Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Cristiane Marques de Souza

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm>.

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LOBATO, Monteiro. Pedro Alexandrino. Revista do Brasil, São Paulo, ano III, fev. 1918, n. 26, p.118-130 [Texto com grafia atualizada].

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O gênero de pintura a que se dedicou Pedro Alexandrino é um dos mais ingratos. Força o pintor a extrair poesia justamente dos materiais, de si mesmos aptos a sugerir-nos impressões poéticas. Uma jarra, um prato, um copo dificilmente despertam outras idéias que não as de utilidades decorrentes do uso caseiro que fazemos desses objetos.

Em face de uma talhada de melão os olhos recebem a sensação da cor pura e fresca e o paladar sente irritarem-se-lhes as papilas gustativas. Reações puramente fisiológicas que se não associam no cérebro de modo a criar a emoção estética, fim supremo da arte.

Não obstante tais percalços, se o pintor é homem de talento e o trás a serviço de uma sensibilidade de escol, é possível obterem-se efeitos emotivos com os mais prosaicos objetos caseiros. A sua agremiação internacional, uma sábia escolha dos mais adequados ao tema e uma técnica larga, impecável, constituem os segredos desta arte. Um exemplo: se o pintor mete na tela uma garrafa nova em folha ou em vaso chia ao contato com a água, poucas probabilidades têm de guindar-nos o espírito a cima de idéias correlatas à indústria vidreira ou ao comercio barato de louça.

Mas se ao invés disso escolhe uma garrafa típica de algum vinho famoso recamada de vetustíssima poeira de adega, sugere-nos logo uma fieira de idéias consociadas a reminiscências de festas idas onde se bebeu tal vinho, ou a saudade de fatos conseqüentes; a poeira incrustada abre campos a revôos da imaginativa passado afora - e está criado em nosso espírito a emoção estática. Assim os vasos antigos, móveis d'antanho, velhos estofados, tudo que relembre épocas extintas da vida humana; este copo veneziano, envazado como funil, feito à mão, de um vidro impuro, produto de uma arte ingênua ainda no nascedouro: - quantas idéias nos semeia no cérebro? Aquele singelo candeeiro de azeite de cinco bicos, - quem ao vê-lo na tela não se sente arrastado ao arrepio dos séculos e não devaneia cenas do viver humano que ele outrora iluminou com sua luz bruxuleante?

Um quadro de natureza morta assim composto, com essa preocupação de um efeito que transcenda a materialidade dos sentidos, tem elementos para lançar-se as às altas regiões da grande pintura figurativa ou paisagista, porque como estas sugere estados da alma eivados dessa coisa que chamamos emoção estética.

Pedro Alexandrino Borges é no Brasil o pintor principal dessa arte. É mestre indiscutido e indiscutível. Na parte puramente técnica alcançou uma virtuosidade rara - consagrada por voz unânime como sem rival aqui e parcieias das mais afamadas nos velhos centros artísticos. O que sai do seu pincel com nota de definitivo desafia a lente escabichadora de senões dos mais exigentes críticos. No que diz respeito aos fundos não há restrição a lhe fazer. Todo quadro exige um certo fundo - e aquele só. É um segredo do mestre achá-lo a esse, a precisamente esse que é único e insubstituível pela consonância perfeita com o tema desenvolvido e do qual advêm o ambiente de harmonia, que é grande parte no encanto da tela. Pedro Alexandrino possui esse segredo.

Nos toques de luz, na gradação da resistência que os objetos oferecem aos raios luminosos, já os repelindo, se são de metal, já os absorvendo se têm a composição balofa dos estofados, há uma infinita ciência cujo senhoreamento só longos anos de pacientes estudos dão. Ele tem.

Quem visita o seu ateliê compreende o porque e o como de sua tonalidade. Há ali um ambiente que é o de todas as suas telas. As paredes revestidas de quadros e estudos, velhos movéis de arte por todos os lados, cristais e vidros antigos, panóplias, alabardas, acha de armas, punhais, sabres japoneses, louça de cem anos, bules, jarras, aquecedores e uma aluvião de objetos de metal, cobre ou latão, desencavados das ruínas dos séculos, estofados raros e quanta coisa mais a sua paciente faina de colecionador ajuntou ali em anos de ronda às lojas arte e a ferros-velhos, criam um quadro magnífico de luz esbatida dentro do qual passa ele o seu tempo. Nesse ambiente capricioso onde tudo fala ao sentimento artístico, onde ele respeita até a poeira que levemente patina as queridas trouvailles o pintor subconscientemente adquire a maestria do tom sedutor que dá aos seus trabalhos.

Sua obra vastíssima é pura de truques de preocupações mesquinhas de escola; é honesta e sincera como poucas.

Pedro Alexandrino nasceu em São Paulo, no ano de 1862. Aos 11 anos de idade acentuou-se-lhe a vocação e já por todos os meios procurava aproximar-se dos artistas da época. Levado por esta impulsão ingênua tomou as primeiras lições de um francês, Brandier, que viera ao Brasil comissionado para trabalhar na decoração da matriz de Campinas. Depois de cinco anos de estudo, passou a trabalhar com outro decorador francês, Estiveau, por espaço de dois anos. Em terceiro entrou para a oficina de José Lucas Medeiros ganhando uma pataca diária, colaborou com inúmeras decorações de casas e igrejas, entre elas a casa Aguiar e Barros na Luz e a igreja de Santa Tereza que por essa época se restaurava.

Mais tarde freqüentou o atelier de outro português, Adriano Ferreira Pinto, já então ganhando dez mil réis por dia; entre os trabalhos desse tempo, cita-se a decoração do palacete do comendador Cantinho e de uma residência episcopal no Braz. Este Adriano, seduzido por muitas qualidades raras que notava em seu auxiliar, deliberou-se a mandá-lo para a Europa a estudos, - o sonho dourado do jovem artista. Cuidava-se disso com urgência quando maus fados obstaram o intento: Ferreira em rixa com um subalterno recebe na cabeça uma pancada duma acha de Campeche e morre. Malograda essa primeira tentativa para o passo decisivo de sua vida como artista, continuou Pedro Alexandrino na tarefa modesta de decorador a serviço de outro empreiteiro português, José Carreira. Também a esse impressionou a vocação vigorosa do moço, e tanto, que encampando as idéias do falecido Ferreira,deu-lhe ordem de aprestar-se para ir a sua custa freqüentar academias européias. Realizava-se o sonho desta vez? A fatalidade interveio novamente: o protetor cai na Várzea do Carmo espetado a canivete pelo cocheiro Justino. Resigna-se Alexandrino, e reenceta o viver de até ali, agora sob a direção de Joaquim de Andrade com quem decora, entre outros o Palácio do Marques de Três Rios, hoje escola politécnica. Entretanto as manifestações continuadas de um talento fora do comum continuam a chamar sobre ele as atenções dos homens de vista larga. Entre estes estava o Comendador Martins Francisco de Almeida, tesoureiro do Santuário de Pirapora. Desta vez iria à Europa. Iria... Se a desastrosa queda de cavalo não viesse, pela terceira vez, com a morte do terceiro protetor, opor o veto do destino. Alexandrino já tinha medo de ver-se protegido: era isso signo de desastre.

Acabrunhado com a má sorte retornou ao trilho costumeiro, agora com Boaventura da Cruz; neste período trabalhou no plafond da Igreja de Pirapora. Em seguida emancipou-se da tutela dos empreiteiros passando a viver e produzir por conta própria; decoração de interiores, retratos, retoques de velhos painéis foram o labor destes anos. Retocou a pintura da Igreja do Carmo e compôs uma virgem que ainda lá existe. Estava nisto quando recebeu pensão do Estado para cursar a Escola do Rio. Lá estudou durante dois anos sob a direção do professor Medeiros e, ao cabo, retornou à São Paulo onde trava conhecimento com Almeida Júnior. Juntos trabalham por oito anos. Foi quando pintou os primeiros quadros de natureza morta. Surpreendeu-se ao vê-los Almeida Junior e disse-lhe como quem sente uma revelação: não pinta senão isto, é a tua arte. Alexandrino deu tento ao conselho, persistiu no gênero e breve a consagração chegou sob a forma de admiração geral e incitamento de louvores pela imprensa e, por fim, de pensionamento pelo Estado de um curso na Europa. Partiu em 1896.

Na França cursou as aulas de Chretien e as de Vollon até a morte deste; passou depois à academia de Cormon e rematou os sete anos de pensionato na Escola Comunal de Quineleau. Desde aí tem sempre vivido em París, exclusivamente do produto de sua arte. Recebido seis vezes no Salon, teve logo bem cotada a sua pintura e hoje se orgulha de ter numerosíssimas telas espalhadas pela França inteira, ornamentado fidalgas vivendas e de ver tantas outras transporem as fronteiras, levando o nome de Mr. Borgés a vários outros países de intensa cultura artística.

Na parte anedótica de sua vida há um caso digno de se menção - lance de romance romântico escrito pela mão do acaso.

Logo que Alexandre pisou na França e depois da tonteira causada pelos tesouros da arte européia na alma de um filho deste sertão da América, tomou-o grande admiração pela arte de Antonio Vollon, membro do Instituto de França e mestre de natureza morta então no apogeu. Pleiteou incluir-se no número de seus discípulos, mas viu logo que era isso um sonho tantas dificuldades havia. Vollon era-lhe inacessível. Resignou-se guardando sempre consigo a secreta ambição. Com a pensão recebida de São Paulo vivia ele em transes permanentes, sem nenhuma garantia de futuro.

Certa vez, em risco de ter a pensão podada pelo congresso, já em fim de ano e ameaçado de ir para rua dum momento para outro teve os azares ainda mais amargurados por moléstias de sua esposa. Resolveu, então, mudar-se para cômodos mais modestos e deu ordens ao porteiro para espetar na porta a placa do a Louer. Começam a entrar pretendentes que examinam os aposentos, indagam e partem. Entre estes aparecem um velho de feição austera. Inspeciona o ateliê e depois fixa a atenção nos quadros demoradamente, louvando, sobretudo, os metais, com palavras de entendido. No dia imediato volta. Examina tudo de novo e adquire uma ou duas telas. Embaixo informa-se do concierge a respeito do pintor, e comenta os informe scom um sentido - Pauvre garçon! Dois dias depois surge novamente o misterioso velho.

- Venho fazer-lhe uma proposta...

- Mas a quem tenho a honro de falar? Pergunta, intrigado, Alexandrino.

- Antoine Vollon.

O nosso pintor sente na espinha o frisson dos grandes momentos e goza um instante de vitória quando o membro do Instituto, proseguindo, diz a que vem:

- Tenho um filho meio amalucado e procuro um filho mais velho a quem ensine a minha arte. Quer ser esse filho?

Dataram ali desse lance romântico do destino as relações cordialíssimas que ligaram os dois artistas cuja arte era profundamente afim. Vollon foi mestre e amigo fraternal até o fim da vida e a ele legou muitos segredos de sua grande técnica.

Pedro Alexandrino está representado na Pinacoteca do Estado por várias telas magníficas das que mais honram aquele início de museu que a cuscuvilhice de certos paredros cubóides de estética política, cegos natos em assuntos de arte, atravanca de pinóias inconcebíveis adquiridos por preços fantásticos. Há lá um peru e umas ostras que valem dez gazuas de Salinas e outros tantos Amisanis cavatórios. Nada custaram ao Estado essas telas e por isso lá estão; se fossem orçadas por modesto que fosse o preço, lá não estariam. Nunca há verba para adquirir arte honesta afim de que sempre haja verba grossa para o malabarismo negocista da arte pá de cabra.

Numa palavra resume-se a filosofia de Pedro Alexandrino: como homem é paulista vieux jeu, plasmado nesse molde que está a esborcinar-se por injunção da avalanche de condes que foram engraxates na véspera; como artista lembra um anacoreta medievo a cultivar sua arte com elevo místico, o respeito, a honestidade e a fé de quem vê nela a religião verdadeira.

MONTEIRO LOBATO

Ilustrações Originais

PEDRO ALEXANDRINO, por José Wasth Rodrigues, p.118.

UM ASPECTO DO “ATELIER”, p.119.

OUTRO ASPECTO DO “ATELIER”, p.120.

NATUREZA MORTA, p.123.

NATUREZA MORTA, p.124.

NATUREZA MORTA, p.127.

NATUREZA MORTA, p.128.