Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos

organização de Fernanda Justo, Cynthia Dias da Silva e Arthur Valle

JUSTO, Fernanda; SILVA, Cynthia Dias da; VALLE, Arthur (org.) Artistas portugueses no Rio de Janeiro”, de Adalberto Mattos. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 2, abr./jun. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/apb_am.htm>

*     *     *

MATTOS, Adalberto. Artistas portugueses no Rio de Janeiro. Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, fev. 1925, n/p [Transcrição com grafia atualizada de Cynthia Dias da Silva].

*

JOSÉ MALHÔA

Reunindo comentários sobre artistas portugueses, não alimentamos intuitos de fazer uma obra completa sobre a individualidade de cada um deles: unicamente pretendemos estudar as obras que vieram até nós, em mostras individuais, ou trazidas por terceiros.

Assim procedendo, estamos certos de prestar um serviço, embora pequeno, à história da arte no Brasil.

O número de artistas portugueses, cuja obra tem chegado ao Brasil, não é grande, porém representa um coeficiente de valor, principalmente sob o ponto de vista da qualidade.

Num período relativamente pequeno, algumas celebridades nos visitaram, trazendo como bagagem um punhado de obras de inestimável valor: obras que aqui ficaram agregadas ao patrimônio artístico da cidade, atestando o alto merecimento do Portugal contemporâneo, sob o ponto de vista da arte.

Outras individualidades serão aqui encontradas: a de artistas talvez ignorados em Portugal; moços ainda, por amadurecer, artistas que estudaram no Brasil, honrando sempre a nossa Escola de Belas Artes e a terra onde nasceram.

*     *     *

Dentre os artistas portugueses que têm vindo ao Brasil, José Malhôa foi o mais impressionante e o mais português.

Uma grande saudade ficou no coração de todos os que tiveram o prazer espiritual de ver a sua obra emoldurada pela suntuosidade do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro. Se a obra do pintor era bela, ainda maiores predicados de beleza adquiriu em tão majestoso ambiente.

Dotado de um grande espírito, de uma alma comunicativa, forrada pela mais sincera bondade, José Malhôa fez admiradores e verdadeiros amigos.

A sua obra completou a fidalga atitude do homem: dela, ficou no Brasil um sulco profundo e uma impressão duradoura. Pelos próprios predicados, a sua arte mereceu a mais larga divulgação; a crítica, então orientada pelo valor de Gonzaga Duque, dispensou ao mestre os mais entusiasmáticos adjetivos, os mais expressivos louvores.

Alma simples, traduz e transporta para a tela, os motivos oferecidos pelos aldeões de sua terra de uma forma encantadora e um talento invulgar: uma “saloia”, em [sic] “labrego”, ou uma “vindimiadeira”, são para Malhôa motivos inebriantes que se transformam através da sua palheta e dos seus pincéis, em verdadeiros hinos de beleza.

O retrato para o pintor não tem segredos, as expressões nos mais complexos sentimentos, são flagrantes de verdade e de emoção: o assunto histórico tratado por ele é encantador, transforma-se em realidade, palpita, comunicando-se como “eu” de quem tem a fortuna de contemplá-lo: a severidade das ideias torna-se suave pela maneira de interpretar e pelo desenho impecável.

No Rio de Janeiro estão duas das suas mais notáveis telas históricas: Sonho do Infante e Terra à vista; a composição do primeiro é empolgante e o desenho de uma perfeição inexcedível; a par de tão sérias qualidades, o pintor emprestou ao conjunto uma singular fantasia, um sentimento grandioso e evocador...

Em Terra à vista, o valor de José Malhôa permanece intacto: as figuras cheias de majestade, são interpretadas com propriedade, são ambientadas na atmosfera úmida da garoa pelo rebentar dos vagalhões de encontro ao costado da frágil caravela de panos enfumados onde a cruz de Cristo é adivinhada... Quem já teve a ocasião de observar com olhos de artista o mar alto com as suas montanhas movediças, engalanadas nas cristas pela franja espumarenta, é que pode julgar quanto é justa de cor a tela de Malhôa. Perfeitamente ambientadas estão as figuras do quadro, principalmente a que atenta, devassa o horizonte. Ela é admirável de atitude e movimento.

Arthur Timotheo, infelizmente já roubado ao nosso convívio e um dos mais valorosos pintores da geração moça, referindo-se ao artista teve uma frase que, por si só, vale pelo melhor estudo crítico: “Nunca vi uma figura de Malhôa que não tivesse as extremidades resolvidas”.

Tal expressão partida de um artista da têmpera de Arthur Timotheo, equivale a dizer o artista um impecável desenhador, o que aliás representa a mais pura verdade.

Na Pinacoteca da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, além da grande tela Cócegas, figuram, assinadas por Malhôa mais três respectivamente intituladas: A Sesta, Gozando os rendimentos e A corar Roupa, quadros de pequenas proporções. Cócegas, com os seus 2m,24 x 2m,88, contrasta com as demais telas que não excedem os 80 centímetros.

A tela Gozando os rendimentos é um exemplo vivo de psicologia: um alentado burguês de ventre roliço, recostado em um banco de jardim, pernas abertas e gordalhudas mãos apoiadas em grosso bengalão goza a brisa... As grandes qualidades da pequena tela fazem-na grande e inesquecível.

Na mostra realizada no Gabinete Português de Leitura, a obra apresentada pelo pintor foi variada e rica: nela figuraram trabalhos de um valor raro como Bêbados, tela onde os escorços mais atrevidos foram resolvidos pelo artista; Pensando no caso, quadro em que o pintor nos oferece um curioso conjunto: um tipo largamente interpretado predomina para dar à obra um aspecto pitoresco; Vinho verde, de composição realista, impregnado daquele sabor característico tão familiar na arte de Malhôa, é verdadeiramente belo e causador de entusiasmo. Outra obra encantadora é Azeite Novo: cheio de expressão, curioso de ambiente e figuras plasmadas com riqueza de técnica, agrada à primeira vista, há no quadro uma personagem que arrebata pela verdade, é a que está por trás da que derrama o azeite: cheia de vida, observa, olha o meio inclinada, em atitude de admiração, o azeite que corre, novo e transparente...

O Zé Pereira, alegre, movimentado, atroador e rico de cambiantes como um crepúsculo de verão, agrada plenamente por todos os motivos: As Pupillas do Sr. Reitor e Clara, deliciosos de cor, impecáveis de desenho, fazem pensar e transmitem satisfação a quem os contempla.

No Viúvo, mostrou-nos o artista a sua sensibilidade, a sua alma de artista que sabe sentir a dor dos humildes. Num rosário de beleza vem outros quadros como Provocando, Ti-Anna, Sardinhas, Viatico, Uvas do Sr. Cura, Morte do Porco, Lar sem pão, Passagem do comboio e Apanha das castanhas, todos eles possuidores de riqueza de colorido e condições maravilhosas perfeitamente interpretadas pelo artista.

Na grande exposição comemorativa da abertura dos portos, realizada em 1908 no Rio de Janeiro, José Malhôa apresentou-se com um conjunto maravilhoso, conjunto em que mais uma vez o mérito do artista ficou em evidência, enchendo de prazer os verdadeiros afeiçoados da arte portuguesa no Brasil.

Ilha dos Amores, tela pertencente ao conjunto, é uma obra empolgante, digna do engenho criador do velho mestre, é uma manifestação forte, cheia de particularidades impressionantes que tem o poder de seduzir ao primeiro exame o mais exigente comentador de coisas de arte.

As figuras desse precioso quadro são […], definindo claramente quando o artista é senhor das situações, por mais complexas que se apresentem; os tipos preconcebidos seguem aos nossos olhos, palpitantes de vida e prenhes de uma segurança invulgar.

Com a assinatura do mestre figuraram ainda: Os bêbados, já citado: O Barbeiro da aldeia; A Procissão; Cavaleiro de Santiago; As Sardinhas; A compra do voto; Retrato de S. Alteza o Príncipe Real D. Luiz Felippe e Terra à vista. Em todas as citadas obras predomina o mesmo critério equilibrado e a mesma emoção.

Em uma exposição de obras de artistas portugueses, realizada na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, pelo Sr. José Figueiredo, estiveram expostos os quadros A varanda dos rouxinóis e O Emigrante, obras que sem favor podem ser qualificadas e [sic] admiráveis, obras que uma vez vistas nunca mais são esquecidas.

A varanda do rouxinóis seduz pela finura de cor e pela composição, encanta pela tranquilidade invejável flagrante nos personagens fixados pelo pintor.

O Emigrante é um poema de saudade.

Sem exagero, pode ser colocado entre as mais sólidas obras da pintura contemporânea; de um sentimento grandioso, representa um momento único na alma daquela figura que caminha para o desconhecido. Em tão bela obra encontra-se a cristalização de um ser angustiado, de um turbilhão indescritível; uma enorme saudade permanece naquele último olhar do pobre viageiro que abandona a aldeia natal em busca de um ambiente mais propício, mais farto e e mais compensador...

A figura caminha, caminha de olhos voltados para o lugar onde o coração ficou: caminha, talvez, para nunca mais voltar. Naquele olhar cheio de nostalgia percebe-se um adeus partindo bem do fundo d'alma que nos recorda A. Lima no seu “Adeus a Coimbra”:

- … Risonha terra, formosa

Éden mimoso, gentil,

Onde os prados são de rosa

Onde as águas são de Anil...

Amenos prados, fagueiros,

Chorosa fonte d'Inês,

Cedros, e verdes salgueiros,

Que me ouvistes tanta vez!

Vou perder-vos! Ai! Quem há de

Matar-me a longa saudade

Em tão longa viuvez?

.     .     .     .    .     .     .     .    .     .     .     .    .     .     .     .    .     .     .     .    .     .     .     .    

Em José Malhôa percebe-se uma qualidade que a muitos passa despercebida: é que sendo senhor de uma técnica maravilhosa, não abusa dela como é comum em muitos artistas nas suas condições, e que lançam mão de tão precioso recurso para se exibirem em malabarismos condenáveis.

Malhôa ama a técnica, mas ama ainda mais os motivos que abraça e a honestidade profissional. Tudo para Malhôa serve para um quadro: o seu espírito está sempre vigilante, alerta para os motivos que passam ao alcance da sua palheta encantada! Como verdadeiro artista não conhece o feio que o burguês aborrece; como esteta, a sua inspiração traduz de forma diferente o que para os outros é imprestável, que lhe serve de assunto, de argumento de arte, e isso ele o faz com alegria, com sentimento português: daí a beleza pura da sua obra gigantesca e nacional, pois quem olha um quadro de Malhôa, sente Portugal, terra de amor; sente a alma popular portuguesa a cantar sempre um hino de gloria e saudade!

(Continua)

ADALBERTO MATTOS

Ilustrações originais

Pensando no caso” [sic] - José Malhôa

A Procissão” - José Malhôa

Os Bêbados” - José Malhôa

“Ilha dos Amores” - José Malhôa