Anita Malfatti em Paris, 1923-1928

Renata Gomes Cardoso [1]

CARDOSO, Renata Gomes. Anita Malfatti em Paris, 1923-1928. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_amalfatti.htm>.

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                     1.            Anita Malfatti produziu um grande conjunto de obras durante o período em que morou na França, entre os anos de 1923 e 1928, com uma bolsa de estudos do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo. A realização desses trabalhos foi aos poucos descrita em cartas que enviou para Mário de Andrade, grande amigo e interlocutor de Anita Malfatti desde a exposição de arte moderna realizada em 1917. Esses documentos fornecem muitos dados para a análise de sua produção artística, de acordo com os contextos da arte europeia e da arte brasileira. Discutiremos nesse artigo alguns de seus trabalhos, suas possíveis referências e posterior recepção da crítica de arte francesa.

                     2.            A paisagem foi enfocada por Anita Malfatti desde os primeiros anos de sua atividade artística. De sua passagem pela Alemanha, entre os anos de 1910 e 1914, duas pequenas telas revelam o estudo de aspectos do Impressionismo e do Pós-impressionismo, questões que norteavam as discussões dos artistas com os quais entrou em contato em Berlim, como Lovis Corinth e os artistas da Secessão. Do período americano, tornaram-se famosas na história da arte brasileira as paisagens que fez na ilha de Monhegan [Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4], lugar frequentado por artistas como Homer Boss, seu mentor nesses anos, e seus demais amigos pintores. Paisagens como O Farol [Figura 1] e O Barco [Figura 2] revelam o diálogo de Anita Malfatti com paisagistas americanos como Boss [Figura 5], Robert Henri [Figura 6], John Sloan [Figura 7a, Figura 7b e Figura 7c] e Rockwell Kent [Figura 8].

                     3.            Uma das primeiras paisagens realizadas já no contexto desse estágio francês retrata um aspecto de Veneza, cidade visitada no verão de 1924.[2] Trata-se de Veneza, Canaleto [Figura 9], obra que permaneceu com a artista até o fim de sua vida. A paisagem apresenta uma vista de um dos pequenos canais da cidade em um dia ensolarado, no qual a água do canal reflete a gama de cores dos sobrados à margem e da ponte. A composição apresenta grande síntese das formas e a distribuição das cores rememora outras abordagens da paisagem de Veneza no verão, como algumas aquarelas de John Singer Sargent [Figura 10a e Figura 10b], americano que fez uma série de obras enfocando esses canais, as pontes e os edifícios históricos da cidade. É possível pensar essa relação porque Sargent tinha grande destaque no cenário americano no mesmo período em que Anita Malfatti ali trabalhou. O recorte apresentado na paisagem de Anita Malfatti é muito semelhante ao de Sargent, com enfoque na pequena ponte e a luz do verão se distribuindo na água e nas casas.

                     4.            O estudo das cores na composição de Anita Malfatti, por um momento, parece tentar um retorno à “festa da cor”[3] de retratos e paisagens do período americano, mas há, entretanto, uma diferença essencial na estrutura da composição, que apresenta um contorno mais preciso. Nas paisagens americanas, as formas foram construídas com cores que se movimentam na tela, seguindo um gesto rápido de apreensão da imagem, confundindo os limites entre fundo e primeiro plano, englobando céu, terra e mar, como pode ser observado em obras como A onda [Figura 3] ou A ventania [Figura 4]. Esse tipo de estudo com a cor não foi trabalhado em outras obras desse estágio francês. Paisagens realizadas posteriormente, como Porto de Mônaco [Figura 11] e Lago Maggiore [Figura 12], apresentam um esquema mais ordenado de luz e sombra, com cores que se harmonizam em cada elemento da paisagem. Essa ordenação parece ser uma continuidade da pesquisa iniciada em Veneza, Canaleto, mas aponta, sobretudo, para outras referências artísticas, que Anita Malfatti aos poucos observou no ambiente francês.

                     5.            No caso específico dessas duas últimas paisagens, não passou despercebida a semelhança com as marinhas pintadas por Albert Marquet, indicada precisamente em uma crítica de arte publicada no contexto da exposição de Anita Malfatti realizada em Paris, no ano de 1926:

                     6.                                                  Vlaminck” poder-se-ia refletir diante das paisagens da artista brasileira, e “Marquet”, diante de suas marinhas. Que seja. Mas os desenhos? Seu caráter único demonstra ser impossível qualquer tentativa de comparação, mesmo exagerada. [...] suas telas atraem o olhar por suas cores brilhantes e pela sensação de equilíbrio, de composição lógica e sólida.[4]

                     7.            O autor começou o comentário sobre essa exposição ressaltando que era uma prática comum entre os críticos de arte buscar as referências do artista ao percorrer sua exposição. Mas concluiu que tinha dificuldade em encontrá-las no caso dos trabalhos de Anita Malfatti, pois estes apresentavam muitas variações de estilo e de assunto. De fato, a perspectiva nessas duas últimas paisagens lembra muito as vistas aéreas das obras de Marquet [Figura 13a e Figura 13b]. Essas marinhas são compostas a partir de uma perspectiva aérea, com um grande plano intermediário, normalmente o mar ou um rio, trabalhado com tonalidades de azul e verde, e a paisagem ao fundo, ao longo da linha do horizonte, dada por elementos em pequenas dimensões, como as casas à beira-mar, árvores, barcos, encostas e vistas da orla. Ambos artistas se inspiraram, certamente, em Paul Cézanne para a composição dessas marinhas, a partir de paisagens como L’Estaque [Figura 14] e Le golfe de Marseille [Figura 15], em que o mesmo tipo de perspectiva pode ser observado. No caso de Anita Malfatti, talvez o trabalho de Cézanne a tenha conduzido à pintura de Marquet, já que suas obras circulavam amplamente no meio artístico francês desses anos.[5] Cézanne, por sua vez, apareceu constantemente nas discussões sobre arte travada com Mário de Andrade nas cartas que trocaram, tendo Anita Malfatti sempre se referido a ele como o “mestre”.

                     8.            Nessas duas últimas paisagens de Anita Malfatti há uma grande mudança de técnica, observando-se que os grandes contrastes de cores, muito usados anteriormente na composição de figuras e das vistas, com pinceladas articuladas e contornos muito distorcidos, foram aos poucos substituídos por uma composição equilibrada, tal qual era debatido entre Anita Malfatti e Mário de Andrade nesse período. Esse equilíbrio foi também destacado pelo crítico de Paris-Times ao analisar as paisagens supracitadas. A vinculação da atividade de Anita Malfatti com uma arte moderna do eixo de certas pesquisas “moderadas”, sobretudo as do eixo simbolista e expressionista do contexto francês, pelo exemplo de artistas como Maurice Denis e Albert Marquet, ou ainda de ex-fauvistas, antecipa que seus objetivos e projetos, nessa etapa de sua trajetória, se distanciariam de qualquer tendência que poderia causar escândalo ou qualquer controvérsia, como acontecera no Brasil com as obras da fase americana. Contrariamente, nesse caso, os trabalhos de Anita Malfatti dessa fase acabaram criando, por fim, muita controvérsia entre os próprios modernistas brasileiros, que não compreenderam de imediato o novo repertório de referências, uma vez que, nesse mesmo momento, demonstraram buscar relações com questões derivadas do cubismo, também pelo viés da moderação característica dos anos pós-guerra, então em voga na chamada Escola de Paris.

                     9.            A inserção da produção de Anita Malfatti no grupo de “coloristas” é evidenciada pela orientação buscada no início do estágio na França. De acordo com cartas trocadas entre os brasileiros, Anita procurou Maurice Denis, muito conhecido naquele contexto, não apenas por sua atuação artística, mas também por vários textos sobre arte que publicou desde fins do século XIX. Denis, que fez parte do grupo dos Nabis, era também grande admirador de Cézanne; os artistas desse grupo tinham também em alta estima o pensamento sobre arte e os trabalhos de Paul Gauguin. Denis colocou em foco, além do conceito de pintura decorativa, a ideia de deformação subjetiva da natureza, pela qual os motivos da vida cotidiana, ou da natureza, deveriam ser apenas um pretexto para a expressão das ideias, visões e emoções do artista.[6] Ele também trabalhou com temáticas religiosas, tendo inclusive participado de um atelier de arte sacra, além de ter publicado textos abordando especificamente essa questão.[7] Essa orientação parece ter frutificado de forma direta nas obras de Anita Malfatti, pois trabalhou a temática religiosa em diversos trabalhos ao longo desse estágio.[8]

                  10.            Apesar de Veneza, Canaleto ter figurado no Salão do Outono de 1924, segundo informa uma carta de Anita Malfatti para Mário de Andrade, a tela não parece ter chamado a atenção da crítica, pois não foram encontrados comentários na imprensa francesa sobre ela. Das duas obras enviadas ao salão desse ano, apenas o Interior de Igreja [Figura 16] foi comentado e reproduzido.[9] Essa obra apresenta, pela primeira vez na produção da artista, um interior como enfoque, motivo que será trabalhado em diversas telas desse período. A cor novamente é utilizada em amplas superfícies, estruturadas de acordo com as linhas que definem a arquitetura do interior da igreja.  Esse interior confirma o interesse de Anita Malfatti pelas soluções dos mencionados Nabis e tem forte semelhança visual com um interior de igreja pintado por Eduard Vuillard [Figura 17]. Mas enquanto Vuillard apresenta detalhadamente a arquitetura do interior da igreja com leves contornos, que dão suavidade ao pequeno recorte da cena, Anita Malfatti ressalta os detalhes com tonalidades e linhas pesadas. O estilo com o qual transpõe o interior para tela é muito semelhante à construção das paisagens anteriormente mencionadas, mas com maior simplificação das formas, resultando em um ambiente fechado e condensado.

                  11.            Na linha temporal de realização das obras desse estágio entram também os retratos, outro ponto forte da pintura de Anita Malfatti desde o início de sua trajetória. Merece destaque A Japonesa [Figura 18], pintada em 1924. Trata-se de um retrato da pintora Riu Okanouye[10] e, ao contrário de retratos como A estudante russa [Figura 19] ou A Estudante [Figura 20], apresenta uma figura composta de maneira sólida, com amplas superfícies de cor, delimitadas por um contorno fino e preciso, e pela utilização do claro-escuro para dar volume. Ressalta-se o vermelho brilhante do quimono, com as áreas claras tratadas em laranja, tonalidade que repercute em boa parte da tela.

                  12.            Maria Rossetti Batista fez uma interessante relação dessa obra com as formas do art déco recorrentes no período, ressaltando que esse retrato é da época da convivência de Anita Malfatti com Victor Brecheret e Antonio Gomide, dois artistas muito avaliados e comentados a partir da relação com o art déco.[11] Gomide estudou em Genebra com Ferdinand Hodler, artista conhecido por sua relação com o Art Nouveau. As obras de Gomide desse período apresentam linhas sintéticas e curvas estilizando as formas das figuras [Figura 21a e Figura 21b].[12] Tal linha de síntese foi analisada também por Daysi Peccinini, nos trabalhos de Brecheret realizados no contexto da Escola de Paris e foi entendida como a linha de força que compõe esculturas como La Porteuse de Parfum [Figura 22], em que a figura é construída pelo “encadeamento de volumes espiralados”, apontando ao mesmo tempo para um “espírito construtivo”, que estaria ligado às fontes clássicas do artista.[13] Considerando a proximidade entre Anita Malfatti, Vitor Brecheret e Antonio Gomide nesse período, já que moraram na mesma rua em Paris, A Japonesa demonstra claramente o diálogo de Anita Malfatti com a produção desses dois artistas. As linhas de contorno utilizadas para construir as mãos e o quimono estão muito próximas do esquema formal trabalhado pelos outros brasileiros, sobretudo nas finalizações em formas angulares e curvas, que determinam ao mesmo tempo a estilização da figura. A convivência entre esses artistas fica ainda mais evidente na escolha de assuntos: a questão religiosa motivou muitos trabalhos de Brecheret - em escultura e esboços - e muitos de Gomide, que realizou desenhos, pinturas e vitrais de cenas bíblicas.

                  13.            Mas as referências para o retrato d'A Japonesa vão além da proximidade com a estilização art decó proposta pelos amigos artistas. Ao retratar a japonesa em trajes tradicionais, Anita Malfatti retomou uma questão muito comum no ambiente artístico europeu desde meados do século XIX: a apreciação da arte japonesa, cara a muitos artistas, de Van Gogh aos Nabis. Anita Malfatti já havia demonstrado seu interesse com temáticas orientais na obra A Chinesa, de 1921-22 [Figura 23].[14] As duas telas se diferenciam no que tange ao tratamento formal empregado, mas em ambas foram utilizados elementos distintivos que poderiam caracterizar a origem da figura, como a lanterna chinesa e o vestido, n'A Chinesa, ou a sombrinha e o quimono, n'A Japonesa. A composição de um cenário com certos objetos e elementos contribuindo para esclarecer a origem da figura retratada foi uma solução utilizada anos antes, na obra Tropical [Figura 24], finalizada em 1917, na qual a figura é ambientada com bananeiras, coqueiros e frutas, que contribuem para sua contextualização.

                  14.            Retratar uma pintora japonesa - Riu Okanouye -, cujas próprias obras pareciam retrabalhar algumas das características essenciais da pintura japonesa, que foram, por sua vez, definitivas para transformações artísticas da pintura europeia, poderia ser um elogio de Anita Malfatti tanto às características específicas dessa pintura, que culminou no conceito de japonismo, como ficou conhecido no contexto francês,[15] quanto uma referência direta a artistas que trabalharam o motivo da japonesa, em retratos ou cenas de interior, com os trajes típicos e outros elementos dessa cultura, o que era mais conhecido como japonaiserie.[16] Claude Monet, por exemplo, além de ter em alta estima as questões plásticas da arte japonesa, retratou sua esposa em um quimono vermelho, com objetos característicos. Outro ponto a se ressaltar sobre esse retrato é a proximidade de Anita Malfatti a artistas de descendência japonesa durante esses anos, como a citada Riu Okanouye e seu marido, Micao Kono, ou Tsuguharu Foujita, que combinavam em suas obras questões artísticas próprias do contexto parisiense com aspectos da arte japonesa, em associações que demonstram muitas afinidades com as pesquisas pictóricas de Anita Malfatti.

                  15.            Na sequência dos retratos realizados nesse estágio, destaca-se também a Dama de Azul [Figura 25], exposta no Salão dos Independentes de 1926. Nessa obra, Anita Malfatti optou por um esquema compositivo muito diferente daquele utilizado em A Japonesa e retomou a figura retratada na cadeira, solução muito usada nos seus famosos retratos “americanos”, porém compôs a obra com uma pose muito mais rígida e condensada, com a modelo olhando fixamente para a esquerda, em uma imobilidade quase desgastante. Nesse retrato há um grande cuidado ao compor o vestido em azul, com sutis estilizações nas dobras, construídas com um contorno pouco acentuado. Apesar do cenário em que a figura se encontra ter sido simplificado, tal qual nos retratos “americanos” - aparecendo no máximo a lateral da cadeira -, o fundo nessa obra é totalmente diferente dos retratos realizados anteriormente, sendo muito escuro, com um foco de luz - que chega a parecer uma moldura à frente da figura, o que contribui ainda mais para condensá-la nesse espaço. Nos retratos “americanos”, o fundo é normalmente colorido e disforme, sem detalhes, por vezes apenas sugeridos pela trama da cor, com o contorno da figura e de suas roupas deformado de uma maneira fluida, o que atribui maior distanciamento e leveza. Na Dama de Azul são trabalhados também certos detalhes, na roupa e no colar, podendo-se ver neste uma casa branca meticulosamente pintada, minúcias com as quais a pintora não se detinha em obras anteriores.

                  16.            Se em A Japonesa Anita Malfatti trabalhou longas superfícies lisas, como no quimono, contornadas por um traço elegante e sintético, com o cuidado de não deixar à mostra as marcas do pincel, na Dama de Azul construiu a roupa da figura com linhas menos precisas, deixando massas de tinta aparentes, o que lembra mais alguns retratos do período de 1910 a 1914, mas com uma abordagem quase pontilhista, sem apresentar, porém, a variação cromática característica dessa tendência. A paleta é muito sóbria na composição da figura, mas com misturas que formam uma massa opaca, que confere um distanciamento da aparência natural da modelo, se comparadas com retratos pintados em finas camadas.

                  17.            A solução pictórica adotada na Dama de Azul está muito próxima também do esquema utilizado pela artista em uma obra realizada anteriormente no contexto brasileiro, o Retrato de Sílvio Penteado [Figura 26], pintado provavelmente entre os anos de 1921 e 1923. Esse retrato foi também composto com pinceladas curtas, quase pontilhistas, com cores naturais e estilizações no contorno da roupa. A Dama de Azul estabelece dessa forma uma ligação com os retratos da fase imediatamente anterior, passada no Brasil. De forma semelhante ao trabalho com as paisagens, Anita Malfatti transformou a paleta, buscando maior correspondência com o modelo observado, ao mesmo tempo em que abandonou as deformações mais acentuadas e as cores expressivas, características tanto das paisagens como dos retratos “americanos”.

                  18.            Em uma carta enviada a Mário de Andrade no ano de 1925, Anita Malfatti comentou seu trabalho com o retrato, se referindo provavelmente aos dois citados, de 1924 e 1925:

                  19.                                                  Faço agora portraits bem bonitos que vc. [sic] tenho a certeza de que gostaria. Faço tudo mais leve: na minha pintura de agora, há uma ausência completa do elemento dramático. Acabei com o sofrimento e com a dor. É mais calma, alegre, contente, um pouco engraçada sem ser cômica nem trágica. Estou nas meias tintas, larguei de jogar com os grandes contrastes, pois só a um El Greco pode-se permitir tais extremos convenientemente. Mesmo Cézanne nunca atreveu-se [sic] a tais loucuras, pois conhecia suas forças e valha a verdade, cahiu [sic].[17]

                  20.            Anita Malfatti tentava explicar para Mário de Andrade os motivos de algumas mudanças em sua pintura, as razões de abandonar os grandes contrastes e deformações, característicos da fase americana, tão elogiada por Mário de Andrade ao comentar suas obras. De certa forma, tem-se a impressão que Anita Malfatti se esforçava para demonstrar ao amigo escritor que as mudanças em suas pinturas faziam mais sentido naquele contexto do que a continuidade do estilo “americano”. As experiências pictóricas de Anita Malfatti no estágio parisiense não foram bem entendidas por outros brasileiros, envolvidos com outros artistas e outras questões pictóricas, apesar de percebermos, pelas comparações aqui sugeridas, que essas obras estavam em sintonia e em diálogo com aquele meio.

                  21.            Ao contrário de A Japonesa, cujo tratamento pictórico é único na produção desse período, a solução utilizada na Dama de Azul foi retomada por Anita Malfatti em outros retratos, como Moça com xale [Figura 27] e Retrato de uma cantora (Cigana) [Figura 28]. Este último parece ser a obra à qual se refere em uma carta para Mário de Andrade, de 1926: “estou pintando uma bela camponesa russa cheia de fitas, tarantam [sic] e corpete e flores barulhentas”. Provavelmente, pelo fato de a Dama de Azul ter recebido críticas positivas ao ser exposta no contexto parisiense, a artista viu nessa solução pictórica um caminho para o seu trabalho com o retrato. Moça com xale, se comparada com a Dama de Azul, passa maior sensação de leveza, pelo despojamento da pose, sem a notória rigidez dos traços da Dama de Azul.

                  22.            Dentre as críticas que a Dama de Azul recebeu, destaca-se a do importante crítico André Warnod na revista Comoedia, que ressaltou as qualidades da pintura de Anita Malfatti, ao mesmo tempo em que avaliou a atuação e intenção de artistas estrangeiros em Paris:

                  23.                                                  É evidente, por exemplo, que se ache em um Salão como este muitos indícios que permitem julgar o espírito que anima nossos hóspedes, os pintores estrangeiros que participam da atividade da Escola de Paris. Vejam por exemplo a atividade a que se dedicam os pintores da América Latina e a vontade que eles demonstram ter para afirmar sua existência. [...] Ficamos impressionados ao encontrar nos discursos de grande parte dos jovens artistas americanos que vêm estudar a pintura em Paris, a prova de um sincero patriotismo. Vejo-os animados por outros sentimentos que o de alcançar a não importa qual preço um pequeno sucesso pessoal. Eles são nossos hóspedes, mas sabem que retornarão a seus países e construirão a casa com os materiais adquiridos entre nós. Uma jovem brasileira, Srta. Anita Malfatti, que expõe nos Independentes um interior e um retrato pintados com uma gama muito fina, nos dizia como percorreu os Estados Unidos e a Alemanha antes de vir para a França, sem se ligar mais a um mestre que outro, mas se enriquecendo com tudo que achava, se esforçando para apreender o melhor que podia o espírito francês, a cultura francesa, a fim de fazer no Brasil obra de pintor local e tirar partido do folclore e do pitoresco brasileiro.[18]

                  24.            O artigo é acompanhado pela reprodução da obra de Anita Malfatti, mas com o título “Portrait”. A reprodução da obra é bem maior que a do artista Henri Ottman, escolhido pelo crítico para comentar o Salão dos Independentes, como se vê no título do artigo. Warnod fala elogiosamente sobre esse artista ao longo do texto. Ponto curioso, pois existe uma grande semelhança entre essa obra de Ottman [Figura 29] e uma de Anita Malfatti, cujo título é Puritas [Figura 30]. Essa obra foi realizada no momento em que Anita Malfatti comentava muito a observação de obras dos primitivos italianos e flamengos e a questão religiosa.[19] Puritas foi finalizada em 1927, portanto posteriormente ao Salão de 1926. No artigo, André Warnod ressaltou que a tela de Henri Ottman estava “recebendo muita atenção de todos os visitantes do Salão” e que, com ela, o artista “afirma[va] sua vontade de pintar a natureza sob um aspecto harmonioso e radiante, com um otimismo pleno de sedução”.  Em vista do sucesso dessa obra de Ottman no Salão e de acordo com o que foi dito por Warnod, provavelmente a lembrança da tela ajudou Anita Malfatti na composição de seu nu Puritas, o que fez invertendo a posição das mãos, colocando uma sobre o peito e a outra de lado, ao invés de usá-la para esconder a nudez feminina, como fez Ottman. Esse recurso adotado por Ottman, com algum elemento cobrindo a nudez, foi muito comum na arte ao longo dos séculos, no que tange à representação de nus de figuras femininas; nesse caso, especificamente, o artista parece ter repetido o grande modelo de Botticelli no Nascimento da Vênus, obra famosa de 1486. Coincidentemente, Puritas foi finalizada após uma viagem de Anita Malfatti para a Itália, momento em que fez uma cópia da Madonna del Magnificat, também de Botticelli, de 1481, cópia essa comentanda com Mário de Andrade.[20] Tanto Nascimento da Vênus, quanto a Madonna del Magnificat são da Galleria degli Uffizi, de Florença. O recorte desse artigo publicado no Comoedia, contendo as duas reproduções, foi cuidadosamente guardado por Anita Malfatti em um caderno de recortes.

                  25.            Retornando à Dama de Azul, além do artigo de André Warnod, outra crítica sobre o Salão dos Independentes fez um comentário sobre esse retrato. No texto, o autor afirma que Anita Malfatti se esforçava por fazer uma obra decente, ficando à parte das modas passageiras do momento, mas finalizou dizendo que ela ainda não havia encontrado definitivamente sua nota[21]. Em outra crítica foi ressaltada a fineza do desenho do rosto e da mão da figura, a segurança da pincelada e a sensibilidade da artista para o retrato.[22] Na revista Les Artistes d’Aujourd’hui, outro crítico comentou o colorido como um dos elementos mais característicos do talento de Malfatti.[23]

                  26.            Outra obra exposta no mesmo Salão dos Independentes de 1926 e muito citada pela crítica, com significativa repercussão na história da arte brasileira, é o Interior de Mônaco [Figura 31], que também contribui para estabelecer um paralelo entre a produção de Anita Malfatti e as práticas dos Nabis e de ex-fauvistas, ou seja, artistas vinculados aos estilos expressionistas do cenário francês. A obra foi concebida em viagens a Mônaco e a composição foi muito estudada em desenhos preparatórios. Esse tipo de composição, com uma figura se destacando em um cômodo muito decorado, com grande riqueza de detalhes, era uma solução muito comumente usada nas pinturas dos dois grupos citados. Em seus interiores, que enfocam a intimidade das figuras no ambiente doméstico, a cena é normalmente composta com algum elemento intercalando os planos, seja uma porta, um espelho, uma janela ou uma sacada, que conduz o espectador para a cena do interior, um nicho reservado e escondido, por conter normalmente uma figura feminina, muitas vezes nua - e revelada apenas pela sensibilidade e ousadia do artista. Comparando com interiores tratados por outros artistas, a obra de Anita Malfatti é também composta a partir da observação dos detalhes da cena, com elementos decorativos, espalhados pelos tapetes, cortinas e papel de parede que fundem a figura com o ambiente na mesma atmosfera. Essa mistura de elementos e figuras na composição da cena lembra muitos trabalhos de Pierre Bonnard [Figura 32a e Figura 32b], de Henri Matisse [Figura 33] e de Vuillard [Figura 34], dentre outros, que seguiam apresentando seus trabalhos nas galerias de Paris.

                  27.            A aproximação com esses pintores não é dada apenas pela temática (os interiores tratados normalmente com uma figura, em uma cena do cotidiano), mas também pela abordagem pictórica, com a cena trabalhada a partir de massas de cores sem contorno, e com preenchimento da composição com arabescos coloridos. Essa obra foi comentada junto com a Dama de Azul nas críticas que a artista recebeu, a partir da exposição no Salão dos Independentes de 1926, e foi reproduzida em jornais e revistas. Em um dos artigos, o autor chamou a atenção para o tratamento dos detalhes e para a evocação, que está além da cópia, com a qual a artista procurou recriar a atmosfera e o ambiente.[24]

                  28.            Outra obra comentada pela crítica de arte francesa foi La Chambre Bleue [Figura 35], exposta a princípio com o título Nu, no contexto da exposição individual de Anita Malfatti, realizada na Galerie André, em novembro de 1926. A notícia dessa exposição foi passada em uma carta para Mário de Andrade:

                  29.                                                  Fiz minha exposição. Todas vivicitudes [sic] são coisas do passado. Abri no dia 20 [...] muitos amigos e desconhecidos vieram me cumprimentar. A galeria é bem simpática e bem colocada sem ser uma galeria de nomeada. Escolhi conforme podia pagar. Somente que a pessoa que se encarregara de convidar os críticos e apresenta-los, não o fez nem apareceu para o accrochage [sic] nem durante toda a exposição. [...] Só sei que diversos desses críticos começam a me visitar e escrever agora que está tudo acabado. Quando isso tudo mais os artigos deveriam ter saído com 15 dias de antecedência. Contudo vendi 2 quadros e duas aquarelas. Também um grande erro meu foi não ter tido uma boa apresentação com um prefácio. Isto eu julgava ser superficial. [...] Aprendi a tratar galerias e procurar críticos enfim toda essa parte que acho tão difícil, 10 vezes mais do que pintar telas. [...] Tive 3 visitas de 3 críticos célebres aqui de Paris.[25]

                  30.            Anita Malfatti comentava ao final da carta sobre a interessante dinâmica das relações entre críticos de arte e artistas, e como se dava a publicação de notas na imprensa sobre os trabalhos e as participações nas exposições. Algumas cartas pesquisadas no arquivo de Anita Malfatti revelam que muitas vezes o conteúdo da crítica de arte passava pelo crivo do próprio artista, pois revistas e jornais enviavam a redação inicial da nota, solicitando que o artista fizesse correções ou adicionasse informações antes da publicação, incluindo na carta as datas previstas para cada uma dessas etapas, ou seja, leitura e correção do artista, revisão e modificação pelo autor da nota e, por fim, a data e a seção em que a revista ou jornal pretendia publicá-la. Nas cartas lidas, as edições solicitavam ainda ao artista, se esse o tivesse, um ou outro “cromo” de alguma obra - uma reprodução - para ser publicada junto com o texto.[26]

                  31.            Voltando à obra La Chambre Bleue, trata-se de um nu, flagrado na intimidade do ateliê, um quarto fechado, com a modelo sentada em frente a uma janela, o rosto se dirigindo para a posição do artista ou do espectador. Anita Malfatti trabalhou o tapete e a cortina de forma semelhante à Interior de Mônaco, mas deu maior destaque à figura, no primeiro plano. A composição do nu certamente dialoga com outros nus femininos abordados em interiores, como certos nus de Henri Manguin [Figura 36a e Figura 36b], muito coloridos e ambientados em interiores ricamente decorados, ou os de André Derain, da década de 1920 [Figura 37]. Essa solução era adotada e praticada por muitos artistas do cenário europeu nesses anos, inclusive por uma artista, Clémentine-Hélène Dufau [Figura 38], que participava constantemente dos Salões “modernos” da capital, como o do Outono e o dos Independentes. Vale ressaltar que essa artista foi comentada por Anita Malfatti em uma das cartas enviadas para Mário de Andrade, na qual atualizava o amigo sobre os “nomes do momento” do cenário artístico parisiense, no que tange principalmente ao mercado de arte e valores de obras.[27] O recorte colocado no canto do quarto com a janela é muito semelhante também a um interior pintado por Matisse, mas sem a presença de uma figura ou nu [Figura 39].

                  32.            Em um dos comentários sobre a exposição de 1926, um crítico de arte francês observou esse destaque que Anita Malfatti deu à figura:

                  33.                                                  De sua primeira maneira, vigorosa, alerta, viril, ela expôs, na Galeria André, dois retratos de mulheres muito impressionantes. [...] O desenho é o cálculo exato de seu pensamento, um pensamento convicto. (Adoraríamos vê-los ornar as paredes de uma casa feita por Le Corbusier) [...] Mas dentre todas essas excelentes pinturas, devemos destacar três nus que são de um verdadeiro pintor.  Um quarto azul,[28] um tapete preto cheio de estrelas e, sobre esse tapete, uma mulher, toda carne e sensualidade, estudada com uma perspicácia à qual nada escapa - os dois outros nus, marcados por um humor profundo, levemente arcaico.[29]

                  34.            O autor provavelmente se referiu aos diversos nus realizados pela artista nesse período em vários cadernos de desenho, de uma linha precisa e sintética, estudos que provavelmente a auxiliaram para compor suas pinturas com figuras femininas.

                  35.            O motivo de mulheres no cotidiano doméstico foi também trabalhado por Anita Malfatti em situação inversa, partindo do exterior, com a figura em uma sacada, seguido por uma porta ou janela no plano intermediário, remetendo para a sala ou quarto, ao fundo. Exemplos dessa abordagem são as obras Chanson de Montmartre [Figura 40] e Mulher do Pará [Figura 41]. O enfoque é semelhante ao da figura que aparece no Interior de Mônaco, ao observar-se sua menor dimensão em comparação com o ambiente em que ela se encontra. Naquele interior a figura foi apenas sugerida ao fundo com as cores; já nas obras abordando exteriores, a figura ganhou mais detalhes, com formas estilizadas. Esse tipo de composição de figuras em uma sacada, ou no balcão, foi também muito abordada por diversos artistas do contexto francês. A uma primeira vista, a pintura de Malfatti lembra a famosa obra Le Balcon, de Manet, pelo detalhe em arabesco da sacada e pela janela em persiana, atrás das figuras.

                  36.            Um detalhe que aos poucos aparece nas composições de figuras femininas desse período e que terá continuidade em seu trabalho ao longo dos anos seguintes é a característica estilização no rosto, muito semelhante, por sinal, às estilizações que Marie Laurencin faz em algumas de suas obras. A relação com essa artista francesa, nesse “traço feminino”, foi percebida e ressaltada por Guilherme de Almeida, escritor e amigo de Anita Malfatti, em uma longa crítica de arte que escreveu sobre suas figuras femininas, no contexto da exposição individual realizada em 1929 em São Paulo, logo após o retorno da artista da França. Guilherme de Almeida diz o seguinte:

                  37.                                                  [...] também nos quadros de Anita há uma coisinha encantada que meus olhos preferem para nela se espreguiçar e se estirar mais à vontade, como numa almofada sensual. São quatro ou cinco pinturas claras, frescas, surpreendentes: é “Jenny l’ouvrière”, é “Dolly”, é a “Melindrosa”, é a “Romântica”... Não sei porque. Talvez porque são coisas que só uma mulher seria capaz de imaginar e fazer. São umas mulherzinhas bem mulherzinhas, vestidas de azul celeste ou côr-de-rosa e que parecem pintadas com carmim inocente e talco infantil. Lembrariam as bonecas de Lenei [?], bellezinhas de “nursery”, se as bonecas pudessem ter a alma que Anita pôs nas suas “all dolled” criaturinhas. Sejam parecidas com os pensamentos de Mimi Pinson, se Mimi Pinson existisse e os pensamentos tivessem forma. São os sentimentos que Marie Bash Kirtseff quis pintar para Bastien Lapage, mas não pintou: escreveu. São figurinhas que outra Marie - a Laurencin - com certeza seria capaz de inventar, se Marie Laurencin fosse, como essa sua irmã tropical, uma criatura dessas terras voluptuosas, onde há sempre em tudo “le gout exquis de moindres choses”, o cuidado ingênuo do detalhe, o luxo sensorial do acessório [...].[30]

                  38.            Também no contexto dessa exposição, Anita Malfatti explicou a um jornalista a composição de sua Mulher do Pará:

                  39.                                                  Assim chegamos perto do quadro “No Balcão”, uma mulher dos trópicos, com uma cabeleira original, um rosto cheio de serenidade, numa varanda colonial. Em volta, nenhum adorno [...]. Destacava-se entre outros quadros reproduzindo alguns nus, o que nos fez logo julgar que a pintora não participava das teorias da imoralidade na arte. E Anita, mostrando-nos “No Balcão”, explicou: Foi o quadro que fez mais sucesso em Paris, inspirei-me numa mulher que vi no Pará. Tinha eu partido do Rio de Janeiro, com destino aos Estados Unidos, quando na altura do Equador o navio sofreu desarranjo nas máquinas. Tivemos de aportar subitamente a Belém. Aí, aproveitei o tempo para dar alguns passeios pela cidade que desconhecia. E uma tarde, regressava eu a bordo quando me chamou a atenção a cabeleira de mulher que estava à varanda, tomando a fresca. O penteado era original, como pode calcular pelo quadro. Os cabelos, em grandes madeixas, subiam-lhe acima das orelhas, alargando-se no alto do crâneo. A expressão do rosto era também extraordinária. Tinha como uma serenidade expressiva. Cheguei a bordo muito impressionada. E voltei no dia seguinte, à mesma hora. Ela estava lá. Analisei-a de novo. Gravei na memória aquele rosto fora do vulgar. Tentei um esboço. Poucos dias depois o vapor partia. E logo que desembarquei, comecei o quadro. Concluído, levei-o comigo para uma exposição de Paris. Foi largamente comentado. Apreciaram-no muito. Eu dera-lhe o nome de “Femme du Pará”. Mas aqui resolvi mudar-lhe o nome. Tive receio que suposessem [sic] que era vontade de amesquinhar a minha pátria. E assim o “Femme du Pará” nacionalizou-se. E baptizei-o com um nome muito simples, de “No balcão”.[31]

                  40.            Se analisada a partir dessa narrativa, a tela pode ser entendida como a única desse período a apresentar uma temática ligada ao Brasil, apesar de visualmente não ser possível chegar a essa conclusão imediatamente, já que não há indício na obra da nacionalidade da figura na sacada, apesar do cabelo eventualmente indicar, para o olhar de um europeu, que se trata de uma figura exótica, podendo ser de qualquer lugar nos “trópicos”. O dado da nacionalidade só pode ser concluído a partir do título, desde que o interessado consiga relacionar o “Pará” com o Brasil, [32] ou que tenha ciência da nacionalidade da artista. Essa obra chamou a atenção da crítica parisiense, no contexto do Salão do Outono de 1927:

                  41.                                                  A Srta. Malfatti [...] apresenta desta vez um novo aspecto de sua originalidade e não se pode negar o caráter, de fundo claramente moderno, de certas influências que percebemos nela, notadamente na forma que é tratada A mulher do Pará, com uma silhueta pitoresca - mas um pitoresco de pintor, não um pitoresco de fato - que se destaca sobre uma cortina branca, com os desenhos em cinza muito claro. Retornamos [...] ao caminho percorrido [pela artista] entre o último envio [Salão de 1926] e as obras tão fortemente influenciadas por Matisse. E essa [observação] não é uma reprovação, pois sob essa influência, a Srta. Malfatti nos mostrou quadros que estão longe de ser insignificantes.[33]

                  42.            O crítico reafirmou a ligação da pintura de Anita Malfatti com a produção de Matisse, diálogo claramente percebido nos diversos interiores trabalhados nesse período.

                  43.            Através das obras desse período de Anita Malfatti, é possível perceber como ela foi produzindo de acordo com as referências que apontou para Mário de Andrade nas cartas trocadas, durante seu último estágio no exterior. Sobre a exposição Mulher do Pará no Salão francês, Anita Malfatti relatou a Mário de Andrade:

                  44.                                                  Tenho atualmente no Salon d’Automne [sic] “La Femme du Para” e Villa d’Este. [...] A mulherzinha do Pará foi “um tout petit succès [sic]. Penso que você gostaria muito dela. É diferente de todas as telas do Salon [sic]! Conserva porém a maneira dos meus últimos dois anos. A Villa d’Este não tem boa “eclairage[sic] - Vou começar mais dois nus e mais tarde ao menos mais 15 boas telas para por todos os meus quadros em dia prontos para expor.[34]

                  45.            Além das referências a Derain, Matisse e ao próprio Manet, esboçadas nas telas dessa etapa, Anita Malfatti demonstrou também em imagem a admiração que tinha por Cézanne. Além do Porto de Mônaco, em que procurou se aproximar do esquema de perspectiva aérea de Cézanne, fez uma abordagem da paisagem na região dos Pirineus [Figura 42], quando esteve em férias de verão acompanhada de sua família[35]. A paisagem é construída com verdes, amarelos, laranjas e cores terrosas, muito usadas por Cézanne nas abordagens do morro de Sainte-Victoire, próximo de Aix-en-Provence [Figura 43]. Além de Anita Malfatti ter utilizado a mesma paleta de cores, o próprio colorido e a disposição dos elementos, ao compor as árvores e o fundo, relembram Cézanne. O ponto de vista da artista, que parece ter fixado a paisagem estando em meio às próprias árvores, se assemelha também a algumas paisagens tratadas por Derain, no momento em que este estreitava relações com os cubistas, mas também levado pela admiração por Cézanne, com uma estilização mais acentuada no que tange às formas das árvores e à montanha, em perspectiva.

                  46.            Por esse conjunto de obras aqui analisadas, percebemos que a atividade artística de Anita Malfatti durante o período em que trabalhou na França caminhava de acordo com determinadas preferências, aos poucos reveladas para seu principal interlocutor no Brasil, Mário de Andrade. Os trabalhos com os interiores, nus e os retratos, além de apresentarem muita afinidade com determinadas tendências e artistas do contexto artístico francês, demonstram uma ligação com suas obras de períodos anteriores, quando procurou suavizar as técnicas com as quais havia se envolvido quando esteve em ambiente americano. Essa suavização estava também de acordo com o clima geral de moderação artística, em pauta no contexto europeu de pós-guerra e que atingiu a produção de diversos artistas. A constante participação de Anita Malfatti nos salões dessa década, inclusive no Salão do Outono, que funcionava com júri de avaliação das obras, indica que seus trabalhos dessa fase circulavam com facilidade naquele ambiente, reafirmando a sua adequação à produção do período, apesar de não terem o mesmo espaço nas questões em debate no contexto do modernismo brasileiro desses mesmos anos.

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[1] Profa. Dra. EACH-USP. Doutora em Artes pelo IA/ Unicamp e mestre em História da Arte pelo IFCH/Unicamp.

[2] Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade. Paris, 5 de outubro de 1924. Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP.

[3] Esse termo foi usado por Anita Malfatti, em manuscritos, entrevistas e palestras, para descrever o período em que trabalhou nos Estados Unidos.

[4] L’Exposition des Oeuvres de Mlle Annita Malfatti. Paris-Times, dez. 1926. Não assinado. Caderno de Recortes, Arquivo Anita Malfatti, IEB/USP.

[5] Além de exposições do artista e da reprodução de suas obras em revistas e jornais que circulavam no período, como o Bulletin da la Vie Artistique, veiculado pela Galeria Bernheim-Jeune, foi publicado um texto específico sobre Marquet, em 1920, pelas edições do Cahiers d’aujourd’hui, com a reprodução de alguns desenhos e paisagens.  Cf. BESSON, George. Marquet. Paris: Éditions des "Cahiers d'aujourd'hui", 1920.

[6] DENIS, Maurice. Théories 1890-1910: Du symbolisme et de Gauguin vers un nouvel ordre classique. Paris: Rouart et J. Vatelin Éditions, [1912] 1920.

[7] DENIS, Maurice. Nouvelles Théories - Sur l’art moderne, sur l’art sacré. Paris: Rouart et J. Vatelin Éditions, 1922.

[8] Um dos resultados desse interesse pela questão religiosa é a obra Ressurreição de Lázaro, hoje no Museu de Arte Sacra de São Paulo. Essa obra foi comentada da seguinte forma por Mário de Andrade: “[...] é uma obra que desperta o entusiasmo e a reflexão, um dos momentos culminantes da pintura contemporânea do Brasil. E vai ser um gozo para todos quantos detestam pintura ‘futurista’ e que diante desse quadro terão ensejo de exclamar que a ilustre pintora... ‘voltou para trás’. Com efeito, se trata duma obra perfeitamente calma, onde a pesquisa técnica já não é o verdadeiro ‘assunto’ da tela. [...] Pois no movimento modernista esse fenômeno também se deu. A técnica se tornou o objeto real das pesquisas dos artistas e da observação dos espectadores. Isso se deu com Picasso, com Léger, com Franz Marc, com Boccioni, com Anita Malfatti, com quase todos” (Cf. ANDRADE, Mário de. Anita Malfatti I. Diário Nacional, 21 de novembro de 1928). Em uma crítica seguinte, Mário de Andrade ampliou a sua análise: “Na variedade de agora só uma vez Anita Malfatti conseguiu a intensidade expressiva de antes: na figura do Lazaro do quadro n. 1 sutil que consegue atingir o valor plástico e psicológico dos Primitivos, fugindo sistematicamente dos processos de composição, de coloração, de figuração mesmo dos Primitivos; nesse quadro a figura de Lázaro saindo da morte, é duma intensidade dramática magnífica. Anita Malfatti conseguiu dar para ela um silêncio milagroso: figura viva que traz ainda nos próprios olhos olhando, a mudez sem ridículo do corpo morto. É admirável. Obra considerável.” (ANDRADE, Mário de. Anita Malfatti, Diário Nacional, São Paulo, 5 de março de 1929).

[9] Le Crapouillot, Paris, 1 nov. 1924.

[10] Cf. BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Ed. 34, Edusp, 2006, p. 331. Essa informação é dada pela autora na catalogação da obra de Anita Malfatti. Encontramos algumas obras dessa artista [Nota 10, imagem 1 e Nota 10, imagem 2] e pouca informação biográfica ao seu respeito. Ao que parece, foi esposa de Micao Kono, também artista, tendo o casal morado na França durante os anos de 1920. Algumas obras de Kono [Nota 10, imagem 3 e Nota 10, imagem 4] demonstram certas afinidades com as obras de Marie Laurencin [Nota 10, imagem 5 e Nota 10, imagem 6] e Tsuguharu Foujita [Nota 10, imagem 7 e Nota 10, imagem 8].

[11] BATISTA, Marta Rossetti. Os artistas brasileiros na Escola de Paris. Tese de doutorado, USP, 1987, p. 289, 290.

[12] Cf. VERNASCHI, Elvira. Gomide. São Paulo: MWM, Edusp, 1989.

[13] Cf. ALVARADO, Daysi Peccinini de. Brecheret: a linguagem das formas. São Paulo: Instituto Brecheret, 2004; Brecheret e a Escola de Paris: Trânsitos em descompasso, o triênio de Sucesso instigante à revisão. XXX Colóquio do CBHA, 2010, p. 3,4; Cf. BATISTA, Marta Rossetti. Tocadora de Guitarra de Victor Brecheret. In, PALHARES, Taisa (org.) Arte Brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, Cosac Naify, 2009, p 146-155.

[14] De acordo com o catálogo organizado por Rossetti Batista, uma sobrinha de Freitas Valle teria posado fantasiada para a obra, que foi posteriormente adquirida pelo Senador, responsável pelo Pensionato Artístico de São Paulo.

[15] Cf. SULLIVAN, Michael. The meeting of Eastern and Western Art. Univ. of Califórnia Press, 1989.

[16] De acordo com Michael Sullivan, essa definição de japonisme, está ligada ao estudo das técnicas artísticas e da questão puramente plástica da arte japonesa, enquanto japanaiserie se refere mais à criação de um cenário na pintura, com a utilização de objetos e roupas, dentre outros acessórios, que remetem à cultura japonesa. Cf. SULLIVAN, Michael. Op. Cit., p. 209.

[17] Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 4 de novembro de 1925. Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP.

[18] WARNOD, André. Au Salon des Indépendants: Ottman. Comoedia - Seção Beaux-Arts. 28 mar. 1926. Caderno de Recortes, Arquivo AM, IEB/USP. Livre Tradução.

[19] Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, Florença, 21 de junho de 1927. Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP.

[20] Anita Malfatti fez uma primeira visita à Itália, no contexto desse estágio, em 1924. Dessa visita, relatou da seguinte forma a sua admiração pela arte italiana, antecipando que queria fazer a cópia da Madonna do Magnificat: “Como deves compreender estou estourando de novidades, de ‘afrescos’ de estátuas e mosaicos do 4.o e 5.o século, de pequenos ‘chiostros’ [sic] e fontes cheias de chafarizes e de vilas e parques e frutas e ruelas cheias de escadas cheias de moleques e mulheres a cantar... eis a Itália - (calor!!!) [...]. Amanhã vou à Villa d’Este considerada a mais bela da Europa pelas 100 fontes que contêm. [...] Não morri pela Capela Sistina e decididamente não gostei do ‘Giudizio Finale’ de Michelangelo; quero dizer que gostei muito mais dos outros afrescos todos laterais. Que são de diversos grandes artistas. O conjunto é verdadeiramente fantástico, mas acho que a pintura de Michelangelo parece mesmo um tour-de-force feito por um escultor maravilhoso. O ‘Mosé’ é extraordinário como também o Discobulo me deixou imensamente comovida o que para mim foi uma enorme surpresa. Em Florença achei a pintura que tanto procurava. Tanto andei, tanto vi, mas posso dizer agora que vi a harmonia perfeita - achei-a nos afrescos do Perugino (Tríptico) [sic] no Cenaculo do Guirlandaio na Capella Medicea afrescada pelo Benozzo Gozzali e nos mosaicos das igrejas antigas maravilhas a mais maravilhas. Vivia a perder o fôlego em Florença. Todo o Beato Angélico, que cores Mário, aquilo é que é cor?!!!! Paulo Ucello, todo Botticelli; Certamente hei de um dia copiar a Madonna do Magnificat. A mais maravilhosa para mim. Cimabue e Giotto o grande, ai, preciso calar-me, sinto de entrar no verdadeiro mistério da pintura - Não sei como pintarei quando voltar mas sinto o espírito muito mais fino e mais apto ao equilíbrio das massas a poder compor com mais riqueza. [...] Gosto muito do Derain, muito, sossegue.” Carta de Anita Malfatti para Mário de Andrade, Roma, 19 de agosto de 1924. Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP. No ano em que fez de fato a cópia, comentou da seguinte forma: “Se vc [sic] soubesse o que estou fazendo aqui! Copiando a Madonna do Magnificat de Botticelii. Trabalho das três às sete da tarde com a galeria fechada, sozinha, sozinha. Nos primeiros dias fiquei acanhada com um medão que Botticelli me visse a fazer gafes diante da “Magnífica”. E vc que não vem ver este supremo milagre de pintura humana.” Carta de Anita Malfatti para Mário de Andrade, Florença, 21 de junho de 1927.

[21] Sem especificação de autor, [Revue [?] Demeure [?], manuscrito por Anita Malfatti], 9 de maio de 1926. Caderno de Recortes, Arquivo Anita Malfatti, IEB-USP.

[22] Anita Malfatti. Revue Moderne, 15 de maio de 1926.

[23] Anita Malfatti. Les artistes d’Aujourd’hui, 15 de abril de 1926.

[24] Idem.

[25] Carta de Anita Malfatti a Mário de Andrade, 23 de dezembro de 1926. Arquivo Mário de Andrade, IEB/USP.

[26] Carta da edição de Les Artistes d’Aujourd’hui para Anita Malfatti, Paris, 8 fev. 1928. Arquivo Anita Malfatti, IEB-USP; Carta da edição de La Revue Moderne para Anita Malfatti, Paris, 11 fev. 1928. Arquivo Anita Malfatti, IEB-USP.

[27] Carta de Anita Malfatti para Mário de Andrade, 17 de novembro de 1927. Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP.

[28] O autor menciona “Une chambre bleue”, o que provavelmente inspirou a artista para trocar o nome da obra de Nu para La chambre bleue.

[29] F. M. Annita Malfatti. Les Arts, La Peinture. 19 jan. 1927. Com reprodução do Nu. Cadernos de Recortes, Arquivo AM, IEB/USP.

[30] ALMEIDA, Guilherme de. Anita Malfatti. O Estado de S. Paulo, Seção “Sociedade”, 5 fev. 1929. Assinado Guy.

[31] Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti: os princípios estéticos do modernismo nas telas de uma pintora patrícia. Diário nacional, 2 fev. 1929. A artista se confundiu dizendo que a viagem era para os Estados Unidos. De acordo com a descrição que fez, “logo que desembarquei comecei o quadro”, e sendo a obra realizada em Paris, certamente se referia à viagem para França.

[32] Na França, essa obra foi exposta com o título La Femme du Para.

[33] Sem título, não assinado. Revue de l’Amerique Latine, 1 dez. 1929. Caderno de Recortes, Arquivo Anita Malfatti, IEB/USP. Livre tradução.

[34] Carta de Anita Malfatti para Mário de Andrade, Paris, 17 de novembro de 1927. Cabe ressaltar que na época dessa carta Mário de Andrade havia feito uma viagem ao Norte do Brasil, tendo mandado notícias sobre seu retorno a São Paulo para Anita Malfatti, em cartas de 26 de outubro de 1927 e 26 de dezembro de 1927.

[35] Cartas de Anita Malfatti para Mário de Andrade, Lourdes, 4 de setembro de 1926 e Cauterets, 19 de setembro de 1926. Arquivo Mário de Andrade, IEB-USP.