Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio
de Janeiro, em 1906: resenha em Jornal da
Noite, Lisboa [1]
organização
de Arthur Valle, transcrição de Clevison Jesus de Carvalho e Diego Alves
VALLE, Arthur (org.); CARVALHO, Cleivison Jesus de;
ALVES, Diego (transcrição). Documentos relativos à exposição de José Malhôa no
Rio de Janeiro, em 1906. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Página
inicial disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/JM_1906.htm>.
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OS NOSSOS ARTISTAS - Interview
com José Malhôa. Jornal da Noite, Lisboa, 30 ago. 1906, p.?
Aspectos de um desembarque - A iniciativa do caricaturista Julião Machado
- A obra do pintor e a sociedade
fluminense - Projetos de futuro - As
transformações do Rio de Janeiro - Para o “Salão”
-
De regresso do Rio de
Janeiro onde fora expor no Gabinete Português de Leitura, os seus quadros,
chegou ontem a Lisboa o distinto pintor José Malhôa,
justamente considerado um mestre.
O Nile, da Mala Real Inglesa, onde o artista, (que tantas simpatias
granjeou no Brasil) viajava de
regresso à pátria, entrou a barra pelas 3 horas e meia da madrugada, fundeando
no Bom Sucesso, em frente ao Lazareto, onde aguardou a visita de saúde.
Após essa visita, o
paquete levantou ferro, eram 5 da manhã, ancorando defronte do posto de
desinfecção, a Rocha do Conde de Óbidos.
A hora matutina da
chegada do Nile, impediu que os amigos dedicados de Malhôa o fossem esperar fora da
barra conforme se havia combinado, comparecendo na ponte, ainda por esse
motivo, apenas algumas pessoas, entre as quais da família do artista, a srª D.
Laura Santos, discípula de José Malhôa, hoje considerada como uma pintora de
merecimento, e os srs. Julio de Menezes, escultor Costa Motta, Alberto de
Lacerda, D. Antônio Lobo da Silveira (Alvito), arquiteto Rozendo Carvalheira,
Frederico Augusto Ribeiro, Verissimo Baptista, Conceição e Silva, João da Costa
e família, Santos Braga, João Antônio Martins e J. Monteiro.
O desembarque
Às 7 1/2 da manhã
começaram a aparecer alguns passageiros, os da terceira, pobres criaturas de aspecto macilento e sofredor. Eram,
naturalmente, provincianos que haviam emigrado para terras de Santa Cruz, na
fagueira esperança de encontrarem melhor sorte, que tão raras vezes sorri a
quem ansiosamente a busca. Voltavam talvez mais pobres e com a saúde arruinada,
mas nos olhos, apesar disso, lia-se a satisfação de quem vê de novo a pátria
que julgara não avistar de novo.
Todos eles caminham
sob o peso de baús e de malas de folha que imediatamente são conduzidos para a
casa das desinfecções. No rancho vem também uma mulheraça, conduzindo à cabeça
um grande saco, ao mesmo tempo que na mão direita, segurava uma gaiola com um
papagaio, - recordação da sua odisseia pelo Sul-América.
Ao largo vê-se agora
outro bote. É nele que vem José Malhôa que, ao ser visto de terra, é saudado
com acenos de lenços a que ele corresponde agitando o chapéu.
Em poucos momentos
salta em terra, dirige-se de braços abertos para a esposa, que o beija
enternecida.
Depois seguem-se os
cumprimentos dos amigos, que em tropel querem abraçar o artista que no Brasil
tanto honrou o nome português. José Malhôa agradece comovidíssimo à
manifestação de simpatia e agradece aos seus amigos, trocando depois impressões
de viagem. Com José Malhôa vem também seu irmão que o acompanhou ao Brasil.
Julio de Menezes o
proprietário do Gato Preto, amigo
intimo de José Malhôa, interroga-o sobre a viagem.
- “Acho-me muito
fatigado. Desde o meio dia de ontem nada comi, não tendo também conseguido
dormir, pois ardia em desejos de ver a entrada da nossa barra.
O grupo encaminhava-se
vagarosamente para a rua 24 de julho onde José Malhôa e sua esposa se meteram
num trem em direção a casa.
Na impossibilidade de
trocarmos naquela ocasião quaisquer impressões com o artista resolvemos
procurá-lo mais tarde.
Em casa do artista
Eram 3 horas da tarde
quando fomos recebidos pelo distinto pintor.
Depois de esperarmos
algum tempo no gabinete de trabalho, durante o qual amavelmente estiveram
conversando conosco a esposa e o irmão do artista, ele aparecia-nos.
Pede-nos desculpa da
demora mas estava a descansar, porque perdeu a noite para gozar o surpreendente
espetáculo da entrada da barra.
- Foi então muito
feliz na sua ida ao Brasil? inquirimos nós
- Felicíssimo,
retorquiu-nos Malhôa, estou verdadeiramente grato ao Julião Machado que tanto
trabalhou pela minha ida ao Rio de Janeiro.
- Nunca tinha pensado
em ir á América do Sul? - perguntamos.
- Há três anos que eu
pensava em ir fazer, na capital fluminense uma exposição dos meus trabalhos. E
se não o fiz mais cedo, foi por causa de minha mulher e de meu irmão, que se
opunham com receio ao projeto. Perante um convite não resisti e decidi-me a
partir.
- Quem o convidou a ir
ao Rio?
- O Julião Machado é
que fez tudo. O Julião, como sabe, esteve há pouco tempo em Lisboa. Contei-lhe
o meu projeto que ele recebeu com entusiasmo. “Homem deixa estar, - disse-me
ele, - eu me encarregarei de te chamar”. E de fato, há tempos recebi do Gabinete Português de Leitura do Rio de
Janeiro, um amável convite para ir fazer ali uma exposição. Imediatamente acedi
à gentileza.
- Quando saiu de
Lisboa?
- Partimos daqui, eu e
meu irmão Joaquin, em fins de maio.
- Levava muitos
quadros para expor?
- Cataloguei 112, mas
á última hora só pude levar comigo cento e quatro, por se me tornar
completamente impossível acabar os oito que faltavam.
- Em que dia chegaram
ao Rio?
- A 10 de junho, sendo
inaugurada a exposição a 4 de julho, um pouco tarde, porque o Presidente da
República fora convidado a inaugurá-la e porque só passados alguns dias o podia
fazer.
- A exposição foi
muito concorrida, segundo lemos nos jornais brasileiros, não é verdade?
- Oh!
extraordinariamente. O salão não chegava a comportar tanta gente. Aos domingos
então eram indescritíveis de brilho e de animação as vastas salas do Gabinete.
- Quanto tempo durou a
exposição?
- Dezenove dias, tendo
sido encerrada a 23 de julho.
- Por notícias
publicadas nos jornais do Rio soubemos aqui que tinha vendido muitos quadros.
- De fato fui muito
feliz; nunca pensei em vender tanto. Neste ponto os meus cálculos falharam,
pois esperava trazer mais encomendas e vender menos.
- Não trouxe então
nenhumas encomendas?
- Trouxe ainda assim
algumas, mas não as que pensava.
Como a conversa
tomasse um caráter mais aberto, ousamos perguntar ao ilustre artista:
- Isto é, a sua
fortuna aumentou com esse passeio ao Brasil. Trouxe talvez de lá uns vinte
contos de réis fortes?
José Malhôa sorriu,
dizendo-nos unicamente:
- Confesso que os
resultados foram magníficos e que passaram muito além da minha expectativa.
- Tenciona voltar ao
Rio?
- Não sei, pelo menos
não posso fixar data, porque qualquer viagem depende do número de trabalho que
tenha para expor. Olhe que os quadros que levei representam três anos de
aturado trabalho.
- Quer dizer, daqui a
três anos volta ao Brasil?
- Talvez; não me dei
mal. Além disso trago as melhores impressões; foram tão amáveis pra mim...
E José Malhôa
conta-nos depois que os artistas, escritores e jornalistas do Brasil não só lhe
fizeram uma carinhosa recepção, como também uma despedida imponente.
Falando ainda do Rio
de Janeiro, diz-nos:
- É um encanto. O
governo trabalha ativamente no saneamento da cidade. Já está construída uma
grande avenida, a central, que atravessa toda a capital. O grande morro que
impedia a entrada do ar puro na cidade, está também sendo demolido, de maneira
que em breve tempo o Rio não ficará a dever nada às principais cidades da
Europa.
Como fosse já um pouco
tarde demos nossa entrevista por terminada, despedindo do distinto artista que
nos acompanhou gentilmente até a porta da rua.
Uma vez atravessando o
jardim, José Malhôa diz-nos ainda do alto da escadaria do seu palacete:
- É verdade
esquecia-me dizer-lhe uma coisa... Parte [sic] amanhã para a minha casa em
Figueiró dos Vinhos.
- Vai descansar,
não?...
- Um pouco e também
trabalhava num grande quadro que tenciono enviar ao Salon.
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[1] Transcrição
feita a partir de recorte de jornal pertencente ao arquivo do Museu José
Malhoa, em Caldas da Rainha. O recorte trás a indicação “Jornal Diário
da Noite 30 Ago. 1906”, seguida de uma inscrição manuscrita que confirma a
data. É bastante plausível que se trate do periódico lisboeta Jornal da Noite, cuja série microfilmada
pertencente à Biblioteca Nacional de Portugal infelizmente abarca apenas o
período 1871-1892 (cf. link).
Resta, portanto, encontrar um exemplar original da edição na sua integridade
para confirmar tal asserção, bem como precisar a paginação da entrevista.