Félix Ferreira: Belas Artes: Estudos e Apreciações, 1885

FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/

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Exposição do Sr. Victor Meirelles - VI

O Combate Naval de Riachuelo - 2 de dezembro de 1883

Desenrola-se neste momento das mãos de artista emérito o quadro comemorativo de uma das páginas mais brilhantes da nossa história, um dos feitos mais gloriosos da nossa armada, o combate naval de Riachuelo.

Como a ave das criações mitológicas, que renasce das próprias cinzas; assim, do cérebro inspirado de Victor Meirelles ressurge e revive a formosa tela, que a desídia de guardas infiéis deixou que se perdesse.

Dentro de algumas horas a multidão admirará a obra-prima do mestre; e então, como ao toque da vara mágica de Nostradamus, evocando, na presença de Catarina, a cena da coroação de Henrique IV, assim nos mostrará o artista como foi valente esse punhado de heróis, que tingiu com seu sangue as águas do Paraná, no memorável dia 11 de junho de 1865.

Já lá vão dezoito anos, e a maior parte da nossa geração pensante de hoje não sabe, nem imagina, como vibrou a fibra do patriotismo no dia em que aqui chegou a notícia desse belo feito; nem avalia como encheram-se de orgulho os nossos corações sentindo-se brasileiros.

Diante da nova tela de Victor Meirelles quantas recordações se não despertam? O marujo, encanecido contra o rude bracejar do leme pára um momento a contemplá-la, e pelas vincadas faces descem silenciosas lágrimas de orgulho e de saudade.

E enquanto seus olhos se empanam de prantos, a alma dilata-se, expande-se, entusiasma-se, parecendo-lhe ainda ouvir o sibilar das balas, o troar da artilharia, o apito do comando, o vozear infrene dos combatentes, arremetendo-se uns contra outros, raivosos, sedentos e vingativos. Quanto mais fixa a tela, mais se lhe inflama a mente. Com os olhos rasgados pela admiração e a boca entreaberta pela ansiedade, esquece tudo quanto o cerca, julgando-se transportado àquele dia imorredouro.

Cerrando vigorosamente a mão, como se ainda segurasse a machadinha da abordagem, aventa o cheiro do sangue e de pólvora, vê moverem-se as figuras do quadro, agitar-se a água, balouçarem os barcos. Para ele, não é um salão que pisa nesse momento, mas o tombadilho do seu querido navio. E quando mais se lhe enleva a alma nesse êxtase da glória, mais a seus olhos se acentua e desenvolve-se a ação.

De quando em quando passa automaticamente a mão pela abrasada fronte, como procurando dissipar o sonho que o salteara em frente à tela, mas o sonho persiste, a visão corporiza-se mais e mais, e o dia 11 de junho escoa-se hora por hora, reproduzindo na imaginação todas a cenas desse drama de sangue, em que ele tomou parte.

Parece-lhe então que acaba de despertar ao toque da alvorada e que subiu há pouco à tolda. Sente a manhã brumosa e fria, vê a água toldada e múrmur e o céu mal velado por uma neblina pardacenta, que, como imensos farrapos de gaza, batidos do vento, flutuam na amplidão do infinito.

Põe o ouvido à escuta; apenas ouve esse cicio vago e indefinido dos ventos plácidos, que vêm das florestas e passam enrugando a flux das águas, quebrado apenas pelo monótono ranger da cordoalha e do velame, ou pelo ansiar das máquinas que arquejam como peitos humanos.

De súbito, brada o vigia que a esquadra inimiga vem águas abaixo, acostada à margem oposta. E, quais conspiradores de desmedida estatura, embuçados em suas capas misteriosas, esgueiram-se os navios paraguaios, como que procurando evitar o combate.

Soam 9 horas da manhã.

Um frêmito nervoso percorre o pessoal inteiro de toda a nossa esquadra; um presságio indeciso susta por momentos o palpitar de todos os corações. Os comandantes assestam os telescópios, procurando em vão devassar a penumbra dos nevoeiros.

Troca-se um rápido canhoneio, simples cumprimento de inimigos corteses que se saúdam mutuamente, antes de entrarem em combate. Galanteria dos torneios medievos, que a tradição da gentileza conserva e respeita.

A esquadra paraguaia desce, enfim, e vai postar-se no passo, cuja denominação o feito do dia não tardará a tornar célebre.

O comandante em chefe da nossa esquadra concentra por momentos, na serenidade do espírito, toda essa grande responsabilidade que em tal ocasião lhe pesa sobre os ombros. Está em suas mãos a honra da pátria; vencedor, será um herói por ela nunca deslembrado; vencido... é melhor nem pensar nisto. E passa logo a dar ordens, para que a esquadra brasileira vá oferecer combate à paraguaia.

A frota levanta âncoras e defronta a inimiga. Soa enfim a hora da ação, trava-se o combate, emaranham-se desde logo as esquadras inimigas.

Nutrido e vivo fogo de artilharia rompe de um e outro lado; os nossos 64 canhões respondem de pronto aos 74 contrários, que são auxiliados por uma fuzilaria de 2.000 infantes, a coberto da barranca a que se abrigara previdente a esquadra inimiga. O Jequitinhonha, querendo atacar mais de perto essa bateria, aproxima-se tanto de terra que se vê presa de traidores baixios. Procura abordá-la o inimigo intrépido; Guimarães Peixoto acode aos pontos do assalto e bate-se com invejável denodo, e o jovem Lima Barros cai cortado por uma bala de artilharia. São os pródromos do porfiado pleito.

Tríplice abordagem consegue apossar-se por momentos do Parnaíba, convertendo-lhe o tombadilho em tablado da mais sanguinolenta cena do dia.

Como uma legião de demônios precipita-se de roldão, por toda a amurada, mó enorme de paraguaios que ajouja o tombadilho. Emudecem os canhões, empenha-se a luta corpo a corpo, brilham as machadinhas, e como se fossem movidas por músculos de aço abatem vidas, como a fouce do segador derriba a seara; as facas enterram-se nas carnes palpitantes, peitos arcam contra peitos, espadana o sangue em borbotões, rangem dentes, rugem gargantas sequiosas e dos olhos, incendidos pela dor e pela cólera, desferem-se centelhas de pavoroso fulgor.

Um simples marinheiro levanta-se à altura dos heróis; Marcílio Dias tem em roda de si um lastro de cadáveres, seu braço potente fere e mata com a rapidez do raio, até que, cercado por quatro inimigos, abate dois deles a seus pés, enquanto os outros dois conseguem tocá-lo no âmago; e, como o roble das florestas, tombando, esmaga as humildes plantinhas que o cercam, assim o glorioso marinheiro faz dos feridos inimigos o seu leito de morte.

Ia apertado o transe. Dois elementos únicos mantêm indecisa a vitória: o inexcedível valor dos nossos e a calma quase sobre-humana, que é a majestade da coragem, que nunca abandonou o chefe Barroso.

Supremos esforços e gigantescos empenhos sustêm por momentos os ânimos brasileiros, prestes a quebrantar-se; na alma ansiada de Barroso fulge uma réstia de luz que entremostra-lhe a rota da vitória. Um plano de incrível audácia brota, cresce e irradia-lhe no cérebro; e tão rápido como o próprio pensamento, ei-lo que passa da concepção à prática.

Eis surge o Amazonas.

Fechadas todas as válvulas, inclusive as de salvação, semelhante ao rio que lhe dá o nome, que, recuando por instantes em seu leito, como serpente gigantesca firmando o bote, arremete contra o enorme oceano, arca onda por onda, estruge, espuma, espadana e, redobrando de esforços, penetra mar em fora impondo por dilatadas léguas a doçura das suas águas, assim a alterosa fragata cia por instantes e, avançando rápida contra o convés do primeiro navio inimigo que se lhe opõe à passagem, abala-o, desconjunta-o, racha-o e aderna-o enfim.

Feliz ao primeiro embate, ei-lo que passa a segundo e terceiro navios paraguaios, que cedem, e, como se fossem de vidro, fazem-se pedaços. O Jejuí, o Olinda, o Salto, do lado contrário, estavam inutilizados, e de bordo da Parnaíba varridos os invasores. Reina a confusão e a desordem, o medo não tarda a seguir-se e o inimigo a buscar na fuga o único caminho da salvação.

Eram 3 ½ horas da tarde, combatia-se há mais de seis horas. O sol, caminho do poente, ilumina ainda cheio de brilhos o grandioso e tétrico cenário. O chefe Barroso, como um herói legendário, avulta em proporções homéricas à proa do Amazonas, e mandando içar no lais da verga o sinal de sustentar fogo que a vitória é certa, arrebatado pelo mais nobre entusiasmo solta um viva ao Imperador e à nação brasileira que, repetido por todas as vozes da nossa esquadra, repercute nas quebradas do rio como um brado ingente da pátria, ecoando nas regiões da posteridade.

É este o momento escolhido pelo Sr. Victor Meirelles para assunto da sua tela.

Contemplê-mo-la.

Afirmam touristes amadores da arte, que quando pela primeira vez se defronta com aquelas famosas portas de bronze do Batistério de Florença, o espírito conturba-se por instantes e na imaginação baralham-se por tal modo as figuras e relevos esculturais, que torna-se impossível dizer qual a impressão produzida pela obra-prima em que Ghiberti consumiu quarenta anos de trabalho e inspiração.

Guardadas as devidas proporções, quase o mesmo acontece àqueles que vão ver conscienciosamente o novo quadro do Sr. Victor Meirelles. Não se deslumbra o espírito, é certo, menos se confundem as figuras, principalmente as do primeiro plano; mas vacila o juízo na apreciação dos detalhes e mais ainda no julgamento do todo.

Não se avalia uma obra-prima de arte, como incontestavelmente é o Combate de Riachuelo, ao primeiro lanço d'olhos. Pede acurado estudo e detida contemplação tudo quanto produz o engenho humano fora dos moldes comuns e das inteligências vulgares. Assim como os monumentos escritos têm sido, e serão sempre, objeto de análises profundas e interpretações filosóficas, os monumentos desenhados também preocuparão por muito tempo aqueles que quiserem, já não diremos fazer uma crítica séria e minuciosa, mas simples apreciação justa e digna.

Não basta observar o todo, mesmo por algumas horas; é necessário também estudar os episódios, apreciá-los isolada e conjuntamente, conhecer familiarmente o assunto quando histórico, e, mais que tudo, procurar compreender as intenções do artista, e nisto está, parece-me, a mais sólida base do julgamento.

Nestas apreciações, o que mais é de recear são as falsas interpretações; pois, como conseqüências, dão-se às vezes desacertos mais deploráveis para os créditos de quem os escreve do que para o artista que os inspira. Recorda-me, a propósito, um fato que se deu com o próprio autor do quadro em questão e que ele me relatou há anos.

Acabava o Sr. Victor de dar os últimos toques na Primeira Missa no Brasil, a pedra angular do edifício da sua glória e ainda hoje a obra capital das suas produções, quando, visitando o seu ateliê, Gonçalves de Magalhães, depois de contemplar por longo tempo o inspirado quadro, disse ao artista: "como foi o senhor feliz em simbolizar a curiosidade dos selvagens nesse grupo de crianças que precede o dos adultos", e apontava para o troço de indígenas que se aglomera em uma das extremidades da tela; o pintor sorriu e calou-se. Não havia sido, porém, tal a sua intenção, mas sim interromper com esses corpos menores a monotonia das pernas nuas maiores, que não podia, sem transgressão da verdade, nem vesti-las nem variá-las na cor.

Quase o mesmo vemos agora repetir-se com um marinheiro que o artista colocou na caixa da roda de um vapor paraguaio que se afunda, destruído pelo choque do Amazonas. Querem muitos que esse episódio seja histórico, havendo até já quem dissesse pela imprensa constar ele das partes oficiais, quando na verdade nenhuma menção se encontra de semelhante fato nos documentos conhecidos com cunho autoritário.

No entanto, estudada com mais atenção, reconhece-se que essa figura ali está menos pelo rigor histórico, que realmente não existe, do que talvez pela necessidade que teve o artista de ir levantando animado o primeiro plano, de modo a conduzir a vista do espectador, naturalmente e sem esforço, ao vapor Amazonas, em cuja proa está posto o grupo culminante da estética do quadro.

A calça desse marinheiro, de um azul bastante carregado e luzidio até, não servirá também para contrastar com a cor escura do bojo do Amazonas, e assim pôr em relevo a distância que já o separa daquele destroçado navio paraguaio? Talvez.

Talvez também o artista quisesse aproveitar aquele espaço vazio para nele erigir uma das mais belas figuras do quadro, pois até mesmo aqueles que andam a perguntar o que faz aí esse marinheiro ou a responder que ali está expressamente para receber um tiro do inimigo, confessam todos, unânimes, que esse é um dos mais salientes episódios da tela.

Uma figura como essa basta para firmar a reputação de um artista. Não se chega a esse resultado sem muito trabalho, muito estudo e muita observação. Não se arranca à anatomia o segredo de uma musculatura tão perfeita, como a que nos apresentam aquelas pernas seminuas, sem que se tenha pleno conhecimento do necessário da ciência para o complemento da arte.

Nas grandes composições artísticas ou literárias, nunca foram demasiados personagens em que o autor, pondo todo o seu desvelo, consegue transformá-los, de simples comparsas de um grande drama, em figuras do mais alto valor. Assim como em redor da estátua de um herói, do libertador ou fundador de uma nacionalidade, o estatuário grupa homens, crianças, animais, armas, frutos e flores, como símbolo de diferentes províncias da nação agradecida ou troféus da vitória comemorada, assim igualmente nos quadros históricos o pintor trabalha esmeradamente em certos objetos ou personagens secundários, como recordação dos legionários das sombras, soldados e marinheiros, que, nem pela humildade da condição deixaram de colaborar ativa e poderosamente na grande obra da vitória.

Aquele marinheiro, que, no primeiro plano, de todos se destaca e na caixa da roda do navio inimigo, tendo junto de si uma bandeira que aspirou talvez depô-la nos altares da pátria, leva a mão ao peito, sentindo nele a morte que o colheu de súbito, levantando a cabeça com uma expressão mudamente eloqüente, recorda àqueles que bem conhecem o feito um dos mais intrépidos heróis do Riachuelo, que no momento fixado na tela bate-se ainda em outro lugar da ação, como um Hércules.

Do mesmo modo que a nação agradecida deu a um dos seus vasos de guerra, como justo e bem merecido preito, o nome de Marcílio Dias, assim o Sr. Victor Meirelles, nesse belo e escultural marinheiro, perpetuou na tela a lembrança do herói da Parnaíba.

Reproduzindo o perdido quadro do Combate naval de Riachuelo, o Sr. Victor Meirelles conservou-lhe a primitiva composição, dando apenas maior desenvolvimento aos personagens e navios, na proporção do aumento que deu a toda a tela, que foi nada menos de dois metros no comprimento e um na altura. Querem alguns críticos ver nisto a manifestação de um orgulho desmedido, que não aceitou as modificações que lhe aconselharam opiniões competentes; quanto a mim, porém, vejo antes nesse respeito pela antiga composição um justo amor de pai, uma opinião firmada do artista, o que comprova a sua individualidade. Se os autores fossem a seguir cegamente todos os conselhos que lhes dão, mesmo os competentes, teriam de refazer a sua obra tantas vezes e tão radicalmente, que acabariam por alienar a própria inspiração. Então seria o caso de aplicar-lhes um dito espirituoso atribuído a um grande mestre, a respeito de um pintor plagiário: "... guarde-se ele do dia do Juízo Final, em que cada um, tendo de ficar com o que é seu, restar-lhe-á somente o pano e a moldura".

Antes de reproduzir o seu quadro, o Sr. Victor Meirelles visitou algumas das principais galerias do Velho Mundo; viu, como sabe ver um artista do seu quilate, obras congêneres, consultou os mestres mais notáveis de Paris, apresentando-lhes as fotografias da perdida tela; à exceção de um ou de outro pequeno ponto, simples detalhe, todos foram concordes em que o quadro devia reviver tal como fora concebido. Bem pode ser que alguns desses mestres dessem conselhos a respeito de uma ou outra minúcia, admita-se mesmo que lhe sugerissem novo croquis, deveria o artista aceitá-lo? Não por certo, pois se assim procedesse, não passaria de um simples copista.

Para firmar-se na composição que conservou na segunda tela, teve o Sr. Victor de fazer muito ensaios, estudos parciais, agrupamentos e pontos de vista, que o conduziram a esse resultado. Passando documentalmente em revista toda a ação, escolheu aquele momento e o imaginou como o compreendeu e não como lhe indicaram os que para tanto se julgavam autorizados. Se assim não procedesse, por melhor que fosse o desenho e mais belo o colorido, nunca conseguiria imprimir nessa tela o cunho da sua individualidade. Só os que a não têm é que se resignam a seguir passivamente o caminho que se lhes aponta.

Isto não quer dizer que a composição seja impecável; se tal fora, sairia dos moldes humanos, e ainda assim seria sempre discutível, senão do ponto de vista artístico, pelo menos do da interpretação histórica. Venham cem artistas dos melhores e apresente cada um croquis de um só assunto, que talvez dois não sejam iguais.

Os combates de mar têm sido tratados por mestres insignes, por várias maneiras e perspectivas diferentes; uns fazem deles simples marinhas e da ação meros acessórios; outros concentram esta em um ou dois navios, pondo o resto da esquadra ao fundo; outros ainda em um único episódio sintetizam o feito. Depende isso da impressão que causa ao artista a leitura do acontecimento e mais que tudo do modo de ver as coisas.

Poucos são os que nesse gênero de pintura têm-se ocupado mais particularmente das figuras, descurando o conjunto pelas minudências, como fez o Sr. Victor Meirelles; mas ainda assim tem o nosso artista bom nome para escudar-se, um bom exemplo a seguir o de Gonin, cujas produções em boa parte são reputadas obras-primas; quando, porém, não tivesse a quem seguir, tinha o artista a si próprio, e são sempre preferíveis, para julgar de um talento superior, originais incorretos a cópias, que, por mais perfeitas que sejam, não conseguem esconder a pobreza da imaginação que as produziu.

É incontestável que o episódio do primeiro plano prejudica muito a ação principal, absorvendo por tal forma a atenção do espectador, que o olhar apenas passa, de quando em quando, distraidamente, pelo resto da tela.

O próprio Amazonas, figura dominante da estética do quadro, o qual aliás está lançado com donairoso porte, chega a eclipsar-se ao lado dessa escuna paraguaia que se afunda, carregada de figuras magistrais, de um desenho perfeitamente acadêmico. Dir-se-ia que o artista deixou-se dominar pela desesperadora heroicidade dos vencidos do que pela brilhante vitória dos vencedores.

Mas cumpre refletir: para que o Amazonas atingisse às proporções que imaginam aqueles que o acham secundário; para que Barroso assumisse a altura elevada que parece faltar-lhe, outra deveria ser a composição, outro talvez o momento de ação. Ganharia com isso o navio, é certo, mas também não é menos certo que perderiam os demais, pois passariam para um plano muito inferior.

A concentrar a ação em um só navio, não seria esse o Amazonas, mas sim a Parnaíba, que foi incontestavelmente o cenário mais sangrento do drama de 11 de junho. Assim concebida a composição, o navio-chefe e o principal herói seriam sacrificados de modo a despertar justas reclamações. Quaisquer que sejam os feitos dos subordinados, as glórias pertencem sempre ao chefe.

Aceitando a composição como a concebeu o artista, e não como a entendem outros, ainda mesmo autoridades, ainda assim nos perderíamos em um dédalo de intermináveis variantes; cumpre reconhecer-se que o conjunto é de bom efeito, posto que mais cuidado em uns que em outros pontos. Se, por exemplo, nos desagrada o terceiro vapor paraguaio que está no segundo plano à esquerda do Amazonas, parecendo mal lançado, de desenho menos correto ou pouco elegante; em compensação, quanto é belo e vigoroso o grupo formado pela Parnaíba e os dois navios inimigos que lhe dão abordagem, quer pela disposição geral, quer pelos detalhes! O fumo que os envolve pela parte superior, a luz coruscante dos tiros, a massa das figuras que se enovelam no ardor do combate, denunciam o transe apertado em que se vê o nosso navio, no momento em que o Amazonas recua para voar certeiro em seu socorro.

Essa parte da tela é primorosa e tem um tom ardente e do mais impressionável efeito. No primeiro plano há uns destroços que bóiam levando um cadáver com uma perna pendida sobre a água e o dorso em natural abandono, de uma verdade que só a mão de um mestre é capaz de produzi-la. A água é também aí mais flácida e mais transparente que em qualquer outro ponto, a turbação é perfeita; os camalotes e um barril que flutuam à mercê do embate das ondas, são de uma naturalidade admirável. Toda essa extremidade da tela pode ser qualificada, sem favor uma obra-prima a qual só por si daria reputação a um artista.

O Combate naval de Riachuelo é um quadro destinado a viver, a testemunhar aos vindouros os adiantamentos artísticos da geração presente do Brasil, de levar enfim à posteridade um dos mais irrecusáveis documentos do talento real do Sr. Victor Meirelles de Lima. Levantem-se embora contra ele os ecos de todas essas pequenas paixões de inimigos e despeitados, essa grita, como a vozearia da praça pública, há de extinguir-se passado o momento da maior agitação, quando sobrevier a calma e aniquilarem-se os maus sentimentos; a grande tela, na serenidade do seu esplêndido colorido, brilhará sempre avante, como depois da tempestade que por horas entenebrece o céu, rasga as nuvens e continuam a brilhar os puros raios do sol.

Não são os exageros dos amigos nem as injustiças dos desafetos que matam o que está destinado a viver, nem dá vida ao que é inviável; a grande tela do Sr. Victor Meirelles há de ser um dia julgada por juízes insuspeitos, e, comparados os seus poucos senões com as muitas belezas, será reconhecida por tal modo a sua superioridade, que na galeria nacional ocupará o primeiro plano como uma verdadeira obra-prima que é. E tão certo está disso, e tanta consciência tem o autor do merecimento da sua composição, que a reproduziu traço por traço, colorido por colorido, nesta segunda edição, que é correta e aumentada; aumentada nas proporções, correta no desenho, que os anos e o trabalho dão ao lápis do artista maior destreza e segurança.

O Combate naval de Riachuelo é um quadro inteiramente original, uma concepção exclusivamente nacional, inspirou-o um dos mais gloriosos feitos da nossa Armada e o mais acendrado patriotismo; bem fez o artista reproduzindo fielmente no seu ateliê em Paris o que concebeu no do Rio de Janeiro. O bulício do grande mundo, as obras dos grandes mestres não influíram, felizmente, no que meditara e pusera por obra na solidão e mudez do velho claustro de Santo Antônio. Isto, mais que tudo, é que firma a sua individualidade artística.

Na Batalha dos Guararapes e no Combate naval de Riachuelo, em um feito moderno da nossa Armada e em um antigo, não direi do Exército, mas do povo que tanto batalhou para conservar a unidade deste território que é a nossa pátria, deu já o Sr. Victor Meirelles sobejas provas de sua aptidão para o gênero predileto de Ingres e Vernet; justo é pois que volva à sua primitiva inspiração a paisagem histórica, as cenas dos primitivos habitadores do Brasil, os poéticos episódios dos tempos coloniais. Novos e virentes louros aí o esperam, o tempo urge, a vida passa e, antes que chegue a velhice, cumpre recolhê-los à farta.

São estes os meus mais ardentes votos.