Gonzaga Duque: Imagistas Nefelibatas [1]
organização de Bárbara Jane Carneiro Kushidonti
DUQUE, Gonzaga. Imagistas Nefelibatas. [Originalmente publicado em Kósmos, Rio de Janeiro, ano III, n. 5, mai. 1906, n/p. Texto com grafia atualizada]. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 1, jan./mar. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/gd_kosmos/gd_1906_nefelibatas.htm>. [Fac-símile, PDF 992 KB]
* * *
ANATOLE Baju, no seu opúsculo publicado em 1887 sob o título L’École Décadente, expôs os princípios da sua estética reformadora nas seguintes palavras:
“A literatura decadente sintetiza o espírito de uma época, isto é, o da elite intelectual da sociedade moderna. Quando se trata de Arte não se faz entrar em conta a multidão, porque ela não pensa, é apenas numérica. O alto público intelectual, o único que deve ser estimado e cujos sufrágios constituem consagrações, esse, está farto de todas as emoções fictícias, dessas grosseiras excitações, dessas convenções banais dum mundo imaginário que as últimas literaturas puseram em obras para a estimulação dos seus sentidos.
“Ele está cansado da farragem romântica e naturalista, que fascina algumas vezes a imaginação, mas é impotente para corrigir o engorgitamento do coração.
“O que ele deseja é a vida; está sequioso desta vida intensa tal como o progresso a fez, sente a necessidade de se saciar dela, quer condensar uma porção de existências humanas numa só, na sua própria, e lhes extrair o suco, vibrar com todos os seus estremecimentos. Por uma contradição bizarra, mas, por isso mesmo, explicando o efeito do desespero, a necessidade de viver é a característica desta época que parece ter adquirido a sombria e aterrorizante certeza do Nada.
“A literatura decadente propõe-se a refletir a imagem desse mundo spleentico [sic]. Ela não aproveita senão o que interessa à vida. Nada de descrições, porque supõe tudo conhecido. Apenas uma síntese rápida dando a impressão do objeto. Em vez de pintar faz sentir; procura dar a sensação das coisas, seja por construções novas, seja por símbolos evocando a intensidade pela comparativa. Em suma, tudo para ela resume-se em: síntese da matéria e análise do coração.”
Isto, que não é transcrito para desafiar argumentos, escrevia o fundador da revista Décadente, de Paris, no declínio do século XIX, e nessa mesma cidade, por esse mesmo tempo, com a pequena diferença de uns anos a mais, em 1889, o poeta Georges Vanor, também num opúsculo intitulado L’Art Symboliste, expunha:
“Inscrever um dogma em um símbolo, escolher no vocabulário os termos raros e preciosos, construir um estilo superior e compósito, traduzir as sensações pela música das sílabas, vincular estreitamente o ritmo à ideia e repelir toda a descrição para procurar toda a música, tais são os principais preceitos do seu catecismo.”
Decadentes e simbolistas assim definiam as suas estéticas, particularmente restringidas ao verso. Em pouco tempo, porém, e como a prosa viesse se adaptando aos modos das novas escolas, esses rigores adoçaram-se, e em muito pouco tempo, as duas escolas inovadoras, que se combatiam para a conquista da supremacia, fundiram-se quase insensivelmente, tão de acordo estavam em seus princípios! O simbolismo abrangeu todos os grupos os grupos de poetas e escritores novos ampliando preceitos, tornando-se, a ibem [sic] dizer, a escola dos apaixonados da écriture artistique que preocupou os Goncourts ou, como disse Gustave Kalm, d’écriture expressive et de forme nouvelle.
Compreende-se que as artes do desenho, especialmente a pintura, não poderiam permanecer alheias a essa influência. Desde que o simbolismo, sob suas várias formas e maneiras, se manifestou com maior vigor, o desenho procurou objetivar pela imagem as suas criações. Mas, a tentativa foi difícil. Ao princípio, a estética simbolista, por tender a abstração, não oferecia vantagens à forma figurada, ao relevo material das representações desenhadas. Um artista de gênio apreendera-lhe a intenção, esse artista foi o belga Felicien Ropps [sic]. Não obstante, Ropps era lúgubre e lúbrico, a sua arte trazia a perturbação alucinadora de um riso glacial de caveira na ardente boca de uma mulher lindíssima. Era uma arte de ironia e lascívia, donde, por vezes, irrompiam risadas doidas de coruja sortílega. Acompanhá-la, imitá-la, seria perigoso. Ropps possuía o saber do desenho, manejava a litografia com perícia e era uma natureza à parte, inimitável na sua complexidade.
Então, os imagistas propenderam para os tipos, entraram a compor uma determinada figura, que tivesse a forma idealizada de uma mulher nem romântica nem realista, forma ligeira, quase vaga, de lírio heráldico, de angélica decorativa. Vieram as simplificações tenazes, os rebuscamentos exaustivos da originalidade. E o esforço esteve longamente parado nesse objetivo. Por pouco que não caiu num esgotamento desastroso. Não carreguemos, porém, tanto a culpa aos desenhistas. O erro nasceu da confusão dos princípios restritos. A necessidade dum dogma num símbolo - era uma expressão obscura, entonteou os mais atilados dos escritores e com mais razão embaraçava os desenhistas. Surgiram os exageros literários, e de tal sorte petulantes, que se confundiam com o desvario. Houve suspeitas de que esses moços tinham endoidecido. O público afastou-se desconfiado, aturdido com essa criação torturada e misteriosa; a Crítica entesou as oiças [sic] e riu-se, e foi desse riso que surdiu o sarcasmo do Nefelibatismo.
Que era isto?
Ninguém o sabia nem mesmo para contentar a curiosidade compulsava-se a enciclopédia Larousse, o dicionário d’Academia! Esquisito, estranho, inédito, este termo valia por uma troça, siflava e demolia. Era um cartucho d’alvaiade. Verdadeiramente não ofendia, porque, por sua composição grega, queria dizer habitante das nuvens e na sua aplicação - pensamento inacessível ao comum dos homens, transcendentalismo. Mas, empregado sem o conhecimento do seu valor, é tão ridículo como em uma carapuça de jornal velho.
Assim caracterizados por este desprezo, não faltou quem os julgasse degenerescentes, e logo sob tal aspecto os estudasse. O Sr. Max Nordau foi dos primeiros a praticar essa análise. É interessante o que a respeito nos conta o Sr. Adolphe Retté em um livro que ainda se não pode dizer velho:
“Por esse tempo, - informa o Sr. Retté - M. Max Nordau percorria Paris em busca de documentos para o seu estranho volumaço das Degenerescências. Nordau seguia as pegadas do seu mestre Lombroso, descobrindo em tudo sintomas de deliquescência social e, como espirituosamente disse M. Clémenceau “distribuindo diplomas de degenerado a todos os que não pensavam como ele.
“Afim de observar de perto os simbolistas, Nordau fez-se frequentador assíduo do Café Francisco I, no boulevard Saint-Michel, onde nos reuníamos algumas vezes para conversar sobre arte e literatura.
“Ele tomava lugar o mais próximo possível da nossa mesa, e ingerindo copos de absinto notava o que dizíamos. Ao cabo de certo tempo reparamos nesse auditor hisurto que, aguçando o ouvido, nos lançava olhares sorrateiros... Então, um de nós tratou de tomar informações a respeito dele, e veio, a saber, que o Sr. Nordau se preparava para nos fixar, sob rubrica - Nevropatia - no capítulo de um dos seus livros em preparo.
“Desde esse momento decidimo-nos fornecer-lhe os mais terríveis documentos sobre a nossa individualidade. Um dizia-se adepto dos costumes contra a natureza e celebrava as belezas do amor unissexual; outro apresentava-se como sectário dos paraísos artificiais e absorvia, ostensivamente, bolinhas de miolo de pão que fazia passar por pílulas de ópio ou de haxixe... Enfim, nós todos pronunciávamos os mais audaciosos discursos sobre religião, sociologia e moral. Nordau exultava, registrava o que ouvia, com jubilosa atividade. E assim foi composta a parte da Degenerescência que se ocupa dos simbolistas.”
A informação do Sr. Retté também pode ser uma oportuna pilhéria, que isso está bem no excelente humor francês; mas, inegavelmente, houve da parte do Sr. Nordau certa precipitação nas suas conclusões.
No desenho e na pintura, em grande parte, a singularidade de tais composições proveio da desregrada interpretação da obra extraordinária de Burne-Jones, desse admirável artista de quem se disse ser de imagination all compact, e não menos da originalidade violentadora de Franz Stuck. Por outra parte, sem dúvida na mesma proporção, o que influiu para essa extravagância foi a preocupação do reclame, o desejo de se fazer conhecido ainda que a custa do escândalo.
Para ser fenômeno da degenerescência, como orientado pelo exclusivismo científico de Lombroso admitiu Nordau com relação aos literatos, (que estavam nas mesmíssimas condições) seria preciso que uma série de atos equivalentes se correspondesse na vida desses artistas, com a qual poder-se-ia determinar a identificação mórbida. Mas, assim não era. Muitos desses compositores de mixórdias simbólicas não tinham a responsabilidade dos anos, a outros faltavam estudos sérios em cursos preparatórios do desenho. Moços e canhestros, isso, sim, eram eles. Basta-nos atender as duas estampas que ilustram esta notícia. Na do Sr. Luciano Affonso Daudet, que tem o pomposo e perturbante título - le jour de la grande Colére [Imagem] - ver-se-á uma mistura apocalíptica de fantasmas, de tumbas destampadas de astros desgravitados e... de coisas que ninguém saberá dizer o que sejam, tal o enorme disco perfurado que parece um cartão de tiro ao alvo. É visivelmente uma combinação de símbolos, mas, a qual a esquerdice do desenhista não soube ou não pode dar uma unidade compositiva e muito menos precisar-lhe as formas.
O sr. Jean Jacques des Valeurs apresenta-se ainda mais complicado, mais obscuro na sua composição [Imagem] que, notada em três posições diferentes, mostra três assuntos diversos, cada qual de um simbolismo desesperador, capaz de ensandecer o próprio San Peladan se o quisesse destrincar com o requintado saber da sua exegese.
Mas, a tenra idade do sr. Luciano e a sua incultura artística, como a mocidade do sr. Jean Jacques, passada no alegre meio da boemia de München, contrariam opiniões temerárias que se levantem sobre a sanidade mental de ambos. A persistência no defeito é que denuncia o desequilíbrio. Hoje, esses dois espanta-gente, perderam-se no comum fastiento da vida.
Pondo de parte o esforço das tentativas, esforço que triunfou mais tarde com a fixação e clareza da nova estética, essa arte foi simplesmente uma inofensiva mistificação à gravidade cabeçuda do farto burguês e aos sólidos princípios esfarrapados da Crítica de palanque. O que ela fez fizeram o romantismo, a escola naturalista e esse muito combatido grupo dos impressionistas.
Chamemo-la nefelibata, mas com um suave sorriso que não humilhe nem hostilize.
Maio de 1906.
GONZAGA DUQUE.
Ilustrações Originais
[1] Versão do trabalho final apresentado no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão - História da Arte, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, ministrado pelo Prof. dr. Arthur Valle, no segundo semestre de 2011.