Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Alice Damasceno, Cristiane Souza de Oliveira e Daniel Belion

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm>.

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N.. Resenha do Mês. Movimento Artístico. Exposição Chambelland. Revista do Brasil, São Paulo, ano II, dez. 1917, n. 24, p.541-544 [Texto com grafia atualizada].

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O mês de Dezembro ficou assinalado no movimento artístico de São Paulo, pela exposição do pintor brasileiro Carlos Chambelland. Foi a primeira vez que o jovem artista se pôs em contato com o público da capital. Desse encontro houve recíproca vantagem: o artista confirmou facilmente a reputação que o precedia e o público teve a oportunidade de contemplar uma das mais formosas coleções de tela que o pintor aqui tenha apresentado.

Os quadros do senhor Chambelland interessam logo pela sinceridade que domina toda sua obra e a tornam extremamente simpático. Chambelland cujo apelido de família parece denunciar origem francesa, é também um pintor francês pela escola sóbria e discreta, rica de nuances e pela de harmonia. Não quer isto dizer que ele não saiba interpretar a natureza do Brasil e não a sinta como o melhor dos brasileiros. Há na sua exposição trechos de nossa paisagem reproduzidos com rara felicidade; percebe-se, porém, que o artista como que procura atenuar através de uma fatura delicada e fina e de um estilo polido e aristocrático, os aspectos selvagens e, às vezes, agressivos da nossa natureza. Aliás, na própria escolha dos assuntos já o vemos buscar de preferência os pontos em que a paisagem é mais suave e até mais pobre, os sítios tranqüilos e desolados. Repugnam a este artista todas as violências, quer na vida, quer na natureza, ou na interpretação de ambas. Nada dos arrojos coloristas dos espanhóis, nem das cenas dramáticas tão ao sabor dos italianos, nem os fortes contrastes de luz e os rigorosos toques de certos impressionistas. A pintura de Chambelland desenvolve-se tão calmamente no desdobramento da sua extensa gama cromática, que seria puramente acadêmica se a não marcasse a nota pessoal do seu temperamento e a não envolvesse uma doce e melancólica poesia, cuja emoção não pode fugir o observador dotado de algum senso estético.

Nas suas numerosas paisagens (algumas das quais vão reproduzidas nesta revista) há trabalhos dignos de todo o elogio pelo seu impecável desenho, pela beleza de cor e pela fatura que revela perfeita segurança técnica. Uma delas - Dia indeciso - deu um corte admirável, está manchada com raro vigor e, embora de pequenas dimensões, oferece, graças a excelente disposição dos planos, a ampla perspectiva de uma vista panorâmica.

A exposição Chambelland não é rica em figura. Das poucas existentes, apenas duas interessam particularmente: um pequenino estudo de ar livre (cabeça de menina num fundo de folhagens) pequenino mas precioso pela largueza e segurança de execução e pela exata distribuição de luz, e o seu grande quadro “Anchieta”. Neste encontramos todas as qualidades que tanto recomendam o talentoso artista patrício; mas, parece-nos falta-lhe alguma coisa para que possamos compreender integralmente a intenção do autor.

Segundo a descrição impressa que corria na exposição, o pintor quis reproduzir na tela o apóstolo do Brasil quando escrevia na areia das nossas praias o seu famoso poema à Virgem.

O sr. Chambelland na composição de seu quadro apresenta-nos o fundador de São Paulo na atitude de quem procura reter na memória a estrofe escrita na areia. De pé, na praia, Anchieta tem os braços cruzados; numa das mãos segura a vara com que desenhou os caracteres na areia e na outra ampara o rosto cuja expressão se concentra na leitura dos versos.

Estaria o trabalho completo como ilustração da obra que nos narrasse este episódio. Mas, para que o quadro falasse por si só, seriam necessários mais espírito sintético e poder de emoção mais intenso, que nos transportassem à época de misticismo e de fé em que viveram os catequistas do estofo de Anchieta e nos fizesse penetrar um pouco na psicologia dessa extraordinária figura de nossa história. Não se lhe levaria a mal até, ao pintor, se ele fizesse participar um pouco dessa preocupação, o próprio ambiente em que colocou a personagem. É claro que não lhe pediríamos desse as nossas luminosas praias a tristeza das praias da Bretanha. Mas seria essa uma liberdade perfeitamente aceitável, que tiraria a composição o seu caráter simplesmente anedótico, dando-lhe a feição sintética de uma evocação da esplêndida figura do fundador de Piratininga e da sua obra incomparável.

Devemos aceitá-lo, porém, como um belo estudo para este grandioso quadro que o talentoso artista certamente ainda fará.

O êxito artístico da exposição Chambelland foi grande e merecido. Ela é a obra distinta e encantadora de um pintor de irrepreensível probidade artística. - N.

Ilustrações Originais

Chambelland: ANCHIETA, p.543.

Chambelland: SOL DA TARDE, p.544 .

Chambelland: DIA TRISTE, p.544.

Chambelland: PAU D’ALHO, p.544.