Iconicidade e Objeto Social: Referenciais simbólicos do século XIX nos bens de consumo de massa da atualidade
Rosana Costa Ramalho de Castro
CASTRO, Rosana Costa Ramalho de. Iconicidade e Objeto Social. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 3, jul. 2009. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/rr_iconicidade.htm>.
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Os signos visuais são representações que podem ressoar modelos ou apenas alguns elementos de uma identidade, principalmente quando são expostos em manifestações híbridas que se amalgamaram ao imaginário dos grupos sociais legando um conjunto de códigos simbólicos de um e de outro.
Por tratarmos de signos, apresentamos o conceito elaborado por Guilherme Ockham, no texto de Patrick Hockhart:
Entende-se [...] por signo tudo aquilo cuja apreensão faz advir o conhecimento de uma outra coisa, ainda que não induza no espírito o primeiro conhecimento dessa outra coisa, como foi mostrado em outro lugar, mas que atualize um conhecimento que aí já se encontrava em reserva. (CHATELET, v. 2.:1974:169).
O estudo realizado comprovou haver a intenção de divulgar para a população da cidade do Rio de Janeiro uma estética destinada a diferenciar o estado anterior de cidade colônia da nova situação de sede da monarquia, em decorrência da atropelada transformação política ocorrida na Europa, após Napoleão insinuar invadir Portugal (SALLES:1996). E, ao estudarmos o processo histórico, entendemos as razões que levaram à utilização dos signos referentes às imagens constituídas no período do Império, mantendo-se presente até os dias de hoje, constituindo-se em código de valor estimado e referendado pelas classes populares.
Constatamos a ocorrência de repetições de modelo híbrido (TODOROV: 2003), introduzido na cultura da população da cidade do Rio de Janeiro há dois séculos atrás, que, mesmo em face do tempo transcorrido, mantiveram algumas referências que ainda evidenciam o modelo original em representações kitschs. A constatação só foi possível em decorrência do levantemento de fontes primárias e obras teóricas para as pesquisas que culminaram com a elaboração da tese de doutoramento, que trata de Imagens e Evidências da identidade monárquica consituída no século XIX pelos artistas da Missão Francesa e professores da Academia Imperial de Belas Artes. É do conhecimento de todos a chegada à cidade do Rio de Janeiro da corte portuguêsa para torná-la a nova sede do Reino de Portugal. Em nossas pesquisas, relacionamos como consequência da necessidade premente de tornar a cidade mais aproximada das sedes das monarquias européias a inclusão dentre os decretos assinados pelo monarca um deles que tratava da formação da Missão Francesa com a finalidade de formar um novo quadro estilístico para identificar a corte. Até então, os portuguêses eram incumbidos de realziar os projetos arquitetônicos e decorativos na cidade. (DEBRET: 1978)
Em consequência da chegada de aproximadamente 15.000 pessoas à cidade do Rio de Janeiro, sendo a grande maioria composta de membros da corte desacostumados com o aspecto destratado da urbe (MORALES DE LOS RIOS FILHO: s/d), encontrou-se D. João na responsabilidade de decretar a transformação da cidade. Uma das providências, que só se efetivou 8 anos após sua chegada, foi a de constituir uma Missão, formada por artistas franceses, que viria para a nova sede da monarquia com a incumbência de constituir a Academia Imperial de Belas Artes (MORALES DE LOS RIOS FILHO: 1938). Aqui chegando, os artitas franceses aguardaram 10 anos para verem o estabelecimento de ensino inaugurado. E mesmo assim, além das dificuldades vivenciadas pelos franceses (MORALES DE LOS RIOS FILHO: 1938), e apesar de tardiamente, a partir de 1817 começavam a aparecer nas ruas da cidade imagens relativizadas dos aspectos aristocráticos europeus, erguendo-se no ambiente urbano, mediante vários cenários de rua que eram projetos efêmeros para festejar os membros da monarquia aqui presente (RAMALHO DE CASTRO: 2004). Também se viam em locais públicos a imagem do monarca em representações de retratos e igualmente em medalhas (Coleção do Museu D. João VI) e no pano de boca do Teatro da Corte (SALLES: 1996). Todas as representações incluiam um novo codigo simbólico constituído a partir da cópia de monumentos greco-romanos ou franceses (RAMALHO DE CASTRO: 2004). Em alguns, apareciam detalhes clássicos ou neoclássicos emoldurando a imagem do monarca D. João. Logo após a volta do monarca para a pátria mãe, o filho, D. Pedro I, empenhou-se para afirmar a imagem de identidade da monarquia na cidade.
Poucos anos após a Consagração de D. Pedro I, o país se tornaria independente de Portugal e, naquele momento, a participação da Missão Francesa foi fundamental para garantir ao novo monarca a aceitação de seu poder pela população. Em face das dificuldades políticas, garantir a aprovação da população aos desígnios do novo monarca não só era importante para o Brasil como também qualificava para os europeus que aqui aportavam, por vários motivos, o novo Reinado.
Em auxilio à afirmação da imagem de D. Pedro, inaugurava-se a Academia Imperial de Belas Artes, 18 anos após a chegada da Missão Francesa (MORALES DE LOS RIOS FILHO: 1938). E, a partir de então, iniciava-se um novo capítulo da nossa história, não só o político como também o da constituição da identidade monarquica que se tornaria, também, em ícone, despertando a desejabilidade do povo brasileiro. Se a chegada de D. João serviu para organizar a casa e sede do reinado, a ascenção de D. Pedro serviria para dar início à visiblidade no exterior do recente e único estado monárquico dos trópicos (Livro de Correspondêcias: 1833, 1843) .
A partir de então, a sequência de festejos popularizou a imagem da identidade monárquica, contando com o trabalho de Jean-Baptiste Debret na elaboração dos desenhos, apresentando os modelos de indumentária e acessórios que distinguiam os personagens da corte da população em geral. (DEBRET: 1978) E, nos cortejos dos familiares, ocorridos nas épocas festivas, os elementos visuais eram integrados às ruas, aos sobrados, pelos monumentos que formavam arcos do triunfo ou outras alegorias, por onde passavam o monarca, sua família e os membros da corte, em meio à euforia da população. (RAMALHO DE CASTRO: 2004)
Durante os cortejos, havia a intenção de constituir um código de reconhecimento popular para identificar os monarcas. Dentre estes códigos, incluíam-se representações visuais que utilizavam a estética neoclássica francesa (DEBRET: 1978), adotada no século anterior naquele país pelos artistas acadêmicos, e que marcaram a diferenciação entre a situação política da monarquia e o movimento revolucionário (ARGAN: 1992). Apesar do distanciamento existente entre a representação e a realidade, o fato em si não importava para os franceses da missão, pois a eles ainda restava uma antiga ideia de valor simbólico a qualificar as imagens acadêmicas e que, de certo modo, mantinham a presença da aristocracia, mesmo após a decadência da classe. Por isso, na intenção de haver similaridade aos modos monárquicos europeus, copiavam-se objetos e realizavam-se monumentos de acordo com o modelo acadêmico francês.
Os estudos demonstraram que os cortejos do século XIX revelavam a intenção de “ver-se” (CANEVACCI: 2001) como a corte da França, apesar de não haver corte naquele país, conforme a imaginada pela Missão Francesa, desde a Revolução ocorrida em 1789.
Por tratarmos da história Imperial, reportamos ao trabalho de Ricardo Salles na obra Nostalgia Imperial cuja contribuição para entendermos melhor a formação da Identidade Nacional no Brasil do Segundo Império é significativa. Assim se refere Salles a respeito das repetições do modelo até os dias de hoje :
É preciso mais que uma interpretação do passado - mesmo que ela seja um elemento essencial do processo - para que se possa estender sua sombra sobre o presente de forma duradoura. É preciso explicitar como a sociedade imperial foi capaz de produzir uma imagem tão forte de si mesma, que ainda permanece presente na consciência coletiva dos brasileiros.(SALLES: 1996).
A motivação de estudarmos as origens destes signos visuais incide na percepção das constantes incidências dos mesmos elementos nos desfiles de escolas de samba da atualidade e também em objetos de consumo popular. Em contraponto aos estudos de nossa história, realizamos, inicialmente, uma pesquisa mais apurada dos mesmos elementos visuais nos desfiles de Escolas de Samba na cidade. E constatamos haver similaridades entre os signos copiados pelos missionários franceses para constarem dos cenários efêmeros construídos na cidade no século XIX. Como simulacros, os elementos visuais daquele período pretendiam expor a ideia do requinte, do status e dos ideais de valor social expostos pelos monarcas europeus, e que aqui apareciam nos objetos e adornos dos cenários, imitando o ouro, a prata, os mármores e todas as preciosidades (DEBRET: 1978). O trabalho dos franceses era tão bem realizado que os cenários permaneciam nas ruas da cidade, em algumas vezes por dois ou três meses, e podiam ser admirados pelos passantes, afirmando e solidificando no imaginário do grupo social os simulacros baseados na imagem europeia que identificavam o nosso monarca durante os cortejos.
Analisando os detalhes estilísticos e o mesmo processo de cortejo, dos desfiles das Escolas de Samba, percebemos que os efêmeros carros alegóricos e os adereços das Escolas de Samba portam os mesmos elementos decorativos e também são concebidos para uma existência efêmera. Além disso, enquanto o cortejo do desfile passa na avenida, a plateia aplaude e observa os passistas.
Identificar similariddaes entre os elementos sígnicos representados nos cortejos dos monarcas como também nos desfiles das Escolas de Samba pode parecer uma disparidade. No entanto, os elementos visuais empregados nos dois momentos evidenciam os correlatos entre as distintas representações, demonstrando a ocorrência, nos dias de hoje, de espelhamentos nas manifestações de rua do século XIX. (RAMALHO DE CASTRO: 2009)
Sobre as manifestações da atualidade: os desfiles organizados com a intenção de agremiar pessoas da comunidade, turistas, artistas e destaques da cidade durante o carnaval, certamente tratam-se de representações compostas de códigos simbólicos cujos objetos são constituídos de referências populares. E como são objetos referenciais, entende-se que são todos os desfiles, de todas as escolas e que passam pela avenida. Todos eles utilizam sistemas similares aos cortejos da monarquia e, também nas apresentações, se representam mediante monumentos constituídos de carros alegóricos e adereços de vários tipos. É comum haver elementos visuais da estética barroca, rococó e neoclássica e, principalmente, a coleção de elementos visuais que constavam dos cortejos da monarquia e que priorizavam estes mesmos elementos das estéticas nomeadas acima, mas constituídos de acordo com a linguagem francesa do neoclássico. (RAMALHO DE CASTRO: 2009).
Ao estudarmos vários desfiles de carnaval e entrevistarmos participantes das alas mais antigas de algumas agremiações, compreendemos o significado exposto nos elementos visuais cuja intenção do objeto representado é para “ver-se” como similar à imagem da família real. A intenção das representações é a de se referir ao requinte, à riqueza e ao valor estético similares à imagem da monarquia. Podemos afirmar tal questão avaliando as imagens referendadas pelo mestre-sala e porta-bandeira que são, no modo de ver dos participantes das escolas, o príncipe e a princesa da agremiação. (RAMALHO DE CASTRO: 2005)
A presença na atualidade dos elementos visuais do passado pode representar o valor estimado pela população às representações da monarquia, e denotar a importância dos monarcas na constituição da brasilidade. E afirmamos que, por essa razão, as imagens que representavam nossa monarquia passaram a ser modelos de “desejabilidade” (RIBAS et alli: 2004) repetindo os códigos europeus como meio de ressoar, perante os participantes, a ideia de similaridade às imagens fantasiosas do nosso poder maior: os membros da monarquia que se fora com o tempo. E, apesar da monarquia não ser o regime político atual, o imaginário popular mantém a presença dos representantes máximos da pompa e da ostentação, que eram diferenciados de tal forma da população local no século XIX que, talvez pelo contraste aviltante, tenha efetivado a soberania. Talvez este trabalho seja uma contribuição para a constatação de que o tempo não corresponde necessariamente ao melhor meio de testar os reflexos de algum momento marcante no imaginário dos grupos sociais, pois, no caso deta pesquisa, já se passaram duzentos anos e ainda encontramos os refexos da pompa que cercava os monarcas que para ca vieram no início do século XIX.
E assim, apesar do distanciamento no tempo, os mesmo signos neoclássicos ainda se mantiveram no imaginário de nossa população, conforme poderemos constartar com o presente trabalho que procura estender a pesquisa, alcançando o poder simbólico alcançado pelas representações do início do século XIX até meados do século XIX.
Ao estudarmos as repetições passamos a incluir com este trabalho a ocorrência da Reforma Pedreira (MORALES DE LOS RIOS: 1938; cf. Estatutos). A iniciativa governamental constituía-se de um programa abrangente, com a finalidade de reestruturar a instrução pública no Império. O propósito da Reforma Pedreira, de integrar o Brasil na modernidade, também serviu de estimulo para as reformas internas da Academia Imperial de Belas Artes. E, a partir de 1851 (Livro de Atas de AIBA: 1829/1872), o estabelecimento de ensino das artes passou a incluir novos cursos que procuravam atender à demanda da recente indústria da contrução. Ampliava-se, assim, a oferta de mão de obra especializada nas áreas do desenho industrial, incluindo especializações nas artes decorativas com a oferta da formação nas áreas de: relevos decorativos em estuque, para a concepção e confecção de elementos decorativos das fachadas e acabamentos internos dos ambientes; estatuária, para a concepção e confecção dos moldes e estatuas visando a produção em série; serralheria, para a concepção e confecção de gradiz e balcões (Livros de Matrículas AIBA: 1827/1878).
Provavelmente, em decorrência da Academia Imperial de Belas Artes ser o estabelecimento de onde se formavam os novos profissionais, os mesmos signos clássicos voltaram a aparecer em mais uma etapa de afirmação dos códigos simbólicos que remetiam à identidade monárquica, mas que, no tempo, tornaram-se, apenas, elementos de reconhecimento imediato.
Nossa pesquisa historica se concentra, a partir deste instante, na data de 1851 e, apesar do regente naquela época ser o neto do primeiro, os mesmo signos permaneciam nos elementos decorativos das casas, das grades, dos detalhes em argamassa, dos enfeites dos exteriores das residências e também de outros meios de exposição.
Revemos nossa história ao encontrarmos a Casa da Marquesa de Santos, construída em 1826 no estilo neoclássico, propositadamente perto do Palácio de São Cristóvão. A residência era moradia da Marquesa de Santos, amante de D. Pedro I e foi comprada, posteriormente, pelo Barão de Mauá. As decorações eternas e internas da casa são atribuídas aos irmãos Marc e Zepherin Ferrez, membros da missão artística francesa. Há, no entanto, em um dos frontais da residência, um camafeu com a data de 1851 e, como os cursos de desenho industrial da Academia começaram a funcionar a partir desta data, supomos que tanto os estuques como os trabalhos em ferro tenham sido realizados pelos dois professores da instituição ou mesmo por seus alunos das artes e ofícios. De um modo ou de outro, o que nos interessa é saber da existência da formação profissional específica para estes serviços e de encontrarmos um exemplar mandado construir pelo próprio D. Pedro I e ser mantido na regência do outro monarca, seu filho, mantendo os mesmos elementos simbólicos. Nesta passagem entre a construção mandada realizar por D. Pedro I e o trabalho de reforma da casa, comprada pelo Barão de Mauá, mantendo os mesmos elementos visuais é um sinal de que mantinham o código para além dos limites da corte, garantindo a presença dos mesmos modos simbólicos: o afrancesamento enaltecido desde a vinda de D. João VI.
É possível observar no edifício o detalhe decorativo do acabamento superior da parede externa com a data de 1851 e também o frontal com os elementos decorativos do estilo neoclássico francês. Logo abaixo, vemos um gradil concebido com os mesmo elementos decorativos que se encontram nos estuques do frontal e da guirlanda de acabamento. Os rebuscados formando o S, entremeados de folhas de acanto e fitas acompanhados dos elementos geométricos, de acabamento linear, estão presentes nos modelos aqui apresentados [Figura 1]. Estes signos permaneceram, assim como as colunas gregas apoiando os frontais, as compoteiras e vasos greco-romanos, são presenças da cultura clássica introduzida aqui no Brasil na época da chegada da corte.
Os exemplos acima são apenas pequenas amostras do tipo de trabalho que realizou-se na cidade do Rio de Janeiro, e que ainda pode ser observado em vários monumentos arquitetônicos como a casa citada acima e também o Teatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes entre outros. Estes últimos foram contruídos no início do séclo XX, ao tempo da Reforma Pereira Passos. As amostras, portanto, ainda estão visíveis e, talvez por isso, mantenham aceso no imaginário popular o desejo de espelhamento.
Apesar de apenas pequenos detalhes arquitetônicos, estes nos servem para proseguirmos com a nossa análise comparativa entre os elemenos estilísticos da identidade monárquica e um produto, produzido em grande escala para consumo popular.
Os objetos de consumo popular são, em geral, compostos de atrativos que garantam as vendas, pois devem ser produzidos em larga escala para atenderem ao público consumidor mais amplo e devem, também, despertar o interesse de imediato, para que o consumidor escolha aquela peça e adquirir.
Como o nosso estudo analisa o conjunto de signos que apareceram na época da monarquia, no século XIX e que ainda permanecem decorando objetos produzidos em série, para a venda popular, podemos garantir que, pelas características, tratam-se de objetos com características do kitsch.
Podemos entender melhor o sentido da palavra kitsch recorrendo às palavras de Abraham Moles que nos apresenta importante contribuição na obra O kitsch:
A palavra “kitsch”, no sentido moderno, aparece em Munich por volta de 1860, palavra bem conhecida do alemão do sul: kitschen quer dizer atravancar e, em, particular, fazer móveis novos com velhos, é uma expressão bem conhecida; verkitschen, quer dizer trapacear, receptar, vender alguma coisa em lugar do que havia sido combinado. Nesse sentido, existe um pensamento ético pejorativo, uma negação do autêntico. [...] O “kitsch” está ligado à arte de maneira indissociável, assim como o falso liga-se ao autêntico. (MOLES: 2001).
A cultura kitsch estabelece uma relação entre o original e o banal pela aquisição em massa de objetos copiados de um modelo criado por outros, modelo esse portador de uma cultura almejada. Os ‘intérpretes’ (produtores de bens de consumo) dessa cultura diluem a originalidade até o ponto do aceitável, banalizando-a para proporcionar a satisfação de muitos consumidores enquanto a arte mantém-se fora do alcance.
Moles esclarece:
Esta diluição dos culturemas mais originais em um ambiente de arte ao alcance de todas as bolsas, tende a realizar a idéia de ofelimidade (este termo, pode ser compreendido como ‘desejabilidade’) de Pareto e estará presente em todas as manifestações do kitsch.(MOLES: 2001).
Um objeto kitsch tem certas características que as distinguem de outros objetos. Como se refere Umberto Eco:
... a mensagem, elaborada por uma elite culta (grupo cultural ou órgão especializado inspirado pelo grupo detentor do poder econômico ou político), estrutura-se em função de “códigos iniciais” determinados, mas é recebida por grupos diferentes de usuários e interpretada com base em outros códigos que são os “códigos dos destinatários”. Nesse processo, os significados sofrem frequentemente distorções ou filtragens que alteram completamente a função “pragmática” da mensagem. (ECO: 1993)
No caso dos produtos de consumo espelhados na imagem de identidade da monarquia, quando ocorre a aquisição do objeto, mesmo transformado, significa que também ocorre a ideia de transposição do status ou prestígio dos monarcas para aquele que adquire o bem. Assim sendo, assimilar a imagem do todo poderoso paradigma europeu (NEEDEL:1993) significa apoderar-se do poder da outra classe social, que é inatingível pela própria situação política: a monarquia não mais existe.
Assim, a concepção de um produto de consumo de massa em geral transforma produtos das elites cultas em reproduções que empregam materiais de baixa qualidade e, na maioria das vezes, adotando o código simbólico do outro com significados totalmente alterados. Assim, a imagem desejada passa a ser consumida por aquele que não podendo adquirir os objetos de arte satisfaz-se com as cópias realizadas em materiais de baixa qualidade para que possam obter o menor preço. Desse modo, o público consumidor obterá a imagem simbólica do outro em objetos de baixo custo e produção e alta escala para que, como diz Eco: “O Kitsch prevê uma vontade de prestígio mais manifesta” (ECO:1993).
Analisando várias atividades populares e vários tipos de bens de consumo de massa, assim como: festas populares, desfiles de carnaval, objetos de adorno pessoal; objetos para decoração; estamparias para tecidos; materiais para revestimento de paredes; tecidos para forração de mobiliário e objetos em cerâmica e porcelana para uso doméstico, constatamos a presença dos mesmos elementos simbólicos adotados para identificar a monarquia no século XIX.
Os pontos de convergência entre o objeto artístico da Academia Imperial de Belas Artes e os elementos kitsch, produzidos na atualidade estão na esfera do desejo, definindo uma ordem de poder, aquém da realidade do objeto em si. Adotando o mesmo termo empregado neste sentido por Moles, a desejabilidade distingue o empenho na aquisição de um bem visando a promoção social, isto é, uma fantasia de estilo de vida. Assim, a desejabilidade expõe e orienta o consumidor como se o objeto consumido pudesse ter o mesmo poder de uma flecha orientada em direção à camada socialmente imediatamente superior. Mesmo distante da realidade, esta promoção do estilo de vida terá na aquisição dos bens que portam os signos representantes da cultura desejada um efeito que satisfaz. E, no caso específico deste trabalho, apesar das deformações ocorridas na transposição do original para as representações “kitschs”, percebe-se a intenção de repetir o vocabulário estético, denotando as afinidades da população com o ideário da monarquia.
Por último, só nos resta apresentar a representação fotográfica da cerâmica de consumo popular: um objeto para uso doméstico uma compoteira - realizada com os elementos idênticos aos empregados na decoração do frontal, da grega de acabamento dos mudos e da grade da Casa da Marquesa de Santos do século XIX [Figura 2]. Apesar do uso dos mesmos elementos visuais, que são signos de ostentação, não há nenhuma preocupação com a integridade absoluta dos elementos de espelhamento, tanto é que o objeto apresenta detalhes decorativos do estilo neoclássico, são idênticos aos rebuscados do frontal da Casa da Marquesa de Santos, no entanto, a peça é uma sopeira apoiada sobre um prato também decorado com os mesmo detalhes. As duas peças são pintadas de rosa vibrante e os detalhes são ressaltados pelo dourado! A visão da peça dispensa maiores aprofundamentos a respeito da reincidência dos mesmos elementos decorativos adotados na construção da Casa da Marquesa de Santos.
Bibliografia
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Documentos do Arquivo do Museu D. João VI
LIVROS DE CORRESPONDÊNCIAS mantidas entre a AIBA e a Regência - período de 1833 a 1843
LIVROS DE ATAS da Congregação - 1829 a 1872
LIVROS DE MATRÍCULAS da Academia Imperial de Belas Artes - 1827 a 1878
Sites visitados
A Casa da Marquesa de Santos http://www.sao-cristovao.com/casamarquesa800.htm. Acesso em 2009.
Museu do Primeiro Reinado: http://www.pbase.com/andremendonca/museudoprimeiroreinado. Acesso em 2009.