Gonzaga Duque: Antonio Parreiras em sua exposição de 1905

contribuição de Arthur Valle e Camila Dazzi

Transcrição do texto “A Exposição do Mez”, publicado na revista Kosmos, n.4, abril de 1905, pp.10-14, feita a partir de original pertencente a Biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes – RJ.  Reproduzimos aqui as ilustrações que acompanhavam a publicação original e procuramos manter a grafia original. Texto disponível no site: http://www.dezenovevinte.net

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Attendamos bem para este rosto: a mascara, em face, é firme, esboçavel nos seus traços geraes ainda mesmo que a mão do esquissador seja canhestra. Fartos cabellos gorram-n’o com deslevos românticos de pittore napolitano, escorrega-lhe a barba pelo queixo, em pontas parallelas, á maneira convencional da visagem nazarena e enfarta-lhe o queixo, sob o curvo collarinho, a laçaria fofa de uma gravata larga...

E’ a imagem photographica, é quasi exactamente o typo vivo. Falta-lhe nesta o bafejo dos annos, que começa a lhe crestar o negrume da barba, ao de leve, escorrendo pelos angulos maxillares como uma babugem de hu­midade, que prenuncia a ruina. Falta-lhe, também, a palpitação nervosa das narinas, o irrequieto e o brilho dos olhos, o calor dos lábios tumidos, a voz clara e nervosa rompendo dentre fortes dentes um nada verticaes sobre as gengivas, e a corporatura rigida, os hombros possantes, os gestos impulsivos, os modos bruscos... Porque essse é que é o sou typo d’homem. E, attentando-se-o, e notando-se-lhe os laivos bistreos da epiderme, comprehender-se-á a dominancia nervo-biliosa do seu temperamento.

Desse hybridismo resultam os typos physiologicos que determinaremos entre os sensitivos e os passionaes da  classificação Letorneau, pelos quaes temos os individuos enérgicos, mais impressionaveis que emotivos, mais activos que pacientes.  A  imaginação lhes é ardente, as idéas se transformam  prestes  em  imagens;  mas, aptos  a  trabalhar e a [Página10, coluna 2] vencer obstaculos, por serem vigorosos e afoutos, facilmente se enervam e cansaçam.

Foi esse temperamento que levou Antonio Parreiras a abandonar o estreito commercio de villarejos pela arte da pintura[1], e, sem duvida, desse primeiro exercicio da sua actividade adveio-lhe o animo emprehendedor, o interesse pratico da sua profissão. De tanto resultou, tambem, a expressão inicial da sua arte feita a golpes de pincel, apenas se libertou do exigente ensinamento do rude George Grimm.

Era, então, a pressa que o conduzia, como uma vonta­de insoffrida de fazer o quanto sonhara nos longos mezes de aprendizagem. A mão corria-lhe febril, empastava a tela, accusava unicamente a forma fruste das cousas. Essa maneira, que o caracterisou, só nos últimos tempos foi attenuada e melhorada pella longa pratica do trabalho. Ao principio era um impulso. Todos os seus quadros, ain­da os menores, se resentiam desse vigor allucinado, dessa largueza á força de pulso, que facilitava os ardores da sua fecundidade.

Demos-lhe, porem, o descontos das influencias da sua época e do meio. O impressionismo, que assimilavamos por uma aligeirada intuição de factura, dominava as preoccupações dos novos artistas. E mal guiados nos exaggeros da innovação, quanto insensibilisados pelo dispendio de admiração a trint’annos de pintura chlorotica e delambicada, exigiamos o estylo largo, a pincelada audaciosa a pochade empollada, como feitio arrogante da escola que agitava os centros artisticos do Europa. A sua viagem á Italia, realisada por essa occasião, pesou ainda mais nos abusos dessa maneira, porque o renascimento pinturesco que alli começava envolvia desvarios rebeldes em superabundancias

VENCIDO

meridionaes de processos. Attenda-se por comprovação do citado, a Mulher tirando o espinho, que elle trouxe da Italia e foi incluido entre os quadros da pinacotheca da Escola. Alli o teremos tal qual [Página11, coluna 1] elle foi, com sua maneira da época e, a mais, com a sua responsabili­dade de artista viajado.

Mas o trabalho perseverante, a pratica da palhêta, a educação da vista, a reflexão da idade, e a calma succedida ao exaltamento dos innovadores

LAR INFELIZ

da pintura, o modifica­ram. E cada exposição que fazia era uma victoria, por­que era um adiantamento confirmado. A pouco e pouco, a sua mão fina e clara se fazia mais habil, os dedos lisos e longos, que parecia copiarem o contorno da espatula da sua caixêta do campo, manejaram mais adestradamente os pinceis. Acclarára-se-lhe a comprehensão das linhas typicas da nossa paisagem, vira mais nitido a cor que a define, o excesso detalhista a repellir e a synthetisação dos motivos. O desenho, pela persistência do seu conseguimento, já executado a penna, já tracejado a lápis, em albuns de jornada, em folhas avulsas de pastas, déra-lhe a precisão das formas nas marcas das impressões; e, fosse por procurar ou fosse por um derivante peculiar ao evolucionismo da sua arte, a largueza precipitada das primei­ras obras cedeu a uma systematisação intelligente, subordinando-se á natureza dos assumptos e ás dimensões dos quadros.

E’ que Parreiras chegara a esse estado de convicção arraigada, ao qual os ingleses chamam caracteristcamente un-selfconsciousness, o que corresponde á completacão do artista nos limites das suas forças. A posse da individualidade mais intrinsicamente se accentuara com as Sertanejas, na qual não lograra babujar a maledicência dos invejosos nem o despeito dos impotentes, madraços e zoilos metter os dardos do ridiculo; depois veiu a Angus­tia, e veiu depois o Carnaval na Roça... O artista alcan­çava á completação do seu sentimento esthetico. Aind’assim, attigindo a esse gráo de desenvolvimento, a que se póde chamar - o vértice do personalismo - a sua feição artística ficou intacta, indubitavelmente melhorada na sua maneira, mas a mesma nas suas manifestações, sem perder o entrain dos primeiros tempos, que eram os da ardega mocidade. E’ este vigor, este golpe nervoso de audá [Página11, coluna 2] cia que ainda vamos encontrar no seu grande painel de hoje. Tem elle por titulo Morte de Virginia, assumpto colhido em Bernardim de Saint Pierre, avidamente lido ha cincoenta ou setent’annos passados e fonte do inspira­ção dos pintores românticos, entre os quaes alguns Mes­tres. Entende-se, pelo titulo, ser assumpto apropriado aos figuristas; mas Parreiras o reteve, substituindo a do­minante belleza da figura pela grandeza do scenario. E’ uma maneira de comprender, cuja liberdade não está restringida por nenhum codigo nem sopitada por nenhu­ma dictadura. Abandonando a importância da figura a uma figurinha secundaria, em que elle pôz cuidados vi­síveis, o scenario sahiu-lhe vigoroso e largamente pinta­do em duas grandes massas geraes, uma, ao fundo, que é de aguas encurvadas em vagalhões esfarrapados d’espuma; outra, de areias, apanhando em angulo o alto es­querdo do quadro, e descendo volumosa para o plano prin­cipal, a que abrange em toda a sua extensão. Sobre essas duas massas a sua palhêta manteve o brilho e a força dos seus recursos. A massa arenosa, notavelmente, foi atacada com galhardia e vencida na sua imminente monotonia pela localização da umas pedras, que interceptam a uniforme tonalidade do areial.

E, por cima do peso das aguas e do grande maciço das areias, um céo procelloso harmonisa os dois planos de cores oppostas. E’ isolado e vasto o scenario; e, confessemos, a figurinha, apezar de sua importancia secundaria, alli fica mais triste e malaventurada, como um fragmento do nada humano perdido na immensidade da Natureza bravia. E’

PESCADOR DE TRAHIRAS

ainda o mesmo calor de fazer, o mesmo toque arrogante de pincel, afoulo e aturdidor, quo vemos no Esperando o zagal, que notamos na Procella e n’Alvorada, sem duvida, os dois últimos, inferiores ao primeiro... O que foi a sua arte primitiva ficou

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ESPERANDO O ZAGAL

[Página13, coluna 1] em esbatido sob o vigor da maneira actual, a que o brilho da palhêta, escrupulo­samente simplificada, transformou em mérito, porque é uma feição pessoal, é a sua característica. E esta elle a tem, muito distinctamente de seus contemporaneos, a des­peito das interpretações dadas ás suas qualidades e dos senões que se lhe apontem. Ella est’ahi confirmada em cada uma de suas obras, nas quaes a mão trabalhadora imprimiu o sinête do seu individualismo não só pela habi­lidade da fixação imagética mas, tambem, pela communicação anímica que as vivifica, côando os assumptos por uma esthesia donde se distillam com apparencias singellas e communs que vão directas ao entendimento de todos.

E’ que elle possue uma delicada impressionabilidade que se externa por formas simples, accessiveis á penetra­ção dos que se afadigariam com o complexo e o requinta­do. Amando a vida em todas as suas manifestações (por­que os paizagistas natos amam a vida na sua intensidade rústica), tendo por indole affinidades com a existencia rural, tudo quanto passa por sua retina, arvores e campo, chóças e encruzilhadas do caminho, porteiras derreadas e gado pascendo, ondas pinchantes e areiaes rutilos, pes­cadores o campeiros, tudo o abala e commove.

Por isso fez-se pintor animalista, vencendo á força de vontade as dificuldades da execução, substituindo as fa­lhas do ensino por persistentes esboços e pacientes dese­nhos, até alcançar o exacto contorno indicativo dos animaes a reproduzir. Mas, [Página13, coluna 2] sendo como é, um sensitivo, os simples aspectos ou indicações lineares das cousas e dos seres, tomam no seu cerebro um exaltamento sentimental, que se exteriorisa na Ovelha Ferida e na Morte do Pastor (exposição de 1904) ou no Final de Tragédia e Navio em Perigo (n’actual exposição), isto é: ou sensibilisam-n’o pelo que conteem de obscuramente soffredor, ou enthusiasm-n’o pelo que revelam essa abnegação e coragem sem publicidade. Comprehende-se que natureza assim or­ganizada não possa olhar, indifferente, a existencia huma­na, mormente na sua humildade, em que as dores mais se accumulam e menos se aliviam. Assim foi que An­tonio Parreiras, depois de ter fixado o soffrimento mudo dos brutos (mas, ainda não suas rudes alegrias na liber­dade dos campos), chegou á interpretação do romance, senão ignorado, pelo menos abandonado, dos infelizes.

Já n’Angustia elle nos contou, ao seu modo, uma dessas paginas dolorosas; já no Espinho nos disse do affecto das lareiras pobres; agora põe deante dos nossos olhos o desespero do emigrante valido que se acha Sem Trabalho, e a dôr innenarravel do lar onde a Morte, tripudiando da pobreza, apunhala o coração dos paes roubando-lhes a poesia de sua miseria e o consolo de seus amargores, que são os filhos.

Concordantes em absoluto, quer na arte literaria, quer nas artes platicas, com o apothegma de Luiz David, que sentenciava: Une idée ne vaut réellement que par Ia perfection avec laquel on [Página12, coluna 1] la rend et on l’emploie, não diremos que sua intenção houvesse conseguido, nesse qua­dro, a plenitude do preconcebido effeito. Se lhe notamos verdade e propriedade nos detalhes, os quaes, cada um de per si, constituem estudos caprichosos; se as expressões do pobre pae e da misera mulher estão flagrantemente reproduzidas nas posturas e nas physionomias, com espe­cialidade a figura do homem, cujo rosto traduz a dor sem lagrimas, sobre possuir n’attitude do corpo a authenticidade da sua condição social, não nos será facil louvar a escolha da posição da creança que, por melhor procurada que fosse a certeza do desenho, por mais intencional que se supponha o movimento fixado, não concorre para a belleza da scena nem equilibra a postura extatica das suas figuras componentes.

Como desenho e como conjuncto se nos apresenta mais elogiavel a Triste Noticia. Nesse, o rosto da rapariga (e seja dito, entre parenthesis, modelado a la diable) tem expressão, attendendo a carta luctuosa, aberta sobre a me­sa, na qual se debruça o pae, cuja cabeça grisalha, in­clinada na superficie da tela, constitue um bom estudo do fogoso pintor, pelo relevo, e participa admiravelmente do assumpto pelo apanhado typo, do modo e da soez physionomia que indica a obtusidade do espirito imperfeito. Ainda neste ponto caracteriza-se a sua grande paixão pela vida, tal como a vida é nos limites em que elle exerce a sua arte. A theoria da subordinação ao meio, preconisada por Taine, tem nisso mais um documento a seu favor.

Parreiras não escolhe ou parece não escolher os mo­delos (talvez por difficuldade, porque modelos são ra­ridades inestimaveis para os nossos artistas) mas, por este ou aquelle motivo, os typos que pinta são genuinamente rústicos, pertencem á classe dos personagens do as­sumptos que lhe são predilectos. E não é só nesta ultima citada obra, encontramol-os ainda na Vencida, que seria assumpto joeirado e d’outro modo cuidado por outra natureza que não tivesse a inquietação e a pressura da

ARETUSA

[Página12, coluna 2] sua. Para elle, porém, o facto é o principal. Uma vez obtido o assumpto, isto é, o facto, e communicado pela imagem, embora a communicação se resinta de pouca intensidade expressivista, elle não perde tempo, passa a outro tra­balho. E quando deparamos com uma obra intensa, re­buscada na sua completação, satisfatoriamente equilibra­da em todas suas parte, como Aretusa, ficamos pasma­dos, retidos pelo incontado, dominados pela admiração dessa somma d’esforço sobre sua própria natureza!

Alii o trabalho de modelagem foi vencido com uma perseverança extraordinaria, tratando-se de um que lhe não é familiar; mas, ha palpitação, ha seiva nessa carne morena de rapariga, que se destaca do fundo claro e parado da paizagem como o consentimento de um olhar voluptuoso se destaca do rosto pallido de uma virgem immovel. La chair est la matière animé, vivant de toute vie qui afflue vers elle, diz Etienne Bricon. Sim, é a ma­téria animada, ora fazendo-se vida consciente desse bos­que encortinado pelas nevoas matutinas, camara de nu­pcias que Ceres ornamentou, todo fresco e tremente por contêl-a, por possuil-a, e haurir de seus negros cabellos desbastados, de seus hombros, de seu tronco, de suas per­nas, da sua nudez moça e forte o aroma entorpecedor da mulher veripotente...

Fugindo ao caprino requestro do  frio Alphêo, conta-nos Ovidio Publio Nazão nas suas Metamorphoses, e favo­recida por Diana, Aretusa é transformada em  fonte para que Alphêo não a possua.

O artista nol-a apresenta no momento em que, debru­çada sobre uma rocha, começa a se desfazer em limpidas correntes de fresca lympha. Está em pleno bosque, sua­vemente illuminado pela luz macia das matinas, que o velam com vaporosa gaze de nevoas.

Os verdes são brandos e se distendem n’uma gradação harmonica ’té as encostas d’um monte, que se percebe entre vetustos troncos e ramarias bastas, modeladas pela claridade n’um tom sereno [Página14, coluna 1] de pardo-cinzento e cinzento-óca. Escorregando por angulosas pedras, Amphêo deslisa entre barrancos, á distancia, e as frondes parasoladas derramam sobre o velludo da relva sombras tão finas que pa­recem véos!...

Não faltaram carinhos á mão do artista, elle os dis­pensou ao desenho, á côr, ao toque, e com pezar notamos que a rocha, onde Aretusa se debruça, accuse o artificio do contraste, pois que, não participando da tonalidade do conjuncto, parece propositalmente escurecida para destaque da figurinha... Passemos! Mas a leveza, elegancia e gra­ça dessa mão voltam a nos offerecer delicadeza no Le­vantar dos cóvos, na Nevoaça, e Dia Chuvoso, que são do­ces repousos á vista, goso e conforto ao espirito, pela fina maneira da factura e grande sentimento do colorido em que não ha violencias como no Navio em Perigo, mas uma subtil harmonia de cores, que se fundem em tonalidades grisen-perladas,

O seu estylo largo, um tanto bravio, em lambadas de pincel, que, como já fizemos notar, se modificou vantajosamente, subordinando-se ás télas de grandes dimensões vão se adelgaçando n’uma estimável precisão interpretadora de minudecencias nos pequenos quadros; e secundada pela procurada sobriedade da sua palhêta produz deliciosas obrinhas de uma fulguração attrahente como esses [Página14, coluna 2] luminosos Pescador de Trahiras,  Ultimo clarão, Mataruna, Agonia das amendoeiras, ou observadas e fielmente reproduzidos como Agua dormenteSnr. Vígario e Minha cabana no arreial.

A obra de Antonio Parreiras, na presente exposição, tomada no seu todo de qualidades e senões, inculca-se pelo pittoresco das paizagens e pelo fundo sentimental das concepções. Essa sentimentalidade, porém, não recorda as nobres emoções despertas por um violino, não tem sua correspondencia suggestiva nos sons d’uma harpa dedi­lhada pelos longos dedos pallidos d’uma loira veneziana soffredora, filha de doges e apaixonada de mouros; é chã, fácil, communicativa e, por equivalência sonora, poder-se-ia dizel-a egual aos queixumes graves d’um violão. Mas, é nisso que encontramos a sua originalidade, o seu merito, porque ella se unifica n’um sentimento piedoso, incoadunavel com o exotismo e a pompa. E para que essa arte chegue até a alma dos que a contemplam, é preciso o estylo que a caracteriza, com o qual Antonio Parreiras se realça de todos os seus contemporaneos, affirmando a sua individualidade, forte e energica, como o incisivo d’um masculo perfil de bronze sobre a polida brancura d’um marmore.

Abril de 1905.

GONZAGA DUQUE


[1] A SEMANA, 1886, estudo por Alberto Silva.

[2] No original da Kósmos consultado, por curioso erro tipográfico, o texto e a ilustração da página 12 foram impressos na página 13, e vice-versa. Revertemos aqui tal erro, que truncava a leitura, baseando-nos também na reedição póstuma do artigo, presente em Contemporâneos. Rio de Janeiro: Benedito de Souza, 1929, pp.41-50.