Angelina Agostini: a consagração da artista em 1913
Cláudia
de Oliveira [1]
OLIVEIRA, Cláudia de. Angelina Agostini: a consagração da
artista em 1913. 19&20, Rio
de Janeiro, v. XV, n. 1, jan.-jun. 2020. https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00004
* * *
1. Angelina
Agostini [Figura 1]
nasceu no Rio de Janeiro em 1888 e morreu na mesma cidade em 1973, aos 85 anos.
Sua vida foi longa, mas não é possível avaliar a extensão de sua produção
artística, pois suas obras tiveram destino ainda ignorado, à exceção de seis
telas: quatro no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, entre elas o
autorretrato da Figura
2; uma no Museu Histórico Nacional, também no Rio de Janeiro; e uma
encontrada no Warburg - Banco Comparativo de Imagens do Centro de História e
Arqueologia (CHAA), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
2. Em um
levantamento minucioso em teses de doutorado, dissertações de mestrado,
monografias e artigos científicos sobre artistas vencedores de prêmios ou sobre
mulheres pintoras, no Brasil verificamos não haver trabalhos sobre a artista,
com exceção de um artigo publicado em 2019 sobre a tela Vaidade.[2] Em
geral, os trabalhos sobre os pintores e pintoras na chamada Primeira República
- particularmente os que tratam de pintoras mulheres -, pouco comentam sobre
essa artista que se consagrou em 1913 e desfrutou de grande prestígio como
artista na época.
3. Em
pesquisas em vários jornais, verificamos que a premiação de Angelina em 1913
foi noticiada por praticamente toda a imprensa carioca.[3] Nos
limites deste texto, apresentamos três notas sobre a premiação da pintora e a
obra Vaidade: duas na revista ilustrada Fon-Fon! [Figura 3 e Figura 4] e uma no
jornal O Malho [Figura
5].
4. No Livro
de Ouro do Museu Histórico, comemorativo do 1o Centenário da
Independência do Brasil, encontramos uma relação dos artistas premiados na
categoria Pintura entre 1894 e 1922, na qual consta o nome de Angelina Agostini
como a única pintora a ganhar o Prêmio de Viagem nas Exposições Gerais de Belas
Artes, em 1913.[4] O
prêmio que a artista ganhou fora criado 1894 e se estendeu até 1930,
diferindo-se, portanto, do Prêmio de Viagem ao Estrangeiro da Escola Nacional
de Belas Artes do Rio de Janeiro (ENBA/RJ) - este concedido somente para os
alunos regularmente matriculados na Escola.[5]
Segundo Arthur Valle, a premiação conquistada por Angelina objetivava
democratizar o Prêmio de Viajem, sendo concedida ao artista que mais se
destacava na Exposição, favorecendo, assim, diversos artistas brasileiros.[6] É importante destacar, que os
vencedores do Prêmio de Viagem escolhiam livremente o local de desfrute da
premiação, sendo que Angelina preferiu ir para Londres, onde se encontravam, em
sua visão e na de seu professor Henrique
Bernardelli, os melhores retratistas da época.
A
jovem bastarda: de estudante de pintura a artista consagrada
5. Angelina
Agostini foi fruto da relação apaixonada, porém ilícita, entre os artistas Abigail
de Andrade e Angelo Agostini, fato já bem documentado em vários estudos.[7]
Uma primeira análise sobre o drama da filiação ilegítima de Angelina indica que
o mesmo parece ter sido atenuado, uma vez que jamais foi comentado pela
imprensa desde que a artista começou a estudar na ENBA até o fim de sua vida,
em 1973. Angelina e Angelo tiveram, assim, suas imagens protegidas, ao serem
desvinculados de Abigail de Andrade, apagada pela crítica de arte e pela
imprensa já em 1913. Aos olhos da crítica e da imprensa, a excepcionalidade de
Angelina Agostini era fruto de sua hereditariedade paterna e do fato de ter
sido discípula de Henrique Bernardelli. Jamais foi vinculada ao nome de sua
mãe, que tinha sido uma pintora consagrada no seu tempo e reconhecida por suas
qualidades próprias.
6. Embora
longe de ser uma exuberante musa das artes e da vida mundana carioca, Angelina
era sempre vista em meio a seus colegas artistas, homens e mulheres. Em 1910,
ela participou da fundação do Centro Artístico Juventas -
posteriormente, Sociedade de Belas Artes, ainda hoje existente no Rio de
Janeiro. No documento A Sociedade Brasileira de Bellas-Artes no seu Primeiro
Jubileu - 1910-1935, comemorativo do 25o aniversário de fundação
da entidade, salvaguardado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, podemos
ler:
7.
[...]
um
grupo de jovens com esperanças artísticas palpitantes de entusiasmo, fundou no
dia 10 de agosto de 1910 o Centro Artístico Juventas [...]. Não era uma
pretensão descabida de uma aventura louca, dessa plêiade moça, cheia de sonhos
e inquieta e arrojada, provaram-no, logo depois, as mostras de arte que levaram
a efeito desde a primeira, inaugurando no dia 10 de agosto de 1911, no Salão da
Escola de Bellas-Artes, gentilmente cedido pelo saudoso mestre Rodolpho
Bernardelli, até as transformações do Centro na Sociedade que ora comemora
o seu jubileu. Guiados pela figura empreendedora e energia de Anibal
Mattos, formaram em torno da ideia Adelaide
Gonçalves, Angelina Agostini, Armando
Magalhães Corrêa, Antonio Pitanga, Eustorgio Wanderley, Fedora
Rego Monteiro, Gaspar
Magalhães, Marques Junior e Raul Bevilacqua.[8]
8. Assim,
a partir de 1911, Angelina começa a ganhar projeção nos salões de belas artes. Na
18ª Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada em 1º de setembro daquele ano,
ela expôs as telas Moleque de Compras e três Modelos, recebendo
Menção Honrosa. No mesmo ano, participou, com outros artistas cariocas, da 1a
Exposição de Belas Artes de São Paulo, inaugurada em dezembro de 1911. Na 19a
Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada em 1º de setembro de 1912,
conquistou a Pequena Medalha de Prata ao expor as telas Retrato de Mme. L.B.,
Hortensia e Dom Pablo. E, na 20a Exposição Geral de
Belas Artes, em 1913, expôs Compras, Vaidade, Costumes Portugueses,
Religiosa, Magu (retrato), Pepita e Rosinha e foi a vencedora
do Salão, com a tela Vaidade [Figura 6].
9. Vaidade, uma
tela a óleo, dava a ver ao espectador da época uma maior liberdade estética,
apresentando uma cena própria ao chamado “realismo burguês.” Seguia, assim, o
fluxo de transformações na arte acadêmica brasileira que se iniciara após a
Proclamação da República e eram produzidas por um universo de pintores
considerados, como vimos no mencionado documento comemorativo do jubileu da
Sociedade Brasileira de Belas Artes, uma “plêiade moça, cheia de sonhos,
inquieta e arrojada.” Ou seja, Vaidade era uma obra voltada para o novo
público que emergia com a modernidade carioca.
10. Na
verdade, a tela é um retrato sob a forma de alegoria e com uma temática que não
era nova, uma vez que o gênero vanitas (vaidade) já era comum desde o
século XVII, especialmente na pintura holandesa. A pintora holandesa Clara
Peeters (1607-1621) representou-se em autorretrato, usando a temática vanitas,
em 1616 (cfr. A vanitas portrait of a lady). As alegorias também eram
comuns entre as pintoras europeias desde o século XIX. Além disso, a ampla
maioria das telas apresentadas no Salão de 1913 foi de retratos, fato
confirmado por Mário Pederneiras em sua crítica à exposição de 1913: “o
predomínio é de retratos, cuja percentagem, na atual exposição, leva grandes
vantagens aos demais assuntos.”[9]
11. Mas a
inovação introduzida pela obra de Angelina estava na representação da
intimidade feminina, produzida por uma artista mulher. Em sua tela, a pintora convida
o espectador a entrar no ambiente íntimo feminino como um voyeur. Embora
a mulher retratada não encare o espectador, ela está em seu quarto, frente a um
espelho, mostrando o corpo semicoberto por peças íntimas, as quais, segundo
Valerie Steele,[10] conformam uma categoria de roupa que se
aproxima do fetichismo e revela um embaralhamento no paradigma tradicional do
nu e do vestido, uma vez que uma pessoa em roupas íntimas está simultaneamente
vestida e despida.
12. A pesquisadora
Felipa Vicente afirma que, a partir do início do século XX, a
autorrepresentação ou representação de mulheres por mulheres artistas
converteu-se num espaço de negociação e confronto de questões relacionadas com
o gênero e a sexualidade. Muitas artistas mulheres passaram a usar seu corpo -
ou o corpo feminino - como forma de reivindicar sua própria sexualidade,
construída por elas e não pela cultura visual e artística dominante. Ao
resgatarem os corpos femininos da tradição hegemônica, na qual aqueles se
constituíam em metáforas universais do desejo masculino, as mulheres
individualizaram-se nas suas diferenças, reclamando as possibilidades de olhar
e recriar significados.[11]
13. Mário
Pederneiras, na mesma crítica citada acima, parece confirmar a análise feita
por Vicente quando chama atenção para a excelência da técnica, do colorido e da
pose criada por Angelina Agostini: “No desenlace da figura, destaca-se
fortemente Angelina Agostini com excelentes modelos de uma técnica segura e um
colorido exato e sábio, sem falar no interesse novo da ‘pose’ escolhida.”[12]
14. A
Exposição de 1913 teve como jurados na categoria pintura os professores Carlo de Servi, Henrique Bernardelli, João
Batista da Costa, Modesto Brocos e Pedro Peres.
Todos eram mestres de muitos expositores e expositoras do Salão. Sessenta e
dois artistas expuseram no evento de 1913: 47 homens e 15 mulheres. Além de
Angelina Agostini, que conquistou o Prêmio de Viagem, apenas quatro mulheres
receberam medalhas na categoria pintura, enquanto oito homens receberam
medalhas e menções honrosas - o que nos dá uma indicação da posição da mulher
no mundo das belas artes à época. Na declaração do júri de Pintura, publicada
na Ata da Sessão de Pintura da 20a Exposição Geral de Belas Artes,
em 10 de setembro de 1913, podemos ver a distribuição das premiações:
15.
Ao examinar atenciosamente todos os trabalhos expostos [o júri] propôs os
seguintes prêmios. Prêmio de viagem Sra. Angelina Agostini, grande medalha de
prata ao Sr. Carlos Chambelland e Augusto [sic] Dall’Ara,
Pequena medalha de ouro ao Sr. Carlos
Oswald, Medalha de prata a Sra. Adelaide Gonçalves e Srs. Pedro Bruno,
Navarro
da Costa, Medalha de Bronze, Iracema Orosco, D Julieta Bicalho, Arnaldo de Carvalho; Medalha de Honra de 1º Grau D. Maria
Pardos, José Fiuza e Augusto José Marques Junior; Menção Honrosa de
2º Grau ao Sr. [ilegível]. Assinados: Henrique Bernardelli, J. Batista
da Costa, Pedro Peres com restrição constante na Ata junto com Modesto Brocos,
Carlos de Servi declaramos em tempo que por omissão deixou de figurar na lista
acima o nome do Sr. João Batista da Costa com a Pequena Medalha de prata.
Assinados os membros acima.[13]
16. Ao
justificar a premiação de Angelina Agostini, o júri ressaltava sua técnica como
artista, classificando-a como uma “mestra na arte:”
17.
A artista distintíssima que de fato é a Sra. Angelina
Agostini apresenta nos seus trabalhos expostos equilibradas qualidades de tão
grande valor, que entendo-os estar na presença de quadros de habilíssima
mestra. Desenho correto, colorido cintilante de verdade e harmonia, para quem a
palheta não tem segredos e maneja os pinceis com técnica superior, eis os
predicados com que se aproveita a artista em seus trabalhos. Quem pinta quadros
como os expostos por ela pode considerar-se mestre na arte. Faze-la ir a Europa
estudar,
[ilegível] o seu abonadíssimo cabedal artístico.[14]
18. Um
fato intrigante, porém, foi a moção do pintor Belmiro de
Almeida em relação à premiação de Angelina Agostini:
19.
O Sr. Prof. Belmiro de Almeida, da seguinte Moção: ilustre
Sr. Presidente, Ilustres membros do Conselho. Peço a palavra, não para opor
contraditos a decisão do Júri de Pintura da Exposição Geral de Belas-Artes do
eminente ano - Ele é ilustre, idôneo e sem atos pautados por paixões
mesquinhas, são presididos pela figura impecável da justiça, mas simplesmente
porque sou fiel vigia da lei que rege as decisões desse Conselho. Não tenho a
fortuna de conhecer pessoalmente a laureada, pergunto: - É ela brasileira nata?
Tem menos de 35 anos de idade, conforme exige a lei? Onde estão os papéis
jurídicos que provem o que pregunto? Eis o que desejo saber, Srs. Membros do
Conselho. No caso de ser a laureada brasileira-nata, só tenho que regozijar-me
com tal acontecimento que permite que mais uma brasileira venha a abrilhantar
com seu talento as artes liberais. O sr. Presidente, Prof. Rodolfo Bernardelli
fez suspender a sessão por alguns minutos afim de que a concorrente, D.
Angelina Agostini fosse buscar e apresentar os papeis pedidos. Reaberta pouco
depois a sessão foi lida a certidão de nascimento competentemente registrada e
documentada, provando a nacionalidade brasileira da artista havendo o Prof.
dado-se por satisfeito foi posto em votação o parecer do júri de Pintura, sendo
unanimemente aprovado.[15]
20. Belmiro
de Almeida compunha, junto com Raphael
Bordalo Pinheiro e Angelo Agostini, o pai de Angelina, a tríade de grandes
caricaturistas no Segundo Reinado. Desde 1882, Angelo já escrevia sobre Belmiro
na Revista Ilustrada, elogiando-o como artista: “o senhor Belmiro é um
dos melhores discípulos de nossa Academia de Bellas Artes.”[16] Na
exposição de 1884 da Academia Imperial de Belas Artes, Belmiro de Almeida
expôs com Abigail de Andrade, mãe de Angelina, que naquele evento conquistou a
Medalha de Ouro de 1º grau, enquanto Belmiro ganhava a Medalha de Ouro de
Segunda Classe. É indiscutível que Belmiro sabia, como toda a sociedade carioca
à época, da união ilícita de Angelo e Abigail, do nascimento de Angelina
Agostini, em 1888, bem como da partida dos três para Paris naquele mesmo ano.
Segundo Reis Junior,[17] em 1888 Belmiro de Almeida também parte
para uma segunda estada em Paris, após concorrer ao Prêmio de Viagem - embora
não o tendo ganhado, uma vez que o mesmo foi concedido a Oscar
Pereira da Silva. Talvez Belmiro não tivesse certeza da nacionalidade de Angelina,
já que ela foi levada para Paris quando tinha apenas dois meses de idade,
conforme informação dada por Mariana Agostini de Villalba Alvim, neta de Angelo
Agostini, em depoimento ao pesquisador Marcus Ribeiro.[18]
Mas ele foi, no mínimo, ambíguo ao afirmar não ter tido a “fortuna de conhecer
pessoalmente a laureada” e não saber sobre a idade de Angelina Agostini, então
com 25 anos. Belmiro era um artista acadêmico, vencedor de prêmios e medalhas,
que fora aluno de Henrique Bernardelli e, em 1913, atuava como professor da
ENBA. Em 1913, com vimos, Angelina já era artista formada pela ENBA,
participante e premiada em três Exposições Gerais e aluna do ateliê de Henrique
Bernardelli
21. De
modo que nos parece que duas razões interligadas poderiam ter motivado as
palavras do pintor. A primeira pode estar relacionada à competição entre
pintores. Muito embora vários pesquisadores tenham asseverado que no final do
século XIX surgiu um novo público consumidor de arte, constituído por grandes
comerciantes, altos funcionários públicos, profissionais liberais, além de
estratos da nobreza, e que tal grupo conformava o primeiro conjunto de
colecionadores do país,[19] na Ata da Sessão de Pintura do Salão de
1910 os jurados Zeferino da Costa, João Batista da Costa, Henrique
Bernardelli e Eliseu Visconti comentavam: “O artista brasileiro não
encontra em seu país a mínima compensação para o seu trabalho [...] não tem
mercado, nem público para a sua produção artística [...] os artistas nacionais
se esterilizam e morrem de fome, como sucedeu a Castagnetto,
Rafael
Pinto Bandeira e outros.”[20]
22. A
partir do comentário dos jurados da Sessão de Pintura do Salão de 1910, podemos
supor que a competição entre os artistas era muito grande, especialmente no que
tange ao cobiçado Prêmio de Viagem, que dava enorme visibilidade aos artistas,
lançando-os no mercado de arte local, e também possibilitava a ampliação dos
seus conhecimentos na Europa, o que lhes dava mais chances de se tornarem ainda
mais reconhecidos.
23. Por
outro lado, o comentário de Belmiro sobre Angelina se dá justamente no momento
em que ocorriam importantes transformações nas hierarquias sociais no Brasil.
Desde 1910, os espaços de gênero começavam a se entrelaçar, devido ao
progressivo ingresso de mulheres das classes médias no mercado de trabalho,
onde atuavam como secretárias, trabalhadoras do comércio, datilógrafas e
professoras primárias, ao mesmo tempo em que as provenientes das classes altas
ingressavam no ensino superior. As conquistas femininas eram intensamente
criticadas pela ampla maioria dos homens à época.[21]
De modo que acreditamos que o comentário de Belmiro de Almeida refletia não só
uma disputa entre artistas pelo mercado consumidor de arte, mas também uma
disputa entre homens e mulheres por esse mesmo mercado. No ambiente
masculinista da ENBA, as mulheres pintoras eram mais um segmento a disputar um
lugar no mundo artístico até então dominado pelos homens e disputado apenas
entre eles. De modo que acreditamos poder afirmar que as palavras de Belmiro de
Almeida não estavam isentas de preconceitos com relação à arte praticada por
mulheres e às conquistas femininas, particularmente aquelas no mundo artístico
da época.
24. A
despeito de ciúmes, competição e misoginia, Angelina mantinha, desde 1910, um
ateliê próprio, localizado num sobrado no Largo da Carioca, n. 4, ao lado da
célebre Galeria Cruzeiro, como consta em sua ficha de inscrição no Salão
de 1913, atualmente salvaguardada no Museu D. João VI da Escola de Belas
Artes/UFRJ. Uma pesquisa no Almanak Laemmert - Mercantil e Industrial
(RJ), do período 1891-1940, sobre o endereço do ateliê de Angelina, revela
que o local fora endereço da revista D. Quixote, de propriedade de
Angelo Agostini entre 1900 e 1903.[22] Isso nos leva a concluir que, com o fim
de D. Quixote, em 1903, Angelo instalou ali o seu ateliê, uma vez que,
até sua morte em 1910, seu nome aparece vinculado a esse endereço na seção
“Pintores, Retratistas e Paisagens” do Almanak. Acreditamos que, após a
morte do pai, Angelina utilizou o local como seu ateliê. Donde concluímos que,
quando a artista ganhou o Prêmio de Viagem, já era uma pintora profissional,
fato incomum na época para uma jovem estudante de arte no Rio de Janeiro.
O
papel de Vaidade na consagração de Angelina Agostini como artista mulher
25. Em
1913 Angelina Agostini tornou-se na imprensa carioca, sobretudo na imprensa
feminina, figura emblemática da mulher moderna e vencedora. Vestia-se
sobriamente: tailleur escuro, gravata, chapéu “à Sarah Bernhardt,” botinas
e nenhum adorno [Figura
7]. O figurino recorria a peças do vestuário
tradicionalmente masculino para conformar e sinalizar a imagem da mulher que
emergia nos espaços de trabalho até então restritos aos homens.[23]
26. Um
exemplo de como Angelina incorporou em 1913 a new woman carioca está no
jornal feminino A Faceira, que circulou entre 1911 e 1919, e que fazia
campanha pelo acesso das mulheres à educação e ao mercado de trabalho. A
artista foi assunto de uma crônica ligeira da poeta e feminista Gilka Machado,
cumprimentando-a pelo prêmio, salientando a força das conquistas femininas e
aplaudindo seu empenho: “um exemplo de mulher moderna.”[24] Pouco
antes da partida da jovem artista para Londres, em 1914, o mesmo jornal
publicou uma entrevista com ela, a qual reproduzimos abaixo:
27.
Devendo partir para Londres, ponto escolhido para gozar o
prêmio que lhe foi concedido, fomos ontem à senhorita Angelina Agostini.
28.
Era tarde e só um acaso nos poderia fazer deparar com a
inteligente pintora.
29.
E assim foi. Na rua do Ouvidor, conversava com o ilustre
professor Henrique Bernardelli. Aproximamo-nos.
30.
- Procurava-a. Vai ser entrevistada.
31.
O pintor Bernardelli, que está ameaçado de uma entrevista,
disse, rindo-se:
32.
- Não me pergunte nada. Não responderei.
33.
- Hoje não. Chegaremos lá. Agora é com a senhorita Agostini.
34.
Os dois, professor e discípula, conversavam sobre arte. A
palestra continuou. Quando achamos oportuno, arriscávamos:
35.
- A viagem é então por esses dias? Vai diretamente para
Londres?
36.
- Em primeiro lugar, devo dizer que não levo programa. A
pintura do retrato em Londres tem tido, nestes últimos tempos, um notável
progresso. Não tomarei professor nem irei para atelier ou academia. Vou estudar
e trabalhar. Alugarei um atelier e aí farei meus retratos. É claro que, minhas
relações, que envidarei esforços para ser entre os maiores nomes da pintura
inglesa, um mestre que me aconselhe. Mas, como disse, não tenho programa
37.
- Vai passar os dois anos em Londres?
38.
- Sim. Isto é, pelo inverno pretendo ir à Itália, talvez a
Nice.
39.
O professor Henrique Bernardelli lembra Veneza, onde este
ano se realizará a grande exposição trienal.
40.
- É tudo quanto posso dizer em relação a minha estada
na capital inglesa.
41.
E a conversa continuou sobre assuntos de arte. A exposição
de Veneza, os Futuristas, os Cubistas, a arte na Inglaterra...[25]
42. Vaidade foi a
consagração de Angelina Agostini como pintora que, embora conhecesse os
movimentos de vanguarda na Europa, como vimos acima, não aderiu a nenhum deles,
até sua morte em 1973.
Considerações finais
43. Angelina
Agostini foi consagrada como na Exposição Geral durante a Primeira República,
pelo inédito “retrato de mulher” (a tela Vaidade), como ressalta a nota
em A Faceira:
44.
A senhorita Angelina Agostini é a mais prometedora de
nossas artistas. Muito jovem e muito aplicada, foi o maior sucesso nestes
últimos anos. A senhorita Angelina Agostini é hoje uma triunfadora [...]. Falando das
mulheres pintoras que haviam concorrido naquele Salão, dizia a Gazeta
referindo-se a pintora de Vaidade: -‘ Dessas, figura em primeiro plano,
a senhorita Angelina Agostini. O seu retrato de mulher é um dos trabalhos de
alto mérito. Não só pela maneira de fazer, que denuncia uma individualidade já
distinta, mas especialmente pelo colorido, que é preciso pelo toque, que é
exato, pelo jogo das sombras, que é inteligente e educado. A senhorita Angelina
Agostini, por essas qualidades tão firmemente apresentadas, é uma de nossas
mais distintas artistas do pincel.[26]
45. A
partir das vários notas e críticas em jornais à época em que Angelina Agostini
recebe a premiação, podemos aferir que a artista foi das mais consagradas
pintoras pelos “mundos da arte” (BECKER, 2010) de seu tempo. Entendemos por consagração
o lugar que (a)o artista passa a ocupar no “mundo da arte:” trata-se de um
lugar construído a partir do conjunto de atores ou agentes envolvidos, os quais
conferem valor ao artista (feminino ou masculino), tais como “a crítica de
arte, a imprensa, o mercado, os espaços expositivos e os museus” (SIMIONI,
2016, p. 378). Não se trata aqui, portanto, de uma comparação entre as artistas
mulheres pintoras na Primeira República - discussão que caberia em outro
trabalho. O objetivo do texto - que não esgota a pesquisa - é, de fato,
procurar entender porque uma artista consagrada pelos “mundos da arte” de seu
tempo tornou-se tão invisibilisada que, até mesmo no conjunto de pesquisas que
questionam as razões da invisibilidade das mulheres pintoras, Angelina Agostini,
como mulher e como artista, permanece inexplorada e ignorada..
46. Passados
mais de 100 anos da premiação de Angelina Agostini, o cânone da história e da
crítica de arte no Brasil permanece alheio à esta artista mulher que se
consagrou na Primeira República, com seu inédito “retrato de mulher”, o que
parece comprovar não só o desinteresse pela artista, mas também aponta para
políticas curatoriais que escolhem consagrar certos pintores em detrimento de
outros. Em se tratando de uma pintora mulher, tal atitude parece reforçar a
perspectiva masculinista canônica da História da Arte.
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Ata do Conselho Superior do Conselho de Belas
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______________________________
[1] Professora associada do
Departamento de História e Crítica da Arte/ Escola de Belas Artes/Universidade
Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ).
[2] OLIVEIRA, Cláudia de.
Angelina Agostini e a tela Vaidade: uma intervenção feminista. Anais
do 2º Encontro Internacional História & Parcerias, Rio de Janeiro,
2019.
[3] Os veículos de imprensa
que publicaram notas e críticas sobre Angelina Agostini foram os jornais O
Imparcial, Correio da Manhã, O Paiz, A Imprensa, Jornal do
Brasil, A Noite, O Jornal e A Faceira; e as revistas
Fon-Fon!, Revista da Semana e O Malho.
[4] Em 1913, a artista Dinorah Carolina Azevedo foi vencedora do Prêmio de Viagem
na categoria Gravura. Uma entrevista de Dinorah, que foi desenhista do jornal A
Faceira entre 1910 e 1911, juntamente com J.
Carlos, aparece em A Faceira, ano II, n. 29, dez. 1913,
p. 8. Outras artistas mulheres também receberam o Prêmio de Viagem da ENBA na
Primeira República, como Julieta de França, em 1900, que conquistou o Prêmio na
categoria Escultura e, Margarida Lopes de Almeida, em 1924, também na categoria
Escultura.
[5] VALLE, Arthur Gomes. A
Pintura da Escola Nacional de Belas Artes na Primeira República (1890-1930): Da
formação do artista aos modos de estilísticos. Tese apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 155.
[6] Ibid, p. 166.
[7] OLIVEIRA, Miriam. Abigail
de Andrade: Artista plástica do Rio de Janeiro no século 19. Rio de Janeiro:
UFRJ/EBA, 1993; OLIVEIRA, Claudia de. Cultura, história e gênero: a pintora
Abigail de Andrade e a geração artística carioca de 1880. 19&20,
v. VI, n. 3, jul.-set. 2011. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/co_abigail.htm;
e SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e
escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo: FAPESP, 2008
[9] A Sociedade
Brasileira de Bellas-Artes no seu Primeiro Jubileu: 1910-1935. Documento
comemorativo do 25o aniversário de fundação da Sociedade Brasileira de Belas
Artes. Setor de Iconografia da Biblioteca Nacional (Iconografia/BN, Doc:
109.1.5)
[9] PEDERNEIRAS, Mario. O
salão de 1913. Fon-Fon!, Ano VII, N.37, 13 set, 1913, p. 35.
[10]
STEELE, V. The corset: a cultural history. New Haven & London:
Yale University Press, 2001.
[11] VICENTE, Felipa. A
arte sem história: mulheres e cultura artística (séculos 16-21). Lisboa:
Edição Babel, 2012.
[12] PEDERNEIRAS, op.cit.
[13] Ata do Conselho
Superior de Belas Artes, 1913, Museu D.João VI, Pasta 6160, p. 69.
[14] Ata do Conselho
Superior de Belas Artes, 1913, Museu D.João VI, Pasta 6160, p. 69.
[15] Ata do Conselho
Superior de Belas Artes, 1913, Museu D.João VI, Pasta 6160, p. 70.
[16] Revista Ilustrada,
ano 7, n. 294, p. 6.
[17] REIS JÚNIOR, José
Maria. Belmiro de Almeida: 1858-1935. Prefácio de Quirino
Campofiorito. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1984.
[18] RIBEIRO, Marcos. Revista
Ilustrada (1876-1898): síntese de uma época. Tese (Mestrado) –
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ, Rio de Janeiro, 1988.
[19] CARDOSO, Rafael.
Intimidade e reflexão: repensando a década de 1890. In: CAVALCANTI, Ana M. T., DAZZI, C., VALLE, A. (orgs.) Oitocentos: Arte
brasileira do Império à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA- UFRJ/
DezenoveVinte, 2008.
[20] Ata do Conselho
Superior de Belas Artes, Museu D.João VI, 1910, Pasta 6160, p. 41.
[21] OLIVEIRA, Cláudia de.
Angelina Agostini e a tela Vaidade: uma intervenção feminista. Anais
do 2º Encontro Internacional História & Parcerias, Rio de Janeiro,
2019, p.10.
[22] Segundo o Almanak
Laemmert - Mercantil e Industrial (RJ), do período 1891-1940, a revista D.
Quixote ocupou o endereço da Rua do Ouvidor, n. 109, entre 1895 e 1900,
quando se mudou para o Largo da Carioca, no 4. Na revista D. Quixote
trabalhou como secretário, até 1900, um dos filhos de Angelo Agostini, Eugênio.
Posteriormente, ele se tornaria cônsul do Brasil no Uruguai e em Nápoles. O Almanak
Laemmert - Mercantil e Industrial (RJ), do período 1891-1940, está
disponibilizado na BN Digital e na sessão de Periódicos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro.
[23] OLIVEIRA, Claudia de.
Mulheres na luta pela emancipação: novo vestuário e novas formas de
comportamento pelas lentes da imprensa carioca: 1900-1914. Revista Dobras,
v.12, n.25, 2019.
[24] MACHADO, Gilka. A
Faceira. Rio de Janeiro, ano 3, n. 26, set 1913, p. 14.
[25] A Faceira, ano IV, n. 32, abr.-mai. 1914, p. 14.
[26] Idem.