Carta
aberta de Almeida Júnior a Benedito Calixto: Antecedentes e desdobramentos
organização de Ana
Paula Nascimento [1]
NASCIMENTO,
Ana Paula (org.). Carta aberta
de Almeida Júnior a Benedito Calixto: Antecedentes e desdobramentos. 19&20, Rio de Janeiro, v. XI, n. 2, jul.-dez. 2016. https://www.doi.org/10.52913/19e20.XI2.02
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* *
A carta aberta de José Ferraz de Almeida
Júnior a Benedito Calixto de
Jesus que abaixo transcrevemos
(Documento VI), publicada no Correio
Paulistano de 3 agosto de 1890, é um dos poucos depoimentos públicos do
pintor ituano sobre o que ele considerava a boa pintura, o mercado artístico no
Brasil e a necessidade dos artistas de se sujeitarem aos compradores. Vale a
pena destacar alguns aspectos tratados, tais como: as premissas do ofício do
artista, a incompreensão do público e as dificuldades de formação local - sem
escolas especializadas, livros e revistas e, tampouco, museus ou instituições
congêneres. Almeida Júnior analisa alguns pontos das pinturas de Calixto, mas
amplia o debate para mostrar as dificuldades enfrentadas por aqueles que se
dedicavam ao ofício artístico, ao menos no estado de São Paulo.
Abaixo, transcrevemos também
artigos publicados antes e depois da carta de Almeida Junior a Calixto, que nos
permitem compreender melhor o contexto em que esta última surgiu. A ortografia dos textos foi atualizada - exceto nos títulos,
com o intuito de facilitar a localização do material. Quanto à pontuação,
manteve-se como publicada originalmente. Os textos ora transcritos já foram
parcialmente citados por diversos autores, sob distintos pontos de vista. Em
trabalho a ser publicado em edição futura de 19&20, discutiremos o material aqui disponibilizado, com a
intenção de agregar informações que possam auxiliar novas pesquisas e ampliar a
reflexão sobre o ambiente artístico na cidade de São Paulo no final do século
XX.
*
Documento I - BENEDICTO
Calixto. O Estado de S. Paulo, 23 jul. 1890, p. 1.
Vimos ontem seis quadros deste
esperançoso pintor santista, que estão expostos e à venda na conhecida Casa
Levy.
Julgando o jovem artista
por estes quadros, e sabendo que lhe tem faltado completamente os mestres e os
modelos para o seu aprendizado, só lhe podemos dizer que estude e procure
observar os quadros dos mestres.
Não há dúvida que o sr.
Calixto tem talento para a paisagem, e que desenha regularmente; mas há nos
seus quadros uma feição de oleografia, um ar de pintura industrial, que não
podem deixar de desgostar os amadores da verdadeira arte.
Sem mestres e sem um
meio artístico que lhe possa desenvolver as naturais aptidões, o talento do
pintor santista atrofiar-se-á completamente, se ele continuar a ver os cromos
com o que o mau gosto dos burgueses sem cultivo adorna os seus gabinetes e até
as suas salas de visitas.
Os quadros que mais se
ressentem destes defeitos são os dois maiores, de floresta, ambos com regato
encachoeirado ao centro. Em um deles, onde o regato forma um pequeno lago,
nadam vários marrecos pouco felizes; a água é dura e amaneirada e o colorido
falsíssimo; é menos infeliz o outro quadro, que tem bonitos trechos de bosque,
bem arejados e com bom efeito de luz ao fundo. A paisagem é confusa nos planos
superiores; o artista ainda não alcançou a ciência da gradação das tintas, que
dá efeito das distâncias sem confundir as partes do assunto.
Dos dois quadrinhos de
flores, um é muito mau, e outro tem umas papoulas bem pintadas, a que um pouco
mais de vigor no colorido emprestaria bom efeito. Ambos estes quadrinhos são
prejudicados por umas borboletas grandes, pintadas com muita escassez de cores
e de brilho; parecem borboletas mortas, espetadas ali com alfinetes.
Há também uma marinha, de Itanhaém,
que só tem de bom alguns tons do colorido do mar, de um verde claro,
transparente, bem observado.
O melhor quadro exposto
é uma pequena paisagem, com uma casa de campo à direita, o mar ao fundo,
contornado de montanhas azuladas pela distância, e um braço d’água que vem até
o primeiro plano, leve e transparente.
Há em todo o quadro uma
agradável frescura e bastante ar.
Dizem-nos que o sr.
Calixto tem feito quadros melhores do que os que estão na Casa Levy: mas estes
são suficientes para que avaliemos o seu talento e para que lamentamos vê-lo
seguir por um caminho perigoso.
Para ser artista precisa
retroceder e começar a estudar seriamente. No Rio há hoje um grupo de rapazes
que ensinam Belas Artes gratuitamente, em cursos livre, há poucos dias inaugurados.
Vá o sr. Calixto até lá: trabalhe, estude, porque, por enquanto, é do que
precisa mais; depois pintará quadros para expor e fazer o seu nome de artista.
***
Documento II
- D’ALMA, Mario. Benedicto Calixto. Correio Paulistano, São Paulo,
29 jul. 1890, p. 2. (Coluna “Lápis-lazuli”). Edição 10.168
Lembro-me de uma vez em
que, no ateliê de Almeida Júnior, extasiado ante a admirável tela - Caipiras
negaceando -, silenciávamos eu o artista, eu de enlevo, ele de respeito
pela minha emoção: quando nos entram porta adentro dois sujeitos. Um deles - é
o que nos interessa - rapazola, fazia as suas primeiras armas literárias,
floreteando com pena inábil em assuntos de crítica de arte; subscrevia-se Karvalho,
com K e tinha os juízes tão singulares como a ortografia do seu apelido.
Pois este mocinho,
depois de passar os olhos pelos estudos que forram as paredes do ateliê,
olhou para os Caipiras, sorriu, revirou os olhos outra vez pelas paredes
e, voltando-se, com ar importante, para Almeida Júnior:
— O sr. tem o defeito de
quase todos artistas - a cor predileta...
— Hein?...
— O sr. vê tudo roixo.
— Roixo?!
entreolhamo-nos, pasmos.
— Roixo, sim! olhe para
aquela mata.
Olhei.
— Não percebe que ali
domina o roixo, que há um tom arroxeado em tudo?
Para mim tudo estava
como devia estar, com sua nuance própria: - as frondagens - verdes, o chão -cor
de folhas secas, os caçadores - cor de gente da roça, que vive ao sol.
— E o roixo?
Estava, quanto a mim,
nos nervos ópticos do sujeito.
¯
Ainda estes dias, um
crítico, pelo Estado, disse das paisagens de Benedito Calixto, expostas
[na Casa] do Levy , - que lhe davam a impressão de cromos.
Fui olhar as paisagens
e, não me causando elas impressão análoga, depreendi que o crítico no. 2
exergara cromo, do mesmo modo porque o no. 1 o que tinha K no
nome, enxergara roixo.
Pus-me a olhar, por meu
turno, com uma intenção analítica para as telas do paisagista, e:
— Aqui está o Calixto
que vê amarelo, disse comigo mesmo ao notar ao fundo da mata uma
amarelidão de tom, intensa bastante para dar na vista a mim, que
estou acostumado a ver diferentemente a cor das massas vegetatitas no
interior da floresta.
Depois confrontei os
dois modos de enxergar e conclui que - assim como tantas sentenças há quantas
cabeças; assim também, quantos pares d’olhos, tantas modalidades de visão.
Eu, por exemplo, se
fosse um Calixto, havia de pintar os recessos florestais de maneira a que o
observador parecesse estar sempre prestes a esbarrar com o nariz de encontro às
árvores; sendo esta a minha maneira (comum aos prosélitos) de enxergar na
penumbra das mata; tanto que me é frequente, quando vou indo por trilha ladeada
de árvores, umbrosa, levar subitamente a mão ante o rosto, para antepara-lo
contra um galho, cujo afastamento é relativamente grande mas que, entretanto,
por um defeito funcional da visão me parecera quase contíguo ao rosto.
Ora, isto que se dá
quanto à percepção das distâncias, acontece igualmente com a sensação das
cores, e até em muito superior grau; sendo que, à feitura de um painel, tem o
artista, para retificar a falsa percepção da primeira hipótese, as leis
geométricas da perspectiva linear - absolutas; ao passo que para as ilusões
ópticas do colorido não há corretivo extra sensório, nem preceito algum na
tecnologia pictoresca.
¯
A mim, o que me pareceu
das paisagens de Benedicto Calixto foi que deviam ser louvadas pelo que têm de
bom, que bastante é, e que se lhes deve desculpar as imperfeições, atentos os
poucos estudos e o meio industrial, seco e avesso às emoções estéticas, em que
habita o artista.
Para quem sabe, por
dever de ofício, quanto custa o mínimo passo nesta contínua e longuíssima
trilha ascensional à perfeição artística; para quem sente, pela experiência
dolorosa das próprias lutas, quanto nos custa, artistas de todo gênero, chegar
a criar uma frase, um imagem, um linhamento, um acordo, uma nuança que nos
satisfaçam - a nós os eternos incontentáveis e os mais severos críticos das
nossas próprias criações; - que nos pareçam dignas da Arte; para quem isto sabe
e sente, o que primeiro ocorre, em face de qualquer obra artística sobre que
lhe seja oportuno emitir juízo, é dizer: quanta vida, quanta alma, quanto
talento, quantos esforços e lutas não foram precisos ao pobre diabo que isto
fez - possuir, dispender ou ferir para realizar aquele pequeno nada, - aquela
frase, aquela imagem, aquela nuança, aquele acorde - ante o qual passa
indiferente ou malévola e distraída atenção pública!
Por isso, ao contemplar
as paisagens de Benedito Calixto foi, primeiro, admiração, depois... piedade o
que senti; admiração pelo que há de ter custado ao artista emergir da sua
pobreza e da sua obscuridade até o degrau a que ascendeu na escala dos
trabalhadores, de talento, que será talvez mediano degrau, mas que fica muito
acima do ponto inicial de partida; o que, se já não é uma estação em plena
glória, é todavia um posto honroso, o plano superior de um pedestal construído
à força e à paciência, de estudo e de perseverança.
Até aqui a admiração;
agora, a piedade! Piedade por que? Por este martírio que se chama o talento,
numa terra em que não há um artista que possa alimentar um filho com o que a
sua arte lhe dá.
¯
Mas isto não é crítica!
Convenho. Nem se pode criticar um quadro sem te-lo à nossa frente, tendo ao
mesmo tempo o nosso leitor ao lado.
De que serviria eu
dizer, por exemplo, que as águas da cascata não se refletem sensivelmente nas
pedras de que se avizinham, ou que há um tom muito uniforme na verdura do
musgo? Nem o leitor tem diante de si o quadro para confronto, nem eu tenho ante
mim o trecho de natureza que o artista reproduziu na tela.
Criticar é, pois, muito
grave, e eu não me abalanço a fazê-lo. Mas dizer a impressão que me causaram as
telas de Benedicto Calixto, isso digo-o: - foi tão agradável que eu as comprei
(para um amigo).
E agora, aqui, no
repouso da minha sala, revendo-as demoradamente, em tranquilidade, não posso
deixar de reconhecer que elas revelam muito talento e que...
¯
... decerto ninguém
poderá querer que um Meissonier, ou um Rafael custe 200$000.
MARIO D’ALMA
***
Documento III
- TAGARELLA. Duas palavras. O Estado de S. Paulo, 29 jul. 1890, p.
1.
Conhecem os srs. estes
balõezinhos de borracha, cheios de gás, que as crianças costumam trazer presos
por um nó de linha?
Conhecem decerto, porque
eles são vulgaríssimos. Pois esses balõezinhos, à menor picada de alfinete,
rebentam com tal estrondo que parecem tiro de canhão!
Muito parecido com tais
balões de borracha é o jovem pintor santista Benedito Calixto.
Com uma benevolência
digna de melhor emprego, o Estado de S. Paulo deu-lhe há dias um conselho
de amigo, conselho que a crítica justa só costuma dar aos artistas em quem
reconhece boas qualidades. Pois foi como se lhe tivessem espectado um alfinete.
O jovem pintor estourou como um dos tais balõezinhos, e veio pelo Diário da
Manhã, de Santos, estadear a sua fofíssima vaidade de principiante
assoprado por amigos-ursos, pela turba de lisongeiros, absolutamente ignorantes
de coisas d’arte, como um tal Alberto Sousa que o secundou na mesma folha,
chamando incrivelmente injustas a crítica por demais benévola do Estado.
Porque é preciso repetir
que os seis quadros a que o Estado se referiu, tirante uma paisagem,
são, julgados no conjunto, verdadeiras botas.
Tanto Calixto como Sousa
se socorrem da opinião de Almeida Júnior para esmagar a crítica do Estado.
Em primeiro lugar
deve-se dizer que a estes senhores sensibilíssimos que a opinião dos artistas é
quase sempre suspeita. Mas que o não seja a do notável pintor paulista... Que
escreveu ele a Calixto, há três ou quatro anos?
“Vi expostos aqui os seus
trabalhos dos quais chamaram-me particular atenção a Cachoeira de Geribatiba
e a Praia de Caitê, os quais revelam progresso muito sensível sobre os
seus trabalhos anteriores etc. Enfim, mais uma vez animo o amigo, com toda a
sinceridade, a continuar a estudar a paisagem, do natural.”
O que Almeida Júnior diz
ao sr. Calixto é que acha os seus quadros de tal época melhores que os
anteriores, e que o anima a continuar a estudar.
Pois saiba agora o sr.
Calixto que o mesmíssimo Almeida Júnior indagou quem era o crítico do Estado,
cumprimentou-o pelo artigo sobre os quadros expostos na Casa Levy, e disse-lhe
que “se a imprensa dissesse sempre assim a verdade aos artistas, eles
aproveitariam muito mais e fariam caso da opinião dos jornais.”
Já vê o sr. Calixto que
Almeida Júnior pode considerar os seus quadros ora expostos como os melhores
que tem produzido o pincel do sr. Calixto, sem que por isso deixe de
reconhecer, com o crítico do Estado, que o pintor santista ainda tem
muito que aprender, e que, portanto, deve estudar.
Almeida Júnior
mostrou-se e declarou-se de pleno acordo com o crítico e não será capaz de
dizer o contrário ao sr. Calixto.
A verdade é que Almeida
Júnior, na sua larga bondade de sertanejo, quer que o sr. Calixto estude, e
anima-o para isso, ao passo que o sr. Calixto já se julga um pintor feito, tem
lá o ingênuo Sousa para o adjetivar, e pensa que são de consagração as palavras
de simples animação que lhe tem dirigido a autor dos Caipiras Negaceando.
O crítico do Estado
não podia dizer se os quadros agora expostos são os melhores que tem pintado o
sr. Calixto, porque foram estes os primeiros que viu do pintor santista.
E se mostrou tão
benévolo, a ponto de tolerar aqueles dois de papoulas e borboletas, verdadeiras
monstruosidades artísticas, sem colorido, sem expressão, sem ar, sem vida, sem
sombra de talento, – foi porque lhe disseram que o sr. Calixto apenas saíra de
Santos para estar oito ou nove dias na Europa, de onde repentinamente tivera de
regressar por passamento de pessoa da família.
Feita, porém, pelo jovem
pintor, a declaração de que esteve 18 meses em Paris, isto é – tempo suficiente
para aprender, pelo menos, a não pintar aquilo que expôs: – sabido que tomou
lições com Lefebvre, Boulanger, Bouguereau e Langerock, é natural que no
espírito do crítico hajam começado a nascer dúvidas acerca das qualidades
artísticas do sr. Calixto.
O crítico nunca viu
outros quadros do mesmo pintor, nem a outros se referia. Ainda agora lhe disse
um distinto engenheiro, amigo do pintor, que concordava com a crítica quanto
aos seis quadros ainda expostos na Casa Levy; mas que o sr. Calixto tinha
quadros muito melhores, inclusive um pelo mesmo engenheiro adquirido há dias e
que não foi visto pelo crítico... Mas o sr. Calixto diz que Almeida Júnior
declarara serem estes “A melhor coisa sua que tem visto”...
Como diabo poderão
julgar estas coisas?
***
Documento IV - CALIXTO,
Benedicto. Ao “Estado de S. Paulo”. O Mercantil, São Paulo, 30 jul.
1890, p. 1. Edição 1.774
Há três ou quatro anos o
modesto pintor que assina estas linhas expôs em São Paulo alguns dos seus
quadros, não por aparecer, nem por amor à glória, simplemente para satisfazer o
pedido de alguns amigos.
Dentre as apreciações
que se fizeram a esses meus trabalhos, notou-se a crítica severa de um Aristarcho
que, sob o pseudônimo de Passepartout, pelo Diário Popular,
fazendo o confronto desses quadros com outros anteriores, disse - que o pintor
havia retrogradado muito, que seus quadros não tinham mais aquela nota vibrante,
aquele cunho real de artista observador, que a Cachoeira de Geribatiba e
a Praia do Caitê eram péssimas, duras, sem perspectiva, sem ar, sem
transparência nas águas... Um bota, enfim.
Por essa ocasião, quando
era assim rigorosamente criticado, recebia eu do meu colega e eminente artista
Almeida Júnior, uma carta em que me dizia: “... com efeito, estando em Santos
há seis meses, tive ocasião de apreciar os seus trabalhos, e achando que eles
revelavam um bonito talento relativamente desenvolvido e atendendo ao tempo em
que o amigo se deu a estudos regulares, animei-o a vir expô-los em S. Paulo
etc.”
“Vi expostos aqui os
seus trabalhos, dos quais chamaram-me particular atenção a Cachoeira de
Geribatiba e a Praia do Caitê[2]
os quais revelam progresso muito sensível sobre os seus trabalhos anteriores
etc.... Enfim, mais uma vez animo o amigo, com toda a sinceridade, a continuar
a estudar paisagem do natural...”.
Esta abalisadíssima
opinião destruiria completamente a crítica de Passepartout, se eu
quisesse naquele tempo me defender das suas injustiças; porém não o quis,
preferi seguir os conselhos do grande artista, meu colega e amigo.
Estudei.
E para provar que de
fato tenho trabalhado e estudado aí estão os meus numerosos trabalhos d’après
nature; os meus ensaios na pintura de gênero: O bom vizinho e o Ajuste
de contas; o grande quadro - Panorama da cidade de Santos, trabalho
ingrato e difícil, na execução do qual posso desvanecer-me, modéstia à parte,
de ter sido muito feliz, sobretudo na realidade do colorido e na perspectiva
aérea.
Aí estão também as marinhas
do porto de Santos, quadros palpitantes de vida, que têm sido na maior parte
vendidos para a Alemanha e para outros pontos da Europa.
Agora, há dias,
aproveitando a minha estada em S. Paulo, levei alguns quadros novos com o
propósito de vendê-los. Mostrei-os primeiramente ao meu ilustre colega Almeida
Júnior, a quem pedi uma opinião a respeito deles. Almeida Júnior apreciou os quadros:
disse-me que são A MELHOR COISA MINHA QUE TEM VISTO; disse-me que as PAISAGENS
são sobretudo muito BRASILEIRAS e denotam OBSERVAÇÃO E ESTUDO; enfim, que eu
devia expor esses trabalhos.
Entretanto, depois das
críticas benévolas que me fizeram diversos jornais, um - Passepartout 2o
- surgiu no Estado de S. Paulo e referindo-se a esses dois quadros
especialmente apreciados pelo meu ilustre mestre Almeida Júnior, diz isto:
“Não há dúvida de que o
sr. Calixto tem talento para a paisagem, e que desenha regularmente: mas há nos
seus quadros uma feição de oleografia, um ar de pintura industrial, que não
podem deixar de desgostar os amadores da verdadeira arte”..
“Sem mestres e sem um
meio artístico que lhe possa desenvolver as naturais aptidões, o talento do
pintor santista atrofiar-se-a completamente, se ele continuar a ver os
cromos com que o mau gosto dos burgueses sem cultivo adorna os seus gabinetes
e até as suas salas de visitas”.
“Os quadros que mais se
ressentem destes efeitos são os DOIS MAIORES DE FLORESTA, ambos com regato
encachoeirado ao centro. Em um deles, onde o regato forma um pequeno lago forma
um pequeno lago, nadam vários marrecos pouco felizes:[3]
A ÁGUA É DURA E MANEIRADA E O COLORIDO FALSÍSSIMO; É MENOS INFELIZ O OUTRO
QUADRO”.
E estes quadros são
justamente os que mais agradaram a Almeida Júnior, pelo bem estudado do
colorido!
De maneira que a opinião
deste amador da verdadeira arte contradiz a do artista mestre. E entre
essas duas opiniões, a do amador e a do mestre, dê-me licença para aceitar a do
último.
Adiante diz o crítico:
“Julgando o jovem
artista por estes quadros, e sabendo que lhe tem faltado completamente os
mestres e os modelos para seu aprendizado, só lhe podemos dizer que estude e
procure observar quadros de mestres.”
Mas, por Deus, ainda não
fiz outra coisa desde que aqui cheguei e meu progresso é manifesto, sem dúvida
nenhuma.
Nos 18 meses que estive
em Paris não fiz outra coisa. Para prova aí estão os meus estudos de academias
e as minhas esquisses de composição na Academia Julian, onde tive por
professor Lefebvre, Gustave Boulanger (membro do Instituto de França) e
Bouguereau. Recebi lições de paisagem com o grande paisagista Henri Langerock,
o pintor dos célebres panoramas de Nice e Telelkebier, que hoje se exibe em
Londres.
Deste último professor
possuo atestados e provas de amizade e estima que muito me honram.
Diz ainda o crítico:
“Para ser artista
precisa retroceder e começar a estudar seriamente. No Rio há hoje um grupo de
rapazes que ensinam Belas Artes gratuitamente, em cursos livres, há poucos dias
inaugurados. Vá o sr. Calixto até lá; trabalhe, estude, porque, por enquanto, é
do que precisa mais; depois pintará quadros para expor, e fazer o seu nome de
artista.”
De maneira que, para que
eu hoje tenha o direito de ser artista, preciso retroceder, começar
outra vez pelo a b c, cursar o ensino livre no Rio... ou o Liceu de S.
Paulo... Quando não, não tenho o direito de expor ali, onde há tantos
amadores da verdadeira arte.
Mas eu ainda tenho bem
viva a impressão agradável que me produziram as grandes manifestações da arte,
desde Michelangelo e Veronese até Moreau, desde Rafael e Murillo até Meissonier
e Bouguereau, desde Salvador Rosa até Detaille e De Neville.
Essas obras-primas da
arte passaram diante de meus olhos, não com a rapidez de um diorama mecânico,
mas com a lentidão precisa a um objeto que se analisa , a uma obra que se
estuda.
Vi-os com os olhos de
artista estudioso e não com lance de olhos de touriste ou de... amador
das artes.
Em conclusão:
O artista precisa de
crítica, de crítica severa mas justa, que o eduque, que o aperfeiçoe, mas não
de opiniões banais e pretenciosas que o procurem desanimar e desnortear.
Se eu conhecesse que
para cultivar a paisagem, hoje, não me era bastante este grande mestre — a natureza,
e precisasse estudar de novo, então voltaria à Europa, pois para isso tenho
sempre franca a proteção desinteressada do meu grande amigo e protetor, o exm.
Visconde de Vergueiro.
¯
Eu não desejo frases
bombásticas e nem quero que se gastem comigo adjetivos que me tornem ridículo
aos olhos do público inteligente.
Não. Quero simplesmente
que se me faça justiça. Sei perfeitamente que não sou um gênio, conheço a minha
mediocridade, o que não me impede de conhecer também a diferença visível entre
mim e os taveiras [?] para os quais outros são às vezes pródigos em
excesso e aos quais os amadores da verdadeira arte não trepidam em dar o
título - artista.
BENEDICTO CALIXTO
***
Documento V-
LUCIFER. Diabinhos azues. Correio Paulistano, São Paulo, 30 jul. 1890,
p. 2. Edição 10.169
Diabo! Perdoe-me sempre
por ser franco. Estou aqui, estou a arder por introduzir o meu bedelho na
pegadinha artística travada entre o Tagarella,
o Calixto e o Sousa.
Nem tanto, nem tão
pouco.
Afirma Tagarella
ser o quadro de Benedito uma bota. O Sousa nega redondamente essa
afirmação. O Calixto sai a campo e passa uma reprimenda no Tagarella.
Este replica. O Sousa
também replica.
Uma bota!
O Benedito Calixto,
apesar de ainda ser um discípulo, não está mais na idade de pintar o caneco, o
padre, a manta, o demo, e muito menos.. botas.
Por esse lado não há
dúvida alguma que Tagarella foi excessivo na classificação.
O sr. Calixto poderá ter
defeitos, e os têm com certeza, mas o que é exato é que passou já aquela quadra
em que o artista pinta... monos, julgando pintar anjos.
Agora entendo também que
o Sousa tem apertado em demasia a craveira dos elogios. O sr. Calixto deve ser
acoroçoado, é verdade, por todos aqueles que empunham uma pena, mas também não
deve e nem pode ser elevado a uma altura tal que ateste no estrelado céu da
suma perfeição. O pintor santista é ainda um discípulo, e não um mestre,
repito.
Não pinta botas,
mas também não pinta obras-primas.
A crítica brasileira
afez-se a julgar absolutamente de todo e qualquer trabalho artístico. Deprime
ou elogia.
É o caso:
Calixto pinta um quadro
e o expõe. Aparece o crítico e escreve: “Isto não presta, isto é uma bota”.
Não é assim, exigente e
ilustrado Tagarella.
Est modus in rebus,[5]
como dizia o cônego Filipe.
O sr. Benedito Calixto é
um pintor de talento, porém não dispõe de meios para fugir do meio em
que vive. Ademais, qualquer trabalho seu pode ser apreciado devidamente no seu
justo valor artístico, sem que se lhe atire ao rosto com o insultuoso carimbo
de borra-botas.
Com isto porém não julgue
Tagarella que gostei do artigo escrito pelo sr. Calixto em defesa de
seus quadros. Por Apeles![5]
O sr. Calixto
enfuncou-se em demasia citando os nomes de seus professores em Paris. Isso nada
prova. Calixto podia ter estado em Paris vinte e tantos anos e podia ter
regressado com a mesma bagagem de conhecimentos com que para lá partiu.
Não se deu isso,
felizmente.
Calixto possui ardente
vocação para a pintura, e durante o pouco tempo em que lá esteve, aprendeu
muito.
Assim, pois, tirante o
enfunamento de Calixto, tirante o exagero a mais de Sousa e o exagero a menos
de Tagarella, a pegadilha deixa de existir.
***
Documento VI
- ALMEIDA Júnior. A Benedito Calixto. Correio Paulistano, São Paulo,
3 ago. 1890, p. 2-3. Edição 10.173
Só ontem, à noite,
estando a conversar com um amigo, foi que, incidentemente tive conhecimento do
artigo inserto no Estado de 29 do mês findo, e assinado Tagarella.
Nesse artigo, que
suponho ser do sr. Filinto[6]
de Almeida, teve o autor o mau grado a crueldade de querer fazer de mim gato
morto para amesquinhar o talento do meu colega Benedito Calixto,
colocando-me ao mesmo tempo em situação dúbia, desagradável e pouco digna.
É no que não poderia eu
consentir, sob pena de deixar expostos o meu critério e a minha lealdade a
perigos menos lisongeiros por parte do público.
Por isso, sou forçado a
sair do natural retraimento em que vivo, para vir safar o meu nome da
alternativa desonrosa em que o colocou o crítico do Estado.
Não intervirei na
discussão senão quanto baste para explicar os fatos no que me dizem respeito.
Antes de tudo devo pedir
perdão ao meu distinto colega Benedito Calixto da amargura involuntária que lhe
causei, ou melhor, que outrem lhe causou, servindo-se do meu insignificante
nome.
Imagino a decepção que
havia ele de ter sentido vendo desmentidos por um conceito ulterior aos meus
juízos lisongeiros acerca de seu talento e dos seus progressos artísticos;
juízos que, embora sem valor algum de crítica, o meu colega teve a gentileza de
invocar em defesa daqueles fatos desconhecidos pelo articulista do Estado.
E já quem a propósito,
embora reconheça que a minha opinião pouco adianta à fama do meu colega,
confirmo em tudo os lisongeiros conceitos que tenho por por vezes emitido
acerca das suas aptidões e dos seus progressos.
Sei que o meu colega não
é um mestre na nobre e difícil arte da pintura, assim como eu não o sou, nem no
Brasil ninguém é, e mesmo na Europa pouquíssimos o são; mas daí a negar-lhe
talento e a dizer que seus últimos trabalhos expostos são verdadeiras botas há
uma severidade excessiva que descamba para a injustiça.
Se me é permitido julgar
pela minha própria experiência direi que quando parti para a Europa a estudar
pintura, já eu tinha o curso da nossa Academia de Belas Artes;[7]
pois estive em Paris seis anos aprendendo com os melhores mestres, e de lá
voltei ainda muito ignorante nos altos segredos da arte e encontrando
dificuldades extrordinárias em interpretar e reproduzir a natureza brasileira.
Eu não poderia, pois,
desconhecer o talento do meu colega Calixto, vendo que ele com 18 meses apenas
de aprendizagem em Paris faz o que faz.
Pelo contrário, foi o
que sempre afirmei, e aqui o repito, que os seus quadros revelam muito talento,
apesar de alguns defeitos; que as suas paisagens do natural, principalmente,
revelam muita observação e muito estudo; que, embora se lhe possa notar uma
certa crudeza de tons, elas dão, entretanto o sentimento da realidade e têm o
caráter da natureza brasileira. Isto já é muito.
E ainda aqui tenho o
prazer de louvar no meu talentoso colega a orientação que ele dá aos seus
estudos, procurando observar, sentir, inspirar-se do natural e reproduzi-lo;
embora às vezes pareça que se submete à necessidade para um artista pobre de
armar a efeito perante o mau gosto muitas vezes intolerável do público que
compra as obras d’arte e faz viverem os artistas.
Essa opinião não foi
desfeita, antes confirmada pelas paisagens do meu colega recentemente expostas
e que deram ocasião à crítica aludida.
Não direi que sejam
trabalhos perfeitos; mas que revelam adiantamento, progresso, e talento no
autor, isso revelam; ou eu não sei o que sejam o talento artístico e a técnica
da pintura.
Confirmo, pois, o que
disse dos aludidos trabalhos: “que são a melhor coisa que tenho visto” do meu
colega; e isto sem incorrer em contradição.
Tudo é relativo no
julgamento das obras d’arte; e foi sob este ponto de vista que eu aplaudi o
merecimento das telas de Calixto, atendendo principalmente ao seu
brevíssimo tirocínio artístico sob a direção de mestres competentes.
Não posso, pois, levar a
bem que o crítico do Estado invoque o meu testemunho e o declare “de
pleno acordo com o seu”, em um artigo em que qualifica de “verdadeiras botas”
os quadros do meu talentoso colega.
¯
“Como diabo se poderão julgar
estas coisas?” pergunta o crítico ao terminar o seu artigo.
Da seguinte maneira:
— Em primeiro lugar,
afirmando em que não procurei o crítico para declarar-me “de pleno acordo” com
o seu artigo, conforme se poderia depreender à leitura do mesmo; mas que essa
declaração fi-la, já não me lembro bem se em um encontro casual na rua, ou se
fortuitamente em minha casa, no dia em que saiu publicado o referido artigo.
Como quer que fosse, lembro-me bem de que a conversa em que aquilo disse tinha
um caráter puramente particular, estando eu muito longe de imaginar que fosse
mais tarde trazida a público.
Se eu tal imaginasse,
teria sido mais explícito em meu pensamento – que era notar a propriedade do
símile empregado pelo crítico para dar a ideia da impressão que à gente de
gosto educado deve causar a vivacidade do colorido das telas de Benedito
Calixto; mas teria, igualmente, salientado as qualidades das mesmas telas, e
que posso indicar de um modo largo, dizendo: - o desenho é em geral bom, e
merece em certos pontos os mais francos elogios dos entendidos na difícil arte
da qual afirmava Ingres, neste conceito que ainda hoje se vê gravado na
Academia das Belas Artes de Paris: - Le dessin c’est la probité de l’art.[8]
A restrição única dos
meus elogios à bondade do desenho consistiria em dizer: - há nos primeiros
planos uma certa dureza nas linhas, com que o artista procura obter a energia
que deve salientar estes planos, e que a meu ver conseguiria com muito mais
propriedade artística pela maneira de modelar.
É próprio de um jovem
artista talentoso e inexperto impressionar-se com o seu trabalho e procurar
dar-lhe relevo pela energia de certas expressões; no caso de Benedito Calixto é
uma exagerada nitidez das linhas dos primeiros planos, degenerando em sequidão.
Quanto ao colorido,
possuem as telas do meu colega certos trechos muito louváveis; mas noto em
geral a crueza dos tons. Este é defeito de muitos mestres, sendo que outros
incidem no defeito oposto, de só pintarem em tons neutros.
Aqui vem a propósito
observar haver nos artistas certos deleites que são verdadeiras jaças[9]
do talento e, portanto, incorrigíveis; outros defeitos, porém, facilmente
sanáveis dependem, já da inexperiêmcia do artista, já do meio em que ele vive,
ou de ambas as causas conjuntamente.
É o caso do meu colega
santista. A demasia do seu colorido posso atribuir, presumo, primeiro, ao seu
pequeno tirocínio, a de ciência da prática idônea da observação tanto da
natureza como das obras-primas d’arte que a reproduzira; em segundo lugar e, principalmente,
à influência do meio antiartístico em que vive Calixto, em que vivemos os
artistas brasileiros.
Não é o meu colega, não
somos nós, que nos inspiramos nas oleografias estrangeiras para temperar
o colorido das nossas paletas; é, pelo contrário, o nosso povo, inculto ainda
para as finezas d’Arte, que nos pede, que nos compra, que de nós exige - oleografias.
O brasileiro gosta das
cores vivas: basta olharmos para a pintura externa dos nossos prédios, para os
motivos da decoração interior das casas, para as espetaculosas toilettes
das senhoras: —em tudo domina o tom oleografia, o gosto pelas cores
fortes, o desdém pelos tons médios.
Parece que não estão os
nossos nervos ópticos ainda suficientemente educados para sentirem a impressão
delicada dos tons neutros.
Eis
porque, por exemplo, os trabalhos do meu colega Rossi não tem sido devidamente
apreciados entre nós, não obstante ser este artista um fino observador da
Natureza e um criterioso artista.
Eis porque o meu colega
Calixto tende naturalmente a afeiçoar as suas obras ao gosto do público.
Fazer arte pela arte é
dom para os dilettanti ou para artistas ricos; os artistas pobres
precisam de viver, e para viver precisam de vender as suas telas; quem as
compra? o público; de que gosta o público? de oleografias; pois
demos-lhe oleografias!
Isto parece lógico,
senão perante a religião da arte, ao menos perante a inexorabilidade do
estômago; principalmente quando, como no caso do meu colega, a gente sente fome
pelos estômagos dos filhos.
Eu, permitam-me
trazer-me como exemplo, eu pinto retratos, que teria vexame de mostrar a um
colega conhecedor do ofício; mas que, entretanto, agradam a quem m’os paga; e
não agradariam, se não fossem um tanto oleografados - ao gosto do
freguês.
O freguês! - aí está
quem carrega de tintas vivas as paletas do pintor brasileiro! Se lhe dermos um
quadro como obtivemos da natureza, em toda a sinceridade, simples, de tons
neutros, o freguês não quer, e ficaremos nós, de estômago vazio, a ver navios e
as nossas telas pelas paredes do ateliê, entregues à nossa exclusiva admiração
e às teias d’aranhas.
O defeito, pois,
assinalado pela crítica nas paisagens do meu colega depende, pois, menos dele,
ou do seu talento, do que do meio em que trabalhamos.
É de esperar que esse
defeito seja sanado no dia em Benedito Calixto, despreocupado do gosto do
freguês, se resolver a modificar a sua maneira de colorir.
Persevere o meu colega
na observação da natureza, tenha confiança no seu talento, e emancipe-se do
público; tais seriam os meus conselhos se eu não soubesse quanta verdade
encerra a sentença de outro que dizia: Primum vivere, deinde... [10]
E esta é desgraçadamente
a triste contingência dos artistas brasileiros.
Aceite o distinto colega
a afirmação da minha estima pelo seu belo talento.
ALMEIDA JÚNIOR
S. Paulo, 2 de agosto de 1890.
***
Documento VII
- CAMPOS SOBRINHO, Américo de. Benedicto Calixto. Correio Paulistano,
São Paulo, 3 ago. 1890, p. 2. Edição 10.173
Dessa terra onde o
barulho selvagem das ondas se casa com o bafejo fresco e perfumado dos matagais
vicejantes;
Terra de praias
alvacentas e do mar que alaga numa morbidez de sultão, entre a fofa e macia
calentura do harém, a clâmide verde das suas águas;
Da terra do mar, das
praias das matas e dos pássaros, é que tem origem o adorável artista, o
simpático dono da paleta de ouro...
Benedito é um tipo
aloirado, tez meio queimada de sol, onde há um desmanchamento de cores fortes e
sadias; tez robusta; bigodes loiros, voz aflautada e doce...
Nasceu Calixto entre os
esplendores dessa bela terra, onde cada recanto de paisagem encerra a poesia
selvagem de mil poemas: onde a tradição de Brás Cubas imprime o caráter de cada
habitante, um sentimento altivo de independência e altruismo...
Nasceu ali, e logo a sua
alma de artista precisou saturar-se da vida forte das matas e da confortante
viração do mar e na tela simples do dilentante foi traçando com toda singeleza
os aspectos da natureza esplêndida que o cercava.
Quando tomou um novo
alento e um outro incentivo o impulsionou, Calixto reuniu os pinceis e
atirou-se ao Velho Mundo, indo em direitura à Paris onde a sua vontade forte e
o seu temperamento fa-lo-iam por força um artista.
Lá esteve oito meses.
Mourejou pelos boulevares,
viveu a vida simples do Quartier Latin, entre o conforto e o luxo
civilizado da velha capital, nunca esquecendo, porém, a sua pátria cheia de
poesia selvagem, com a sua vegetação, com a sua eterna primavera.
De lá veio com uns
retoques modernos das lições de Langerock na sua compleição artística,
genuinamente brasileira.
E desde então o artista
trabalhou sempre com um fervor a inundar-lhe a alma de umas risonhas esperanças
no futuro, sempre cercado de amigos, de admiradores.
Muito modestas, fazia
ele exposições de suas telas, e sempre um amador que lhe compreendia o talento
pagava-lhe com generosidade os quadros adoráveis.
Agora estiveram aí em
exposição seis trabalhos seus que se não primam na coletividade, pode-se com
toda justiça destacar dentre eles verdadeiras obras de arte.
Há lá dois magníficos d’après
nature.
Num, o artista copiou a
natureza, com primorosa fidelidade, trechos de mato verdes, uma cascatinha se
escachoando pelas pedras limosas da barranca, e cá embaixo, onde a água se
espraia transparente e límpida um gamo estaca, sorrateiro e cauto com o seu
belo ar desconfiado.
Ao fundo da tela um
claro aberto no sombrio da floresta, esmaecido no forte tom verde do quadro, e
se ergue na linha do horizonte uma palmeira, recebendo a luz do sol em cheio,
denunciando a sua elegante silhueta.
Um belíssimo quadro!
O outro também dum
pitoresco assunto que revela o talento do paisagista.
Vi lá uma deliciosa
marinha (e as marinhas são o meu fraco em matéria de pintura), fresca,
alegre...
Em Itanhaém, um trecho
de praia, Sapucahetava, como pitorescamente lhe denomina o artista: mas
um trecho de praia alagado de vida, cheio de sol, beijado pelo mar, que o
franja com uma orla branca de espuma.
Al lado, umas pedras
deitadas, onde um bando ruidoso de gaivotas abate o vôo, se derramando por uma
encosta esverdeada, de um belo verde violento, mordido pelo sol...
É para mim o mais
sugestivo dos que estiveram expostos na Casa Levy.
Agora falemos um pouco
sobre a individualidade artística de Calixto, justamente hoje que rompeu no
jornalismo de S. Paulo e Santos uma desenfreada polêmica sobre o artista.
Filinto de Almeida, o
corretíssimo poeta, o cronista encantador, olhou as telas do modesto artista,
com um sombrio desdém, acusando-o dolorosamente de copiador de olegrafias!
Depois chamou-lhe os
quadros de botas!
Mas pelo amor da arte,
ilustre irmão de Belmiro de Almeida![11]
É justamente a qualidade
que torna para mim extremamente simpática a personalidade artística de Calixto
essa que faz dele fidelíssimo copiador da natureza.
Depois Calixto tanto é
um paisagista de pulso, que conhece perfeitamente a aliança que torna
verdadeiro o belo na arte.
Explico-me.
Calixto não copia
somente um trecho da natureza, reproduzindo-o fielmente na tela, ele sabe aliar
essa produção ao sentimento pessoal, espontâneo, da sua alma sincera de
artista.
Ele copia a natureza mas
passa essa reprodução através da sua alma.
A concepção de uma tela
sai do seu pincel, como se fora um pedaço da sua alma, que se encaixasse dentro
da moldura.
Não, o poeta da Lírica,
não foi justo.
Antes, da sua pena
adestrada, deveria sair por força um melhor conceito sobre o pintor santista.
Que o público não
gostasse das telas do Calixto, e isso mesmo eu não admitia; mas que o público
não gostasse fosse esse que rodopia diariamente pelas ruas elegantes, sem ter
na alma uma ideia bem formada sobre as nossas matas, as nossas praias, que
constituem o melhor cabedal da paleta de Calixto, vá.
E isso eu admitia,
porque esse público não sabe apreciar senão as obras de arte que lhe aparecem
dentro das velhas e batidas fórmulas, que ele conhece, não por gosto ou por
sentimento, mas justamente por essas que estão expostas em todas as vitrines,
em todas as oleografias baratas.
Quando aparece, porém ,
um artista como o Calixto, com trechos de mar vivos, grudados à tela,
espumarentos, quase inundando a moldura na fidelidade profundamente emotiva;
quando esse público vê uma paisagem deliciosa, cheia de sol, inudada da vida,
fonte das matas que o artista traçou na tela com amoroso trabalho, e com
pesadas despesas pecuniárias (Calixto para pintar as suas paisagens freta à sua
custa canoas e guias de mato, e se interna pelo seio das magníficas florestas que
circundam Santos), o público não compreende esse artista porque não sabe
descobrir o seu sentimento, através da sua manière.
São muito raras as
exceções.
Aqui em S. Paulo, poucos
são os que tenham vivido na roça (como se diz em estilo de palestra) e que por
consequência saibam admirar o que o artista dispendeu em tempo e em observação.
Só mesmo o verdadeiro
matuto, como naquele caso dos Caipiras negaceando que me referiu uma vez
Ezequiel Freire.
Dois caipiras, ao olhar
a admirável tela de Almeida Júnior, sentiram-se tão fielmente retratados
naqueles dois explêndidos tipos de sertanejos que abriram para eles o mais
religioso e contrito Ué!... de admiração!
E para terminar, eu
creio piamente que a soberba construção artística de Filinto de Almeida não olhou
as telas de Calixto com o seu costumado juízo severo mas justiceiro.
Não é possível que essa
delicadíssima alma de poeta atirasse com um fervor de sinceridade, a um artista
digno de todo o incitamento, o apodo de crítica mais injusto que tenho lido!
AMÉRICO DE CAMPOS
SOBRINHO
***
Documento VIII
- D’ALMEIDA, Filinto. Duas palavras. O Estado de S. Paulo, 6 ago.
1890, p. 1. Edição 4.639
Meu caro Almeida Júnior,
Antes de tudo é grato à
minha consciência declarar-lhe francamente que fiz mal em trazer a público sua
opinião a respeito do artigo sobre os quadros do sr. Benedito Calixto expostos
na Casa Levy, artigo publicado no Estado de S. Paulo de 23 de julho.[12]
Tive para isso duas
razões: primeira - não pensar que isso lhe pudesse ser desagradável; segunda -
ter o sr. Benedito Calixto, antes de mim, trazido também a público a sua
opinião sobre os referidos quadros, opinião que de modo nenhum comprometia o
que o amigo me dissera sobre o artigo do Estado.
Queixou-se de mim no seu
artigo publicado no Correio Paulistano de 3 do corrente e eu, como acima
confesso, acho que teve razão de queixa.
Mas agora, o mal, se o
houve, está feito e a questão tomou outra face, que, não sendo explicada, pode
comprometer o meu caráter de homem e a minha honestidade de jornalista: algumas
pessoas viram no seu citado artigo do Correio Paulistano o que lá não
está nem poderia estar: - um desmentido às palavras que eu lhe atribui com
referência ao artigo crítico do Estado de 23 de julho.
Apelo, pois, mais do que
para a sua memória, - para o seu caráter e para a sua honradez, para a sua
justa reputação de homem sério e digno, que declare ao pé d’esta se nas
palavras que por mim lhe foram atribuídas houve qualquer adulteração da
verdade. São as seguintes palavras a que me refiro “se a imprensa dissesse
sempre assim a verdade aos artistas, eles aproveitariam muito mais e fariam
caso da opinião dos jornais.”
Peço-lhe ainda que
declare, meu caro artista, que eu não o procurei para ouvir a sua opinião, mas
que foi V. quem espontaneamente a externou ao encontrar-se comigo na rua 15 de
Novembro esquina da rua Direita, no dia 23 de julho, depois de indagar de quem
era a notícia crítica do Estado.
Novamente lhe peço
desculpa do incômodo que lhe dei e do que novamente lhe estou dando,
bastando-me entretanto a satisfação de não ter sido eu quem primeiro trouxe o
seu nome para esta discussão.
E subscrevo-me, seu
amigo e admirador.
Filinto d’Almeida
S. Paulo, 5 de agosto de 1890.
***
Documento IX
- ALMEIDA JÚNIOR. Resposta. O Estado de S. Paulo, 6 ago. 1890, p. 1.
Edição 4.639
Meu caro sr. Filinto
d’Almeida. - Correspondendo ao seu apelo, devo declarar que efetivamente
enunciei-lhe o pensamento contido na frase que me é atribuída, em seu artigo acima,
não me lembrando se o fiz naqueles próprios termos.
Sempre fui de pensar, e
todos o serão comigo, que a crítica que só elogia não aproveita, antes pode
prejudicar e estou perfeitamente convencido que o meu caro colega e amigo sr.
Benedito Calixto não discordará deste modo de pensar.
Quanto à ocasião em que
lhe expus aquele conceito, como já disse em meu último artigo, não me recordo
bem se foi na rua, ou em minha casa; mas afirmo que o fiz espontaneamente, sem
que o amigo houvesse solicitado a minha opinião. Tudo isto eu quero crer que já
ficou bem esclarecido em meu artigo inserto no Correio Paulistano, do
dia 3 do corrente.
Sendo só o que o amigo
deseja que eu declare, com satisfação o faço, agradecendo-lhe as atenções com
que teve a amabilidade de tratar-me.
Em conclusão direi que
me será muito agradável em ver terminada a discussão que, descambando para o terreno
das individualidades, já agora pouco aproveitará a nobre arte de que sou um
modesto e dedicado operário.
Seu amigo e admirador
ALMEIDA JÚNIOR
S. Paulo, 5 de agosto de 90.
______________________________
[1] Arquiteta e urbanista
(1997), mestre (2003) e doutor (2009) pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo. Realiza estágio pós-doutoral financiado pelo
Programa Nacional de Pós-Doutoramento/Capes, sob supervisão do Professor
Titular Ricardo Marques de Azevedo junto ao Departamento de História da
Arquitetura e Estética do Projeto da FAUUSP. CV
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4894355571566035. E-mail: ananas1@gmail.com.
[2] Nota do autor [Benedito
Calixto]: “Os versaletes são meus. B.C.”
[3] Nota do autor [Benedito
Calixto]: O que o crítico supõe serem marrecos são simplesmente patos selvagens.
[4] Há limite para as
coisas – frase com que Horácio aconselha a moderação em tudo.
[5] Apeles de Cós era
renomando pintor da Grécia, atuante no século IV a.C.
[6] No artigo: Felinto.
[7] No texto: Academia das
Belas Artes.
[8] O desenho
é a probidade da arte.
[9] Falha, imperfeição.
[10] Locução latina Primum
vivere, deinde philosophari que significa: “Primeiro viver, depois
filosofar”.
[11] Não foi localizada
nenhuma informação que comprove o parentesco entre Belmiro e Filinto de Almeida
até o momento.
[12] Filinto de Almeida
engana-se em relação ao artigo em que traz o nome de Almeida Júnior para o
debate. Trata-se do artigo de 29 de julho e não o do dia 23 de julho de 1890.