Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906: resenhas em Correio da
Manhã, Rio de Janeiro
organização de Arthur Valle, transcrição de Clevison
Jesus de Carvalho e Diego Alves
VALLE, Arthur (org.); CARVALHO, Cleivison
Jesus de; ALVES, Diego (transcrição). Documentos relativos à exposição de José Malhôa no Rio de Janeiro, em 1906. 19&20,
Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Página inicial disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/JM_1906.htm>.
* * *
Exposição Malhôa. Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 4 jul. 1906, p.2.
O espetáculo de um vernissage não é fato comum na nossa
capital, principalmente, em se tratando de artista de valor, já consagrado pela
crítica estrangeira.
A exposição de pintura
de José Malhôa, constitui um verdadeiro acontecimento
artístico, que merece a atenção de todos os nossos intelectuais e amadores de
arte.
A bem dizer, na obra
já vastíssima de José Malhôa, não é possível destacar
este ou aquele quadro; todos eles possuem o doigt du maitre; não se notam indecisões, nem fraquezas. As
belas qualidades de traço e de colorido vêm contínuas em todos os trabalhos -
sejam simples esboços, figuras destacadas de um conjunto ou quadros completos.
Quando penetramos no
grande salão do 1º andar do Gabinete Português de Leitura
ficamos logo dominados pelo encanto que se desprendia de todo aquele
conjunto de obras de arte. Ao fundo, em tamanho natural, os retratos de suas
majestades os reis de Portugal... [Imagem, Imagem]
Mas não, é possível
dar a resenha de todo os quadros, limitar-nos-emos apenas a salientar algumas,
apesar desta seleção ser feita a esmo na obra cativante do ilustre pintor.
O nº 3, Cócegas (quadro premiado no salão de Paris,
em 1905) [Imagem] uma cena camponesa,
esplêndida de naturalidade contida e que parece destacada de uma página
realista de Zola. - Seria realmente uma pena que este quadro não ficasse fazendo
parte do nosso Museu de Belas Artes - o nº 4 Sonho do Infante. (O infante D. Henrique no promontório de Sagres)
[Imagem];
nº 5, um esplêndido panneau decorativo, no estilo da Mucha; nº 6 A Ti'
Anna [Imagem], magnífico tipo de
velha fiandeira; nº 10, três borrachos truculentos, cozinhando uma enorme
bebedeira de vinho verde [Imagem], nºs
11 e 23, dois quadros de modernismo encantador, nº 13, As sardinhas, um Velasquez puro; nº 24, A passagem do comboio; nº 30, Provocando [Imagem]; nº 68, Pupilas do Sr.
Reitor; nº 70, Vasco da Gama; nº
81, O bêbado, estudo para o quadro A volta da romaria [Imagem].
Enfim, uma infinidade
de obras de valor que nos dão logo, à primeira vista, a impressão de estarmos
num verdadeiro templo de arte, de que José Malhôa é o
grande sacerdote.
O público deve ir ver,
e diremos mais, admirar, a exposição artística do Gabinete Português de
Leitura.
- No Restaurant Paris, efetua-se hoje o almoço oferecido a José Malhôa pelo Gabinete Português de Leitura.
NETTO,
Coelho. Exposição Malhôa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 4 jul. 1906,
p.2.
O crítico, ante uma tela,
deve buscar a personalidade do artista, tomar-lhe a feição, seguir-lhe
a estesia, procurar conhecê-lo, enfim, para poder compreender a sua obra.
Não basta examinar no
quadro a exatidão do desenho, a fidelidade do colorido, a perspectiva, a boa
disposição das figuras, o arranjo dos grupos, o bem posto dos acessórios, é
necessário penetrar fundo até a ideia, chegar a
intenção, ir além daquilo que Hegel chamava a expressão externa.
Há versos que nos
embalam com o seu ritmo, que nos elevam com a sonoridade das suas rimas
peregrinas, nos dão um encanto efêmero enquanto soam; desde, porém, que os
procuramos sentir, que os desfolhamos das palavras rebuscadas, nada encontramos
porque as estrofes foram feitas, não sobre uma ideia, mas aereamente,
vagamente, lançadas como melodias que soam e morrem deixando apenas um eco que
desaparece ao cabo de um segundo. Assim há quadros que nos deslumbram à
primeira vista com um brilho intenso, mas fugaz como a das
afogueadas nuvens crepusculares, deixando-nos na retina o encadeamento
transitório de uma claridade; outros há, porém, que, olhados, logo nos tomam a
simpatia e, quanto mais oa contemplamos mais os
sentimos como se fôssemos por eles dentro, percorrendo-os, se são paisagens,
visitando-os se nos mostram interiores, tomando parte nos episódios que
retraçam, familiarizando com as figuras que apresentam, sentindo-as,
ouvindo-as, reconhecendo-as.
Todo o quadro é uma
representação da vida; sendo assim é necessário que nele o olhar encontre a
vida.
Pintar é traduzir, é interpretar.
Não é só para os olhos que o artista lança as cores à tela, é também para o
pensamento - depois de mostrar é preciso fazer sentir, o espetáculo deve ter
emoção para que se grave: a cor esmaece, o sentimento perdura, eterniza-se
fundamente gravado na alma.
Na exposição numerosa
do Gabinete Português de Leitura é tão intensa a verdade, é tão viva a
realidade, são tão flagrantes os episódios que o espírito mais calmo sente o
atordoamento e pouco distingue à primeira vista naquele ofuscar de sol, naquela
multidão de seres, nos caminhos ferazes, nos lares lúgubres, entre gente alegre
que folga ou rejubila com os dons da terra ou entre
angustiados em presença da morte ou aper[...]dos pela
miséria.
Malhôa
tem pelo desenho o mesmo culto que tinham os grandes mestres do Renascimento: a
sua obra é construída sobre alicerces formidáveis. A paisagem é lançada com o
escrúpulo com que o engenheiro levanta uma planta, senão atendendo a medida geodésica, atendendo-se, com fidelidade, aos
detalhes da configuração, da cor, dos matizes, da luz: a terra deprime-se em
vales ou ressalta em relevos de outeiros rica de seiva ou descorada em miséria:
alfobre ou vageiro, leira ou charneca.
As figuras o artista
compõe-nas vendo - seja-me permitido dizer - o esqueleto. Lança sobre o
arcabouço os músculos e sobre os músculos atira as roupas, de sorte que o que
escapa ao pano é carne, tem nervos, retículas de
sangue, crostas encalecidas pelo trabalho, rugas de velhice, gelhas de
angústias, rictus alegres, o tom abaçanado dos que
andam moirejando ao sol ou a alvura fina e rosada das belezas recolhidas.
Mestre, não transige
com a verdade, não dá ouvidos à fantasia no estudo do real: o que é da visão
ele toma com o escrúpulo minucioso de um microscopista, mas ao lado do
observador inflexível do desenho vê-se, com mais grandeza, o apontador das
almas, o criador de “seres”. Todas as figuras têm emoção própria, têm seu facie peculiar, a sua maneira, a sua
expressão: aqui é a angústia de mistura com o furor impotente do que olha a chuva que o prende ao lar e lhe vai
alagando a terra semeada, de onde o mísero contava tirar o pão para a ucha sem miga.
Já adiante impõe-se um retrato, que lembra Van Dick, a espalhar
atrevimento.
São os tipos vivos do Azeite novo [Imagem], é
aquele rexoso [sic] campônio do Pensamento no caso [Imagem], é Ti' Anna [Imagem]... Todas as figuras
vivem, ressumam alma.
Além dessa nota
subjetiva há em Malhôa um cunho forte de
nacionalismo: o artista mostra-se português em tudo. Os seus quadros em uma galeria
promíscua não se confundirão jamais com o de qualquer autores
pois tem a nota típica da terra: são janelas aberta sobre o campo da
pátria, postiges desvendando interiores, espelhos
mostrando feições lusitanas.
Não há névoas bretãs,
neblinas do friúl, pastores embiocados como os do Auvergne - é a terra portuguesa com a sua andante seara
loura, com os seus vinhedos, com os seus olivais e com os costumes da sua gente
- ali vê-se o
moreno moçárabe, ali se aproxima, sob a serapilheira, o homem robusto como os
pastores serranos que bateram, à funda e hasta, a gente de Sertorio,
ali se encontram a velha das xácaras e as graciosas moças de olhos negros
cantadas nos villancicos.
É preciso ver de
perto, com vagar, a obra de Malhôa.
Dela avultam na
exposição dois quadros que devem ficar entre nós: Cócegas [Imagem], uma maravilha de
execução na qual todos os toques, desde os mais meticulosos feitos
pacientemente, de leve, à ponta de pincel aos mais arrojados golpes de
espátulas revelam maestria poderosa, e o Sonho
do infante [Imagem] concepção
enérgica em que se destacam todos os processos de fatura do extraordinário
artista.
Ao primeiro cabe ao
governo dar acolhida na galeria da nossa escola Nacional de Belas Artes, porque
é um modelo completo que muito aproveitará aos alunos enriquecendo a nossa
mesquinha pinacoteca.
O segundo que é, a bem
dizer, a gênese da nossa história, porque é o sonho do precursor do grande vôo das naus que,
depois de haverem rompido as misteriosas brumas do Cabo, lançaram-se pela
esteira de sol até ao litoral formoso do nosso país, [..],
que o tome alguma instituição onde haja estímulo patriótico e gosto artístico.
Devem ficar conosco as
duas telas - siga o governo o exemplo dos particulares que têm sabido honrar o
notável mestre, disputando, com verdadeiro empenho e vivo entusiasmo, os
primores da sua notável galeria.
COELHO NETTO