Theodoro Braga: Estilização nacional de arte decorativa aplicada
transcrição de Arthur Valle
BRAGA, Theodoro.
Estilização nacional de arte decorativa aplicada. 19&20,
Rio de Janeiro, v. V, n. 1, jan.
2010. Originalmente publicado em Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, ano IX,
dez. 1921, n.p. [Texto com grafia atualizada].
Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/ilustacao_brasileira/ib_1921_12_tb.htm>.
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Concorrendo com um pequeno contingente às grandiosas festas do primeiro
centenário da nossa emancipação política, escolhemos, como contribuição a esse
certame patriótico, a propaganda da intensificação de um movimento artístico
que já deveria se ter operado, e que entretanto, nunca
é tarde para que ele, iniciando-se nas aulas primárias elementares, se espalhe
pelo povo, imperando nas oficinas industriais, nos cursos práticos dos
institutos profissionais, e vá ter o apoio oficial no curso superior de Belas Artes.
Trata-se da orientação, desde já, a dar-se ao ensino de desenho, com
caráter prático, aplicando-o na procura de formas novas e típicas que
constituirão, a seu tempo, o futuro estilo Brasileiro.
A nossa querida pátria, embora indivisa quer
pela língua e religião, quer pela sua extensão territorial, naturalmente
limitada pelo Oceano a oriente e pelo poente pelas bacias do Amazonas e do
Prata, unidas pelas cabeceiras dos seus respectivos tributários, imensa e
riquíssima em todos os seus elementos naturais, o Brasil, a pátria sacrossanta
colocada na mais bela parte do mundo, possui, com essa inesgotável fonte de
inspiração, capacidade para criar, como outros povos criaram, um estilo que
caracterize a arte nacional em todas as modalidades práticas de sua vida de
grande povo que é.
Essa evolução não se faz rápida, é certo; mas necessita-se que todos os
artistas, da forma e da palavra, congreguem seus múltiplos esforços no sentido
de marcar a geração do nosso tempo, o desenvolvimento moral, intelectual e
artístico da nossa época com os indeléveis sinais de nossa passagem, com obras
imperecíveis de nossa personalidade cívica.
A ubérrima natureza que nos cerca, desde o mar, revolto e colorido, que acaricia a nossa extensa costa litorânea até
aos píncaros alterosos dos nossos sistemas orográficos, abrangendo, nesse
portentoso amplexo do oceano inquieto e da terra tranquila,
uma flora variadíssima e uma forma curiosa e
característica, a ubérrima natureza, dizíamos, dá-nos elementos com que
poderemos, com estudo e inteligência, semelhante ao mineiro, extrair de tantas
maravilhas, a maravilha suprema, síntese objetiva que será o padrão da época em
que vivemos - estilo, caráter, tipo, originalidade-, aceitando aos pósteros o caminho a seguir, levantando bem alto, como o
lábaro da pátria, a nossa personalidade inconfundível.
Se não vejamos: por que, nós artistas, seja da grande arte ou das artes
aplicadas, ao em vez de pesquisar cenas históricas de outros povos, ou assuntos
bíblicos ou mitológicos, não iremos nós, Brasileiros, buscar na epopéia do
descobrimento, da colonização ou da defesa da integridade do território
nacional contra estrangeiros diversos, a evocação heróica desses feitos que a argamassaram a constituição de nossa individualidade? Por
que não perpetuar, com a nossa característica, os elementos constituidores
da nossa raça em evolução, legando, pela forma, todos os estágios desse
progresso? Por que não espalhar, pela imagem, as épocas da Independência, do 2o
Império e da República, ilustradas por tantos feitos imortais, conservando
assim, na tela e no bronze, no livro e na pedra, o grande ensinamento de
patriotismo ao mesmo tempo o direito de nivelarmo-nos com os demais povos
cultos do universo?
Mas, não sejamos injustos; a grande arte pictural
e escultural, a literatura e a música nacionais já foram buscar nesse ambiente pátrio elementos com que formaram jóias preciosíssimas da nossa existência como povo. Pedro
Américo, Victor Meirelles, Eduardo Sá, José Alencar, Gonçalves Dias, Eucydes da Cunha, Sylvio Romero, Carlos Gomes e tantos
outros artistas patrícios são os imortais pioneiros desse trabalho de
nacionalização da grande arte.
Resta, porém, agora levar essa centelha sagrada aos
operários Brasileiros heróis desconhecidos.
É preciso que, nas modestas como nas poderosas oficinas nacionais, seja
qual for a sua especialidade, a natureza da Brasílica presida a forma dos
objetos produzidos.
Assim, por que escolher, águias e leões, ursos e elefantes para
ornamentação dos nossos edifícios, exterior e interiormente, desde as fachadas
dos monumentos aos mais delicados objetos de salão, quando a nossa fauna
inesgotável nos fornece a Harpia destrutor, condor
guianense, imponente de força e de altivez, eriçando a sua crista parda, com
uma régia coroa? A onça, rajada ou negra, no langoroso movimento felino de
sagacidade e de rapidez? Por que não procurar entre as serpentes, desde a imensa e retardatária sucurijá à
rápida e traiçoeira cascavel, a voluta graciosa para os consolos ou capitéis de
colunas cujos fustes poderão ser interpretados das touceiras de açai e de tantas outras palmeiras flexuosas?
Por que repetir, dentro das nossas ornamentações, o louro e o carvalho, o
marronier e o pinheiro, quando nós, Brasileiros, possuímos a mais bela coleção de palmeiras, a mais luxuriante
flora, da mata, do sertão e da praia, as mais curiosas e extravagantes lianas e
cipós esguios e direitos, tortuosos e enovelados, a mais inebriante escala
cromática nas pétalas das orquídeas e flores campestres, a mais delicada
quantidade de avencas, desde a erétil samambaia dentro da sombra úmida dos
vales ressequida e recortada avenca rasteira dos campos cobertos, semelhante a
longos lençóis de renda caprichosa, na forma e na coloração variada?
Por que não buscar, na curiosa e pouco conhecida ainda cerâmica dos
indígenas de Marajó, motivos delicados da ornamentação geométrica decoração
sóbria mas típica, afim de decorarmos fundos, frisas e
rosáceas dos nossos muros, painéis, tapetes, mosaicos, etc., etc. ? Para que,
pois, escravizarmo-nos às gregas copiadas e recopiadas
que o estrangeiro exportador nos impinge a preço de prejudica duplamente a
nossa arte nacional?
Já é tempo de refletir sobre essa nociva importação de mau gosto adubada
por uma literatura duvidosa.
Nada nos obriga a essa subserviência intelectual quando possuímos como
nenhum outro povo, a matéria-prima incomparável e a inteligência dúctil e omnimoda dos nossos habilíssimos operários.
É preciso, quanto antes, reagirmos no sentido de ser introduzido nas
oficinas manufatureiras e sobretudo nas escolas
primárias e profissionais a obrigatoriedade do ensino de desenho aplicado à
arte industrial.
Nada mais simples: diante da classe de alunos do modelo natural - uma
flor, por exemplo; dentro da hora marcada, os aprendizes deverão desenhá-la e colori-la;
em outra aula, cada aluno desenhará a forma de um objeto para a qual a flor
estudada deverá entrar ou como decoração ou como constitutiva daquela mesma
forma; o mestre não intervirá senão para corrigir defeitos e jamais como sugestionador; a prática e o tempo farão o resto. Ao
estudante, portanto, cabe toda liberdade e responsabilidade da obra que, embora
imperfeita no começo, será, com a evolução esperada, original, pessoal e
característica. Assim, em uma classe de vários aprendizes, o mesmo modelo
produzirá obras diversas, interpretado por cada um daqueles cérebros criadores.
Com a flor, o modelo seguinte será um animal dos muitos que povoam os
nossos museus de história natural; com este, a marcação certa de um dos seus
mais característicos movimentos dará o motivo decorativo adaptável a um destino
pré-concebido, tendo em vista a proporção do corpo estudado com o lugar a ser
decorado.
Em seguida passa o aluno-aprendiz à oficina onde ele irá executar o que o
seu cérebro produziu, e ninguém mais apto do que o próprio autor, movido pela
vaidade permitida de sempre fazer melhor, poderá formar um objeto com a
perfeição e detalhes que ele mesmo concebera.
Desse conjunto de esforços individuais, na procura do belo, advindo da
contemplação da grande natureza através de uma sã sensibilidade, chegaremos um
dia a deixar, na história da arte, o vestígio luminoso a nossa passagem, como
fizeram os egípcios, os gregos, os etruscos e tantos outros povos e gerações,
em várias regiões e épocas diferentes, como que facilitando aos vindouros o
estudo da arqueologia, dos usos e costumes desaparecidos.
Nada ou pouco temos feito nesse gênero, porque enquanto nos
descuidamos com atenção presa às coisas alheias, os estrangeiros vão,
cuidadosamente, insidiosamente, enchendo a nossa casa e o nosso espírito com as
suas velharias por eles rejeitadas por demasiadamente repetidas e disseminadas,
adulterando o nosso gosto, desviando a nossa inteligência e diminuindo o valor
do que é nosso e do que nos cerca.
Na decoração dos nossos edifícios públicos por que ir buscar cenários
estranhos quando, num país extenso como nosso, mal nos
conhecemos a nós mesmos?
Por que, nos mapas murais didáticos não substituímos nós, quanto antes,
aqueles espalhados por todo país, em língua estranha reproduzindo estranhas
cenas, por outros que nos ensinem como se preparam a borracha, o café, o mate,
o tabaco, o açúcar, o cacau, a castanha, a carnaúba, etc., desde a sua maneira
de colheita à remessa para o consumo público? Por que não nos fazer conhecer, por
meio desses mapas escolares, a nossa história natural através de imagens
elucidativas do conjunto e dos detalhes? Por que não trocarmos os livros de
contos para as nossas crianças tais como Le Chaperon Rouge, Cendrillon, Ali-Babá, etc.
por outros que lhes relatem, através de boas ilustrações, as graciosas lendas
da Iara, do Jurupari, do Curupira, do Boto, etc., etc., com as quais Afonso
Arinos, no sul e José Coutinho de Oliveira, na Amazônia, compuseram um belo
contingente para nossa literatura?
Além de nacionalizarmos o que é nosso, espalharíamos por todo nosso país,
regionalismos do norte que o sul desconhece e vice-versa, estreitando as nossas
mútuas relações, conhecendo uns aos outros, fazendo o sertanejo do norte e
identificar-e com o gaúcho do sul, tudo num salutar intercâmbio nacional,
fortalecedor da nossa individualidade como povo soberano que somos
A plêiade de artistas patrícios, que, subvencionados pelos Governos,
segue para estrangeiro para aurir os grandes e gerais
ensinamentos, deveria, ao voltar, ser auxiliada, durante algum tempo, na
aplicação, como prova do seu aproveitamento, do seu esforço na construção dessa
obra de nacionalização da arte, construção essa que seria o estudo da nossa
história e da nossa natureza e cujo aprendizado popular pela imagem é o mais
eficiente e duradoura.
Outro meio eficaz para conseguirmos esses anelo
seria o concurso anual das exposições de artistas nacionais, os assuntos fossem
escolhidos nos costumes regionais.
Que interessantes seria para todos, quanto ensinamento
nos adviria das exposições de costumes da Amazônia, do meio norte - sertão e
praia, e dos pampas gaúchos? Que documentação preciosa guardaríamos
de cenas do interior que tendem a desaparecer pela penetração fatal do
crescimento de população levando consigo a civilização e novos usos? Por que
não fazer conhecer a todos os aspectos naturais das nossas belíssimas
cachoeiras, paisagens, montanhas, campos gerais, costas atlânticas ora baixas,
alagadas e cobertas de mangues e aningas, ora planas
e arenosas, e ora escarpadas, cada qual mais característico e variado?
Embora uno e indiviso, o Brasil, imensamente
grande como a sua própria natureza, tem usos e costumes regionais e que, devido
à escassez ainda de meios fáceis, rápidos e baratos de comunicação, não são em
sua grande totalidade, conhecidos uns nos outros.
Assim, todos esses preciosos elementos concatenados, conjugando energias
e vontades par esse único ideal da nacionalização do
que a nosso, facilmente vencerão obstáculos até agora intransponíveis.
De volta da Europa onde passamos cinco anos como pensionista do Governo
Federal, na qualidade de aluno matriculado na Escola Nacional de Belas Artes, e
lá se vão dezesseis anos, toda a nossa atenção foi tem sido dirigida nesse
sentido, com plena satisfação de termos obtido não pequeno resultado; assim é
que temos organizado um álbum estilizando a flora e a fauna Brasileiras, com
aplicações diversas; estudando o desenho decorativo das igaçabas, tangas e e vasos dos índios marajoaras,
preciosa indumentária etnográfica; compondo mapas murais escolares com assuntos
que nos educam e nos ilustram; preparando livros de contos para crianças, com
ilustrações regionais; ensinando desenho aplicado e tirando desse ensino os
mais concludentes resultados, positivas provas de sua eficiência; obtendo dos
aprendizes do instituto profissional, do Pará, onde estivemos como diretor
durante o fugaz espaço de dez meses, os proveitos mais necessários e úteis da
orientação dada a esse ensino prático do desenho.
Urge, entretanto, a intervenção fiscalizadora do governo no ensino
público e particular, no que diz respeito a execução
metódica dos programas; desse modo poder-se-á acabar com o obsoleto e
prejudicial sistema de ensinar-se desenho por meio das abomináveis estampas
estrangeiros.
E daqui, desta mais importante revista nacional que é a ILUSTRAÇÃO
BRASILEIRA, fazemos um apelo aos artistas patrícios e aos homens de boa
vontade, no sentido de concorrermos todos para a nacionalização da nossa Arte,
na procura de um característico que marque a personalidade Brasileira,
inconfundível e superior.
É necessário, é indispensável fazemos alguma coisa de duradouro e que
“os que depois de nós vierem vejam
o quanto se trabalhou por seu respeito
para que eles para os outros assim sejam”.