Félix Ferreira: Belas Artes: Estudos e Apreciações, 1885

FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/

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Exposição do Sr. Firmino Monteiro - V

Com razão dizia sir Joshua Reynolds, presidente da Academia de Pintura de Londres, ao jovem escultor John Flaxman, que nunca seria este um grande artista se não conseguisse ir a Roma. Era então a cidade dos papas a grande capital das artes, considerada outrora como magnus sacerdos, única que podia consagrar a láurea da imortalidade.

Mudaram-se os tempos, Paris roubou o cetro à Cidade Eterna; é aí que se consagram os gênios universais. Como os maometanos, que não conseguindo peregrinar a Meca não se julgam com direito ao Paraíso, assim os artistas modernos que não vão a Paris não se podem considerar salvos da obscuridade.

Não se vai à capital do grande centro da civilização só para conquistar louros, esses são mais difíceis, dificílimos mesmo para artistas que não são franceses, mas vai-se para ver, para estudar, para aprender; e quem for disposto a estudar, quem souber ver, muito tem a aprender e a lucrar; uma viagem a Paris, por menos demorada que seja, vale muito, vale tudo, principalmente para os nossos artistas.

Os melhores pintores brasileiros modernos devem a acentuação de sua individualidade à florescente escola francesa[1]. Nenhum dos que foram a Paris deixou de lá voltar sem um brilho novo ou a revelação de nova face, até então quase desconhecida do seu talento; aí estão para exemplo os Srs. Décio Vilares, Aurélio de Figueiredo e Almeida Júnior, três nomes que prometem muito.

O Sr. Firmino Monteiro, aproveitado discípulo da nossa Academia, era um talento reconhecido, uma vocação comprovada; a sua obra de maior vulto, a Fundação da cidade do Rio de Janeiro, dera-lhe diploma de pintor histórico; mas esse quadro, aliás com algumas belezas, não satisfazia completamente àqueles que buscam no trabalho mais que a reprodução de uma paisagem ou a comemoração de um acontecimento, mas também esse quer que seja, enfim, que se não explica mas que nos comunica o ver e o sentir do poeta, quer escreva ele um livro, quer pinte um quadro.

A fundação da cidade por Estácio de Sá era uma estréia prometedora; mas difícil seria dizer, ao vê-la, qual a escola em que viria a florescer o nosso artista; notava-se em seu quadro umas tantas indecisões e audácias, que, ou se retraíam medrosas, ou se decidiam seguras ao bordão de um convencionalismo condenado. O que sobretudo denunciavam os trabalhos do Sr. Firmino Monteiro, antes da sua viagem à Europa, era o savoir faire da escola para a qual ele sentia-se atraído, mas carecedor de modelos e de mestres.

Compreendendo isso, felizmente bem cedo, o artista, com essa força de vontade que soem ter os espíritos superiores, transformou as necessidades em recursos, e, por minguados que fossem, partiu com eles para o grande centro da atividade intelectual de tudo quanto há modernamente de grande e belo.

De volta da Europa expôs o Sr. Monteiro em uma das salas do bem conhecido ateliê do Sr. Insley Pacheco, pouco mais de uma dúzia de quadros de várias dimensões e assuntos. À simples vista reconhece-se a evolução por que passou o espírito do artista, os seus quadros revelam muito adiantamento e, mais que tudo, a acentuação da sua individualidade artística.

Abandonando completamente a escola idealista, o nosso pintor abraçou decidido a impressionista; lucrou com isso a arte? Só o tempo poderá responder.

Na coleção dos novos quadros do Sr. Firmino Monteiro notam-se, principalmente, duas qualidades que muito devem concorrer para o seu aperfeiçoamento: a intuição histórica e a observação da natureza. Ambas estas qualidades, já reveladas na Fundação do Rio de Janeiro, requintam agora com mais vigor e saliência.

São admiráveis certos tons de luz, quer do crepúsculo da tarde, quer do da manhã, que se observam nas suas paisagens da serra dos Órgãos. A flutuação da névoa entre as montanhas, em alguns quadros, é de uma naturalidade encantadora; as cores sombrias e polidas, bronzeadas por um sol que se não vê, mas que se sente vir ao longe, das penedias, volumosas, eretas, enroscadas, como se saíssem em espirais das imensas retortas da formação do nosso globo, têm o cunho das grandiosidades da natureza tropical.

Em uma das paisagens de Icaraí nota-se um corte de barreira, de uma verdade que prende a atenção; as diversas camadas da argila vermelha e esbranquiçada apresentam entre si os veios que os resíduos vão acamando no correr dos séculos.

Mas, onde mais sobreleva-se a consciência da arte, que outro nome melhor não conhecemos para essa exatidão fotográfica do colorido, é no quadro de Vidigal.

A calçada, com suas pedras toscamente faceadas e irregularmente dispostas; a ervazinha enfezada que vegeta pelos interstícios dos blocos; a cor da parede, a janela, a porta e a meia rótula pendurada aos gonzos externos, firmam a reputação do artista. Enfiando-se o olhar por cima dessa rótula, como que palpa-se a saliência arqueada da verga, como que sente-se a atmosfera silente e morna desse interior de paz, nos bons tempos da colônia e dos vice-reis.

As cinco figuras que animam o quadro estão muito bem tratadas; e, sem procurar pôr em forçada evidência o protagonista, o olhar do espectador logo o encontra, nessa semi-gravidade que fez de Vidigal um herói do seu tempo, misto de rigor e pachorra, de chiste e rispidez, de inflexibilidade e brandura, como tão bela e comicamente o descreveu Manuel Antônio de Almeida nas suas inimitáveis Memórias de um Sargento de Milícias[2].

Sem razão notou um dos mais autorizados órgãos da nossa imprensa a falta de propriedade no vestuário do cantador de modinhas, achando que a capa que o envolve e o lenço que tem na cabeça não são dos nossos costumes, mas dos espanhóis; essa moda predominou muito nas classes baixas no século passado e princípios deste, como é fácil verificar nas estampas de Jean-Baptiste Debret, e ainda hoje não raro se encontra em uso nas províncias do interior.

Alvarenga no desterro não é um quadro destituído de certo merecimento, como também não é o da Folia do Espírito Santo, no qual se nota um trecho de estrada, pintado com muita felicidade; as figuras são animadas e mesmo boas como tipos da roça, cantadores à viola e ao pandeiro; mas estão ambos aquém do Vidigal.

Camões no seu leito de morte é uma tela de valor, quer como concepção, quer como execução. A figura do grande épico não é má, nota-se porém um tal ou qual exagero de descolorido, que a torna mais de um tom de caveira do que de um recém-finado.

A mãe do poeta, prostrada junto ao leito, com o rosto oculto nas dobras do manto, não comunica ao espectador a profunda mágoa que a dilacera. Mais inspirada é a figura do cavaleiro, que, segundo a ficção de Garrett:

"...ao vate a carta entrega.

Do missionário era, que dos cárceres

De Fez escreve. Saudoso e triste,

Mas resignado e plácido, lhe manda

Consolações, palavras de brandura,

De alivio e de esperança. Extinto é tudo

Nesta mansão de lágrimas e dores."[3]

Os religiosos, postos ao fundo, são de bom efeito; mas o que mais me parece na altura do assunto é a sobriedade e nudez monástica do cenário. Os grosseiros azulejos que forram as paredes, a pequena cruz que enegrece a certa altura, as velas recentemente apagadas, a galeria claustral que se entrevê pelas descerradas cortinas formam, com os demais acessórios, um fundo de mão adestrada.

Neste quadro, como no do Vidigal, patenteia o Sr. Firmino Monteiro essa intuição do passado, que, com estudo e tempo, há de torná-lo um dos nossos bons pintores históricos, de usos e costumes dos tempos coloniais, que é justamente do que mais precisamos, para que de todo se não extingam as tradições que restam.

Não lhe faltam para isso assuntos pátrios nem uma natureza esplêndida para escola de suas observações; estude e trabalhe, que o futuro será seu, e brilhante.


[1] Estudos atuais de História da Arte têm mostrado que a Itália, e sobretudo Roma, continuou, durante todo final do século XIX, sendo um dos principais centros de estudo para artistas brasileiros, muitos deles de grande renome, como Henrique Bernardelli, Rodolpho Bernardelli, Pedro Weingärtner, Belmiro de Almeida, Rafael Frederico, Bento Barbosa. Sobre o assunto, ver: DAZZI, Camila. “As relações Brasil- Itália no segundo oitocentos: a recepção da crítica de arte carioca à obra dos pintores brasileiros na Itália (1880-1890). In: 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume I, n. 2, agosto de 2006. ou ainda: DAZZI, Camila. “Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes na Itália (1890-1900) - questionando o “afrancesamento” da cultura brasileira no início da República. In: 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume I, n. 3, novembro de 2006.

[2] ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. (Biblioteca Brasileira, IX e X - primeira e segunda parte, respectivamente). 3ª ed. Rio de Janeiro: Typographia do Diário do Rio de Janeiro, 1863.  “.  [...] O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado. Era o Vidigal um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo [...] Se no meio da algazarra de um fado rigoroso, em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados, ouvia-se dizer "está aí o Vidigal", mudavam-se repentinamente as cenas; serenava tudo em um momento, e a festa tomava logo um aspecto sério”. Texto disponível no site:   http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/milicias.html

[3] GARRETT, Almeida. Camões : poema. [1ª ed.] - Paris : Livraria Nacional Estrangeira, 1825. Texto disponível no site: http://www.portoeditora.pt/bdigital/pdf/NTSITE99_Camoes.pdf