Félix Ferreira: Belas Artes: Estudos e Apreciações, 1885

FERREIRA, Félix. Belas Artes: Estudos e Apreciações. Rio de Janeiro: Baldomero Carqueja Fuentes Editor, 1885. Texto com ortografia atualizada, disponível no site: http://www.dezenovevinte.net/

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Exposição do Sr. Almeida Júnior em 1882 - II

A cidade de Itu, glorioso berço do padre Feijó, um dos tipos brasileiros mais exemplares da consolidação do Império, cujo civismo engrandece a história pátria; a cidade de Itu, que parecia ter-se exaurido na feitura do grande cidadão, é hoje novamente berço não menos invejável de um artista cheio de talento e inspiração, e que dentro de poucos anos será um dos nossos primeiros pintores.

Partindo desta cidade há seis anos, como um dos mais aproveitados discípulos do Sr. Victor Meirelles, volta hoje um nome feito nas artes o Sr. José Ferraz de Almeida Júnior, cuja irresistível vocação pela pintura o conduziu ainda em plena adolescência dos recessos ituanos à nossa Academia das Belas Artes, donde saiu para ir, à expensas de Sua Majestade o Imperador, completar os seus estudos artísticos em Paris, sob a direção do ilustre Cabanel. Nunca a mão generosa do augusto protetor amparou talvez com mais proveito um verdadeiro talento; se outros benefícios não houvesse dispensado o Sr. Dom Pedro II[1], como é certo que os tem feito e faz, bastar-lhe-ia esse para que seu nome jamais pudesse ser esquecido na história das artes brasileiras.

O Sr. Almeida Júnior não é mais uma bela esperança como daqui partiu ainda bem moço, mas um artista notável, que já fez com muito brilhantismo as suas primeiras armas e que já conseguiu penetrar duas vezes no grande Salão de Paris[2], onde, se o rigor dos julgamentos para a admissão afrouxa o seu tanto em favor dos nacionais, o mesmo não acontece aos estrangeiros, com quem os julgadores se mostram sempre tão parcos na distribuição de prêmios, como intransigentes na aceitação dos trabalhos. Já em 1875, Teophile Gautier reclamava contra tais excessos de patriotismo, e ultimamente, a propósito da exposição de 1883, o nosso distinto patrício Sant'Anna Nery, o gracioso cônsul da intelectualidade brasileira em Paris, repetia com dobrada energia iguais protestos e justificava a queixa com exemplos, que não honram muito o elevado espírito da França.

Depois de tão longa e tão aproveitada ausência, volta-nos o nosso jovem ituano, carregado de louros, e que reparte irmã mente entre a sua cidade natal, berço do corpo, e a Academia das Belas Artes, berço do espírito, que o estudo e o trabalho por tão aturados anos tanto tem elevado. Ao invés de certas mediocridades, que levantam ruído em torno de umas produções vulgares, e voltando as costas aos antigos mestres falam deles com o mais condenável desdém, o Sr. Almeida Júnior franqueia ao público uma exposição de primores e compraz-se em unir o nome de Cabanel ao de Victor Meirelles, chamando ambos de mestre e amigo. Isto, que é simplesmente um dever que a gratidão impõe, mas que as mediocridades desconhecem, dá um traço saliente do caráter honrado do jovem artista.

Se não fora esse já um motivo da minha simpatia pelo distinto ituano, a singeleza do seu porte, a despretensão com que se apresenta, e o abrasileirado que conserva, apesar de seis anos de residência em Paris, tempo mais que suficiente para os presumidos aparentarem até o esquecimento do idioma pátrio, são qualidades que duplicam, a meu ver, os merecimentos do Sr. Almeida Júnior; pois em uma época em que o charlatanismo invade as mais altas regiões, infecciona os talentos mais reconhecidos, as ilustrações mais aplaudidas, ser modesto e verdadeiro é mais do que um espírito superior, é também ser um belíssimo caráter. É tão difícil aliar estas duas qualidades, que aqueles que as possuem podem, sem favor, ser apontados como um exemplo.

O Sr. Almeida Júnior tem assim jus a dupla admiração pelo talento, que é belo, e pelo caráter, que é estimável. Quem assim se estréia na carreira da arte tem um risonho futuro diante de si. Oxalá o não contamine um mal endêmico que por aí reina, que muitos e invejáveis triunfos o aguardam na estrada que começa a trilhar com tão seguros passos.

Penetrar na acanhada sala da Academia, onde por causa das obras da reedificação teve de acantonar-se o artista é gozar por momentos um pouco daquela atmosfera dourada dos ateliês de Sanzio ou Buonarroti em que respirava cheio de delícias o grande Leão X, - estático e enlevado, cometendo o perdoável e irresistível pecado de confundir o culto da criatura com o do criador; ou em que, menos embriagado pelo olor das tintas, que deslumbrado pelo brilho dos coloridos, o gentil Francisco I apanhava solícito os pincéis de Ticiano.

À simples vista das produções do laureado discípulo de Cabanel, reconhece-se que um artista de pulso vem juntar-se à pequena plêiade em que já figuram brilhantemente Victor Meirelles, Pedro Américo, Décio Vilares, Zeferino Costa e outros, que pouco e pouco vão lançando os fundamentos da escola brasileira. Escola que não pode nascer de um jato como Minerva da cabeça de Júpiter, mas que se há de ir formando com o tempo, com os esforços isolados com os anos, até que uma revolução audaciosa desfralde e firme a bandeira da independência.

O aparecimento do Sr. Almeida Júnior nos campos da arte, armado cavaleiro e pronto para as lutas mais tenazes e os cometimentos mais audaciosos, é o prenúncio desse movimento que julgo necessário à reforma do ensino artístico, base, senão única, pelo menos principal do desenvolvimento das artes no Brasil.

Bem-vindo, pois, seja o inspirado ituano; de braços abertos o recebam seus irmãos em crenças e mocidade; seja um dos que metam ombros à grandiosa empresa que hão de levá-la gloriosamente por diante! O que é preciso é fiar o menos possível dos poderes que legislam, governam e administram, cujo desamor à arte se manifesta a cada passo, desde os edifícios públicos, que são grotescos, até à instrução artística, que é defeituosa; desde as posturas municipais, que permitem a construção de monstruosidades arquitetônicas, até à legislação geral, que regateia subsídios às escolas profissionais. E o que cumpre é apoiar fortemente os Liceus de Artes e Ofícios, multiplicar os centros de atividade, criar publicações ilustradas, organizar exposições artísticas e industriais, reproduzir, pelos processos mais fáceis, as nossas poucas obras de arte e derramá-las em profusão pelo povo, que é o único Mecenas que as idéias e organização social deste século comportam e aceitam.

O nosso povo não é menos feito que os outros para amar a arte; a prova deu-a ele evidentemente, visitando em um só dia, em número superior a mil pessoas, a exposição do Sr. Almeida Júnior, que não fez reclamos nem a inaugurou aparatosamente, com música, bandeiras e foguetes, como pede o caso aos rotineiros. É certo que esse número não é nada para uma cidade de mais de 300 mil almas, e ainda bem pouco lisonjeia uma população que dias antes corria em massa a ver uns disformes botocudos, mais dignos de lástima do que de admiração; mas ainda assim essa concorrência já anima aqueles que se consagram às Belas Artes, que já vão influindo nas camadas gerais da nossa sociedade.

Aqueles que visitaram a exposição dos trabalhos do Sr. Almeida Júnior devem dar parabéns à sua fortuna e lamentar os que lá não foram; pois privaram-se de um desses espetáculos que muito encantam os olhos e deliciam o espírito. Tudo ali é muito para ver-se e admirar-se, desde uma cabeça de mulher posta de perfil, que se vê à esquerda da entrada, até à Fuga para o Egito, a tela que ali mais avulta, tanto pelas dimensões como pela concepção; até mesmo nas produções de somenos valia, o observador lá encontra um traço tênue e fugitivo, mas fulgente e belo, que denuncia mão adestrada que o produziu e a alma inspirada que o ditou.

As duas formosas cabeças que formam o pendant que se vê à entrada lembram as criações rafaelescas das stanzas farnesinas[3]. O tom macio e aveludado da cútis, a pureza do contorno e a suavidade das nuanças dão àqueles medalhões um valor artístico, que não pode ser ainda cotado no meio em que vivemos. O artista e o poeta fundiram-se em uma só alma para imaginar esses tipos adoráveis de mulher, iluminados pelo fulgor da arte. O contemplador sente-se enlevado diante dessas faces que recordam as suavidades do arminho e os tons das rosas menos vivazes; e perde-se em devaneios, mergulhando o olhar naqueles seios que parecem palpitantes e seguindo-lhe as linhas imaginárias de um contorno praxiteleano.

No extremo de uma parede esconde-se, como que a medo, Um cantinho do ateliê do nosso artista, em Paris. Sentado em uma voltaire, junto da mesa de estante, carregada de livros, de costas para fora, o artista concentra todas as suas atenções para uma graciosa demoiselle, que se interpõe quase entre ele e o olhar vigilante da velha mãe, que, descansada em uma poltrona, sorri afagando - quem sabe? - que felizes esperanças.

A figura da moça é muito natural, bem desenhada e delicadamente colorida; a sua presença na sala de trabalho do pintor desperta uma lembrança poética, que interessa o contemplador; a de um segredo revelado talvez na hora da partida, uma doce lembrança desses dourados sonhos que povoam abundantemente a mocidade dos artistas e poetas, esses eternos boêmios das floridas regiões do amor e da fantasia.

O certo é que esse quadrozinho deve merecer particular cuidado ao artista, pois o foi colocar tão alto e tão recatado às vistas do vulgo; por isso mesmo é que não se vê mencionado esse quadrozinho por aqueles que têm tratado da exposição; injusto castigo que resvala do produtor para a produção, aliás tão digna de aplauso.

Dentre os objetos que se vê no pequeno ateliê, notam-se principalmente: um quadro pendente da parede, reprodução em miniatura de um estudo acadêmico, cujo original vê-se um pouco mais abaixo, o qual prova os seus conhecimentos anatômicos, pela verdade da musculação do velho modelo vivo. De junto dessa miniatura desce quase sobre a cabeça do artista uma bandeira nacional como que a recordar-lhe a pátria, impondo como que um direito de preferência entre ela, que ali está de pé diante do seu olhar, cheia de encantos, e o Brasil, que de longe acena-lhe com os louros da glória.

Pondo de parte alguns estudos de cabeças, entre os quais chama particular atenção a de uma menina de cabelos revoltos e de uns olhos admiravelmente coloridos, e os assuntos sacros, cuja primazia cabe à ressurreição de Lázaro; o olhar do visitante, descendo do ateliê, prende-se desde logo à figura risonha de um travesso rapazote, e que parece nesse momento ter acabado de rasgar a tela, para apresentar pela improvisada janela o seu rosto corado, de riso franco e aberto, o busto forte, são e musculoso. A cabeça desse pequeno é primorosamente desenhada, os cabelos louros e crespos são de uma verdade palpável.

O quadro, porém, que mais tem agradado aos visitantes, e maior soma de aplausos tem conquistado, é o de gênero, intitulado por seu autor Pendant le repos.

Um artista em seu ateliê descansa por momentos, e o modelo vivo, uma bela rapariga morena como a casca da caneleira, alegre como um dia de primavera, envolvendo a parte inferior do corpo em um amplo xale de lã e seda, vai sentar-se ao piano e, interrompendo o dedilhar, descansa em abandono uma das mãos sobre o teclado, entabolando com o artista uma palestra sobre coisas indiferentes.

A posição e figura do pintor, como as suas longas e belas barbas castanhas, o negro chapéu de abas largas, são naturalíssimas, e a do modelo em nada lhe é inferior; são essas as figuras predominantes do quadro, o ponto culminante da estética, para onde converge o olhar do observador.

Tudo ali é belo e tratado com um cuidado que revela um artista consciencioso, e não desses que, sob o pretexto de impressionismo, escondem no apressado do esboço a insciência de bem acabar.

O contraste das cores que mais se repelem, o artista opõe com audaciosa mão, mas tão segura, que, nem um pano cor de ouro claro, que atirou desleixadamente ao mocho do piano, sobre o qual senta-se a rapariga, pondo-o desse modo em contato com o xale com que encobriu parte de seus encantos, que é de uma cor sombria e listrada, nem esse mesmo contraste deixa de produzir o mais surpreendente e belo efeito; tal é a ciência das leis da harmonia, que possui o Sr. Almeida Júnior.

Faltaria à verdade se dissesse que não há um defeito bastante sensível nesse quadro, aliás tão cheio de belezas, que lhe diminui um pouco o valor puramente artístico: é a desproporção entre as figuras animadas e as inanimadas; o piano, a olhos vistos, é muito maior do que deveria ser, e o mesmo se nota nas dimensões da música, no tamanho dos vasos e na moldura de um quadro que se vê ao fundo.

Mas esse defeito de perspectiva, que não pode passar sem reparo, cometido por um artista do merecimento do Sr. Almeida Júnior, é largamente compensado pela delicadeza com que está tratado o fundo do quadro, representando um floreado de variadas porém suavíssimas cores, o tapete de um desenho gracioso, as flores escarlates que estão em um lindo vaso de porcelana, as belas faianças penduradas na parede e sobretudo a carnação e os cabelos da rapariga, que são de uma naturalidade, que dificilmente será excedida.

Pendant le repos é uma formosa tela, que bem merecia ser reproduzida e vulgarizada pela oleografia; e o quanto é para lastimar que entre nós ainda não se tenha introduzido esse poderoso agente do desenvolvimento do gosto artístico pelas classes menos abastadas.

O quadro de grandes dimensões, o Remorso de Judas é uma excelente produção. A figura atlética do traidor está traçada com a valentia própria dos talentos superiores; um espírito medíocre não ousaria tanto e nem com tanta segurança.

A cabeça é escultural; no olhar sombrio pintam-se o espanto do crime e os primeiros clarões de uma grande e terrível verdade: é certo, aquele Homem é um Deus! Judas, no momento em que se vai consumar o enorme atentado, sente uma voz íntima acusá-lo de deicida; até então supusera ele ter traído um simples mortal, mas agora começa a compreender que Jesus Cristo não é somente filho de Maria, mas o próprio Deus, que se encarnou no ventre abençoado.

São os prelúdios do grande remorso de que vai ser presa, não é ainda o momento da maior desesperação; esse será objeto de outro quadro, se o artista voltar ainda à fonte, que é inexaurível.

A meu ver, é assim que o Sr. Almeida entendeu e pôs por obra o assunto; e tanto que, para fixar o momento dos primeiros acessos do eterno remorso ele bosquejou ao longe, no fundo do quadro, o tremendo espetáculo da tragédia do Calvário. Os dois ladrões já estão eretos nos instrumentos do suplício, e o da divina vítima começa a levantar-se com o agonizante, prestes a exalar o último suspiro com a suprema palavra do perdão.

Queriam muitos que a atitude de Judas fosse outra, e que o remorso por tão grande crime fosse mais violentamente manifesto; pela minha parte estou pelo modo por que o artista interpretou o seu pensamento.

A mão de Judas, que segura a parte posterior da cabeça, é de um colorido vigoroso e de uma musculação admirável; a posição é naturalíssima; aquela mão como que procura suster o turbilhão das idéias pavorosas que ameaçam irromper do esbraseado crânio. A outra mão, que descansa curva sobre o joelho, não é menos bela; o todo da figura é soberbo; a túnica, rubro-escura, aumenta o sombrio do sinistro personagem.

A seus pés, a bolsa deixa escapar os trinta dinheiros, que rolaram ao acaso pelo chão. O traidor não arrojou-a com toda a sua força; é que a hora da máxima desesperação ainda não chegou; se assim fora, outra seria a disposição da bolsa, como muito outro o olhar e a atitude do grande criminoso.

O Remorso de Judas, repetimos, é obra de mestre e dá a seu autor o direito a ser considerado como uma das mais acentuadas individualidades artísticas brasileiras.

O Caboclo em descanso só ressente-se da falsidade do colorido da epiderme; vê-se que o Sr. Almeida Júnior teve por modelo um europeu e não um indígena puro ou mesmo mestiço do Brasil[4]; não obstante, naquelas feições há traços característicos dos nossos íncolas: a atitude é cheia de naturalidade e a figura é de uma robustez belamente artística. O fundo representa uma paisagem demasiadamente carregada, um tanto árida até. Parece antes que o caboclo foi esconder-se na quebrada de um monte, escusa e raramente trilhada, do que procurou abrigo à sombra das florestas, no meio da derrubada.

Mas, deixemos o Caboclo, que nem por tais senões destoa do tom elevado e uníssono com que o poeta da arte trata todos os assuntos em que se inspira, e contemplemos com admiração essa pujante tela da Fuga da Sacra Família para o Egito.

Todas as imagens como que respiram e palpitam. A figura de São José é imponente; o braço que arqueia pousando sobre o dorso do jumento, sobre o qual monta a Virgem-Mãe, é um modelo de desenho e pintura; as barbas longas e grisalhas, o crânio nu e crestado pelos ardores do sol, a fronte vincada pelos anos e pela fadiga, a atitude modesta e ao mesmo tempo grave e serena, dão ao esposo da neta de Davi um cunho singelamente bíblico.

A divina criança é um mimo, um idílio da arte, traçado com um carinho de poeta e de artista; a mimosa carnação é de um colorido invejável, as pernas e os braçozinhos levantados, com essa graça com que as inconscientes criaturinhas exprimem o seu bem-estar, são de uma verdade que impressiona, e comove.

Mas, acima de tudo eleva-se o busto gentil e correto da graciosa imagem do modelo das mães. A Virgem Maria está tratada com essa segunda maneira de que fala René Ménard[5], em relação às madonas de Rafael.

À primeira”, diz o ilustre contemporâneo, como a Bela Jardineira, pertencem as madonas ingênuas, expressão mais de inocência que de maternidade; calmas e felizes, elas não têm paixões nem cuidados; nada perturba seus límpidos olhares, nada deixa enfim adivinhar o pressentimento do porvir reservado ao Menino-Deus. À segunda categoria pertencem as virgens, como a da Sacra Família ou a Virgem da cadeira; nelas já não brilha a mocidade ingênua e isenta, mas irradia toda a efusão do imenso amor materno, que é a expressão dominante desses quadros. A terceira categoria tem por modelo a Virgem de São Xisto. É a virgem triunfante que ascende aos céus, é a adorada de todos os tempos e de todos os povos do cristianismo.

A arte pagã representava a esposa em Juno, a mãe em Ceres, a virgem em Diana; a arte cristã reuniu em um único tipo o feminino eterno a esposa-mãe. O espírito ascético da idade média condenou a Virgem a encarar Jesus, não como seu filho, mas como seu Deus, não tendo para Ele senão olhares suplicantes; o ideal do espírito moderno colocou a maternidade no primeiro plano.

É justamente isso que fez o nosso artista; a Virgem Maria ali está no máximo esplendor da sua peregrina formosura; seu olhar casto e velado cai sobre a cabeça do esposo e, atravessando-a em uma torrente de magnético eflúvio, vai banhar em ondas de luz e de amor o tenro corpozinho que une ao estremecido peito.

O colorido suavíssimo da carnação da Senhora, o contorno delicado e puríssimo do rosto, a justeza da roupagem nos seios palpitantes, destinados à incomparável missão de alimentar o Redentor da humanidade, o lenço atado com campesino donaire, o braço que desce descuidado segurando as rédeas do jumento, que sacia a sede no lagozinho em que mergulha as patas dianteiras, em tudo isso há tanta verdade e tanto primor artístico, que diante da Sacra Família o contemplador esquece tudo quanto o rodeia, para consubstanciar a sua admiração em um bravo , que repercute e repete a multidão, que acaba de admirar e de aplaudir o jovem artista.


[1] Sobre o mecenato de D. Pedro, ver: BISCARDI, Afrânio. ROCHA, Frederico Almeida. “O Mecenato Artístico de D. Pedro II e o Projeto Imperial”. In: 19&20 - A revista eletrônica de DezenoveVinte. Volume I, n. 1, maio de 2006. Site: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/mecenato_dpedro.htm

[2] Durante a sua estada na capital francesa, participou de quatro edições do Salon des Artistes Français.

[3] Provavelmente no período que Félix Ferreira escreveu esse comentário a decoração do Palazzo Farnese era atribuída a Rafael. Atualmente se sabe que os decoradores que ali atuaram foram Daniele da Volterra, Francesco Salviati, Taddeo Zuccari, Annibale Carracci  e Agostino Carracci.

[4] Apesar de O derrubador brasileiro, de Almeida Junior, apresentado no Brasil em 1883, ter tido algum sucesso, abrindo, mesmo, uma via temática para outros artistas, o quadro foi bastante criticado na imprensa do período.  O pintor intentava representar um homem ligado à terra, o que era novidade no Brasil da de então, mas apesar da temática agradar, Almeida Júnior  apresentava, segundo os críticos,  ainda resquícios da estilização da academia, com o modelo em pose forçada (tratava-se de um modelo italiano de nome Mariscalo), e aparência de iluminação de ateliê.

[5] É possível que Felix Ferreira se refira a René Joseph Ménard (1827-1887) escritor e pintor. São dele os livros Histoire des arts decoratifs (Paris, s.d.) e Histoire des Beaux-Arts, Paris (1875).