“Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos
organização de Fernanda Justo, Cynthia Dias da Silva e Arthur Valle
JUSTO, Fernanda; SILVA, Cynthia Dias da; VALLE, Arthur (org.) “Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/apb_am.htm>
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MATTOS, Adalberto. Artistas portugueses no Rio de Janeiro. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, mar. 1925, n/p [Transcrição com grafia atualizada de Cynthia Dias da Silva].
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Rafael Bordallo Pinheiro, descendente de uma estirpe de consagrados da arte, foi um dos artistas portugueses que viveram integralmente identificados com o nosso meio. Em 1875, veio para o Brasil a convite de Manoel Carneiro, como colaborador do Mosquito. Algum tempo depois, afastou-se por motivos de ordem pecuniária, fundando O Psitt, hebdomadário cômico ilustrado: efêmera, foi, porém, a vida da nova publicação. Em 1877, fundou o Besouro, auxiliado pelo Conde de Mattosinhos: a nova revista de Bordallo foi talvez a mais interessante de toda a sua vida: o seu enorme talento humorístico encontrou nela vastíssimo campo, a sua verve criou páginas deliciosas que fizeram época no Rio de Janeiro.
Rafael Bordallo Pinheiro nasceu em Lisboa no dia 21 de Março de 1846. Uma biografia do ilustrador artista nos conta que ele foi empregado na Câmara dos Pares, amador dramático corretíssimo, tendo pertencido a uma sociedade famosíssima que dava espetáculos no Theatro Garret da Travessa do Forno; salientando-se em breve tempo como crítico teatral, decorador e quase a seguir, como caricaturista, fixando a individualidade no seu primeiro jornal do gênero: o Calcanhar de Aquiles, A Berlinda, o Binóculo e a Lanterna Mágica que apareceram a seguir, deram-lhe foros e prestígio incalculáveis, passando já a ser considerado como um artista merecedor do maior respeito e consideração. Portugal, porém, começara a parecer-lhe estreito horizonte para a sua envergadura. E Rafael Bordallo Pinheiro, tendo como única bagagem essas imorredouras manifestações de talento, um belo dia abala, Atlântico em fora, até o Brasil, continuando aí no Mosquito, no Psitt, no Besouro e na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, a tracejar essas admiráveis charges contundentes e esmagadoras, que valeram quase tanto para a purificação dos costumes e a remodelação de variados preconceitos, como a obra de geniais escritores. Voltando a Lisboa, o inolvidável artista funda o Antonio Maria, que marca na política nacional uma “etape” de crítica impiedosa aecrudelíssima, atirada com a audácia e o frescor dum combatente jovem e resoluto. A energia de Rafael Bordallo, porém, renasce no Pontos nos i i mais vibrante ainda, mais cáustica e só daí a anos entra numa fase, não de transigência ou de submissão, mas de acalmia e de prudência, numa fase que delimita a passagem do artista para outros trabalhos com diversa orientação e responsabilidade.
Contemporaneamente ao Antonio Maria, Bordallo concebeu o Álbum das Glórias, um punhado de páginas cheias de humor, de sutilezas que encantam. Do artista são ainda muitas obras primas de cerâmica como a Jarra Brasil, o A Cegonha e o Lobo e a famosa Jarra Beethoven que orna umas das salas do Palácio do Governo da República Brasileira. Sobre tão preciosa obra, manifestaram-se as mais notáveis autoridades críticas e a imprensa da época. Não é demais transcrevermos aqui as palavras de Eduardo Salamonde sobre tão complexo trabalho. O escritor, em opusculo publicado no Rio de Janeiro em 1899, assim se exprime:
“De toda a obra profundamente nacional de Bordallo Pinheiro, uma criação fulgura estupenda entre todas - a Jarra Beethoven, perante cujo esplendor e cuja sagrada emoção não há quem não se sinta deslumbrado e vencido. Vi-a ontem e durante uns quinze minutos, meia hora, não sei quanto tempo, os meus olhos pesquisaram essa forma, essa intenção, esse hino esculturado numa doçura e numa alegria, num estático embevecimento.
Creio que nunca o gênio de Bordallo, se embebeu tanto no seu tema de devotar tão religiosamente a sua arte. Um homem inteligente e rico a quem uma grande desgraça - a perda de uma filha - enlutou para sempre o coração, encomendara-lhe para seu salão de música alguma obra de arte, consagrada a Beethoven. Encerrado por largo tempo no seu atelier como um monge em sondagem de consciência, ele não teve outro pensamento, outro cuidado, outra vibração emocional que não fossem destinados a glorificação do mestre, ao culto desse esteta genial. Desde logo outra não foi a sua ideia senão dar a essa obra cultual a significação de um encanto, de uma adoração, de um hino.
Em mente vazou-o num molde etrusco, lançado num ímpeto, num arrojo, numa invocação, dando na sua forma altaneira o que quer que fosse de um vôo, de um arranco da alma, sôfrega de ideal, para a região da Essência e do Mistério.
Depois, decorando esse vôo escultural, vem os acessórios ornamentares, os medalhões da época, o grupo animado exprimindo no seu encanto o fluido dessas harmonias grandiosas. E como um perfume que sobe e se perde, como um suspiro que se desprende, volata da dor, levando para o céu um segredo, assim essa jarra se ergueu, como se asas a dourassem, numa gracialidade columbina, toda música, toda prece, todo amor.
O medalhão do maestro no gênero Widwood [sic] ao lado do grande bojo, enche de luz toda a obra, banha-a de uma serenidade elísea, como que acolhe na sua paz imortal essa liturgia soberba de uma alma, atirando para o alto a sua fé no poder do cantor divino. Uma águia senta-se rebordo, irmã na liberdade com que o gênio penetra no infinito e perto, entrajadas à moda do tempo, aquela moda cheia de graça, três figurinhas ouvem, inebriam-se com as doçuras dessas criações sinfônicas, onde a alma geradora da Harmonia e da Dor parece dizer, em soluços deslumbrantes, a agonia do homem, o calvário estupendo dos que duvidam, a bem aventurança inefável dos que amam.
E de pé, uma rapariga, sobre cujos ombros suaves a mão de um amigo repousa, tenta compreender essa voz, procura descortinar essa angústia, de olhos embebidos no espaço, infiltrados do doçura, de magia, de receio.
Do outro lado vibra um quarteto e vendo-se a animação desse finos executantes, todos presos ao gozo de sua arte, na certeza da primeira arcada, não há quem não suponha também que esse violoncelo fala, que essa violeta geme, que esses violinos murmuram, tal a espiritualidade que anima todo o grupo, o recolhimento que transluz desses olhos, a adoração que ressalta desses gestos.
Na base da jarra a fantasia do escultor extravasa-se tumultua, redemoinha, é alucinação, é febre, é orgia, é tormento - tal a exuberância prodigiosa de adornos vegetais, tal o revolutear dessas ondas que irrompem doidamente, que se espraiam, que se levantam, que se cruzam, que se chocam, que arquejam, que rutilam, embalando figuras de relevo magistral, em cujas altitudes se sente a adoração do gênio assim glorificado. De asas abertas, em pleno espaço, a Fama debruça-se para a terra, comovida, abençoando o mestre incomparável da sinfonia, o divino subjugado do som.
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E num crescente entusiasmo, o escritor vai desvendando sutilezas, revelando detalhes preciosos. Tão aprimorado temperamento desapareceu em Lisboa no dia 23 de Janeiro de 1904, deixando uma mágoa profunda no espírito de quantos conhecem a sua obra. {Continua)
ADALBERTO MATTOS
Ilustrações originais
Um desenho de Bordallo Pinheiro
“Jarra Brasil” - Bordallo Pinheiro