Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Alice Damasceno, Cristiane Souza de Oliveira e Daniel Belion

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm>.

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LOBATO, MONTEIRO. Resenha do Mês. Movimento Artístico. Helios Seelinger. Revista do Brasil, São Paulo, ano II, set. 1917, n. 21, p.105-108 [Texto com grafia atualizada].

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Helios Seelinger expõe novamente em São Paulo. Seus quadros conservam a feição antiga, sintoma de que a sua arte é sincera, filha legítima de um temperamento, e não exotismo burlesco tendido a bocquiabrir os pascácios. Pinta o que vê. Entretanto, como vê, introspectivamente, com os olhos da imaginação todo um mundo fantasmagórico de fadaria e diabolismo, o que sai do seu pincel são paisagens e cenas dessa terra de sonho, de mistério, de luar e duendes.

Helios é uma figura a parte em nosso mundinho artístico. Desgarra desassombradamente de pleno naturalismo copista, cuja expressão suprema é o maravilhoso fotocrómico Baptista da Costa, e paira por intermundos de sonho em delíquios de poéticos arroubos. Abrirá um capítulo em separado na história da pintura brasileira, e neste capítulo ficará sozinho como Próspero na sua ilha, rodeado de toda a fauna do maravilhoso só visível para quem traz na alma um sexto sentido em gérmem. São estes os companheiros de Helios, os duendes, Ariel, feiticeiras, silfos, fantasmas, centauros, egipans, sereias, ninfas, a bicharia caprípede da Grécia engalhada no inferno, tudo quanto não existe, é mentira, é fumo, é loucura, e, não obstante é todo encantado, perfume e poesia da vida. Eterna crença histérica que é esta humanidade!

Hélio é um intuspectivo. Recolhe-se para dentro de si, como o caramujo, e de lá extrai as telas visualizadas pela imaginação. Não depende dos olhos da cara para enxergar. É uma espécie rara. O comum dos artistas reduz a pintura a plantar-se o broxante em face dum cacho de bananas, três maçãs e meio melão. Pintado o quadro come o pintor o modelo, e vai para os cafés dissertar sobre o prerafaelismo, com a eloqüência interrompida apenas pelos borborygmas advindos dos modelos em digestão. Helios é um noturno. Tudo quanto expõe revela este pendor. É natural: Nada propicia menos a imaginativa do que a plena luz do sol, crua até a estupidez. Só a noite, - quando no alto a lua substitui o olho d’Apolo, como a lâmpada substitui a fogueira incendiária, e a sua luz apaga na terra a cor, e cria a sombra, - só a noite sabe abrir nestas almas aquela maravilhosa flor de cactus que só desabrocha ao luar, para fechar-se de novo mal o galo anuncia a aurora.

Parente de Chopin no sentimento da poesia, irmão de Poe, de Hogarth e de todo o medievalismo na visualização do macabro, alma germânica, nibelunguica, desgarrada na feira livre da modernidade naturalista, Seelinger, pintor de sonhos, é uma curiosíssima individualidade artística, cujo estudo apaixona. Merece a sua exposição na capital artística desça de uns certos tamancos que ela supõe sandálias orientais bordadas a ouro, desasnise-se da frevalice pacóvia, e vá travar conhecimento com um artista muito superior a inefável Zago, o vila-mariânico Rodin de São Paulo, O’, Cotia e adjacências. Do que Helios expõe, muita coisa, e a melhor, prejudica-se pela exigüidade das dimensões. São telas que em ampliação ganhariam imenso. Não obstante, concentrou nelas o pintor o máximo possível de poesia, de... desse “quid” indefinível que é o segredo perturbador da obra d'arte.

Há muito sonho e mistério, muito encanto no “Caminho do sonho”, no “Noturno de Chopin”, na “Salomé”, nas caravelas de panos bojudos, a todo o vento, por encapelados mares a fora. Há ainda muito talento nas menores coisas e muito estudo, estudo sério e aturado da natureza real, que é a base de todo irrealismo em arte. Se São Paulo deixar as moscas a exposição de Helios Seelinger, isto só deporá contra São Paulo. Porque tudo ali merece ficar.

MONTEIRO LOBATO

Ilustrações Originais

H. Seelinger - Caravela, p.105.

H. Seelinger - Cavalos marinhos, p.106.

H. Seelinger - Paisagem, p.106.

H. Seelinger - Sereia, p.107.