Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte

transcrição de Sandrinni Lovera

VALLE, Arthur (org.). Revista do Brasil (1916-1918) - Artigos e Críticas de Arte. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n.2, abr. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil.htm>.

*     *     *

N. Resenha do Mês. Belas Artes. Pintura, Revista do Brasil, São Paulo, ano I, mar. 1916, n. 3, p.333-337 [Texto com grafia atualizada].

*

Entre o atual número da Revista do Brasil e o que o precedeu, nada menos do que cinco pintores se apresentaram ao público de São Paulo, simultaneamente, em três exposições: Lucílio e Gerogina Albuquerque, Dario e Mario Barbosa e Levino Fanzeres.

Lucílio de Albuquerque, professor da Escola Nacional de Belas Artes, é um dos mais reputados pintores brasileiros. Antigo aluno e prêmio de viagem daquela escola, ao regressar da Europa acerca de dez anos, fez em São Paulo uma bela exposição, em que figurava o seu grande quadro “O despertar de Ícaro”, hoje pertencente a galeria Nacional. Depois compareceu também às nossas exposições de Belas Artes, infelizmente interrompidas pela nossa situação econômica financeira do pais. O seu reaparecimento foi um brilhante triunfo artístico. Lucílio, de então para cá, progrediu bastante e chegou a um  apuro tal de técnica, que o pincel é, nas suas mãos, um instrumento geralmente dócil e obediente ao seu pensamento. Por isso, um dos seus últimos trabalhos refletem admiravelmente todas as nuances da sua fina sensibilidade artística; assim, as suas mais recentes paisagens acusam uma  fatura de mestre e possuem um forte poder emotivo, graças a variedade e riqueza dos meios de expressão do artista, que consegue transmitir-lhes toda a intensidade do seu temperamento poético. Têm, em geral, uma feição melancólica, porque as  tendências do pintor levam-no a escolher assuntos dessa natureza, sítios isolados e tranqüilos, trechos da mata silenciosa e cheia de mistério, cantos de rio de águas espelhantes, curvas de caminhos pouco freqüentados, etc.; mas, as vezes , como no “Parthenon”( paisagem do Rio Grande) o sol brilha forte sobre o casario da cidade, o céu é luminoso e uma viva nota de alegria realve toda a paisagem. Estes aspectos não são comuns na sua obra; em toda ela, porém as mesmas qualidades aprecem denunciando o artista no corte da paisagem, na escolha da hora, na intensa cor local e na expressão geral do quadro. Tanto na paisagem como na figura, a obra deste talentoso artista tem a solidez das construções bem alicerçadas, porque Lucílio desenha magistralmente. Não fosse ele o autor do “Perfil” e “Ternura”, os dois excelentes desenhos da exposição de que tratamos, reveladores ambos da ductilidade do seu traço. O primeiro, em que a elegância do modelo rivaliza com a da fatura, ágil, de uma gracilidade aristocrática e senhoril na simplicidade das suas linhas nervosas e finas, mas vigorosas. O outro, uma jovem mãe que aconchega ao seio o filho adormecido, tem os traço flexuosos, envolventes e largos, toda ternura de uma carícia materna.

Dois trabalhos dessa exposição conquistaram, porém, para Lucilio de Albuquerque a grande admiração dos amadores de São Paulo: “Cismares” e “Mãe Preta”. Em “Cismares” uma bela figura de mulher, reclinada numa rede, ao canto de um jardim, apóia a cabeça no braço direito em flexão, enquanto o braço esquerdo estendido se balança com o movimento da rede; o corpo da mulher, no abandono de quem projeta muito longe o pensamento que os olhos procuram acompanhar, verga a rede fortemente esticada nos ganchos . Deste assunto tão simples fez Lucílio um quadro encantador pelo sentimento, pela harmonia das linhas e das cores, numa fatura excelente em que a atmosfera do ar livre esta perfeitamente caracterizada . “Mãe Preta” , de que estampamos em outro lugar uma reprodução [cf. Imagem], é um quadro de museu. Uma preta, assentada ao chão, amamenta uma criança branca, e enquanto esta lhe suga o seio tolido, o filho está ao lado deitado, e recebe da mãe um olhar prolongado e compassivo. Nesta cena, perfeitamente natural, quase um aspecto trivial da nossa vida, soube Lucílio por uma tal simplicidade de execução, numa tão intensa expressão de pensamento, e um tão forte espírito de síntese, que a transformou num quadro simbólico na dedicação da raça negra, na feliz evocação do tocante sacrifício das nossas “Mamas-pretas”, cujo afeto materno conseguia dividir-se entre filho do branco e a sua criatura. Para isso muito contribuiu a sobriedade quase austera que distingue a sua maneira, sobriedade que vamos encontrar ainda no excelente retrato de senhora, mas aqui temperado por uma nota de elegância e vivacidade exigidas pelo gênero e que o artista conseguiu dar-lhe, revelando assim a maleabilidade do seu talento e da sua técnica.

D. Georgina de Albuquerque, conjuntamente com seu ilustre esposo, diversos trabalhos de sua lavra. É uma pintora que progride sempre e embora convivendo com um mestre, mantem a sua individualidade. Nesta exposição apresenta algumas cabeças de estudo muito felizes, um excelente estudo de ar livre, um “interior” muito interessante, quer como composição quer como fatura, e um soberba paisagem “Canto do Rio”, que lhe dá o direito de figurar entre os nossos melhores paisagistas.

Dario e Mário Barbosa, dois moços paulistas, apresentam cerca de trezentas telas. Muitas podiam ser excluídas da exposição com vantagem para os artistas. Nas que ficassem reconher-se-iam , sem favor, qualidades muito apreciáveis de técnica - segurança, largueza - dignas de servir a concepções menos banais e de transmitir as vibrações de temperamentos mais emotivos. É de esperar que os dois pintores, tão dedicados a sua arte, nos dêem ainda e em breve, alguns trabalhos em que o sentimento esteja ao par da técnica. Talvez o contato com a terra da pátria, de que andam há tanto tempo arredados, lhes desperte a faculdade emotiva e lhes afine a sensibilidade, dando a obra de ambos uma expressão mais vigorosa da individualidade de cada um. O conhecimento que ambos demonstram do “métier”, já foi consagrado pelo “Salon des Artistes Français” , que lhes abriu as portas a alguns trabalhos , e nessa mesma exposição esta amplamente documentado em varias telas originais e nas magníficas copias de Murillo e Troyon.

O quinto expositor é um prêmio de viagem da Escola Nacional de Belas Artes - Levino Fanzeres , com um ano de estágio em Paris . Temperamento incontestavelmente artístico, dotado de uma grande riqueza de cor, não atingiu, porem, a completa libertação da influencia da escola.

Os seus melhores trabalhos participam ainda da natureza de estudos e os que procuram escapar a essa categoria, apresentam deficientes de fatura e de composição. Classificados por aquela forma, merecem louvores e animação . Alias, outra classificação não lhes deu o júri do nosso “Salon” quando conferiu ao autor “prêmios de viagem”, que é evidentemente um premio de animação e aperfeiçoamento. - N.

Ilustrações Originais

LUCILIO DE ALBUQUERQUE, por José Wasth Rodriques, p.333

MÃE PRETA” QUADRO DE LUCÍLIO DE ALBUQUERQUE, p.335