“Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos
organização de Fernanda Justo, Cynthia Dias da Silva e Arthur Valle
JUSTO, Fernanda; SILVA, Cynthia Dias da; VALLE, Arthur (org.) “Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/apb_am.htm>
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MATTOS, Adalberto. Artistas portugueses no Rio de Janeiro. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, ago. 1925, n/p [Transcrição com grafia atualizada de Fernanda Justo].
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Antonio Carneiro o desenhador impecável, criatura cheia de bondade com aspecto de monge, foi outro artista que nos visitou para mostrar mais um aspecto da arte de Portugal. Foi a sua mostra um verdadeiro hino de confraternização com a intelectualidade brasileira. As suas sanguíneas foram revelações encantadoras, estudos cheios de suave mistério: os seus retratos deixavam aparecer os sentimentos mais íntimos como se fossem espelhos da alma. Nos menores incidentes de uma máscara, o artista comungava com os seus modelos, fazia vibrar a sua emotividade privilegiada revelando o seu eu incomparável, num convite amável a uma peregrinação através de todos os sentimentos humanos. Cabeça ou motivo, saídos da mão do mestre, fazem recordar Manzzini quando com doçura, nos ensina um princípio de estética: L'ARTE NON IMITA, INTERPRETA: ESSA CERCA L'IDEA CHE DORME NEL SIMBOLO. Tais palavras cabem, perfeitamente no retrato de Ronald de Carvalho, uma das mais belas expressões de arte realizada pelo artista, durante a sua permanência no Brasil: cheio de emoção, o trabalho vibra, mostra a alma do poeta sempre alerta às sensações de Beleza. Dentro das mesmas condições, Antonio Carneiro concebeu o Crucifixo, A ceia, S. Francisco de Assis e o belo conjunto onde D. Julia Lopes de Almeida aparece aureolada de uma beleza sorridente, na companhia de seu esposo e filhos. Em qualquer dos desenhos de Antonio Carneiro o observador encontra uma técnica transbordante de sinceridade e uma maneira fidalga de “cortar” os assuntos: oferecendo assim o aspecto principal da obra, o ponto reputado primordial a ser observado sem distrações. Em tais qualidades reside o segredo da harmonia encantadora de toda a bagagem do artista. No retrato de Ronald de Carvalho, temos um exemplo flagrante. Atente o leitor no seu conjunto, a cabeça do retratado apresenta, em determinados pontos, uma focalização preconcebida: unicamente a máscara mereceu ser resolvida pelo artista. A fronte ampla aparece dentre as massas de cabelos pouco tratados: a mão, acompanhando o mesmo critério, está apenas esquissada. Nitidamente vibram os olhos, a boca e o nariz. Não foi preciso mais, compreende-se com clareza a intenção do artista: aquela mão ligeiramente tratada a largos traços, deixa perceber que é uma escrava obediente de pensamentos em turbilhão… Em tão pouca coisa está o poeta, o eleito que encanta pela palavra colorida e palpitante. Sem exagero, o retrato de Ronald de Carvalho pode ser considerado como uma obra prima, o que não nos admira, pois, Antonio Carneiro, como retratista é maravilhoso; ele, porém, é mais do que isso: é também um delicado marinhista, um emotivo que sabe encarar a pintura por um prisma pessoal altamente encantador: no gênero, por ocasião da sua mostra pessoal na “Galeria Jorge” apresentou obra do valor de Na praia, Lago azul, A grande vaga, e Barcos de velas, todos eles prenhes de invulgar sentimento. Na grande exposição de 1908, comemorativa à abertura dos Portos do Rio de Janeiro, o pintor apresentou um magnífico conjunto, testemunhando com galhardia o seu valor: Grupo de família, Retrato do autor, Retrato de velho, Retrato de rapariga, Ruínas, Praias de Lessa, Rochedos, Barcos de vela, Matosinhos, Efeitos de rochedos e a Boa nova, foram as telas apresentadas.
Antonio Carneiro foi discípulo de Marques de Oliveira, em Portugal, e de Jean Paul Lourens [sic] e Benjamin Constant, em Paris. Entre os prêmios conquistados o pintor conta: duas medalhas de 2ª classe na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, medalha de bronze na exposição universal de paris e medalhas de prata em S. Luiz, na América do Norte e em Barcelona.
Antonio Carneiro é um amigo de nossa terra, várias vezes deu provas disso: a Carlos Rubens, crítico de arte e poeta, muitas provas eloquentes ele ofereceu disso em cartas encantadoras: tomamos a liberdade de transcrever uma delas:
“Meu caro Carlos Rubens:
Deste cantinho de Portugal, onde me encontro desde alguns dias, mando-lhe um bom, veemente abraço.
Penso com devotado afeto nos amigos que aí deixei, e com religiosa admiração na terra de incomparável magia que é esse Rio maravilhoso.
Terra de luz fulgurante e de paisagens suntuosas, eu a saúdo com todo o meu fervor de artista. Lembro-me com saudades os dias de sonho que aí vivi - e com desvanecimento o carinho com que fui acolhido. Voltarei na primeira oportunidade - e creio não ter outra manifestação mais expressiva do meu reconhecimento aos amigos e à terra admirável, do que empreendendo essa viagem.
Disponha de mim, caro Carlos Rubens. Sabe a afeição que lhe voto.
Com um grande abraço do seu amigo. - Antonio Carneiro. “
Bem afortunados seremos se o pintor realmente voltar ao Brasil: se o fizer, terá, estamos certos, a recebê-lo, o mesmo carinho da outra vez.
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O vigoroso ilustrador das capas da interessante publicação parisiense “L´Assiette au Beurre” apresentou ao público do Rio de Janeiro uma magnífica coleção de trabalhos dotados de um humor forte e comunicativo; os seus motivos decorativos falam de uma linguagem especial, ora sentimental, ora irônica; os seus Pierrots são interpretados com uma dose de filosofia toda especial, contrastam-se de uma maneira singular. Vejamos aquele mordaz Pierrot da Raça, cruel, venenoso, cheio de ridículo, o comparemos com o Pobre Pierrot, sentimental encornijado [sic] em um ambiente de fantasia, tocado com carinho e segurança, e com o Pierrot no Terreiro do Paço, impertinente e irritante como uma caricatura viva. Os contrastes apresentados são encantadores, mostram claramente o temperamento de artista que sabe ser Leal da Camara. Magníficos são os “portrait-charges” de Anatole e Verlaine; pitorescos os “croquis” de crenças e diabólica a sua auto-caricatura.
Em Porta Secreta, Jardim de Colombina, As Ursulinas e Trecho do Mondego, Leal da Camara revela-se o pintor da fantasia de seguro golpe de vista, senhor da paleta e das cores. Porta Secreta, principalmente, é um trabalho encantador por todos os motivos, a técnica, o conjunto, as gamas ustas garantem ao artista um triunfo e o aplaudo de quantos tem o dom de sentir e de amar as coisas belas. Chão de Meninos é outro trabalho encantador, prenhe de poesia e de toque acertado. Os mesmos predicados vamos encontrar no Jardim de Colombina, um bem cortado motivo decorativo: [...], Efeito de Neve, Igreja da Vila e Trindades são obras de feitio diferente, porém dourados de um raro espírito de observação e de uma feitura agradável. Em La main [...] assassina!... Uma mesa célebre do [...], Atores Franceses, Atrizes Francesas e as capas do Assiette au Beurre. Leal da Camara mostra a sua verdadeira individualidade de chargista vigoroso que bate em cheio no ponto desejado, dá-nos a sua psicologia penetrante que retalha o exterior dos seus múltiplos personagens, pondo-lhes o ridículo em evidência.
Leal da Camara trouxe ao Rio de Janeiro um aspecto novo da arte do Portugal moderno, o espírito moço da arte decorativa e humorística dos dias que correm. Dirão que Camara tem vivido em França, que a sua personalidade foi temperada em Paris na companhia brilhante das novas gerações; a nós, porém, não importam semelhantes argumentos. Nas veias do artista corre o mesmo sangue nobre dos portugueses da têmpera dos Bordalos e de outros fortes que tem sabido erguer bem alto o nome da pátria. A vigorosa mostra de Leal da Camara teve lugar na “Galeria Jorge”, lugar privilegiado, onde tantas maravilhas tem sido expostas.
ADALBERTO MATTOS
Ilustrações originais
O poeta Ronald de Carvalho, por Antonio Carneiro