgulho dos catarinenses e o encantamento dos forasteiros: a natureza de Florianópolis, vibrando no soberbo colorido de suas tintas de um frescor suavemente delicado (A República, 19/11/1919).
7. Ao aportar na cidade, o que era feito literalmente já que, em 1919, o acesso à capital se dava quase exclusivamente pelo mar, Guttmann Bicho tinha uma carreira razoavelmente bem sucedida. Em seu currículo constavam participações nas Exposições Gerais da ENBA, onde conquistou menção honrosa (1906) e pequena medalha de prata (1912). Antes da Escola, estudou no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, para onde, segundo Durand (2010), seguiam inicialmente os estudantes menos apadrinhados. Outra influência a destacar em sua formação foi a função de assistente do francês August Petit [6], conhecido pela expressiva produção de retratos. Supõe-se que, ao convidá-lo, o governador republicano Hercílio Luz (1860-1924) tivesse ciente desta carreira pregressa, já que do lado político, sua vinda se encaixaria dentro do conjunto de ações modernizadoras, promovidas pelas administrações republicanas em tentativa de manter o passo com o fluxo desenvolvimentista das outras capitais. Sobre a relação entre a vinda do pintor à capital catarinense e a onda modernizadora, é preciso considerar que no entendimento do processo histórico se faz necessário um “olhar arqueológico” sobre as fontes, pois se levarmos em conta apenas as aparências construídas na superfície do que é noticiado, principalmente no jornal A República, importante veículo do partido no Estado, tudo parecia transcorrer na mais perfeita ordem. Evidentemente, tal situação é somente aparente, pois a onda modernizadora das primeiras décadas ocorreu em meio a uma série de oposições e conflitos. As condições sociais de Florianópolis replicavam o que acontecia nacionalmente quanto aos paradoxos da experiência de modernização, em seus ufanismos e desapontamentos.
8. Grosso modo, a elite urbana da cidade, que estava dividida entre a parte que vivia às expensas dos cargos públicos (aliás, distribuídos entre poucas famílias) e o grupo de pequenos e médios comerciantes, se aproveitara da temporada de Guttmann Bicho em Santa Catarina, apoiando o investimento material e simbólico do governador e seus partidários como mais uma medida bem sucedida em prol da melhoria da capital: “É com muita satisfação que registramos os triunfos do apreciado pintor, cuja vinda ao nosso Estado foi um dos belos acertos da profícua administração do exmo. sr. dr. Hercílio Luz” (A República, 25/03/1919). Entre os papéis que a arte de Guttmann Bicho desempenhou nesta construção de uma civilité estava o fornecimento de produtos de coesão e distinção social, fosse através da retratística com fins políticos e pessoais, pelo “status” de possuir as suas telas como objetos de exibição, ou ainda pelas possibilidades privadas de fruição que as imagens por ele criadas permitiam.
9. Quanto à nomeação do pintor para o ensino de desenho e pintura no Liceu de Artes e Ofícios, sabemos que para alçar o estatuto de cidade moderna era de bom tom promover uma reorganização das instituições de ensino, missão encampada desde as primeiras administrações republicanas. O Liceu era o principal centro de formação de mão de obra industrial/manufatureira em Florianópolis e seguia os padrões de outros congêneres espalhados no país. Durand escreveu que estas escolas operaram num limite entre a criação artística e o utilitarismo, este último vitimado pelas carências orçamentárias, que impediam a montagem de oficinas práticas. Diante disto, houve eventualmente, o desequilíbrio que pendia a favor da estética. Esta pareceu ser a conjuntura do Liceu carioca, onde Guttmann Bicho estudou e mais tarde seria professor, como aconteceu com o afamado desterrense Victor Meirelles, professor de desenho na mesma instituição.
10. De acordo com entusiasmadas notas jornalísticas, no Liceu catarinense a inovação mais comentada do pintor foi a introdução do esquema de observação da natureza.
11. Desde que assumiu a direção do ensino de desenho e pintura naquele importante estabelecimento, o Sr. Bicho procurou substituir os métodos adotados. Neste sentido, mostrando a sua conveniência apresentou ao Exmo. sr .dr. Hercílio Luz grande número de estampas feitas pelos alunos que copiam do natural (A República, 25/03/1919).
12. Em Florianópolis, o atelier do artista foi instalado no mesmo prédio do Liceu. Rapidamente, o espaço se tornou ponto de visitação da elite, incluindo senhoras elegantes e políticos proeminentes: “o ateliê do Sr. Guttmann Bicho tem sido muito visitado por pessoas que se interessam pelo desenvolvimento do gosto artístico nesta capital” (A República, 31/01/1919). Os comentários jornalísticos sobre as atividades de Guttmann Bicho em Florianópolis dão visibilidade para assuntos que extrapolam as questões meramente formais, pois ilustram às demandas sociais da pequena elite urbana, como a carência de espaços para exibição e apreciação crítica da arte. Neste contexto, a visita ao atelier do pintor e o contato direto com suas obras se tornava uma experiência distinta e reveladora:
13. Nestes últimos dias, o atelier do ilustre pintor Sr. Guttmann Bicho tem sido muito visitado por grande número de senhoritas e pessoas de destaque social. Ali, os apreciadores da fina Arte tiveram o ensejo de contemplar uma coleção de lindíssimas telas, reproduzindo aspectos da nossa linda Ilha. o Sr Guttmann Bicho aumentou a sua galeria com mais 20 telas, de estudo, aprés de nature, em que se revelou o delicadíssimo pincel dos formosos quadros, já consagrados pela crítica dos competentes no Rio e S. Paulo (A Repúlica, 04/04/1919).
14. O gosto artístico dos notáveis florianopolitanos, que efetivamente era o grupo que possuía recursos para comprar telas, não tinha nada de inovador com relação ao século XIX, pois o mercado de quadros mantinha-se voltado ao apreço às paisagens e aos retratos. Em sua permanência na cidade, Guttmann Bicho vendeu algumas dezenas de quadros dentro destes gêneros.[7] Pelo que sabemos até esta etapa da pesquisa, apenas três telas de sua autoria estão disponíveis à apreciação pública, pois pertencem ao acervo do antigo Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), fundado em 1949, atual Museu de Arte de Santa Catarina (MASC). Sobre estas obras a instituição possui poucos registros, inclusive de dados factuais sobre o seu processo de incorporação. Das obras que pertencem ao Museu, respectivamente um retrato do governador Hercílio Luz [Figura 1], de Anita Garibaldi [Figura 2][8] e de Giusepe Garibaldi [Figura 3], foram reunidos indícios que tornaram possível levantar algumas suposições sobre as relações entre o artista, o seu trabalho e o contexto em volta de ambos.
Retratos
do tempo
15. O início do século XX perpetua um já existente apreço por retratos. O afã por este tipo de visualidade, de onde saia parte do sustento dos artistas, teve sua entrada no século XX, entre outros fatores, pelo uso que as elites de todas as regiões do país faziam destes artefatos na busca por prestigio e distinção, prática mantida após o advento da República. Não é difícil contabilizar o interesse público nestes objetos simbólicos. Somente no ano de 1919 foram inaugurados no Estado retratos em repartições como escolas, casernas, associações culturais e instituições beneficentes.[9] Não sem razão, as inaugurações públicas de retratos, hermas, efígies e estátuas eram ocasiões revestidas de pompa, sendo acompanhadas de discursos, bandas musicais e outros artifícios de solenidade.
16. Este aspecto do mercado de arte impôs desafios ao meio artístico, determinando aos pintores a coexistência com a fotografia, cuja maneira rápida e confiável de captar a fisionomia havia criado desde o Segundo Reinado uma demanda generalizada por retratos em formato de cartão postal. A despeito do que antecipavam arautos críticos da modernidade como Baudelaire, a fotografia não determinou o fim da pintura; pelo contrário, antes de avançar na conquista de sua autonomia como forma de arte, a fotografia foi usada pelos pintores como um arquivo de referências fisionômicas, articulando semelhanças com o “real” que não derivavam integralmente de um ponto de vista do artista. Séculos antes, procedimento similar era usado pelos pintores e escultores quando tomavam emprestado de antigas moedas as fisionomias dos imperadores romanos ali retidas: “Gracias al estudio de las monedas, los anticuarios e historiadores se familiazaron por vez primeira con la idea de que las fuontes figurativas les permitiriam establecer un estrecho y estimulante contacto con aspectos del pasado inaccesibles, al parecer, por qualquer otro camino” (HASKELL, 1993, p.26). As fotografias traziam outras facilidades à execução de retratos por permitir maior agilidade e desembaraço na confecção dos quadros, inclusive diminuindo ou eliminando a necessidade do retratado posar. Outra vantagem deste poderoso arquivo de semelhanças era “manter vivas” as chances de conseguir um retrato confiável de uma figura ilustre ou alguém saudoso já falecido, como faz pensar a execução de um retrato póstumo do filho do governador, o jovem Aldo Luz, falecido poucos meses antes:
17. O distinto pintor patrício Guttmann Bicho, concluiu ontem, um grande retrato a óleo do saudoso jovem e nosso inesquecível amigo Aldo Luz. É um trabalho perfeito, em que o artista foi feliz, reproduzindo com toda fidelidade, na tela, a fisionomia atraente do desventurado moço. O retrato de Aldo, vai ser, por estes dias, exposto na Relojoaria Meyer (A República, 10/05/1919).
18. A notícia revela também que, na ausência de espaços oficiais destinados à exposição, até mesmo as casas comerciais fizeram as vezes de galeria, expondo ocasionalmente retratos que, quando executados sem encomenda, ficavam a espera de seduzir algum interessado. A Relojoaria Meyer em Florianópolis foi um ponto tradicional de exposição.
19. Retomando a relação entre pintura e fotografia, vemos que Guttmann Bicho tirou partido desta ferramenta, pois no retrato que pintou de Hercílio Luz é evidente a semelhança com uma fotografia do governador que circula amplamente em jornais e revistas em 1919 [Figura 4]. Nela, o político aparece na mesma pose imóvel e circunspecta do retrato por Guttmann Bicho pintado no mesmo ano. Na tela, assim como na fotografia, não há outro elemento além da figura em meio corpo do governador.
20. O empenho de Guttmann Bicho foi manter o foco voltado para o rosto do político onde buscou elaborar uma representação fidedigna, que segundo escreveu uma certa Madame Puysieux teria captado “os traços lhanos da fisionomia do grande político catarinense...” (A República, 02/02/1919).
A difícil
arte de Michelangelo
21. Como assinalado, além do retrato do governador, o MASC possui duas outras pinturas de Gutmann Bicho, respectivamente os retratos de Giuseppe e Anita Garibaldi. Ambos estão relacionados a um processo desenrolado junto ao aparecimento da República, no qual a arte terá um papel fundamental, ainda que circunstancialmente imerso em controvérsias, como discutiremos. Por ora, cabe frisar o interesse republicano em criar uma galeria de heróis próprios do regime e distintos do Império. Tal objetivo se manifestou na construção de laços de continuidade com movimentos políticos de teor emancipatório, a exemplo da Inconfidência Mineira e a consequente heroicização de Tiradentes[10]. Mas, além deste desejo de legitimação, objetivava-se também a cooptação dos grupos imigrantes que, não obstante terem membros na classe média e na elite brasileira, eram vistos como parte a ser arrigimentada pelo projeto republicano. Segundo Souto (2010), por representarem a família mista ítalo-brasileira, Giuseppe e Anita Garibaldi[11] se tornaram foco de interesse histórico.
22. O militar italiano foi um dos envolvidos na Guerra dos Farrapos.[12] Localmente, a questão de Anita haver nascido em Laguna (SC), onde fora instalada a sede da efêmera República Juliana, dava ares de dever cívico à cruzada memorialística em torno de ambos. Portanto, o interesse (quase delirante) especialmente pela “heroína dos dois mundos” já está delineado ao final do XIX , quando aparecem monumentos, romances, livros, poesias, peças teatrais. Em sua maior parte, estes materiais propunham visões diferenciadas para a biografia de ambos. Em Florianópolis, as influências mais destacadas foram de Henrique Boiteux, membro da elite política e intelectual do Estado que publicou em 1898 o seu Anita Garibaldi - a Heroína Brasileira, reeditado seguidamente em 1906 e 1939. Em 1918, foi a vez do poeta Virgílio Varzea publicar, no boletim do Instituto Histórico Catarinense, uma versão para a batalha em Laguna, evento que marcou a fundação da República Juliana naquela cidade.
23. Os idos de 1919, quando da permanência de Guttmann Bicho em Santa Catarina, prenunciavam as comemorações do centenário da independência, e, neste contexto, não era de estranhar a mobilização política para a construção de um monumento a Anita, encomendado ao paulista Antônio Matos e efetivamente inaugurado em Florianópolis no ano seguinte. Evidentemente que a questão está revestida de interesses políticos de várias partes. Sobre eles é relevante destacar que, em meio a esta mobilização, a produção de discursos oscilava entre possíveis Anitas: a combatente destemida, a mulher apaixonada, a mãe abnegada. Nas visões que se edificam na literatura pretensamente histórica, o fato de Anita ter abandonado o primeiro marido[13] para acompanhar Garibaldi é omitido ou então justificado por meio de elaborações que beiram à fantasia. O dado biográfico torna-se um fator irreconciliável com a perspectiva histórica que se lançava sobre a personagem: “Companheira, senão inspiradora - afetuosa até à idolatria, heroica até o martírio, devotada até à morte, Anita Garibaldi foi o exemplo máximo do que pode o amor de mulher, esposa e de mãe” (A República, 06/04/1919).
24. Quando considerados em sua temática, vemos que a realização dos três retratos por Guttmann Bicho se orientou também para o mercado, revelando que o artista soube tirar proveito do que ditava o contexto cultural da época. Todavia, é preciso reconhecer que, diferente do retrato do governador, os de Anita e de Giuseppe Garibaldi são parte de uma trama mais complexa, onde se imbricaram questões políticas e estéticas relacionadas ao universo discursivo à época propagado. Do ponto de vista formal, podemos dizer que ambos são trabalhos contidos, mantendo-se fiéis a preceitos em voga pelo menos desde o século XIX onde, em algum período indistinguido, o retrato de Anita é ambientado [Figura 2]. Nele, o pintor nos apresenta uma dama trajando um requintado vestido, no qual Bicho mostrou possuir muita habilidade no tratamento dos detalhes, destacadamente do esmerado grafismo em relevo monocromático do tecido. Este talento era reconhecido, como faz pensar o comentário escrito em A República que informa que “o Sr. Guttmann Bicho é também de um gosto finamente artístico na contextura delicada das rendas, a que aplica muito do seu carinho e do seu talento” (A República, 01/03/1919). Ainda no retrato, a pose blasé combina com a altivez com que a mulher fita o espectador. Os traços abrasileirados do rosto destoam da imagem criada pelo uruguaio Gaetano Gallino décadas antes [Figura 5], supostamente elaborada quando da permanência de Anita no país vizinho. Segundo diz a lenda, teria sido o próprio filho de Anita a reconhecer que esta era a fisionomia que mais se aproximava das feições verdadeiras da mãe.[14]
25. Já a paisagem proposta na pintura de Guttmann Bicho está organizada por diferentes planos: poderia se tratar de Santa Catarina, do Uruguai ou alguma paragem italiana por onde andou a protagonista da história que o pintor quis contar. Mas a generalidade dos elementos acaba por nos lembrar que, no final das contas, se trata apenas de um quadro.
26. Ainda que não tenha sido encontrada nenhuma referência direta a esta questão, os julgamentos feitos sobre outras imagens de Anita, postas em circulação na mesma época, permitem supor que a tela de Gutmann Bicho foi na contracorrente do que a tradição memorialística almejava. Um exemplo a destacar foi a aclamada recepção da tela do pintor Dakir Parreiras [Figura 6], executada para o Governo do Rio Grande do Sul, na qual está “retratado” um episódio da vida de Anita Garibaldi jamais confirmado pelas fontes. Trata-se de uma suposta fuga a cavalo, empreendida quando o acampamento de um contingente farroupilha comandado por Giuseppe Garibaldi é surpreendido pelas forças legalistas. O que contou no demonstrado apreço do retrato manifestado pela crítica local foi a capacidade do pintor no registro do acontecimento como um instantâneo: “O que nesse belo trabalho, desde logo impressiona o observador é a concepção feliz do pintor interpretando o fato histórico com uma fidelidade digna de nota” (A República, 05/12/1919).
27. Em nosso entendimento, o retrato de Anita Garibaldi realizado por Guttmann Bicho se precipitou num curioso desencaixe. Seria considerado um retrato aceitável se não pretendesse descrever a heroína Anita Garibaldi, ou seja, estava dentro de padrões estéticos aceitos socialmente, mas não cumpria o papel de consagrar imagisticamente as histórias que estavam sendo contadas sobre ela. Afinal, os retratos eram objetos simbólicos e como tal tinham uma função determinada dentro da cultura da época. Executado dentro da fórmula tradicional do retrato afrancesado, território que o artista conhecia por oficio, ele entrou em contradição com as narrativas históricas, investidas cada vez mais de um imaginário moralizante e supra-mundano da personagem.
28. O Retrato de Giuseppe Garibaldi [Figura 3], por seus componentes intrínsecos e extrínsecos, entre estes o título (que não se sabe foi dado pelo pintor ou incorporado posteriormente) poderia se enquadrar tanto no gênero do retrato como da pintura histórica. Em alguns detalhes compositivos, se aproxima de outras imagens da iconografia do militar italiano, em que ele aparece em idade avançada na ilha de Caprera (Itália), quando consta, afastado dos combates se dedicou a escrever suas memórias. A composição compartilha da mesma opção do pintor italiano Vicenzo Cabianca, que retratrou o ex-combatente na referida ilha, sentado sobre uma pedra, com aspecto nostálgico e pensativo [Figura 7].
29. Entretanto, se os detalhes compositivos da tela de Bicho se identificam com o aspecto físico e com a indumentária usada recorrentemente para representá-lo, a estrutura narrativa nos leva a uma enigmática encenação, na qual ele utilizou aspectos gestuais explorados por pintores desde o Renascimento. Sobre o rosto da figura em primeiro plano, Bicho incluiu uma luz suave que deixa a ver as linhas firmes, sustentadas por uma vasta barba branca. Recostado sobre algumas pedras, o homem de feições quase bíblicas aponta gentilmente para uma direção, enquanto a outra mão repousa sobre o que parece ser uma bengala ou, quiçá, uma espada. Neste caso, seria uma pálida alusão a figura combativa e heroica, já solidificada na memória histórica. A cabeça está voltada para a imagem de uma mulher, quase um vulto, que encara o espectador e o convoca a participar da cena. Parece evidente que vulto da mulher é uma referência a Anita, que apesar de ser uma lembrança, aparece materializada como suporte da estrutura narrativa.
30. À guisa de um estudo da arte brasileira das primeiras décadas do século XX, vemos que as escolhas feitas por Guttmann Bicho nos retratos apresentados desviam-se de um caminho mais seguro, e, por isto mesmo, revelam a linha estreita entre a liberdade criativa e as regras normativas do sistema de arte da época. Sem se ater às fronteiras, os trabalhos executados em Florianópolis mostram que ele transitou em vários universos e manteve um profícuo diálogo entre tendências passadas e futuras. Assim, ao mesmo tempo em que desafiou o imaginário recorrente pintando uma Anita elegante e mundana, animava a clientela citadina com suas paisagens pintadas d'aprés nature ou, como fez em sua derradeira exposição na cidade (novembro de 1919), apresentando frutas que causaram admiração e convidavam a degustação pelo seu naturalismo:
31. Entre os 62 quadros expostos, há um reproduzindo duas nonas. É um trabalho lindíssimo. As duas frutas parecem colhidas a poucas horas e colocadas ao apetite dos gulosos. O Sr. comandante Lucas Boiteux, ao vê-las, disse com muito acerto: aqui estão frutas que deviam ter uma anotação <não me coma>. Tal é a sua perfeição (A República, 19/11/1919).
32. É preciso destacar que pouco depois que deixou Florianópolis, precisamente em 1921, Bicho obteve com o quadro Panneau Decorativo [Figura 8] a mais ambicionada premiação concedida aos artistas na primeira República, o prêmio de viagem ao estrangeiro. Por meio desta conquista, permaneceu dois anos em Paris onde, segundo parte da crítica, teria assimilado as tendências modernas, e por tal, de acordo com Artur Valle, se construiria sua fortuna crítica junto a genealogia do modernismo brasileiro. Para este autor, esta aproximação foi determinante para que seus trabalhos fossem analisados pelo aspecto puramente visual, excluindo os valores semânticos que, todavia, foram uma inclinação do artista e, neste sentido, o retrato de Giuseppe Garibaldi seria exemplar.
33. Enxergada nestes processos singulares, a movimentação artística das primeiras décadas do século passado se apresenta irredutível à bipartições simplistas, rótulos e periodizações que lhe são impostas, conforme exposto no início deste texto. Há que se considerar, entre outros aspectos, que as especificidades dos contextos urbanos, com suas condições políticas e seus mecanismos institucionais, foram fatores determinantes, tanto na produção dos artistas, quanto na circulação e destino dos seus trabalhos.
Referências
bibliográficas
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira.
A narrativa de Pedro Américo sobre a Conjugação Mineira. In: II Encontro de
História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março
de 2006, Campinas, SP. Disponível em <http://www.ifch.unicamp.br/pos/hs/anais/2006/posgrad/(48).pdf>. Acesso em 02
dez. 2011.
DAZZI, Camila "A Reforma de 1890"- Continuidades e
mudanças na Escola Nacional de Belas Artes (1890-1900). In: Atas do III
Encontro de História da Arte - História da Arte e instituições
culturais: Perspectivas em Debate - 2007. Disponível em: <www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2007/DAZZI,%20Camila.pdf>. Acesso em 26
dez. 2011.
DURAND,
José Carlos. Arte, Privilégio e Distinção: artes plásticas, arquitetura
e classe dirigente no Brasil - 1855/1985. São Paulo: Perspectiva, 1989.
FABRIS,
Annateresa (Org.). Modernidade e modernismo no
Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: Zouk, 2010.
HASKELL,
Francis. La historia y sus imágenes;
El arte y la interpretación
del pasado.
Madrid: Alianza Forma, 1994.
SOUTO,
Cíntia Vieira. Anita Garibaldi: heroína, mas virtuosa. Disponível em: <www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/C/Cintia_Souto_42.pdf>.
Acessado em 26/12/2011.
VALLE,
Arthur. O Ciclo de Pinturas de Guttmann Bicho no CAPS
Ernesto Nazareth - Ilha do Governador/RJ. 19&20,
Rio de Janeiro, v. II, n. 1, jan. 2007. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_gb_caps.htm>.
_____.
Questões semânticas na obra de Guttmann Bicho: uma
análise do Panneau Decorativo. 19&20, Rio de
Janeiro, v. I, n. 2,
ago. 2006. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_gb.htm>.
ZILIO,
Carlos. A questão política no modernismo. In: FABRIS, Annateresa.
Modernidade e modernismo no Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: Zouk, 2010.
[1] Desde
os anos de 1920, a busca de referências capazes de sustentar a originalidade
nacional levou os modernos a arte colonial brasileira.
Esta era considerada intocada pelas influências exógenas e
portanto portadora da “alma” nacional. Este processo se assegurou
por meio do nascente organismo de preservação do patrimônio - SPHAN.
[2]
A pintura histórica adquire prestígio nas academias a partir do século XVII em
meio à aproximação entre arte e poder político. Com o tempo alçou o posto mais
dos gêneros ensinados nas academias, a saber: pintura histórica; pintura de
paisagem, de retrato e de gênero. O neoclassicismo do século XVIII vai se
dedicar amplamente a este tipo de pintura cujos temas são os eventos da
política, das batalhas, os personagens ilustres, a mitologia...
Executadas normalmente por encomenda as telas possuem, em geral, grandes
dimensões. No Brasil, as principais referências da pintura histórica são as
telas de Victor Meirelles e Pedro Américo.
[3] Sobre
isto consultar o texto de Camila Dazzi "A
Reforma de 1890"- Continuidades e mudanças na Escola Nacional de Belas
Artes (1890-1900). In: Atas do III Encontro de História da Arte -
História da Arte e instituições culturais: Perspectivas em Debate - 2007. Disponível
em: <www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2007/DAZZI,%20Camila.pdf>. Acesso em 26 dez. 2011.
[4]
Galdino Guttmann Bicho (Petrópolis, 1888-Rio de
Janeiro, 1955) passou a infância em Sergipe, vindo a residir no Rio de Janeiro,
onde se iniciou artisticamente no Liceu de Artes e Ofícios. Durante vários
anos, Bicho trabalhou como assistente do retratista francês radicado no Brasil
August Petit. Frequentou como aluno livre a Escola Nacional de Belas Artes,
onde foi aluno de João Zeferino da Costa e Eliseu d’Angelo Visconti.
[5] O
sistema de artes é aqui entendido como um conjunto de instâncias que engloba as
atividades artísticas, de crítica, a história da arte, os espaços
institucionais, educativos expositivos e midiáticos, e o mercado.
[6]
Auguste
Petit (Chatillon-sur-Seine, França, 1844 - Rio de Janeiro, 1927). Pintor, radicou-se no Brasil
em 1864 e desenvolveu sua carreira no Rio de Janeiro onde mantinha
ateliê, tendo como ajudante Guttmann Bicho.
Participou com frequência das exposições gerais de belas artes (obtendo menção
honrosa em 1882 e medalha de prata em 1884). Retratista, paisagista, pintor de
naturezas-mortas e professor (com destaque para o primeiro gênero) ganhou
medalha de ouro de 3a classe no Salão Nacional de Belas Artes de 1898 e em
1901.
[7] Consta
nos jornais que na exposição organizada antes da sua partida para a Capital
Federal em novembro de 1919 havia 62 telas, das quais 50 eram paisagens e
as demais retratos.
[8] O
nome de
batismo era Ana de Jesus Ribeiro.
[9]
Para suprir a demanda por retratos, estavam em permanente atividade entre 1919
e 1920 (além dos visitantes ocasionais) o fotógrafo Fritz Sorge, Eduardo Dias, Joaquim Margarida e Gutmann Bicho.
[10] Sobre
este assunto ver CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A
narrativa de Pedro Américo sobre a Conjugação Mineira. In: II Encontro de
História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março
de 2006, Campinas, SP. Disponível em <http://www.ifch.unicamp.br/pos/hs/anais/2006/posgrad/(48).pdf>.
Acesso em 02 dez. 2011.
[11] O
culto à memória de Anita e Giuseppe Garibaldi aconteceu em vários estados
brasileiros como Rio Grande do Sul e São Paulo. Há uma série de monumentos
também espalhados no Uruguai e Itália. Esses monumentos tiveram diversos
formatos: tombamento de imóveis onde residiu o casal, construção de
hermas e monumentos, pintura de quadros, homenagens honoríficas como
nomes de cidade, estampas de selos e edições de cartões postais.
[12]
Revolta
acontecida no Sul do país no inicio do Império e que deu origem a República
Juliana.
[13]
O primeiro casamento era incontestável, pois a certidão foi encontrada pelo
próprio Henrique
Boiteux em 1907.
[14] A imagem está disponível em: <http://www.pampasonline.com.br/terrasdosul/personalidades.htm#ANITA
GARIBALDI - HEROÍNA NO AMOR, NA GUERRA E NA FAMÍLIA>. Acessado em
26/12/2011.