Do século XIX ao XX. O papel da história na representação e na prática da arquitetura
Marcelo Puppi [1]
PUPPI, Marcelo. Do século XIX ao XX. O papel da história na representação e na prática da arquitetura. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte decorativa/mpuppi_representacao.htm>.
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Em artigo recente publicado neste periódico[2], Claudia Ricci apresenta uma descoberta aparentemente desconcertante a respeito do projeto de Adolfo Morales de los Rios para a Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Diferentemente do que se presumia à primeira vista, a pesquisa da autora revelou que o projeto não foi gerado a partir de referências prestigiosas do mesmo tipo arquitetônico, mas se originou de projeto anterior do próprio Morales de los Rios para a reconversão do antigo Mercado da Glória em escola de belas-artes. Além de ser uma contribuição importante para o conhecimento da arquitetura carioca do início do século XX, a descoberta propõe implicitamente uma questão teórica que vai além desse contexto histórico particular, e que se refere ao plano mais geral da representação e da prática da arquitetura no período do historicismo.
A questão em si é muito simples: qual a relação entre os projetos de um mercado e de uma escola de belas-artes, ou, em outras palavras, qual a relação entre um equipamento de caráter utilitário e um monumento de caráter cultural? Certo, não existe necessariamente nenhuma incompatibilidade entre um e outro, como aliás atesta o próprio projeto, mas também não existe nenhuma ligação evidente entre ambos. Sobretudo, aparentemente não seria possível explicar satisfatoriamente se há uma relação significativa entre mercado e escola de belas-artes, e qual seria ela. Entre parênteses, é importante sublinhar que, se a questão parece supérflua aos olhos de quem ignora o século XIX (e anteriores...), preferindo aceitar cômoda e superficialmente que a arquitetura do século XX surgiu do nada, ela é relevante tanto no contexto do historicismo quanto para o conhecimento da própria arquitetura contemporânea.
A questão interessa porque diz respeito não só à prática mas também à teoria da arquitetura, e, de modo mais preciso, ao ponto no qual teoria e prática se encontram. Por um lado, de forma mais evidente, trata-se de um problema particular do processo de geração do projeto arquitetônico. Por outro, a questão pertence ao plano mais geral do pensamento arquitetônico no século XIX, que engloba a prática mas está além dela, e que é muito menos conhecido. Ela leva a interrogar o modo como os arquitetos se representam a arquitetura e os objetivos que eles lhe atribuem em consequência. Representação e objetivos que justamente orientam a prática dos arquitetos, do ponto de vista tanto teórico (o papel atribuído à prática), quanto da aplicação do conhecimento (o processo de projeto).
Como o demonstram quase todas as pesquisas recentes sobre a cultura arquitetônica do século XIX, a concepção da história é um dos pontos fundamentais, senão o mais importante, na relação que o historicismo estabelecia entre teoria e prática[3]. De nossa parte, pretende-se mostrar que o conhecimento do papel da história na cultura arquitetônica pode explicar a descoberta surpreendente de Ricci, ou pelo menos contribuir para seu estudo. Mais ainda, pretende-se mostrar que esse conhecimento é igualmente fundamental para se compreender melhor a relação mais geral entre teoria e projeto, representações e práticas na arquitetura brasileira do século XX. Nesse contexto, veremos também que, ao contrário do que supõe desavisadamente a maioria, a concepção da história (do século XIX...) é a base teórica da própria arquitetura moderna, e talvez também de sua prática.
A dimensão imaginária da história
Apesar do preconceito ainda generalizado contra a arquitetura do século XIX, o conhecimento dos especialistas sobre a história do período, e sobre o papel da história na cultura da época, avançou muito nas últimas três ou quatro décadas. Se até 1970, aproximadamente, a história era vista apenas como uma fonte da qual os arquitetos se serviam para criar ou copiar os ornamentos de seus edifícios, sabe-se hoje que ela constituía um dos objetos mais importantes da cultura arquitetônica do século XIX, ao lado do conhecimento científico e do pensamento utópico[4]. A importância atribuída à história, à ciência e à utopia mostra que esse período se caracteriza pelo objetivo de pôr a arquitetura em sintonia com a cultura da época, integrando-a ao todo maior da sociedade. No caso particular da história, sua incorporação ao pensamento arquitetônico decorre, quase explicitamente, do desejo de inserir a arquitetura no fluxo dinâmico do tempo, e mais precisamente de um processo que conduziria ininterruptamente a humanidade para seu aperfeiçoamento material e espiritual. Além do mais, o raciocínio histórico é um meio para se refletir objetivamente a respeito das relações que a arquitetura pode ou deve estabelecer com o pensamento científico e cultural de sua época. À luz do conhecimento atual sobre o período, que bem pode ser denominado de nova história do século XIX, não surpreende que todos os escritos deixados pelos arquitetos do século XIX apresentem um caráter histórico, seja tomando a história com objeto, seja apresentando-se na forma de uma narração histórica.
Para os arquitetos do século XIX, de modo geral, a narração histórica é considerada um meio tão poderoso que ela toma o lugar do argumento teórico direto. A história praticamente substitui a teoria, ou melhor, a teoria é formulada e exposta na forma de um pensamento histórico[5]. Basta lembrarmos que os maiores teóricos do período, Viollet-le-Duc, Léonce Reynaud, Léon Vaudoyer, César Daly, e ainda Auguste Choisy, estão também entre os maiores historiadores ou especialistas em história da arquitetura do seu tempo (empregando naturalmente os termos historiador e especialista no contexto da época). Pode-se inclusive dizer que a fortuna crítica desses autores está diretamente relacionada ao grau do caráter histórico de seus escritos, isto é, ao interesse que a forma do discurso desperta nos leitores. Não por acaso, Viollet-le-Duc cujo argumento teórico se expõe na forma de dicionários históricos e de discussões sobre temas históricos, e Choisy que sutilmente propõe uma teoria abrangente sob a aparência de um estudo de história da arquitetura, foram mais lidos, mais reconhecidos e tiveram a sorte de transmitir mais diretamente suas ideias aos arquitetos do século XX (vanguardas incluídas). Inversamente, Léonce Reynaud que se dedicou a uma reflexão elaborada e original sobre a história, mas que a apresenta de forma dispersa e frequentemente obscura no seu também difundido Traité d’Architecture, não teve, e ainda não tem, o reconhecimento que sua teoria histórica merece (a não ser indiretamente, através do seu aluno e discípulo Choisy, mas esta já é outra história).
Em suma, os pesquisadores que se debruçam hoje sobre o século XIX já conhecem o papel da história como teoria da arquitetura. Mas é possível ir ainda mais longe, postulando que o papel da história vai além da exposição indireta do argumento teórico. Olhando mais de perto, pode-se verificar que o século XIX valorizava a narração histórica pelo seu potencial, ou poder, de superar o pensamento racional, de exercer uma ação que o conhecimento científico ou não seria capaz de produzir, ou provocaria muito lentamente. Dirigindo-se mais ao sentimento que à razão, a narração histórica teria o poder de despertar a imaginação do leitor agindo direta e imediatamente no seu espírito, queimando assim uma etapa no processo de transmissão do conhecimento. Ela seria um meio de passar diretamente da teoria à prática, engendrando a um só tempo novos pensamentos e novas ações. O relato histórico era portanto considerado um princípio criativo que partilha a natureza e a força das obras de arte, as quais persuadem ao invés de simplesmente convencer. Nesse sentido, o processo desencadeado pela persuasão histórica se passa mais no plano ativo do imaginário que no plano contemplativo do conhecimento. Nascendo ela própria de um imaginário, a narração histórica fala por sua vez ao imaginário do público; ela tem o potencial de conduzir insensivelmente de um imaginário a outro.
A dimensão imaginária da história é um dos pontos fundamentais da concepção da arquitetura no século XIX. A pesquisa das fontes do pensamento arquitetônico da época, e do pensamento histórico em particular, atesta que, de forma suficientemente evidente, se tinha plena consciência dessa dimensão. Embora isto não se aplique a todos os casos, Viollet-le-Duc constituindo por exemplo uma exceção, pode-se verificá-lo em outros grandes autores do período, como Vaudoyer, César Daly, Reynaud, Dartein e Choisy. Para esses, incorporar a dimensão imaginária da história significava, e mais uma vez de forma consciente, elevar a cultura arquitetônica ao plano da cultura da época. Em outros termos, esses autores se consagraram a repensar toda a concepção da arquitetura a partir da cultura romântica, e especialmente do pensamento saint-simoniano, que abria novos horizontes tanto para o conhecimento quanto para a criação artística, e que justamente conferia ao imaginário um papel central nas representações e práticas humanas[6]. Se, graças aos pesquisadores que se debruçaram sobre o século XIX nas últimas décadas, já se sabia que a geração dos chamados “historicistas românticos” apropriou-se diretamente da contribuição teórica dos saint-simonianos[7], pode-se agora acrescentar que, primeiro, essa geração atribuía igualmente um potencial criador e transformador ao imaginário, e que, segundo, ela transmitiu indiretamente esse ponto de vista a seus discípulos, como no caso significativo de Reynaud e seus alunos Dartein e Choisy.
O estudo da dimensão imaginária da história permite não apenas ampliar o conhecimento do papel conferido à narração histórica no século XIX, mas também do modo como, nesse contexto, se operava a passagem da teoria à prática. Como dito acima, o relato histórico não se destinava simplesmente a transmitir um conhecimento teórico, ele visava sobretudo incitar à prática, ou melhor, a uma nova prática, que por sua vez se elevaria também ao plano do imaginário (sem naturalmente descuidar do plano das necessidades materiais). Enfim, a dimensão imaginária diz respeito muito mais à prática que à teoria. É possível afirmar que, através dela, podemos no mínimo compreender melhor o próprio processo de composição do século XIX. Além disso, é possível dizer que, na arquitetura moderna em geral, e particularmente na arquitetura moderna brasileira, a composição também apresenta um forte componente imaginário. Se a verificação dessa hipótese vai muito além do âmbito desse trabalho, já é possível demonstrar que, no plano das representações, a dimensão imaginária está na base da arquitetura moderna brasileira.
A dimensão imaginária na arquitetura moderna brasileira
Comecemos então pela arquitetura moderna que, no caso brasileiro, oferece fontes privilegiadas para o estudo das relações entre as culturas dos séculos XIX e XX. Diga-se logo de início que as fontes disponíveis indicam muito mais uma continuidade que uma ruptura no pensamento arquitetônico dessas duas épocas. Apesar da indiferença geral, hoje não é mais segredo para ninguém, ou não deveria ser, que a concepção da arquitetura no século XX pode ser considerada uma evolução da concepção do século anterior, sob vários aspectos. Evolução que, aliás, como veremos adiante e como pode facilmente tirar a prova quem não despreza o historicismo, já estava prevista, e também esperada, no próprio pensamento do século XIX. A fonte mais importante para o estudo dessas questões é também nossa maior autoridade em matéria tanto teórica quanto prática na arquitetura moderna brasileira. Com efeito, os escritos de Lucio Costa, que estabelecem os fundamentos teóricos dessa arquitetura, retomam de modo suficientemente claro, e mesmo explícito, alguns dos princípios caros à cultura historicista, principalmente no que diz respeito à abordagem da história. Em se tratando de Lucio Costa, além do mais, é difícil considerar que as referências ao pensamento do século XIX sejam casuais e inconscientes; ao contrário, elas se apresentam mais como traços e pistas postos deliberadamente no caminho (da inteligência) do leitor. Nisso Lucio Costa lembra Léonce Reynaud, que sugeria muito mais do que afirmava, e com quem, talvez não por acaso, ele tem outros pontos em comum.
Existem grandes semelhanças entre os principais escritos de Lucio Costa e a abordagem teórica do século XIX. Primeiro, o argumento de caráter histórico está presente por toda parte; seja para, entre outras coisas, melhor caracterizar o período e a arquitetura contemporâneos, a exemplo do Razões da nova arquitetura, seja para demonstrar um ponto de vista estético, como no Considerações sobre arte contemporânea. Nesse caso, basta fazer a leitura dos textos para comprová-lo. Segundo, em Lucio Costa a história é um meio para expor seu pensamento teórico. Todos os autores são unânimes em mostrar, afirmar ou evidenciar que Lucio Costa não faz história da arquitetura, mas teoria através da história (ou história como teoria); nas palavras de Carlos Eduardo Comas, o objetivo de Lucio Costa “é claramente outro, o enunciado dum programa para a contribuição brasileira à superação do International Style”[8]. Terceiro, alguns termos e conceitos são diretamente emprestados do vocabulário do século XIX e, mesmo que sejam empregados para fundamentar a arquitetura moderna, eles conservam o significado original. Finalmente, não se trata apenas do empréstimo de palavras, mas da apropriação de uma concepção da arquitetura própria ao século XIX, e mais precisamente da concepção saint-simoniana da arquitetura, na qual a dimensão imaginária tem um papel decisivo. Muito embora estes dois últimos pontos sejam relativamente evidentes, isto é, evidentes para quem os repõe no seu devido contexto, eles ainda não foram estudados e merecem que nos detenhamos um pouco neles.
Mas, entre Lucio Costa e o século XIX há Le Corbusier. O mestre franco-suíço é sempre apontado como uma das grandes fontes, ou mesmo a principal, do teórico brasileiro. Enquanto Comas, sem deixar de evocar outras referências significativas, observa que Vers une architecture e Précisions são as fontes mais óbvias do fundamental Razões da nova arquitetura, Otávio Leonídio trata do assunto como se Lucio se guiasse exclusivamente pelo Corbusier de Urbanismo[9]. Entretanto, se as semelhanças saltam aos olhos, existem diferenças igualmente significativas entre ambos, como também já o demonstrou Comas. O confronto direto entre Razões da nova arquitetura e Urbanismo mostraria, por exemplo, e diferentemente do que afirma Leonídio, que um e outro não falam exatamente da mesma coisa, isto é, não abordam as mesmas questões da mesmíssima forma. Isso sem prejuízo do fato que a relação por ele estabelecida entre os dois textos é reveladora, por outras razões. Repondo-as no seu contexto teórico, semelhanças e diferenças indicam que ambos os autores beberam em uma terceira fonte, e uma fonte do século XIX. Aliás, o referido confronto mostraria também que, enquanto Le Corbusier distorce a seu favor as fontes teóricas do século XIX, Lucio Costa permanece-lhes fiel, não por sujeição, mas para delas tirar todas as (melhores) consequências para o século XX. Que a leitura de Le Corbusier tenha sido decisiva para Lucio Costa, não resta dúvida. Porém, tudo leva a crer que essa leitura o levou além do próprio Corbusier, que ela o incitou à descoberta, ou redescoberta do verdadeiro espírito do século XIX, de um século XIX cultivado, inspirado e criador.
Ainda que as fontes teóricas de Lucio Costa sejam mal conhecidas, e que ainda seja difícil identificá-las com precisão, já é possível reconhecer, e mostrar que elas remontam ao século XIX e têm ascendência saint-simoniana. Sabe-se hoje que o saint-simonismo está na origem de uma das grandes concepções da arquitetura no século XIX, a qual, com algumas diferenças, foi elaborada e incorporada por vários dos principais protagonistas da cultura arquitetônica da época, e isso do ponto de vista tanto da teoria quanto da prática. Lembrar que, aqui também, Viollet-le-Duc constitui a grande exceção é mais simples que citar todos os exemplos. Nos seus aspectos mais gerais, o pensamento saint-simoniano se define como uma nova forma de conhecimento baseada na interação entre razão e sentimento, na qual, consequentemente, a arte tem um papel tão importante quanto a ciência; a forma, tão decisivo quanto a técnica. Esse ponto de vista epistemológico é acompanhado de uma teoria histórica segundo a qual a humanidade evolui de forma ciclo-progressista, passando alternadamente por épocas críticas e épocas orgânicas. Nas primeiras, a sociedade é uma simples soma de partes independentes umas das outras (todo analítico); o conhecimento é fragmentado; seu potencial é limitado. Quanto às segundas, elas se caracterizam pelo equilíbrio social, formam um todo coeso e hierarquizado (unidade orgânica), favorecem o florescimento das artes e apresentam um grande potencial cultural e material. Apenas a unidade do conhecimento buscada pelos saint-simonianos, isto é, somente o processo de conhecimento baseado na interação entre razão e sentimento, ciência e arte, é capaz de engendrar estas últimas. Isso significa que essas épocas não nascem prontas e acabadas, mas são necessariamente precedidas por um período de transição, fase indispensável e contraditória, na qual a mentalidade da época anterior é lentamente substituída pelos princípios da nova época. Os saint-simonianos e seus simpatizantes tinham justamente o sentimento de viver em um desses períodos de transição, razão pela qual eles se consagraram à formulação e disseminação de uma nova consciência, ou melhor, de um novo imaginário que, se propagando na forma de uma reação em cadeia, conduziria a humanidade da época crítica anterior à nova, superior e definitiva era orgânica do futuro (a “era do ouro”, nas palavras do próprio Saint-Simon).
Na arquitetura, como nas artes em geral, o saint-simonismo propõe uma concepção orgânica do objeto estético, no sentido preciso em que ela é concebida como um todo menor dentro de um todo maior, como uma pequena unidade dentro da grande unidade social. Esta concepção é igualmente inseparável do contexto das épocas orgânicas, nas quais, e somente nas quais, sociedade e arquitetura poderiam atingir um estado de equilíbrio. Nessas épocas, a arquitetura torna-se capaz de interagir com a sociedade que a abriga, tanto recebendo o dinamismo do exterior quanto, inversamente, exercendo uma ação aperfeiçoadora, ou transformadora, sobre a realidade. Mas seu potencial criador é ainda maior, ou mais necessário, nos períodos de transição. Nesses momentos, e em particular na transição para uma época orgânica, a arquitetura tem o poder de contribuir para o advento de uma nova mentalidade e de uma nova organização social, e isto mais do que qualquer outra forma de manifestação artística. Dirigindo-se à imaginação do público, a arquitetura contribuiria para evidenciar e propagar uma nova concepção da realidade, acelerando assim o processo de transição de um imaginário a outro, de uma época à outra. Além do mais, e antes e acima desse papel, ela própria poderia também contribuir para sondar e formular a nova unidade do conhecimento, seja participando ativamente da elaboração teórica (caso dos arquitetos), seja propondo novas possibilidades práticas (caso dos edifícios). Em suma, o pensamento saint-simoniano conferia à arquitetura um papel cultural e social de grande relevância e de grande alcance, um papel tão importante, ou ainda mais importante que no vitruvianismo, e que lhe fora em seguida negado pela cultura do Iluminismo (precisamente uma época crítica, na visão do saint-simonismo)[10].
Não surpreende portanto que os arquitetos do século XIX se sentissem atraídos pelo imaginário saint-simoniano, que essa atração se prolongasse em pleno século XX, e que ela ainda fosse capaz de excitar a imaginação de Lucio Costa. Não seria por mero acaso que as primeira linhas do Razões da nova arquitetura evocam explicitamente os períodos de transição, em um sentido claramente saint-simoniano. Entre parênteses, note-se que, se Le Corbusier refere-se, em Urbanismo, a fases que se assemelham vagamente à noção saint-simoniana de períodos de transição, ele não emprega a expressão; fato que torna seu empréstimo por Lucio Costa ainda mais eloquente. Uma única menção não seria por certo esclarecedora, mas o segundo parágrafo não deixa margem alguma à dúvida: “Estamos vivendo, precisamente, um desses períodos de transição, cuja importância, porém, ultrapassa - pelas possibilidades de ordem social que encerra - todos aqueles que o precederam”[11]. A teoria saint-simoniana da história está quase toda resumida nessas linhas, a não ser pelo fato que a transição se prolonga até o século XX ou, talvez, que ela corresponda ao princípio do século XX, ao invés do século XIX. Primeiro, a história apresenta-se claramente como um processo ciclo-progressista caracterizado pela alternância de épocas distintas (que não são nomeadas mas que podem ser indiretamente identificadas); segundo, esse processo compreende necessariamente períodos de transição (no plural); terceiro, os períodos de transição são fases contraditórias e indefinidas nas quais convivem o ocaso de uma época e o despertar de outra (primeiro parágrafo); quarto, as fases de transição comportam também um grande potencial criador; quinto, o período contemporâneo é heroicamente identificado como uma fase de transição; finalmente, o potencial da transição contemporânea é mais elevado e conduz implicitamente a uma época definitiva e superior, que praticamente se confunde com a “era do ouro” dos saint-simonianos.
Mas a ascendência saint-simoniana não se limita aos primeiros parágrafos e ao esquema evolutivo da história. Adiante, Lucio Costa afirma que a época por vir trará equilíbrio e estabilidade[12], que definem justamente as épocas orgânicas desse esquema. E não se trata apenas de uma vaga semelhança, pois também encontramos no texto as expressões “organismo vivo” e “todo orgânico”, que, se não designam diretamente a época, se aplicam ou à arte de um tempo de equilíbrio (“organismo vivo”[13]), ou à própria arquitetura moderna que seria a manifestação estética da nova era orgânica (“todo orgânico”[14]). Acrescente-se ainda que, no Razões, a história é um processo tão determinista quanto indeterminista; de um lado, a transição contemporânea ruma em direção à “nova realidade que, inelutável, se impõe” (o equilíbrio social), de outro, é preciso saber “alcançar outro equilíbrio” nas artes[15]. Nos escritos posteriores de Lucio Costa, o indeterminismo se tornará mais determinante que o determinismo, mas esta já é também uma outra história. Trata-se aqui da mesma distinção e complementaridade entre técnica e arte estabelecida no pensamento saint-simoniano e que, também de forma variável, será incorporada à teoria da arquitetura pelos autores que o abraçaram, particularmente por teóricos considerados racionalistas como Reynaud e Choisy. Olhando mais de perto, ambos os dois atribuem à arte, ou melhor, à imaginação estética um potencial superior ao poder da técnica. Reynaud muito mais que seu aluno Choisy, pois este último, cujo Histoire de l’architecture, apesar de dissimulá-lo, é indubitavelmente uma abordagem saint-simoniana da história da arquitetura, buscou um equilíbrio entre o transformismo histórico de Reynaud e o determinismo de Viollet-le-Duc. Sem descartar outras possibilidades a serem ainda verificadas, eis talvez as duas fontes mais prováveis da teoria histórica de Lucio Costa, tanto mais que Razões desenvolve igualmente um ponto de vista racionalista, ou considerado racionalista da arquitetura. No qual, como em Reynaud e Choisy, e diferentemente de Viollet-le-Duc, a arte tem a última palavra em relação tanto à técnica quanto ao processo mais geral da evolução da humanidade (“a arquitetura está além - a tecnologia é o ponto de partida”[16]).
Mesmo as imagens mais aparentemente impiedosas contra o historicismo do Razões se inspiram nas fontes teóricas do século XIX. Se os próprios “bons doutores acadêmicos” do século XX terminariam por reconhecer que a “garota bem esperta, de cara lavada e perna fina” não é a negação da época precedente, mas sua “legítima herdeira”[17], essa herança não apenas seria aceitável na visão dos melhores teóricos do século XIX mas, principalmente, ela já estava inscrita na sua concepção da história. Não que eles já fossem capazes de imaginar ou de prever a jovem de “cara lavada e perna fina”. Porém, por definição, a fase de transição na qual se acreditava então viver conduziria necessariamente a uma nova arquitetura, que alguns já identificavam na arquitetura metálica, enquanto outros, mais prudentes, e em bons saint-simonianos, se recusavam a determinar antecipadamente (caso, por exemplo, de Reynaud e Choisy). Salta assim aos olhos que, para quem, por sua vez, já se via no alvorecer de uma nova era, a “legítima herdeira” é o corolário da fase de transição contemporânea, isto é, representa o corolário de toda a concepção histórica do século XIX. Mais ainda, a expressividade da imagem é digna do papel persuasivo que os saint-simonianos atribuíam não somente à arte mas também ao discurso de caráter teórico, oral ou escrito, e em especial à narração histórica.
“Em momentos como este, pouco adianta falar à razão”[18]. Tudo somado, as palavras de Lucio Costa não pretendem falar à razão, mas ao sentimento. Ou melhor, elas se dirigem mais ao sentimento que à razão, elas visam mais excitar a imaginação do leitor que convencê-lo diretamente. Razões não o convida a contemplar passivamente a nova arquitetura, mas a agir para materializá-la, para criar o estilo evoluído de uma época evoluída. De modo mais geral, ele o convida a participar da constituição de uma verdadeira era orgânica através da concepção de uma arquitetura igualmente superior e orgânica, tarefa histórica que vai muito além do poder individual da técnica. Eis o papel da narração histórica em Lucio Costa. Não se trata, com toda evidência, e como já se sabe, de fazer história da arquitetura. Nem simplesmente de se servir da história para ilustrar uma doutrina. Mas de uma criação teórica que vai além do próprio conhecimento, ampliando a compreensão humana, e que tem o poder de revelar e de evocar outra realidade possível, não irreal mas em curso, e outra arquitetura, em estado latente. Em outros termos, a narração histórica inspira Lucio Costa a descobrir e, por sua vez, a sugerir uma realidade virtual que se infunde diretamente no imaginário, estimulando-o e transformando-o, para converter insensivelmente o leitor ao novo pensamento e à nova prática e incitá-lo a propagá-los (através da criação estética ou do próprio discurso)[19]. Tal qual uma obra de arte sutil e inspiradora, a fina eloquência histórica de Lucio Costa destinava-se antes de tudo a transmitir um imaginário, provocando a reação em cadeia necessária para a criação da arquitetura moderna brasileira. Em bom conhecedor do século XIX, bem como da cultura em geral, Lucio Costa tinha certamente consciência disso.
Dimensão imaginária e composição
O estudo da dimensão imaginária da história, acabamos de ver, abre novas perspectivas para o conhecimento do pensamento arquitetônico no nosso contexto. Isto tanto em relação à arquitetura moderna, na qual, através do caso excepcional de Lucio Costa, pode-se verificar que a dimensão imaginária está na base da sua concepção, quanto, com maior razão, em relação à cultura historicista precedente (apesar de faltarem fontes tão explícitas no que se refere a esse período). Essa dimensão é também aqui indispensável para se compreender o papel das representações no pensamento arquitetônico, papel que vai além do conhecimento teórico e diz respeito igualmente à prática. No plano nacional, também, a dimensão imaginária da história pode contribuir diretamente para se conhecer melhor o processo fundamental da passagem da teoria à prática, isto é, o processo de composição arquitetônica.
Os escritos de Lucio Costa permitem deduzir, ou pelo menos formular a hipótese que, na arquitetura moderna brasileira, a composição tem um forte componente imaginário. Entre parênteses, parece desnecessário dizer, nesta altura, que a verdadeira arquitetura moderna é composição. A discussão dessa hipótese vai longe e já seria outro, ou outros trabalhos, mas, a meu ver, a leitura culta e profunda que Carlos Eduardo Comas empreendeu das obras-primas da arquitetura moderna brasileira evocam indiretamente a dimensão imaginária dessas composições[20]. Inversamente, no caso do historicismo, essa dimensão ainda não foi reconhecida nem na teoria nem na prática, nem tampouco foi indiretamente contemplada no exame das obras do período. E justo no caso do historicismo, que, no Brasil, está diretamente vinculado à cultura europeia e americana da época e, portanto, foi gerado a partir das mesmas fontes, ou melhor, das mesmas representações que engendraram a arquitetura na Europa e na América do Norte. Razão pela qual a descoberta de Claudia Ricci relativa aos projetos de Morales de los Rios para a Escola Nacional de Belas Artes é reveladora. Trata-se de uma das composições mais representativas de seu tempo, elaborada por um arquiteto de formação europeia e que, além do mais, apesar da nacionalidade estrangeira do autor, não constitui uma exceção. Basta lembrar que ele foi professor de Heitor de Mello, que por sua vez foi professor de Lucio Costa, que os conhecia muito bem. Mesmo que não haja uma linhagem direta entre eles, fato ainda não estudado e que talvez o silêncio das fontes não permita desvendar, é certo que, em maior ou menor grau, eles partilhavam a mesma cultura.
Se não existe necessariamente uma relação direta e objetiva entre mercado e escola de belas-artes, a relação entre um e outro torna-se significativa no plano do imaginário. A transposição do projeto anterior de reconversão de um mercado para o terreno definitivo, solução que deve muito ao acaso (e o acaso também tem parte no imaginário), já sugere uma visão da arquitetura alimentada mais pelo sentimento que pela razão. Se o mercado moderno remonta ao século XVIII, no seguinte ele não é mais apenas uma edificação de caráter utilitário. No século XIX, o mercado passa a despertar a imaginação dos arquitetos, em razão de suas novas dimensões e de sua nova materialidade. Por um lado, ele intervinha mais intensamente sobre o tecido urbano e, por outro, ele era mais permeável à cidade, graças ao emprego de novas soluções estruturais e de novos materiais como o metal. Ao lado da aérea estação ferroviária, o mercado em estrutura metálica representava, a um só tempo, o progresso da arquitetura, da técnica e da sociedade na qual eles se inserem. Esses edifícios se apresentavam explicitamente como parte de uma evolução que vem de longe e que não termina no presente, eles reivindicavam pertencer ao processo histórico da humanidade. Dito de outro modo, a percepção desses tipos arquitetônicos e, de modo geral, de toda a ordem tipológica, é então inseparável de uma concepção histórica abrangente que, como vimos, inspira-se diretamente no pensamento saint-simoniano. Nesse sentido, pode-se dizer que a abordagem tipológica do século XIX tem uma dimensão fortemente imaginária. Ou, o que dá no mesmo, que o papel atribuído aos edifícios ou tipos arquitetônicos é fruto de um imaginário histórico. Imaginário que, por sua vez, a arquitetura visa transmitir ao grande público.
A torre Eiffel é o exemplo mais evidente dessa imbricação entre edifício ou tipo arquitetônico e dimensão imaginária da história. Concebida por um engenheiro influenciado por um tio simpatizante do saint-simonismo, essa torre de caráter não-utilitário, e cujos arcos da base não são estruturais, representava orgulhosamente o progresso da humanidade e proclamava que essa evolução conduzia da dispersão (dos quatro pés) à unidade (da torre superior), isto é, conduzia à unidade e equilíbrio de uma nova era orgânica. De forma menos evidente, contudo, mas ainda assim suficientemente clara em seu contexto, os edifícios de caráter utilitário também passam a ser representados a partir desse imaginário histórico. Como a torre de Eiffel, mas antes dela, o Mercado Central de Paris, de Baltard, não constitui somente a celebração de um progresso técnico e econômico, mas pretende testemunhar uma evolução mais profunda, “pelas possibilidades de ordem social que encerra” (restituindo as palavras de Lucio Costa ao seu contexto original). Com 34.000 metros quadrados de superfície coberta em estrutura metálica, incluindo 9.000 metros quadrados destinados às ruas que o atravessam, ele anuncia um mundo novo a ser formado pela união orgânica das partes e no qual a unidade social o tornará capaz de realizar obras até então inimagináveis, e que contribuirão para favorecer o destino de indivíduos e povos. No seu Traité d’Architecture, Reynaud introduz a seção dedicada a esse tipo de edifício observando justamente que, na antiguidade, os mercados tinham um papel importante, constituindo a ágora e o fórum[21]. Embora ele acrescente, em seguida, que o mercado moderno tem um caráter diferente, e apesar dele ser lacônico na digressão teórica a respeito do Mercado Central de Paris, ele deixa implícito que o mercado conserva um grande potencial social.
E isto independentemente da técnica e dos materiais que o concretizam, pois ele próprio, depois de fazer o elogio do edifício de Baltard, valoriza o relativamente mais modesto Mercado de Trigo construído no século XVIII por Le Camus de Mézières. Esse edifício, mais fechado que aberto e consistindo “en une cour de forme circulaire entourée d’une large galerie voûtée”[22], constitui, embora Reynaud não o diga, uma versão em pequena escala da ágora e do fórum antigos, mas isolada e desprovida do caráter urbano e social dos precedentes da antiguidade (seguindo nisso a geometria analítica do Iluminismo). Mesmo que, em bom teórico saint-simoniano, o autor do Traité d’Architecture prefira pôr em evidência outros tipos arquitetônicos mais propícios a despertar a imaginação do público (como, por exemplo, o circo moderno que, para ele, se confunde com os pavilhões das grandes exposições), ele também incorpora, indiretamente, o mercado ao imaginário histórico dos arquitetos. Se o mercado moderno em estrutura metálica é muito mais aberto que fechado, muito mais dinâmico que estável, ele não é a última palavra, nem o resultado final de uma evolução. Aos olhos de Reynaud (e dos saint-simonianos em geral), ele é apenas um passo, ainda uma aposta, na direção do estilo do futuro; ele é, em outros termos, uma arquitetura de transição à espera de um novo equilíbrio. Seu tratado parece mesmo sugerir que, tipologicamente, o mercado do futuro tende ao equilíbrio entre o mercado mais fechado e estático de Le Camus de Mézières e o mercado mais aberto e dinâmico de Baltard.
Nesse contexto, em suma, o mercado é um tipo arquitetônico em plena evolução, sujeito a experimentações de ordem construtiva e compositiva. Além do mais, o objeto dessa evolução é a relação entre o caráter público e privado do edifício, que interessa não apenas à arquitetura mas também à cidade. Eis pelo menos dois bons motivos para Morales de los Rios dedicar atenção à construção de mercados em um Rio de Janeiro que aspirava então à modernização material e cultural; ele próprio elaborou projetos de mercados em estrutura metálica para a cidade, assunto que ainda merece ser estudado. Ou também para atribuir grande potencial compositivo à reconversão de um mercado preexistente, como é o caso do projeto descoberto por Ricci para a transformação do Mercado da Glória em escola de belas-artes. Certo, a opção pela instalação da Escola Nacional de Belas Artes no Mercado da Glória é anterior ao projeto de Morales e tem uma longa história, também reconstituída pela autora. Entretanto, a reconversão do mercado em escola de belas-artes inspira-se tão diretamente no edifício existente e, sobretudo, o projeto definitivo para o terreno da Avenida Central é tão semelhante ao projeto de reconversação[23], que a associação estabelecida pelo arquiteto entre mercado e escola de belas-artes mostra-se não ter sido ditada somente por questões práticas ou econômicas e ter muito de proposital. Afinal, como se sabe, Morales era um profissional prolífico e versátil, e certamente não se limitaria a transpor ao novo terreno um projeto anterior de reconversão somente por questões de prazo ou de comodidade. Acrescente-se ainda, como Ricci também o lembra, que ele era cioso do seu trabalho e considerava que as modificações e reformas realizadas à sua revelia no projeto para a Avenida Central e no edifício construído haviam descaracterizado a Escola Nacional de Belas Artes concebida por ele. As informações disponíveis parecem suficientes para se afirmar que, longe de se dobrar ao acaso, Morales acreditava, ao contrário, que o acaso favorecia tanto a concepção do seu projeto quanto a evolução geral da arquitetura. Questão igualmente de imaginário.
Uma leitura preliminar do projeto de reconversão de Morales já permite deduzir que ele tirou partido da porosidade do mercado existente[24]. Porosidade que, justamente, diz respeito à relação entre o caráter público e privado do programa de mercado: por um lado, ele deve ser suficientemente aberto para facilitar a circulação do público e convidá-lo a adentrar o edifício; por outro, ele deve ser suficientemente fechado para bem abrigar vendedores, compradores e mercadorias. Morales conserva quase toda a circulação do mercado preexistente; embora ele feche três das quatro ligações entre interior e exterior, toda a circulação do interior não se altera. Ele preserva a larga passagem principal em forma de quadrado que separa o bloco externo maior e o bloco interno menor, e mantém a circulação em forma de cruz que atravessa este último (e que originalmente atravessava todo o edifício). Como convém a uma escola, o acesso a partir do exterior é reduzido, mas o interior permanece poroso, a um só tempo aberto e fechado, valorizando o caráter público do edifício, ou da composição. A porosidade do interior tem razões tanto práticas quanto representativas; se a larga passagem principal do pavimento térreo serve para abrigar áreas necessárias de exposição, chamadas de museu de escultura, toda a circulação do mesmo nível, somada ao pátio central descoberto, convida o observador que já se encontra no interior a deambular pelo edifício e a desfrutar de algumas surpresas. Entre elas, em primeiro lugar, o fato de descobrir que a escola é mais que uma escola, de se dar conta que, mesmo fechando-se para o exterior, ela se abre em espaço público, ou semi-público, no interior. Tudo numa área relativamente reduzida e numa fatura econômica, tudo concentrado à espera de seu desenvolvimento: como uma obra de transição, como o germe de uma evolução futura.
Sem descartar o parentesco dessa solução com programas similares de escola de belas-artes, parentesco que naturalmente deve também ser levado em consideração em uma leitura mais desenvolvida, essa primeira abordagem mostra que a intenção de Morales era aperfeiçoar a composição de uma escola de belas-artes através da composição de um mercado, isto é, aperfeiçoar um tipo através do outro. Trata-se aqui do cruzamento proposital e experimental de dois tipos arquitetônicos de natureza distinta para gerar uma nova composição, contribuindo para o aperfeiçoamento de um tipo particular e para a evolução geral da arquitetura (ou para acelerar a transição). Nesse processo, a participação do mercado nasceu do acaso mas não foi indiferente. Ele era capaz de dinamizar um tipo ainda pouco tocado pelo impulso do progresso contemporâneo, reincorporando-o ao fluxo evolutivo da humanidade; ele tinha o potencial de restabelecer à escola de belas-artes a virtualidade histórica que as representações dos arquitetos atribuíam então a ele mercado.
Salvo melhor juízo na compreensão dos projetos de Morales de los Rios para a Escola Nacional de Belas Artes, eles exemplificam que, no historicismo, a prática da composição era alimentada muito mais pelo imaginário que pelo conhecimento teórico ou histórico direto. Eis talvez mais um dos grandes legados do século XIX. Os “bons doutores” da atualidade, guardiões zelosos de uma prática cega e vazia, terão quiçá sua vez de reconhecer que a (verdadeira) composição moderna é também a legítima herdeira de sua predecessora. Sondar a prática moderna sob a perspectiva da dimensão imaginária pode reservar algumas gratas surpresas. Ou ingratas, para quem ainda gosta de acreditar que a cultura arquitetônica do século XIX é irrelevante e continua a merecer o castigo de permanecer fora da história.
Referências bibliográficas
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[1] Marcelo Puppi é professor da Universidade Estadual de Londrina, mestre em História da Arte pela Unicamp e doutorando na Universidade de Paris 1. Publicou Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira e concluiu a tese La Dimension Culturelle du Rationalisme Structurel. Architecture, Histoire et Utopie chez Léonce Reynaud, Fernand de Dartein et Auguste Choisy.
[2] RICCI, Claudia Thurler. A Escola Nacional de Belas Artes - Arte e técnica na construção de um espaço simbólico. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ctricci_enba.htm>.
[3] Para um panorama geral da questão, ver LOYER, François (Org.) L’Architecture, les Sciences et la Culture de l’Histoire au XIXe siècle. Saint-Etienne: Publications de l’Université de Saint-Etienne, 2001.
[4] Ver PUPPI, Marcelo. A nova história do século XIX e a redescoberta da dimensão imaginária da arquitetura. Arquitextos, São Paulo, n. 058.02, mar. 2005. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq058/arq058_02.asp>.
[5] Sobre a relação entre teoria e narração histórica no século XIX, ver SIMONNET, Cyrille. Structure narrative et récit historique: l’exemple d’Auguste Choisy. LOYER, François (Org.) L’Architecture, les Sciences et la Culture de l’Histoire au XIXe siècle. Op. cit., pp. 51-61.
[6] Sobre o papel do imaginário no pensamento saint-simoniano, ver PICON, Antoine. Les Saint-Simoniens. Raison, Imaginaire et Utopie. Paris: Belin, 2002.
[7] Ver BERGDOLL, Barry. Léon Vaudoyer. Historicism in the Age of Industry. Nova Iorque: The Architectural History Foundation; Cambridge (Mass.)/Londres: MIT Press, 1994; VAN ECK, Caroline. Organicism in Nineteenth-Century Architecture. Amsterdã: Architectura & Natura Press, 1994; MIDDLETON, Robin; WATKIN, David. Neoclassical and 19th Century Architecture. Londres: Faber and Faber, 1987; VAN ZANTEN, David. Designing Paris. The Architecture of Duban, Labrouste, Duc and Vaudoyer. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1987; DREXLER, Arthur (Org.) The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1977.
[8] COMAS, Carlos Eduardo. Precisões Brasileiras Sobre um Estado Passado da Arquitetura e Urbanismo Modernos. Tese de doutorado (traduzida pelo autor), Universidade de Paris VIII, Paris, 2002, p. 103. Ver também LEONÍDIO, Otávio. Carradas de Razões. Lucio Costa e a Arquitetura Moderna Brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Edições Loyola/Editora PUC-Rio, 2007; PUPPI, Marcelo. Por uma História Não Moderna da Arquitetura Brasileira. Campinas: Pontes/CPHA-IFCH-Unicamp, 1998.
[9] COMAS, Carlos Eduardo. Precisões Brasileiras Sobre um Estado Passado da Arquitetura e Urbanismo Modernos. Op. cit., pp. 89-91; LEONÍDIO, Otávio. Carradas de Razões. Lucio Costa e a Arquitetura Moderna Brasileira. Op. cit., pp. 141-167.
[10] Sobre a concepção da arquitetura no Iluminismo, ver PICON, Antoine. From “Poetry of Art” to method: the theory of Jean-Nicolas-Louis Durand. Introdução à DURAND, Jean-Nicolas-Louis. Précis of the Lectures on Architecture. Los Angeles: The Getty Research Institute, 2000, pp. 1-68. Sobre a relação e diferenças entre as teorias arquitetônicas do Iluminismo e do século XIX, ver PUPPI, Marcelo. Léonce Reynaud e a concepção teórica do ecletismo no Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. III, n. 2, abr. 2008. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/ad_mpuppi_reynauld.htm>.
[11] COSTA, Lucio. Lucio Costa: Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 108.
[12] Idem, p. 111.
[13] Ibidem.
[14] Idem, p. 114.
[15] Idem, p. 111.
[16] Idem, p. 114.
[17] Idem, p. 111.
[18] Idem, p. 109.
[19] Sobre a natureza virtual da arquitetura, ver PICON, Antoine. Architecture, science, technology and the virtual realm. PICON, Antoine; PONTE, Alessandra (Org.) Architecture and the Sciences. Exchanging Metaphors. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 2003, pp. 292-313.
[20] Ver, principalmente, COMAS, Carlos Eduardo. Precisões Brasileiras Sobre um Estado Passado da Arquitetura e Urbanismo Modernos. Op. cit.; Lucio Costa e a revolução na arquitetura brasileira 30/39. De lenda (s e) Le Corbusier. Arquitextos, São Paulo, n. 22.01, mar. 2002. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq022/arq022_01.asp>; Arquitetura moderna, estilo Corbu, Pavilhão brasileiro. AU: Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 26, out./nov. 1989, pp. 92-101; Protótipo e monumento, um ministério, o ministério. Projeto, São Paulo, n. 102, ago. 1987, pp. 137-149.
[21] REYNAUD, Léonce. Traité d’Architecture. 3ª ed., t. 2, Paris: Dunod, 1870, p. 411.
[22] Idem, p. 416.
[23] C. Ricci reproduziu o projeto de Morales para a reconversão do Mercado da Glória em escola de belas-artes e o comparou à solução definitiva: “Morales manteve a organização do prédio em torno do pátio interno do mercado, criando mais uma ala intermediária - que antigamente servia como passagem - destinada a abrigar o Museu de Escultura. Com um programa de grande complexidade, a edificação foi projetada com dois pavimentos, assemelhando-se muito com a configuração que a Escola teria em seu projeto para a Avenida Rio Branco”. RICCI, Claudia Thurler. A Escola Nacional de Belas Artes - Arte e técnica na construção de um espaço simbólico. Op. cit.
[24] Empresto aqui, aplicando-a a outro contexto, a noção de porosidade que Carlos Eduardo Comas desenvolve nos seus estudos sobre a arquitetura moderna brasileira (ver nota 20 acima).