José Silveira D’Ávila, entre anjos e demônios, entre arte e indústria [1]

Sandra Makowiecky [2] e Fernanda Maria Trentini Carneiro [3]

MAKOWIECKY, Sandra; CARNEIRO, Fernanda Maria Trentini. José Silveira D’Ávila, entre anjos e demônios, entre arte e indústria. 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_jsdavila.htm>.

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Na ilha de Santa Catarina, onde está edificada a cidade de Florianópolis, capital do Estado, há uma palpável influência açoriana, tanto nas tradições folclóricas, arquitetônicas, como no espírito de sua população. É provável que a insularidade do local e seu relativo isolamento tenham contribuído para que a maneira de ser, principalmente no que tange às crenças e valores dos colonos de Açores, tenha deixado marcas tão profundas nos ilhéus. Existe o lado do catolicismo açoriano que é pouco visto e estudado e está presente nas obras de artistas catarinenses de uma forma singular e particular. Dentre o repertório adquirido ao longo dos anos, de pesquisa e de história, alguns artistas possuem aproximações com determinados períodos e estéticas da história da arte e, dentre os artistas catarinenses, existem semelhanças com a linguagem barroca, muito perceptível na obra de José Silveira D’Ávila [Figura 1] . Poucos textos o mencionam, em livros quase nada se encontra. Entretanto, a sua produção foi grande e apresenta uma obra que merece ser registrada, especialmente por sua atuação em favor das artes e de suas opiniões a respeito da arte, do artista e da criação. Sua obra muito se diferencia das demais que lhe eram contemporâneas.

José Silveira D’Ávila nasceu em Florianópolis em 5 de outubro de 1924 e faleceu no Rio de em 30 de dezembro de 1985. Foi pintor, desenhista e gravador. Frequentou por oito anos (1945 a 1953) a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), com bolsa concedida pelo governo do Estado de Santa Catarina, bolsa que o artista sempre soube agradecer e corresponder em empenho aos estudos e com exposições que realizava na capital. Era pobre e desde cedo revelou suas aptidões para a pintura e escultura. O Estado resolveu custear seus estudos na ENBA, onde ingressou ainda adolescente, com 19 anos, em 1945. Alcançou várias premiações importantes na Escola Nacional de Belas Artes como Medalha de Ouro em pintura e medalha de Bronze em escultura, prêmios também recebidos por Martinho de Haro e Victor Meirelles em pintura. O Governo do Estado de Santa Catarina, através da lei de nº 442, de 1º de junho de 1951, concedeu um prêmio de viagem ao estrangeiro ao artista catarinense, complementando o prêmio que este havia recebido na Escola Nacional de Belas Artes. Este concurso estava interrompido por algum tempo e foi restabelecido em 1951, ano em que D’Ávila ganhou a Medalha de Ouro, juntamente com Plínio Lopes Cipriano. Sobre o prêmio, assim se manifestou:

Esse prêmio representa para mim a oportunidade de ver a relação entre a obra, os mestres e as condições em que foram realizadas. A minha intenção não é imitar e sim, impregnar-me do espírito artístico e na semelhança e exemplo dos grandes mestres, realizar a minha obra pessoal, com a nossa realidade presente. Considero isso o máximo em arte. Não será a aquisição de uma forma já consagrada e sim, uma libertação. (D’AVILA, 1951)[4]

Com este prêmio, iria fazer cursos de aperfeiçoamento na Europa por cinco anos, mas permaneceu lá apenas três. Em 1950, organizou com Carlos Oswald, o Atelier de Arte, que incrementou o desenvolvimento da gravura através de sua promoção em todo o Brasil. Como divulgador das artes, ajudou a criar a Associação Brasileira de Arte Sacra, Escolinha de Arte do Brasil e a Associação de Artistas Plásticos Contemporâneos (ARCO). Foi o primeiro presidente da Associação Brasileira de Artesãos (ABA), no Rio, criador das oficinas de Arte e diretor do Museu de Arte de Santa Catarina (MASC), como Martinho de Haro antes dele, de abril de 1981 a 15 de agosto de 1983. Foi um estudioso do vidro de arte, trabalhando com várias fábricas cariocas e paulistas. Entusiasmado pelas coisas ligadas à profissão que abraçou, era muito interessado em urbanismo. Viveu grande parte de sua vida fora do Estado e teve forte ligação com o artesanato e preocupação com a arte e indústria. Realizou diversas exposições no Brasil e no exterior. No salão Nacional de Arte Moderna, no qual participou em diversas versões, recebeu certificado de isenção do júri em 1958 com prêmio de viagem ao país e Prêmio de Viagem ao Estrangeiro em 1965. O prêmio que recebeu em 1965, cedido pelo Salão Nacional de Arte Moderna, o permitiu estudar na Europa de 1966 a 1968. Em 1979, voltou a residir em Florianópolis, onde apresentou no MASC, em 1980, uma retrospectiva de sua obra. Era bastante ativo e a documentação nos jornais destaca muito a função social da arte, posto que D’Ávila reforça esta questão, especialmente quando passa a se dedicar ao artesanato - a nosso ver, em primeira tentativa de união entre arte e indústria no Estado de Santa Catarina. Era sem dúvida, erudito e culto, conhecedor da história da arte e incansável pesquisador de técnicas. Foi um dos pioneiros do silk-screen no Brasil. Desde 1955, interessado em novos materiais e na integração da arte com a indústria, aceitou o convite e colaborou com a Formiplac [Figura 2] para o desenvolvimento dos laminados decorativos. Foi designer de produtos téxteis, cerâmica e padronagem industrial, e pioneiro da renovação do vidro de arte, colaborando em várias fábricas do Rio e São Paulo.

Cabe aqui destacar algumas falas do artista sobre sua produção de vidro, em uma exposição na Galeria Sérgio Millet, no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1977[5]. Disse ele: "Com o vidro tive uma viva preocupação de procurar formas decorrentes dessa interação: homem, natureza e vocação. O vidro é o ponto alto da exposição porque não existe uma grande produção; muitos olham os vidros e não a pintura." [Figura 3 e Figura 4].

Na continuação, refletindo sobre a condição de trabalho em vidro, acrescentou: "Principalmente porque é caro. O vidro que é soprado fino não demora a esfriar, já o vidro grosso demora até dois dias, muitas vezes mistura-se com o material da fábrica. Perco até 50%. Se houvesse um mercado de arte vidreira, teríamos condições de fazer qualquer tipo de vidro". Dizia que pode-se fazer muito com o vidro, porque ele tem brilho, transparência, cor, opacidade. Enquanto no vidro exercita-se a forma, na pintura é possível ter-se um modo de expressão mais vasto. Outro aspecto pouco observado na obra de D’Avila é a sua preocupação com o artesanato:

Em países mais desenvolvidos há uma organização mais próxima da indústria. Aqui se confunde artista com artesão. O artista tem a capacidade criadora. O artesão tem um grande conhecimento do metier, sem, no entanto, a capacidade de criação. Se a tem, é artista também. Se houvesse uma estrutura organizada, seria possível até diminuir o êxodo rural e trazer divisas para o país. Os artesãos italianos são responsáveis por 15% das divisas que entram no país. Na Segunda Guerra Mundial, quando as indústrias européias viviam uma situação de crise, foi através das indústrias do artesanato que elas se refizeram. (D’ÁVILA, 1977)[6]

D'Ávila não acreditava em uma arte verdadeiramente moderna, mas sim viva e evolutiva, e que “a chamada arte moderna é plano mais avançado, a qual o censo comum ainda não conseguiu atingir”. Sobre a arte contemporânea, em entrevista realizada em 1949, por ocasião da sua segunda exposição em Florianópolis, disse não tomar posição: “Assimilo todas as tendências onde encontre pontos de identidade [...] O que é existe - portanto, as diversas tendências da arte moderna são rumos do pensamento do homem moderno, tendo assim uma consequência lógica” (D’ÁVILA, 1949)[7]. Sobre a arte atual, disse-nos:

Como o cientista que descobre as forças latentes da natureza, o artista pela sua especial sensibilidade e intuição, pode despertar os nossos sentidos para a vida e beleza que existem mesmo nos objetos inanimados e torna-nos mais conscientes do mundo que nos cerca. Mais do que isso, o artista pode criar de acordo com uma unidade de pensamento um mundo harmonioso e coerente o que faz da arte um precioso elemento neste mundo de total desintegração. (D’ÁVILA, 1949)

Em seus trabalhos, a pincelada, a aguada e as manchas estão entre as principais características [Figura 5 e Figura 6]. Transita entre o borrão e a forma definida, surgindo entre elas um mundo imaginário, de seres fantásticos, vegetais e animais singulares, e uma intercomunicação de percursos medievais ou barrocos, revelados por suas filiações históricas e culturais. Seus desenhos e pinturas fantásticas retratam um fundo contemplativo, pela profunda religiosidade no catolicismo açoriano da Ilha de Santa Catarina, de luzes e sombras, anjos e demônios, e também das vivências cultas, do pesquisador e conhecedor de materiais e história da arte (BORTOLIN, 2001).

Foi embebido desde cedo, no vivido catolicismo herdado de colonos açorianos, colorido forte e medieval. Este fantástico mundo de trevas e luz, céus e infernos, anjos e demônios, na eterna luta entre o bem e o mal, entrou-lhe na alma, e na obra, junto com o leite e as histórias maternas (RACZ,1989)[9].

Como influências, citou Michelangelo, Rafael, Picasso e os primitivos. Admitia a influência europeia entre os jovens, apesar da tentativa de renovação que se processava no Brasil. Seu processo criativo necessitava de um grande período de labor e pesquisa, e dizia que a obra de arte tem que conter, antes de tudo, arte. Um quadro, para ser uma obra de arte deve ser primeiramente, uma expressão estética e secundariamente ou ocasionalmente, uma expressão arqueológica, social, política, ou moral.

Nós somos uma cultura em formação. Portanto é anacrônico utilizarmos como nossa, a expressão artística daqueles outros povos que passaram por um processo no qual a sua arte é uma expressão adequada. É por isso que não sabemos andar avante sem recebermos a última informação do que se faz lá fora. (D’ÁVILA, 1966)[11]

Agora, com trinta e cinco anos de profissão artística, percebo que todo o meu trabalho artístico está ligado ao ambiente cultural aqui vivido nos anos mais fundamentais da formação de nossa concepção de mundo. [...] No lar, como nas escolas onde estudei, a minha espiritualidade unida ao ambiente cultural tinham uma harmonia que não era desmentida pela beleza natural da ilha, nos idos de 1924 a 1940. No portal da capela do Santíssimo, na Catedral Metropolitana, onde fui coroinha, estava pintada uma frase que sempre me animou nas adversidades: Laudate Domine Laeticia - Amai ao senhor na alegria. [...] Alegria, para mim, tem sempre um gostinho de Florianópolis. (D’ÁVILA, 1981)

Quando fui desterrado, minha infância recusou-se a morar em outro lugar, fora desta ilha. Agarrando-se às grandes pedras arredondadas, às ramagens das árvores e aos ferros da ponte, preferi ficar aqui para soltar pandorga, banhar-se nas praias, correr nas ruas tranqüilas, deitar nos prados, olhando as nuvens compondo figuras no profundo azul do céu. [...] Sempre que podia, voltava a Florianópolis, para fazer exposições e rever a minha infância, que daqui nunca saiu. [...] Minha mãe Laurita, amorosamente pintando, bordando, escrevendo contos de fadas e tocando cítara, teceu um belo painel de fundo para o resto da minha vida. (D’ÁVILA, 1981).

A irmã Otilde, uma doce freirinha, no jardim de infância do Colégio Coração de Jesus, ensinou-me a brincar num mundo fascinante de papéis coloridos, dourados, caixas de lápis-pastel do todas as cores, miçangas e contas de vidro com a beleza do arco-íris. (D’ÀVILA, 1980)

Sobre sua obra, parece que o desejo de integração dos processos de arte e vida inclui a dimensão histórica e cultural que lhe confere certa intemporalidade, ou interpenetração de épocas, seja em temas, seja em formas. Parte da experiência do informalismo de manchas gestuais lançadas no suporte e depois evolui para figurações diminutas onde se contrasta a largueza do gesto inicial com um virtuosismo miniaturista [Figura 7].

Uma outra evolução que D’Ávila pratica a partir de manchas coloridas se encontra nos quadros de pequenas dimensões, de técnica aquarelada, quando as contrasta com a presença de estruturas geométricas definidas, de caráter arquitetônico, conferindo ao conjunto certa conotação metafísica pela identificação das manchas com seres vegetais e animais, ora de natureza lírica, ora de inspiração fantástica. (ZALUAR, 1980)

Para o artista, o registro de uma imagem ajuda muito, desde que a pessoa saiba olhar. Segundo ele, muita gente ainda não descobriu a importância de comparar a imagem que um pintor ou um desenhista captou com a realidade. Isso é importante para as pessoas tomarem consciência de si mesmas, da relação com o meio, dos valores culturais e da importância que isso tem. Há coisas que são importantes como a luz, a amizade e os valores culturais que nos ligam que não tem um valor material, mas uma forma de percepção. “E sem este aspecto de interrelação, de vínculo e de raiz, a gente não tem obrigação com ninguém. Então, realmente, o mundo fica uma selva terrível. Daí surge o problema das depredações dos bens públicos” (D’ÁVILA apud PRADO, 1980).

Percebe-se na obra de D’Ávila formas representacionais e a possibilidade de descobrir outras leituras possíveis de Florianópolis, além da mitomágica e das tradições açorianas. O que se percebe é um vívido catolicismo herdado de colonos açorianos, colorido forte e medieval. Este fantástico mundo de trevas e luz, céus e infernos, anjos e demônios, na eterna luta entre o bem e o mal, entrou-lhe na alma junto com as histórias maternas, e se expressa de uma forma que associamos com a arte dita barroca.

Nesse sentido, discutiremos, a partir desse momento, algumas obras de José Silveira D’ávila que são possíveis de suscitar questões sobre as imagens que tiveram relevância no Barroco, no âmbito da história da arte; a estética barroca frente às múltiplas possibilidades de proporcionar a visualidade artística. O artista consegue apreender detalhes, traços e movimentos que relembram características do Barroco, como a religiosidade através da presença de elementos alegóricos, a essência do movimento e o excesso e teatralização.

A presença de características barrocas que relacionamos na pintura de D’Ávila sugere mais que simples simulação de características. Tal representação difere da repetição e imitação, pois ela muda com o tempo e por ele se atualiza. Podemos dizer que a obra de arte pode ser uma representação do real, sendo que o imaginário traz elementos do real. Suas pinturas são cercadas por anjos e demônios, que nos sugerem um espaço no tempo infinito, verificando assim um lugar dominado por entidades inominadas e misteriosas, como nos é mostrado, por exemplo, na obra de Hieronymus Bosch [Figura 8]. Esses personagens, essas figuras alegóricas, têm um caráter de sonho, de incerteza, onde é percebido e conhecido aquilo que se tem em repertório. A aproximação da tela relembra as dobras de retábulos e de veios que penetram a infinidade do movimento barroco. O acúmulo pictórico visualiza a panorâmica do lugar e, com o afastamento da obra, o todo, em sua composição e seu arranjo, continua harmonizado entre anjos e demônios.

Já em obras de Peter Paul Rubens [Figura 9], podemos observar a presença das características importantes do século XVII: a ênfase sobre a luz e a cor; o desprezo pelo equilíbrio simples; e a preferência por composições mais complicadas, com o intuito de seduzir e convencer o espectador através do apelo às emoções, através da luz áspera e quase ofuscante no contraste com as sombras profundas, com uma esplendorosa ênfase na carne e no desejo.

Outros traços apontados como características do barroco dizem respeito a uma colocação abstrata de figuras e cenas alegóricas na composição, atribuindo ao mundo fantástico, ao movimento e ao esplendor teatral, uma forma de aproximação do espectador com o mundo celestial. Assim “arquitetos, pintores e escultores foram convocados para transformar as igrejas em exibições grandiosas cujo esplendor e glória quase nos cortam a respiração” (GOMBRICH, 1999, p. 436-437). O historiador Giulio Carlo Argan ressalta a imagem como poder de persuasão político-teológica, ou seja, “poder de condicionar todas as ações dos homens, qualquer que seja sua posição social e sua preparação cultural” (ARGAN, 2004, p. 56-57). E esta condição trata a imagem como educadora dos impulsos emotivos e como orientação para as ações humanas em um agir desejável. Porém, conceitos da estética barroca são problematizados também por historiadores de arte recente:

Tanto na ordem cultural quanto na ordem artística instala-se um desequilíbrio, constituído de tortuosidade, ambigüidade, complicação (do sentir e da expressão) - numa palavra, extremamente significativa da estética barroca, do excesso - que faz explodir o papel das referências alegóricas. (AGNOLIN, 2005, p. 175)

O propósito do Barroco é impressionar o espectador pelos sentidos e emoções. Por isso podemos apontar as seguintes características: o gosto pelo monumental, pela assimetria, nada mais é que uma tentativa de oposição à sobriedade, num estilo retorcido; a vontade de impressionar, apelar para afetividade e imaginação, de intensidade dramática; exibição de riqueza material, oferecendo contemplação aos materiais, tais como o ouro e pérolas; a importância da superposição decorativa e o gosto pelo insólito e pelo singular (TIRAPELI, 2005). Nisto, caracteriza-se “por uma cultura barroca que permite percepções múltiplas, uma multiplicação dos significados, uma explosão das alegorias” (AGNOLIN, 2005, p.175).

Além disso, o barroco se utiliza de contrastes, de duplos que se complementam no que diz respeito ao envolvimento do espectador e poder sobre ele. Os contrastes estão apresentados na cidade sob forma morfológica, a diferença de anjos e demônios, dois elementos distintos, mas que se completam, pois a existência de um é visível na presença do outro. Dentro da imagem, os personagens que se apresentam, ora esbanjando poder, excesso e exaltação, ora lacunas, melancolia e degradação. Muitas vezes essas aparências se contradizem, pois este aspecto permite-nos visualizar a exterioridade. Muitas vezes essas composições compõem de um fragmento exagerado e um todo reprimido.

Movimento do excesso, o exagero, a carnavalização, a dramaticidade, o desequilíbrio ocorrido devido às incertezas da ciência, característico do Barroco. Omar Calabrese explica que reinventamos acontecimentos e seres que nos permitem viver em um estado ilusório e fantástico. Ele cita, no caso do barroco contemporâneo, a presença dos monstros como forma de “representar não só o sobrenatural ou o fantástico, como, acima de tudo, o ‘maravilhoso’, que depende da raridade e casualidade da sua gênese na natureza e da oculta e misteriosa teleologia da sua forma” (CALABRESE, 1987, p. 105). Muitas vezes são vistos com exageros, excessivos, de tamanho fora do padrão, como muito grande ou pequeníssimo.

O Barroco se utiliza da aparência na apresentação de cenas que propõem dizer algo, de ser referência na manipulação e poder de comportamento e pensamento através de imagens e cenas alegóricas, ou seja, sugere a teatralidade, como no exemplo da obra de Bartolomé Esteban Murillo [Figura 10]. Nisto, o aspecto teatral nos apresenta como cenário em que somos espectadores, protagonistas e figurantes, ou seja, parte de um todo que são relevantes na construção e encenação da imagem. Cria essa ilusão, o trompe l’oeil em que no mundo nada é o que parece ser; uma vida de sonhos. Para Ernst Gombrich (1999, p. 443) “ao fazer com que a pintura extravasasse da moldura, o artista nos quis confundir e esmagar para perdermos a noção do que é real e do que é ilusão”.

Assim, as características permanecem vivas, quando se observam a presença de figuras carregadas de elementos alegóricos e a alegoria se mostra de uma forma para significar uma anterior. Ela permite a inclusão de novos significados, ou seja, ela é uma porção individual que envolve a universalidade de uma abstração (HANSEN, 2006). É o reflexo que o homem tem de si diante de sua história e, “como o conceito a ser figurado é, antes de tudo, um pensamento, a alegoria torna-se uma invenção, ou seja, uma técnica artística de dar forma a um pensamento numa matéria por meio de ‘imagens’” (HANSEN, 2006, p. 180).  Este homem, em que “viveu tomando parte numa época de sobressaltos, esperanças e desilusões, não em torno de ambições políticas, mas em torno de riquezas palpáveis, reais, [...] criando fantasias das massas algo maravilhoso como um sonho” (ETZEL, 1974, p. 48).

A alegoria justifica a imagem singular e, o anjo e o demônio como se conhece são para interpretar algo do campo universal das significações. A obra de arte propõe apresentar qualidades visíveis por meio de captações de forças invisíveis. Assim, a arte torna-se “um jogo de signos analógicos que estabelecem relações entre coisas próximas e distantes, entre uma qualidade dada e uma qualidade oculta”. E, ainda propõe “um modo de ação, criando objetos visíveis que, por analogia, captam as potências invisíveis” (HANSEN, 2006, p. 157).

[...] compreendemos que a história se faz por imagens, mas que essas imagens estão, de fato, carregadas de história. Ela é uma construção discursiva que obedece a duas condições de possibilidade: a repetição e o corte. Enquanto ativação de um procedimento de montagem, toda imagem é um retorno, mas ela já não assinala o retorno do idêntico. Aquilo que retorna na imagem é a possibilidade do passado. Nesse sentido [...], visamos ultrapassar o círculo da subjetividade, potencializando, ao mesmo tempo, a receptividade, que mostra de que modo as formas do passado podem ainda ser novamente equacionadas como ‘problema’. O inacabamento de uns remete-nos às outras, mas a impotência delas carrega-se de renovadas forças de sentido. São essas as ‘Potências da imagem'. (ANTELO, 2004, p. 09-12)

Na pintura de José Silveira D’Ávila o que vai impressionar o espectador é o jogo de acúmulos e de luz, que concerne à narrativa de palimpsesto de sonhos e de desejo, um apelo aos sentidos. Ao apresentar a alegoria barroca, retoma não somente a representação de algo, mas a apresentação de um cenário, passagem ou estado de acontecimento. E a arte religiosa cristã utilizou-se de alegorias antes mesmo da arte barroca, que foi empregada com maior intensidade [Figura 11]. Com as obras de arte que abordam a temática de anjos e demônios, é possível estabelecer relações entre as imagens alegóricas encontradas ao longo da história da arte, reforçando a universalidade de sua simbologia.

Ainda assim, entre seus anjos e demônios, supomos que esse caminhar nos remete ao limbo ou purgatório, à presença de ambos em um mesmo cenário. O pintor D’Ávila reafirma um olhar cristão por meio do titulo e da presença de encenações, arabescos e ornamentos religiosos, bem como de seres metamorfoseados constantes. Apreendemos também que seu contexto e repertório artístico estão presentes na obra, como seus estudos com vidro, que refletem o aquarelado e manchas das pinceladas e sua trajetória e conhecimento pela religiosidade açoriana, destacando-se, portanto a transcendência, o clima fantástico e o fundo contemplativo [Figura 12]. As partes se repetem sem sua estrutura e função, contudo possuem diferenciação entre corpos. A presença do fantástico como incógnita da vida.

Sugere por meio desses seres híbridos um mundo fantástico de criaturas metamorfoseadas possíveis de existência. Sua ligação é tão sedutora e estimulante, que nos envolve na ilusão dos lugares que buscamos contemplar a realidade dos sonhos. Apresenta-nos uma narrativa enviesada de acontecimentos na história da arte, onde cria mundos repletos de biombos, o qual nos seduz pela opacidade e tramas visuais em suas obras.

Nem toda a existência é especulativa, as aparências também têm um valor; e nós nos servimos delas. Sabemos perfeitamente que elas não são representações exatas daquilo que ocorre no universo, mas não podemos negar que elas mesmas são fenômenos, fenômenos que ocorrem na mente humana e influem sobre o comportamento. Se antes só se podia atribuir um valor às imagens que também fossem formas constantes da realidade, agora todas as imagens que povoam a nossa mente, sejam elas recebidas do mundo exterior por meio dos sentidos ou produzidas pela imaginação, têm um incontestável valor de realidade - e até se duvida de que haja imagens que tenham um conteúdo absoluto de verdade. (ARGAN, 2004, p.50)

Existe uma dissolução da forma plástica e linear, contornos são suprimidos para sugerir o ilimitado, o infinito. A tendência para afastar-se do plano para a profundidade expressa um ponto de vista dinâmico, que se opõe ao estável. As telas de D’Ávila dançam, se movem. Como nos quadros barrocos, ocorre o uso de primeiros planos maiores que o tamanho natural e súbita redução de proporções nos motivos de fundo. A composição é aberta, dando a impressão de serem mais ou menos incompletas e desconexas. Tudo oscila. Predominam as linhas oblíquas e curvas na composição, sugerindo instabilidade, com um ponto de vista cinemático. Exaltação da cor e da luz, bem como contrastes violentos de luz e sombra, para dar a expressão de fortes e intensos sentimentos, dramatizados [Figura 13].

A cor parece servir melhor do que a linha para dar expressão de valores de sentimentos e estados emotivos, transmitindo a sensação da forma com a cor. A pintura é polifocal, pois mesmo que estruturado da mesma forma, sempre descobrimos novos elementos e a síntese é preferida aos detalhes. A luz é teatral e subjetiva, iluminando onde interessa para a composição. A pintura barroca cria espaço maior do que realmente é - a busca pelos efeitos ilusionistas é uma grande tônica na arte barroca. Na obra de D’Ávila, vimos este catolicismo revivido e misturado com as histórias dos açorianos, reforçando um lado religioso que nossa ilha reluta em prestar atenção, preferindo enaltecer a versão mito-mágica. Vimos igualmente um artista dividido entre arte e indústria, tentando profissionalizar o oficio, em vários de seus movimentos, acreditando firmemente na integração da arte com a indústria e no uso de novos materiais. Foi também um professor dedicado e empreendedor que quando à frente do Museu de Arte de Santa Catarina, em 1981, compreendeu a importância de um espaço aberto e público voltado à produção da arte, comprando a prensa e as pedras de litografia entre outras iniciativas, e por uma conjunção de fatores, estabeleceu uma atmosfera de pesquisa que forjou um espírito compromissado com o processo e com o aprofundamento do trabalho coletivo e individual no embrião das oficinas de arte do MASC, determinante para a continuidade destas atividades até os dias de hoje, em que questões como a produção, limites do individual e do coletivo, linguagem e meios, ganham nas oficinas do MASC, um amplo espaço para discussão e lentamente se constrói um corpo criativo e estimulante. A presença de D’Ávila merece ser acordada de um passado muito próximo para nos lembrar constantemente que o mundo da modernidade é um mundo de rigorosa descontinuidade em que o novo já não é o antigo que perdura, nem um fragmento do passado que retorna. Trata-se, pelo contrário, de uma experiência intermitente que ofusca o olhar, como dizia Walter Benjamin. Não queremos um presente eterno e sem memória.

Hoje, nem sempre os clássicos são lidos. A glória dos espíritos vazios e sem obras é maior do que o esperado. Política, obras de arte e obras de pensamento, antes admiradas, tornam-se coisas indiferentes. Dificilmente podemos desfazer a imagem do caos. [...], As duas maiores invenções da humanidade - o passado e o futuro, como escreve o poeta- desaparecem, dando lugar a um presente eterno e sem memória. (NOVAES, 2008, s/p).

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ZALUAR, Abelardo. In: Catálogo da Exposição Retrospectiva da obra D’Avila: pinturas, desenhos, vidros. Florianópolis, Museu de Arte de Santa Catarina, 1980.


[1] Uma versão deste artigo, mais reduzida, foi apresentada e publicada nos anais do  III Simpósio Nacional de História Cultural - Mundos da Imagem - Do texto ao visual, 2006, Florianópolis. III Simpósio Nacional de História Cultural - Mundos da Imagem - Do texto ao visual. Florianópolis : Clicdata Multimídia, 2006. v. 1. p. 1-10, sob o título José Silveira D’Ávila: um vívido catolicismo.

[2] Professora de História da arte - Graduação e Mestrado - Centro de Artes - UDESC. Email: sandra.makowiecky@gmail.com

[3] Mestre em artes visuais, linha de teoria e história da arte, pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC. Email: fetrentini@gmail.com

[4]  Vitória do esforço e da inteligência. Jornal Diário da Tarde, Florianópolis, 10 abr. 1951.

[5] Jornal do Brasil. D’Ávila e sua difícil e desconhecida arte vidreira. Caderno B. Página 8. Rio de Janeiro, terça-feira, 27 de setembro de 1977.

[6] Idem.

[7] A exposição de José Silveira D’Ávila. Jornal “O Estado”, Domingo, 7 de agosto de 1949, página literária .Orientação do círculo de arte moderna.

[8] FELDMANN, Carlos Augusto. Inquieto e disposto à luta. Jornal “A Gazeta. Entrevista. Florianópolis, 18 set. 1981.

[9] RACZ, Georges. IN: Homenagem a José Silveira D’Ávila. Catálogo da exposição. Museu de Arte de Santa Catarina.  Março a abril de 1989.

[10] Jornal “O Estado”.”A exposição de José Silveira D’Ávila”. Domingo, 7 de agosto de 1949, página literária . Orientação do círculo de arte moderna.

[11] Entrevista com d’Ávila. Jornal “Ilha”, Florianópolis, fevereiro de 1966.