Documentos relativos à
exposição de José Malhoa no Rio de Janeiro, em 1906:
resenhas em Kósmos,
Rio de Janeiro
organização de
Arthur Valle, transcrição de Clevison Jesus de
Carvalho e Diego Alves
VALLE, Arthur (org.); CARVALHO, Cleivison
Jesus de; ALVES, Diego (transcrição). Documentos relativos à exposição de José Malhoa no Rio de Janeiro, em 1906. 19&20,
Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Página
inicial disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/JM_1906.htm>.
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O. B. [Olavo
Bilac]. Crônica. Kósmos. Revista Artística,
Científica e Literária. Rio de Janeiro, ano III, n. 6, jun. 1906, n.p.
[...]
Junho, porém não é somente o mês dos
namoros e dos casamentos. É o mês das partidas elegantes, dos espetáculos, das
Exposições de Arte.
[...] para fechar a Crônica, demos a Malhoa, grande artista,
um abraço de boas-vindas, atirando-lhe uma braçada de flores.
Malhoa é um pintor de extraordinário
talento, que o Rio de Janeiro deve receber e hospedar com especial carinho.
Os primeiros trabalhos seus, que vi,
foram dois quadros que ele mandou, de Lisboa, em 1895, à Exposição de nossa
Escola Nacional de Belas Artes.[1] Eram duas telas deliciosas. Uma
delas, Caça aos taralhões, era tuna linda
paisagem, no meio da qual, entre árvores raras e esguias, havia urna criança
ajoelhada sobre a relva: uma figura admirável de graça, de expressão, de
ingenuidade. Na outra, Ouriços, havia, também
uma criança, um pequenino, louro e corado, camisinha desabotoada, pés nus, face
muito séria, olhando com medo os frutos espinhosos: em
torno desse pequenino, alongava-se a estrada, amarela e triste...
Eram dois quadros, de uma suavidade
enternecedora, que não sei onde param hoje, mas que nunca mais esqueci.
Depois disso, conheci Malhoa na Europa, vi muitos outros quadros seus, - e, se
fiquei a admirá-lo ainda mais como artista, fiquei também a estimá-lo como
homem, - homem de admirável educação e de fino espírito...
À hora, em que escrevo estas linhas,
ainda não está inaugurada a sua Exposição. Mas é uma delicia que teremos por
todo este fim de junho.
Preparemo-nos para ela, - e
festejemos com entusiasmo este artista, que é um servidor da verdadeira Arte...
Só nos falta agora, - como ultima
vergonha, que deixemos às moscas os seus quadros!
O. B.
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[1] Sob o pseudônimo Fantasio,
Olavo Bilac resenhou os envios de Malhoa para a
Exposição Geral de Belas Artes de 1895 em uma breve nota publicada pela Gazeta
de Notícias, que pode ser consultada em: <http://www.dezenovevinte.net/egba/index.php?title=FANTASIO._FANTASIO_NA_EXPOSI%C3%87%C3%83O_VIII_MALH%C3%94A._Gazeta_de_Noticias%2C_Rio_de_Janeiro%2C_20_set._1895%2C_p.1.>
DUQUE, Gonzaga.
Exposição Malhoa. Kósmos.
Revista Artística, Ciêntifica e Literária. Rio de
Janeiro, ano III, n. 7, jul. 1906, n.p.
Vai para uns dezoito anos que vi uma excelente coleção Silva Porto.
Foi numa vivenda burguesa de Botafogo. Casa e moradores tinham o mesmo aspecto
caturra. O dono era baixote, já grisalho, e caponeava uma reduzida ninhada de
morenitas redondinhas, muito discretas nos seus meneios de dengues sinhazinhas
e nos enfeites parcos de suas roupas domingueiras. E todos, capão-papai e
ninhada morenita, escorregavam para o diletantismo das belas-artes, isto é,
para a pintura, que é mansa, e para a da música em piano, que é feroz.
Um dia o homenzinho teve saudades de exul,
arrebanhou a sua ninhada e foi ser brasileiro na aldeia pacata que lhe
viu os cueiros. Houve leilão na chácara. Foi nessa ocasião que pude ver os
quadros de Silva Porto. Eram quatro paisagens vigorosamente pintadas, de uma
interpretação sentida, repassadas da seiva da terra dos esmondos e das
pastagens, horizontes que faziam cismares, árvores quase falantes de tão
expressivas no seu colorido, rebanhos, varas e boiadas, e numa ou em outra o
saloio rude ou cachopa varina caracteristicamente portuguesa. A verdade
ressumbrava das telas na descrição exata dos contornos e cores, com a
indicativa inconfundível de um estilo em cujo vigor se percebia a exuberância
do formoso temperamento artístico que o criará.
Vendo a exposição do Sr. José Malhoa
recordo-me de Silva Porto. Há entre os dois oposições de estesias, mas há em
ambos a concordância nacionalista e a sinceridade do expressivismo. É sobre
este ponto de vista que o Sr. Malhoa me interessa grandemente.
Com todos os segredos da paleta e uma importante
prática do difícil desenho, ele fixa o tipo observado com a naturalidade
surpreendida. É como se o kodaquizasse. E por esse considerável poder
retentivo, as suas figuras, quaisquer que sejam elas, ficam vivas nos quadros.
Assim, a sua numerosa coleção, ora exposta no salão nobre do Gabinete Português
de Leitura, não cansa, não enfada, não aturde. Dir-se-á que vamos vendo,
através da natureza em dados momentos de hora e na sua infinita variedade de aspectos.
De tanto se pode induzir que a sua tendência
artística é o naturalismo. O Sr. Malhoa, na sua arte de comunicação imediata,
se combina com a paciente coordenação dos compositores, não arranja os temas,
não se inclina para determinados assuntos dos quais pudesse apurar o que mais
fundamente se apegasse a sensibilidade; é, antes, levado pela sua intuição
estética, que o faz encontrar desde logo o motivo pitoresco, porque a cultura
do seu sexto sentido e o exercício bem utilizado de seus aparelhos visuais
lhe guiam nessa espontânea apreensão do necessário para o quadro. Pelo menos eu
o observo assim e assim me dizem a diversidade dos seus assuntos e a
naturalidade das cenas que o completam. Esta naturalidade é feita do
surpreendido no vulgar da vida, não força a comoção do amador, entra-lhe na
alma insinuantemente, atrai-lhe a simpatia e o vibra sem abalo das tragédias e
dos transcendentalismos. Iguala-se a índole, neste ponto, com os holandeses do
fecundo período da pintura de costumes.
E, realmente, o Sr. Malhoa possui uma impulsiva
afetibilidade para os humildes; o viver simples dos campônios, as cenas
provincianas, o feitio achavascado do montanhês, o tipo sadio da varina, a
miséria fuliginosa dos casais, dão-lhe os melhores dos seus quadros, são os temas
prediletos da sua paleta. Basta ver esse quadrinho do Viúvo, um nada
menos que um plano, para se compreender até onde chega a sua sensibilidade no
tocante ao tipo rústico. É um mísero manél, já velhusco, que a saudade
empurrou para um canto de muro. Sentou-se nos degraus
esbarrondados de um alpendre e, sem luto por lhe faltarem os patacos, mas
simplesmente nas suas vestes grossas de lã amarela, queda-se a contemplar o
espaço, na dormência cismarientada que se foi. Ai, pobre dele!... que ali está sozinho, com os filhos talvez nos brazis
ou na África, e sem a boa velhinha que lhe aquecia os caldos e lhe sorria aos
dias!... Ai, pobre dele, que traz o coração a sangrar!...
Meu coração, não batas, para!
Meu coração, vai-te deitar!
A nossa dor, bem sei, é amara,
A nossa dor, bem sei, é amara,
Meu coração, vamos sonhar...
E os pincéis do Sr. José Malhoa eternizaram toda
tristeza desse sonho nos olhos contemplativos do inconsolável velhinho! Ai,
nessa pequenina figura, comovedoramente expressiva tem-se os recursos técnicos
do artista. O desenho sai-lhe firme, minucioso, exato. E com o desenho vem a cor, que é apanhada do natural com rigorosa observação e
conscientemente passada para a tela. Mas, o colorido seria de pouca valia, se não houvesse para realçar e para completar o
contorno desenhado, o modelado admirável que vivifica a figura, que lhe dá a
palpitação das artérias e o volume anatômico do corpo.
O quanto se admira nesse velhinho está largamente nas demais figuras. As duas cabecitas das Pupilas
do Sr. Reitor (quem não conhece a Guida e a
Clarinha da deliciosa novela de Julio Diniz!), o Provocando [Imagem], o Azeite
Novo [Imagem],
as Sardinhas, o Viático [Imagem],
em suma, todas as suas figuras são tratadas com o mesmo cuidado. Essas, porém,
indicam a maneira delicada da sua pintura, são trabalhos pacientemente feitos
pela certeza das pinceladas e pelo acabado das minúcias; demais, cada uma por
si, contém o interesse da cena que compõe, salvo a do Viúvo e o Provocando,
que são isoladas. Fora dos “quadros de cavalete”, (vá, que ainda assim se lhes
chamem!) o seu valor de figurista não perde as afirmações impressionantes da
sua delicadeza.
Vemo-lo na Ti-Anna, a velha fiandeira [Imagem], no Cavaleiro
de São Tiago [Imagem],
nas Cócegas [Imagem], no retrato da senhora pálida...
A realidade conseguida pelo Sr. Malhoa com a Ti-Anna
constitui, só por si, um dos elementos de importância da exposição.
Estudada, sem dúvida, por um magnífico modelo, mas estudada à
capricho, a cabeça ressalta da tela com uma vida que fere a primeira mirada a
quem relanceia a vista pelos quadros. Não lhe falta uma ruga; os olhos estão a
piscar e o movimento da língua a lamber o fio é flagrante.
Não quis o artista limitar-se a reprodução exata
do que poderia contentar o amador, procurou compensar esse rigor com o
interesse de um efeito de luz, jogado num detalhe de carnação, e o fez com a
sua maestria. Esse afeito está no pescoço, destacado dos panos negros que vestem
a figura; é de penumbra e recebe a intercessão do negrume das vestes. Não sei
se todos que admiram a figura percebem-lhe o capricho técnico ou se vacilam com
a desigualdade causada pelo colorido das mãos e do rosto com o dessa parte
desnudada mas, certo, que aos olhos dos que vêem com
maior cuidado o efeito se apresenta com a sua intenção. A habilidade que aí
está corresponde a que se admira no ar livre
intitulado Cócegas, a maior de suas telas, depois dos retratos dos reis
de Portugal. Como na Ti-Anna o Sr. Malhoa conduziu a luz de maneira a
dar grande interesse ao quadro, descontada a diferença dos ambientes. Ainda
assim as transições da luz, sem o arcaico recurso do claro-escuro, foram
vencidas com a afoiteza e as duas figuras de campônios ficam em magnifico
relevo no espaço da linda e vasta paisagem do trigal.
Daí para o Cavaleiro de São Tiago, ou os
retratos dos reis de Portugal [Imagem, Imagem]
a passagem é brusca. Ao que as Cócegas representam de
rústico, de violento dentro da natureza do seu assunto, o retrato da snra. D.
Amélia, por exemplo, opõe de delicado na sua cor serenamente rósea, na beleza
fina de sua cabeça, na larga, bonita mancha de seda do vestido, ou esse
arrogante atrapalha-moças Cavaleiro de São Tiago antepõe à suavidade da
luz que o ilumina, o contornado elegante,
aristocrático do seu desenho. Sendo, porém, tipos opostos, são
da mesma maneira vigorosa na fatura, sinceros na reprodução imagética.
Em um domina a luz crua, a luz franca do ar livre;
há a grandeza planimétrica da paisagem loura de trigos em ceifa, a grandeza
aérea dos céus, do horizonte; a gama em dois tons do solo juncado de paliçada, a
corpuratura animal dos saloios em folga, o desalinho sujo de suas vestes das
fadigas; no outro é o fidlago de epiderme finíssima, de arrogância no porte, na
pompa aristocrática da sua capa de cavaleiro, no atrevimento desafiador do seu sombrero,
no delgado volutuoso da sua mão enluvada. Em ambos, porém, a feitura se inculca pela precisão dos tons, pela justeza dos valores, pela segurança
das linhas, que são familiares ao artista, já como vemos nessa grande paisagem
das Cócegas, já como está patente nas dificuldades vencidas na Apanha
das castanhas, em que há dominância dos amarelos das frondes desarmoniza a
tonalidade acinzentada do quadro. E tudo isso delicia a vista que o contempla,
direi mais: encanta-nos.
Encanta como essa cabeça pálida, que olha para nós
com umas pequenas mas inteligentes pupilas negras, e
lá está no seu vestido branco, de magro busto aprumado na moldura de ouro. A
finura anêmica de sua cútis, o descorado de sua pequenina boca, a alma que seus
olhos têm, atrai a nossa simpatia que, sem saber quem ela seja, chega ao desejo
de quase amá-la.
É que o artista nos a apresenta
viva, com esse dom, que é dele, de tudo fazer palpitar ao toque dos seus
pincéis. E o faz. Não só na figura, também na paisagem, porque essa nos é
transmitida com a fidelidade reprodutora da sua visão.
Cada um desses quadrinhos, seja o crepúsculo lento
de uma tarde nas várzeas, seja o meio dia estival nos caminhos incertos dos
pendores, deve ser exatamente o que ele viu e o que verdadeiramente existe.
Mas, por isso mesmo, a sua índole, a sua
disposição artística, tende para o naturalismo e, como derivante estética, para
a pintura anedótica.
O Sr. Malhoa está bem com qualquer assunto, estará
sempre melhor com as cenas da vida rústica. Ele é o pintor da gente pobre que
pressente a miséria, ou já sente a fome, como no Lar sem pão, é o pintor
da alegria do rapazio como na Passagem do camboio, dos pequeninos
delitos da mocidade provinciana como nas Uvas do snr.
Cura [Imagem], dos costumes
populares como na Volta do Zé Pereira [Imagem], nas Sardinhas,
no Azeite Novo, na Morte do Porco e outros, e outros, que nos
trazem os modos da vida portuguesa no pitoresco do seus tipos e cenas.
A fidelidade com que reproduz e o seu amor à vida
rústica dos homens dos campos fazem dele, depois de Silva Porto, um dos mais
genuínos pintores portugueses, qualidade que mais se aventura por se lhe não
perceber influência estranha que o desvie da sinceridade expressora da sua
obra.
E ela é e será uma obra literária de Almeida
Garret, como a paisagenada de Silva Porto, como a caricatural de Bordallo Pinheiro,
a feição de um povo que perdeu a sua força nacional, mas conserva ainda a
espiritualidade com honra na civilização ocidental.
Julho de 1906
GONZAGA DUQUE