Uma artista mulher em Pernambuco no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro Fernandez
Madalena Zaccara *
ZACCARA, Madalena. Uma artista mulher em Pernambuco no início do século XX: Fédora do Rego Monteiro Fernandez. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 1, jan./mar. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/frm_mz.htm>
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Na minha vida -
A vida mera das obscuras!
Cora Coralina
O papel da mulher artista na História da Arte, no ocidente, até fins do século XIX, com boa vontade, nada mais é que a expressão de sua condição: submissão. O olhar, masculino, dita as regras, quer ele seja ele o do artista, quer seja o do público. Quando a mulher aparece, em séculos de expressão, ela é o tema e não o ator. Dentro desse universo, como elas enfrentavam um espaço dominado pelos homens e para o qual lhe era vedado o acesso inclusive através do cerceamento de uma aprendizagem técnica? Afinal:
As mulheres que ousavam entrar no mundo artístico tinham que se contentarem com a representação de pinturas de interiores, naturezas mortas - gêneros de menor valor no mercado artístico e que não as fariam configurar no rol dos grandes artistas. Às mulheres era vedado o acesso à prática de desenho do natural com modelo nu, que foi a base do ensino acadêmico e da representação na Europa do século XVI ao XIX. (LAPONTE, 2002)
O fato é que a artista mulher durante muito tempo teve o seu trabalho legitimado a partir do seu atrelamento ao mundo masculino. Ela foi sempre filha de artista, como é o caso de Artemísia Gentileschi[1], parente de artista, situação de Berthe Morisot[2], ou amante de artista, condição de Camille Claudel [3]. Nenhuma mulher artista parece ter tido o seu poder de criação reconhecido além dos limites de sua associação com um elemento masculino.
A omissão da presença da mulher artista na História da Arte faz com que se passe a questionar esse silêncio histórico que só começa a desaparecer na contemporaneidade. Um silêncio dentro de uma narrativa que é baseada em escolhas e exclusões apesar da sua suposta objetividade científica. (ALPERS, 1982 apud SIMIONI, 2007)
No Brasil, a situação não se altera e são raras as publicações que se contrapõem ao discurso da História da Arte oficial, herdeiros que somos da cultura ocidental europeia. No que diz respeito ao aprendizado artístico feminino a permissão para a entrada de mulheres na Academia Imperial de Belas Artes só se deu em 1879, e com restrições, o que as deixavam mais frágeis em relação ao mercado de trabalho. Além dessas restrições, ao longo do aprendizado artístico, a crítica, tão importante no século XIX como veículo de esclarecimento ao novo público consumidor de arte e, posteriormente, como fonte de informações para uma bibliografia referencial, qualificava a presença feminina nos Salões como amadora, situando sua produção como detentora de menor profissionalismo em relação à produção artística masculina.
Antecedendo as dificuldades enfrentadas para uma formação artística dentro dos cânones acadêmicos, o próprio processo educacional feminino no Brasil (e no Nordeste de forma mais enfática) passava, no fim do século XIX e início do XX, pelo conceito estabelecido de uma visão da mulher como um ser desprovido de capacidade intelectual. Dessa forma, a educação se processava de forma diferenciada para os dois sexos: enquanto os meninos eram encaminhados para colégios mais conceituados ou guiados por preceptores, as meninas tinham sua formação voltada para prendas domésticas (entre as quais destacava-se a prática da pintura concebida como trabalho manual e parte do dote intelectual necessário às moças de famílias abastadas). Afinal, o projeto de lei sobre instrução pública aprovado em 1827 (apud NASCIMENTO, 2010) “deliberava sobre a inclusão e obrigatoriedade, por parte das meninas, de aprendizagem de costura e bordado, sendo que nos Liceus os alunos aprenderiam o desenho necessário às artes e ofícios”
No Nordeste, a ideia de que a arte para as mulheres era um passatempo, uma prenda a mais, consolidando uma formação voltada principalmente para o casamento foi bem mais presente do que na região Sudeste aonde informações (e consequentes mudanças) chegavam mais facilmente. Se naquela região a mulher só participou, com restrições, dos ensinamentos da Academia Imperial de Belas Artes a partir de 1879, em Pernambuco só em 1932 o ensino das Artes Visuais foi sistematizado através da fundação de uma Escola de Belas Artes em Recife. Essa realidade reflete-se na inserção feminina no mercado profissional de trabalho.
No início do século XX, a industrialização crescente traz para o Brasil (leia-se principalmente para São Paulo) uma sociedade mais permeável às transformações. Um maior cosmopolitismo marca as ações de artistas advindos de uma classe média alta (ou de seu mecenato) e da aristocracia rural remanescente. O descompromisso para com as exigências da antiga Academia Imperial de Belas Artes[4] que caracterizou a trajetória dos artistas do século anterior, gerou um vocabulário em um processo de atualização mais veloz com as correntes artísticas desenvolvidas, então, em uma Europa referencial. Nessas novas relações, a discriminação por gênero se amenizou. Foi nesse momento que algumas mulheres se destacaram como artistas e influenciaram o modernismo nascente. A presença de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral foi decisiva para o desencadeamento da gênese do movimento que levará os próximos trinta anos para se consolidar. A partir daí se processa a inclusão da mulher artista no Brasil, ainda de forma lenta, hesitante, até que, num processo gradativo, sua presença marcará as gerações posteriores.
Mas, como se processava essa situação em um Nordeste rural nesse início do século? Particularizando-se o caso de Pernambuco, muito pouco se sabe sobre as artistas atuantes fora do eixo hegemônico brasileiro (leia-se Rio de Janeiro/São Paulo). A raridade das fontes primárias, o pouco interesse até poucos anos atrás em relação à produção artística do século XIX, a implantação tardia do ensino sistemático da Escola de Belas Artes de Recife, o ainda recente interesse pela produção da mulher artista, enfim, todas essas circunstâncias, reduziram o universo de pesquisa e a rara historiografia sobre a produção artística feminina. Em Pernambuco, os poucos registros sobre sua presença jazem, em sua maior parte, soterrados em arquivos desorganizados (quando existentes) esperando historiadores da arte (raros ainda hoje na região) que os localizem e resgate.
De sinhá prendada à artista plástica: os caminhos da mulher artista em Pernambuco
Depois da experiência do Ateliê Coletivo, que me foi frustrada por imposição paterna, pois eu tinha que conviver também com rapazes, nunca mais participei de outro grupo de arte. Ficou o desenho esporádico quando havia necessidade de um desabafo e só as palavras não conseguiam esvaziar-me.
Nelbe Rios [5]
De acordo com Angélica Alves[6], Olympio Galvão[7] em conferência realizada no Congresso Literário de Pernambuco, em 1892, no Instituto Literário Olindense (transcrita posteriormente na revista A Mensageira, publicação dedicada ao público feminino) apesar de se manifestar favorável à educação feminina, concebe essa educação embasada em padrões de orientação diferenciada, confirmando a tendência de conceber a mulher como um ser frágil e desprovido de uma capacidade intelectual equivalente a masculina. Diz ele:
Sou dos que pensam que a mulher não deve tão somente limitar-se a aprender a arte de ser boa mãe de família, não querendo dizer contudo, que se entregue a estudos profundíssimos, assaz penosos para tão gentis e frágeis organismos.
A compreensão dessa condição discriminatória de gênero, no Nordeste do fim do oitocentos, é fundamental para um olhar mais amplo sobre a sociedade do início do século XX. Nesse universo, ele (o gênero) aparece como uma categoria de análise relacional não apenas ligada à natureza ou a biologia. O ideal feminino estava intimamente ligado a uma instrução que tinha como objetivo principal a transformação da mulher em boa esposa e mãe de família. Pensar não era importante. Criar, menos ainda. Essa certeza da inaptidão intelectual feminina está no cerne da sociedade patriarcal brasileira (e pernambucana) da época. Chegou com os conquistadores portugueses e foi sancionada pela Igreja Católica.
Nessa América portuguesa (leia-se Brasil), herdeira da mentalidade misógina ibérica, sob normas ditadas pelos eclesiásticos, a mulher letrada, educada era considerada um perigo principalmente se seus conhecimentos excedessem os masculinos. O ensino feminino era, portanto, direcionado a aprendizados tais como pouca alfabetização, muita costura, bordado e doutrina cristã.
Através dos relatos de Henry Koster (apud ALVES; ROCHA, 2009) sobre a mulher nordestina a partir de seu livro Viagens ao Nordeste do Brasil, publicado em Londres, pela primeira vez, em 1816, podemos vislumbrar a vida das mulheres oitocentistas em Pernambuco. Diz o aventureiro:
[...] Não se vêem as mulheres além das escravas negras, o que dá um aspecto sombrio às ruas. As mulheres portuguesas e as brasileiras, e mesmo as mulatas de classe média, não chegam à porta de casa durante todo o dia. Ouvem a Missa pela madrugada, e não saem senão em palanquins, ou à tarde, a pé, quando, ocasionalmente, a família faz um passeio.
Koster, que desembarcou no Recife em 1809 (um ano depois da chegada da família real e da corte portuguesa fugitivas das tropas de Junot, marechal de Bonaparte) traça, assim, o perfil da posição ocupada pela mulher no Recife oitocentista. Somente no transcorrer do século XIX, as modificações introduzidas com a vinda da corte para o Brasil vão, muito lentamente, se refletir em um Recife distante e, consequentemente, na vida de suas mulheres. A relativa e progressiva liberdade da mulher em Pernambuco era e foi durante muito tempo, entretanto, uma liberdade vigiada como bem ilustra Nelbe Rios (manifestando-se já nos meados do século XX) em trecho de sua narrativa para o livro Memórias do Ateliê Coletivo do artista e teórico recifense José Cláudio (1975) que destacamos no início dessas considerações.
Em relação às artes visuais, o seu ensino enquanto ofício vai ser iniciado na Província de Pernambuco pelo exército que passou a juntar o aprendizado das primeiras letras ao desenho. Ele voltava-se para “os filhos de pais pobres, ou seja, da camada mais humilde da população”. (MELO e SILVA, 1995). Ainda segundo Melo e Silva (1995), também visando esse público alvo, o Liceu de Artes e Ofícios só vai ser inaugurado em Recife no ano de 1880 em uma situação local de analfabetismo e de pouca industrialização.
Para as mulheres, a primeira oportunidade de educação, nesse âmbito do conhecimento, aparece em Recife na década de 20 do século passado com a criação pelo governo do Estado das Escolas Profissionais, masculina e feminina. A masculina (hoje, Escola Técnica Professor Agamenon Magalhães) ministrava “cursos de trabalhos em metal, em madeira, artes gráficas, artes aplicadas e desenho”. Já a Escola Profissional feminina, inaugurada em 1929, “ministrava artes domésticas em geral”. Antes dessas iniciativas anteriormente descritas, o ensino era literalmente passado de pai para filho.
Fédora do Rego Monteiro Fernandez: artista e educadora (1889-1975)
Foi ainda dentro desse contexto, onde poucas alternativas restavam para a mulher artista em Recife (mesmo já no fim do século XIX), que nasceu a artista pernambucana Fédora do Rego Monteiro Fernandez, em 1889. Em pleno ano da proclamação da República em terras brasileiras.
Segundo Maestri (2008) “o golpe republicano de 1889 expressou os interesses dos grandes proprietários provinciais” e “deu-se sob a égide da alta oficialidade do Exército, grande interessada na consolidação e radicalização das propostas das forças armadas como representantes dos interesses da nação”. O universo militar em múltiplas circunstâncias nunca se caracterizou pelo interesse artístico ou pelo seu mecenato. A Primeira República brasileira não foi exceção. Para José Carlos Durand (1989) “os novos grupos que chegaram ao comando do aparelho de Estado, com o novo regime, não tiveram programa cultural alternativo a impor ao ensino e à prática das belas-artes”. O fim do século, portanto, não representou uma evolução artística no cenário brasileiro, mas, antes um endurecimento político e um retrocesso cultural.
Com o advento da República, num momento em que a sociedade brasileira paradoxalmente se pretendia moderna, mudou a noção sobre o feminino? Como ficou a mulher? E a mulher artista? Segundo Elizabeth Abrantes em seu livro A Educação do “Bello Sexo” em São Luís na Segunda Metade do Século XIX (2002 apud SILVA SALES, 2010):
Nesse imaginário social, exaltava-se a virgindade, o papel de esposa e mãe exemplares. O casamento era apresentado como o ideal da mulher, a concretização dos seus sonhos de juventude, o alvo de sua existência. Amparados na ideia da “natureza frágil e débil” da mulher, reforçava-se a tradição de sua vida tutelada pelo homem, seja seu pai, irmão ou marido, que deveria garantir-lhe a proteção, o sustento e também a honra.
Ou seja: as mudanças, pelo menos no que diz respeito ao feminino, no Nordeste, não se processaram e, até inícios do século XX, a situação era semelhante. Poucas alternativas, portanto, para uma moça de família abastada, mesmo que de visão liberal em relação aos seus contemporâneos. Assim, com 21 anos, Fédora do Rego Monteiro segue, em 1910, para a capital do país, acompanhada, como se fazia imprescindível na época, dos irmãos mais novos Vicente e Joaquim. Depois segue para Paris onde vai estudar pintura na Académie Julian “que se caracterizava por aceitar o alunado feminino com mais boa vontade que a Ecole des Beaux Arts.” (ALVES, Rafael, 2010)
Apesar dessa boa vontade, várias restrições, inclusive espaciais, ainda caracterizavam o ensino destinado às mulheres na Académie Julian. Por exemplo: um maior número de ateliês destinados aos homens e a dificuldade de frequentar aulas que envolvessem estudo de anatomia ou estudos de nu, o que limitava o universo da temática em um contexto onde a pintura histórica era considerada especial, mais nobre, em relação à pintura de gênero e a rara pintura de paisagem. Assim, a retratística era uma alternativa possível para a artista mulher, bem como cenas de gênero, paisagens [Figura 1] e naturezas mortas. De acordo com SIMIONI (2005 apud ALVES, Maria Angélica, 2009):
Julian acreditava que, diferindo da pintura de história, que por suas proporções gigantescas e sua carga simbólica constituía um espaço quase que exclusivamente masculino, a pintura de retratos era um bom campo para as mulheres.
Nesse espaço de tempo (1911-1915), estudando na Académie Julien, Fédora, entretanto, mantinha contato constante com as atividades artísticas que aconteciam no Rio de Janeiro. Ela participa de três Exposições Gerais de Belas Artes na ENBA (os Salões de 1911, 1912 e 1913). Na França, ela participa do Salon des Independents, em 1913 e, no ano seguinte, do Salon des Artistes Français. De volta ao Brasil e ao Rio de Janeiro, provavelmente devido à eclosão da I Guerra Mundial, ela permanece naquela cidade entre 1915 e 1917. Fédora se destaca em salões da então capital Federal. A crítica da época marca sua presença. De acordo com João Luso (1916) na Revista do Brasil: “o belo sexo fez-se representar com brilho e dignidade” e a participação da artista pernambucana no Salão da ENBA de 1916 (onde recebe medalha de prata) é marcante. Para ele:
A Sra. Fédora do Rego Monteiro que, há pouco, nos chegou de Paris e fez uma exposição numerosíssima, onde não rareavam as belas obras, obteve a Pequena Medalha de Prata, com um retrato a pastel, aceito no ‘Salon des Artistes Français’
Observe-se que a artista premiada e legitimada em nível nacional e internacional é reconhecida pela crítica brasileira do eixo hegemônico. Em 1917, o mesmo ano da discutida exposição de Anita Malfatti, Fédora volta para Recife onde, no mesmo ano, faz uma mostra individual na Associação dos Empregados do Comércio. É também em 1917 e no seguinte que ela expõe novamente na XXIII e na XXIV Exposição Geral de Belas Artes da ENBA, no Rio de Janeiro. Trata-se, portanto de alguém competente e antenado com o que se passava na França e no sudeste do Brasil, o que deveria corresponder, naturalmente, a certo destaque no cenário provinciano pernambucano.
Entretanto, não é isso que acontece. Talvez, por conta (além da sua condição de mulher) do discurso instaurado no inicio dos anos 20 do século passado em Pernambuco, que certamente contribui para uma análise mais ampla sobre o processo de inserção de Fédora (e mesmo de seu irmão mais notório Vicente do Rego Monteiro) no universo artístico e intelectual de Recife. Nos anos 20, a cidade é o cenário de um debate acirrado em relação à construção de uma identidade que se pretendia uma proposta em nível nacional. Segundo Moacir dos Anjos (1998): “de um lado estavam os regionalistas que liderados por Gilberto Freyre, buscavam estabelecer, através do resgate e da preservação das raízes e tradições nordestinas, a especificidade da cultura brasileira” Para o mesmo autor, outro grupo de intelectuais e artistas tendo a frente o jornalista Joaquim Inojosa “empenhou-se em semear, no Recife e em todo o Nordeste, o ideário do movimento modernista deflagrado em São Paulo”.
Passando a vivenciar Recife em meio a esse debate, vinda de um universo de informações parisienses, cariocas e de uma longa ausência da terra natal a inserção de Fédora no espaço artístico recifense deve ter passado por algumas ressalvas. Aliando-se o preconceito de gênero a um ambiente cultural de um Recife “ávido por afirmar a relevância de sua herança cultural” (ANJOS, 1998) sua realidade cosmopolita deve ter contribuído para a posição que ela passa a ocupar no cenário artístico recifense acanhado e de certa forma reacionário às ousadias metropolitanas. Essas circunstâncias vão se refletir no fato de que Fédora, após sua chegada em 1917 não expõe mais de forma individual. No ano do seu retorno ela mostra seu trabalho na Associação dos Empregados do Comércio e, depois, participa somente de Salões e coletivas, alguns no Rio de Janeiro. Sobre essa última exposição individual o crítico de arte Carlos Rubens (1941) escreveu:
Quando expôs na Associação dos Empregados do Comércio, no Recife, onde fixou residência, mereceu encônomios, dela se inscrevendo: ‘Dentre estas (eram trinta as telas expostas) se sobressaem: ‘La Sorcière’, ‘Danseuse em Rouge’, trabalhos de admirável concepção artística e que dispensam elogios, pois já foram consagrados por eminentes mestres franceses quando figuraram respectivamente no Salon de Versailles e no Salon des Artistes Indépendents’. As paisagens de Fédora são alegres, sorridentes e a combinação das tintas para efeito de luz é feita com uma felicidade tal que o observador se sente encantado com a magia que se lhe depara.
Uma produção significativa foi mostrada ao público, portanto, em 1917. Mas, o que faz essa artista que durante seis anos consecutivos expõe constantemente (às vezes até em dois locais durante o ano) interrompa seu processo criativo? Só iremos encontrá-la novamente treze anos depois quando, juntamente com Balthazar da Câmara, Henri Moser, Murilo La Greca, Bibiano Silva, Henrique Silva e Mario Túlio vai estar a frente da organização do II Salão de Arte Oficial de Pernambuco, em 1930, e da comissão para implantação da Escola de Belas Artes de Recife que só vai acontecer, após várias tentativas, em 1932. Entretanto, apesar de constar em várias articulações no mundo artístico pernambucano e de ser notoriamente a artista mais premiada e de maior visibilidade nacional e internacional na região, no estado e no grupo da qual passa a fazer parte ela não é indicada para a administração da Escola de Belas Artes. Os seus primeiros dirigentes foram: Bibiano Silva, diretor; Heitor Maia Filho, vice-diretor; Jaime Oliveira, secretário e Luiz Mateus Ferreira, tesoureiro. O fato nos convida à reflexão, pois, afinal, inegavelmente, ela é a presença que mais se destaca no contexto profissional das Artes Visuais em Pernambuco no início do século XX, com um currículo bem mais sólido e cosmopolita em relação aos seus companheiros.
A partir de 1942 através de um decreto estadual[8], instituiu -se o Salão Anual de Pintura no Museu do Estado de Pernambuco, “onde foram expostos apenas trabalhos de pintura à óleo e predominou a participação de alunos e professores da Escola de Belas Artes do Recife” (BARBOSA, Kleumanery de Melo, 2002).Os Salões constituíam, então, o principal evento artístico realizado no estado: um símbolo do desenvolvimento das Artes Visuais em Pernambuco e vitrine para o reconhecimento e validação da produção artística. Segundo a imprensa local:
Em Pernambuco há um ambiente artístico, que nesses últimos tempos, alcançou desenvolvimento bem digno de nota; e no que diz respeito à pintura talvez mesmo mais do que a outras manifestações da arte [...] [9]
Neste cenário de efervescência cultural recifense, no panorama de Salões que acontecem entre 1942 e 1947, Fédora, uma das fundadoras da Escola de Belas Artes de Pernambuco, membro do seu corpo docente desde 1932, orientadora do irmão de trajetória bem mais conhecida Vicente do Rego Monteiro, docente de desenho e pintura na Escola Normal de Pernambuco e personalidade atuante no universo das artes plásticas, só no último ano ganha um segundo prêmio. Ela que foi premiada na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro há décadas atrás[10]. Refletindo sobre o fato talvez se torne necessário destacar que só em 1950 vemos uma mulher na comissão julgadora desses Salões pernambucanos: Lygia E. de Oliveira.
É importante lembrar que, quase paralelamente à implantação da Escola de Belas Artes, um grupo de jovens artistas rompia com seus ensinamentos e criava o Grupo dos Independentes que praticava valores estéticos inovadores e trazia o vocabulário moderno para o cenário pernambucano. Desenhistas, caricaturistas, pintores e escultores compunham o grupo e fundaram os primeiros Salões Independentes de Arte entre 1933 e 1936. ”Independência de tudo que fosse tradicional” (RODRIGUES, 2008) era a regra. O Grupo dos Independentes também não tinha entre seus fundadores nenhuma mulher. Provavelmente o fato de uma mulher exercer a profissão de artista ativa, educadora e profissional, entrava em conflito direto com o papel que a sociedade recifense normatizava: o de esposa e mãe. Além disso, a atividade de gestão, ligada diretamente a uma forma de poder, estava circunscrita ao espaço existencial ao universo masculino mesmo que este fosse menos competente para tanto. Entretanto, na mostra realizada no 10 Salão dos Independentes observarmos as presenças de Fédora Monteiro e Crisolice Lima - em um universo de 22 artistas homens - o que demonstra que elas eram artistas competentes e atuantes..
Não é difícil deduzir que a atividade artística feminina era encarada, no início do século XX em Pernambuco, como uma atividade para moças prendadas e casadoiras. Não era levada a sério. Nesse cenário Fédora atuou quase que de forma isolada, compartilhando com raras companheiras os anseios de mulher artista profissional que se vê tolhida pela sociedade que a cerca. Apesar de professora da Escola de Belas Artes, de artista que abandona uma arte considerada “feminina”, amadorística, e integra, na medida do possível, um mercado de trabalho provinciano e masculino, de ser uma figura bem distante da bonequinha que enfeita o piano na sala de visitas ou da produtora de aquarelas suaves para orgulho familiar e parte do dote proporcionado para uma posição bem sucedida no mercado de casamentos, Fédora do Rego Monteiro não consegue ocupar a posição de destaque a que tinha direito.
Com o expurgo modernista da produção considerada acadêmica que acontece até o advento de uma pós-modernidade e que, no Brasil, tem início na década de 80 - Fédora tornou-se, gradativamente, mais esquecida e, hoje, pouco se sabe sobre uma das primeiras artistas mulheres atuante nas artes plásticas produzidas em Pernambuco no início do século XX. Sua obra, com exceção das poucas telas pertencentes ao acervo de algumas instituições (Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, Pinacoteca do Estado de Pernambuco e Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães) está perdida ou incógnita na casa de pequenos colecionadores. Sua história enterra-se no tempo e nos arquivos pouco organizados da antiga Escola de Belas Artes de Recife.
Dessa forma, alguém com uma formação nitidamente superior a dos seus contemporâneos, uma artista que no Brasil estudou com Eliseu Visconti, Zeferino da Costa e Modesto Brocos em uma das instituições artísticas mais respeitadas do país: a Escola Nacional de Belas Artes, e que, em Paris, foi discípula dos mestres Gervais, Gultin e Desirée na Academia Julien e que seria, no universo autodidata da maioria dos artistas em Pernambuco, uma liderança natural, permaneceu nos bastidores e neles ficou até a sua morte na década de 70, fazendo parte de mais um capítulo dos intermináveis relatos concernentes à exclusão feminina da Historia da Arte: do silêncio da história sobre a mulher artista.
Referências bibliográficas
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* Madalena Zaccara possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE-1976), bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP-1975), mestrado (DEA) em História e Civilizações - Université Toulouse II (1992), Toulouse, França e doutorado em História da Arte - Universite Toulouse II (1995), também em Toulouse, França. Atualmente é professora Adjunto IV da Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora, em Pernambuco, do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPE/UFPB (sendo vice-coordenadora do programa de forma geral). Lidera grupo de pesquisa cadastrado no CNPq Arte, Cultura e Memória que se volta para a pesquisa da História e Teoria das Artes Visuais no Brasil. Atua principalmente nos seguintes temas: História da Arte e Critica de Arte, É membro da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes Plásticas (ANPAP). Tem várias publicações na área de artes visuais.
[1] Artemísia Gentileschi nasceu em Roma em 1593. Era filha de um pintor talentoso Orazio Gentileschi, que dominava muito bem a técnica de claro/escuro, na linha de Caravaggio.
[2] Berthe Morisot, pintora impressionista francesa era cunhada de Manet, casada com seu irmão Eugenio.
[3] Camille Claudel, escultora francesa, teve um relacionamento conturbado com o também escultor Auguste Rodin.
[4] As obrigações de um pintor brasileiro, pensionista da Academia Imperial de Belas Artes, eram numerosas. Quinze dias após chegar a Paris, o estudante deveria escolher um mestre - uma espécie de orientador - e o apresentar ao embaixador do Brasil em Paris para obter sua aprovação. Esse mestre deveria ser membro do Instituto de França e professor da Escola de Belas Artes. O pensionista não receberia qualquer ajuda financeira sem um atestado de assiduidade assinado por este orientador. Durante sua permanência na Europa, a cada seis meses, o estudante devia fornecer à embaixada brasileira, provas de seus esforços: trabalhos acadêmicos que deveriam ser enviados à Academia no Rio de Janeiro. Ao longo do primeiro ano ele deveria enviar doze estudos feitos a partir de modelos naturais ou baseados em obras da antiguidade clássica bem como a cópia de um quadro que seria designado pela academia brasileira. In: DURAND, J. C. Arte, Privilégio e Distinção. São Paulo: Perspectivas, 1989.
[5] Nelbe Rios, artista plástica participante do Ateliê Coletivo liderado por Abelardo da Hora em Pernambuco in CLÁUDIO, José. Memória do Ateliê Coletivo. Recife: Artespaço, 1978.
[6] ALVES, Maria Angélica. A educação feminina no Brasil do entre-séculos (XIX e XX): Imagens da Mulher Intelectual. Disponível em: http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe2/pdfs/Tema5/0540.pdf
[7] “Conferência realizada no Congresso Literário de Pernambuco em 1892”. In: ALMEIDA, P. D. (dir). A Mensageira. Revista Literária dedicada ás Mulheres Brazileiras. São Paulo: IMESP/DAESP, 1987, anno I, n.12 citado por ALVES, Maria Angélica, op. cit.
[8] Decreto Estadual 725 de 25 de abril de 1942 in BARBOSA, Kleumanery de Melo. Dos Salões de Arte em Pernambuco. Monografia para conclusão do curso de Graduação em Licenciatura em Desenho e Plástica sob a orientação da Prof., Especialista. Marilene Melo de Almeida. Universidade Federal de Pernambuco. 2002
[9] Nota em jornal da época, não identificado, pertencente à Memória do Museu do Estado in Kleumanery de Melo Barbosa, op cit, p. 18.
[10] Fédora recebeu medalha de prata em 1916